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Mitomania como defesa num caso de personalidade histérica

REGISTRO DE CASOS

Mitomania como defesa num caso de personalidade histérica

Darcy Mendonça Uchoa

Docente-livre de Psiquiatria na Fac. Med. Univ. São Paulo

RESUMO

Trata-se de interessante caso de mitomania com acentuadas desordens do cormportamento de tipo histérico, que teve recentemente larga repercussão na opinião pública de S. Paulo. Uma postulante de um dos mosteiros desta Capital queixou-se de estar sendo vítima de estranha perseguição amorosa por parte de um antigo pretendente à sua mão e também da parte de sua mãe, ambos tendo feito várias tentativas, de morte contra sua pessoa. Apresentava sempre provas objetivas de sua alegações: janelas de sua cela com vidros partidos, ferimentos como demonstrações de punhaladas recebidas, cartas ameaçadoras com assinatura do perseguidor, pequeninos papéis em meio aos alimentos com frases ameaçadoras, etc. A queixa foi levada ao Gabinete de Investigaçõs e, por ordem do Juiz de Menores, foi a paciente internada no Hospital Psiquiátrico Pinel.

A simulação desfez-se, mas foi notada a grande capacidade de fabulação por parte da examinada, ressaltando no quadro mental a superprodutividade de sua imaginação. Foi feito o diagnóstico de "mitomania numa personalidade histérica" e a paciente foi exaustivamente estudada, do ponto de vista psiquiátrico e psicológico. Além dos exames de rotina, foi submetida ao psicodiagnóstico de Rorschach, à investigação pela narcossíntese, a sessões várias de investigação analítica, sendo possível uma formulação psicodinâmica do quadro psicopatólógico. Com intensos conflitos intrapsíquicos radicados nos pais (típica situação edipiana) mais agravados ainda pela rotura de um afeto amoroso no início da puberdade, tentou a sublimação na vida religiosa, em parte sob influência do ambiente católico da casa dos avós, onde passara boa parte de sua infância. Falhando tal sublimação, desejou inconscientemente escapar da vida árdua do mosteiro com o comportamento histérico entretido pela atividade mitomaníaca. Esta teve por conteúdo o lado positivo e o negativo da constelação edipiana: agressividade para a mãe e amor impossível pelo pai, projetado na perseguição amorosa que tão febrilmente fantasiou. A superprodutividade imaginativa funcionou como "derivativo" dos conflitos inconscientes, para manter reprimidos os desejos proibidos, ao mesmo tempo compensando-se com a situação fantástica que secundàriamente criou na fenomenologia mórbida. A mitomania desenvolveu-se, pois, como mecanismo de proteção por parte do ego, tal concepção psicodinâmica acarretando promissoras perspectivas para a psicoterapia analítica.

SUMMARY

The patient was referred to psychiatric observation for her hysterical behavior which threw the population of a convent into a panicky situation. She was a novice and complained that she was being forced upon by a former boy friend and her mother. She claimed that both partners were upset by her stubborn refusal to give up the career and marry the young man and thus started trying to get her shot to death. Broken windows, menace notes bearing the boy's signature, small pieces of paper with dramatic words and picked in her own foods, even skin scars were on the burden of proofs to support her claims. The Juvenile Court was called upon and the patient then admitted to a estate hospital (S. Paulo, Brasil) in the ward of which the malingering was readily disclosed.

On the basis of routine examination, the Rorschach test, narcosyn thesis interview and several psychoanalytic sessions, the author arrived at the diagnosis of "mythomania in a hysterical psychopath". Psychodynamic formulation was basically that of a typical Oedipus situation, precipitated by frustrated love at the puberty. The patient made an attempt at sublimation by entering the religious career, but failed to accomplish any gratification. She next withdrew into the hysterical behavior led by her mythomanic overprodution. The latter reflected both negative and positive counterparts of the Oedipus constellation through aggressivity toward the mother and the camouflaged love toward the father as uncovered by the fancied love dashing at her.

In the foregoing case the surface symptom of frantic imagination was only a derivative for the unconscious striving aimed at repression and acted as a secondory compensation. It seems warranted to label mythomania in this peculiar patient, as a defense mechanism of the ego, a standpoint that clear the way for psychoanalytical therapy.

A presente comunicação refere-se a paciente internada a 17 de junho de 1946 no Hospital Psiquiátrico Pinel por determinação do M.M. Juiz de Menores de S. Paulo, a fim de ser submetida a exame de sanidade mental em face de toda uma série de fatos que vinham sucedendo a partir de abril do mesmo ano.

M. H. C, branca, brasileira, solteira, com 16 anos de idade, noviça postulante de um dos mosteiros deste Esado, iniciando sua vida religiosa há cerca de 2 anos. Queixou-se à Irmã Superiora de que estava sendo vítima de perseguição por parte de um rapaz - J. C. - que pretendeu sua mão pouco antes de iniciar a vida religiosa. Narrou longa série de fatos que teriam ocorrido meses antes e que prosseguiam agora, pondo em grande risco sua honra e vida. Em suas declarações à Irmã Superiora, ao Juiz de Menores e a nós mesmo, manteve sempre as mesmas Fafirmações: em essência, era perseguida por sua própria mãe, que pretendia forçar sua entrada para centros de macumba e baixo espiritismo e por J. C., que pretendia desonrá-la a fim de ser expulsa do convento e com ele unir-se pelo casamento ou ilicitamente. Resumimos suas declarações, a seguir, tal como as prestou no Cartório Privativo de Menores:

"Estava no Sanatório Pequenas Missionárias quando recebeu, certo dia, a visita da mãe; foi por ela obrigada a comer uma empada envenenada; passou muito mal, vomitou sangue; as Irmãs desconfiaram que estava tuberculosa, mas a chapa radiográfica foi negativa; outro dia, J. C. penetrou no quintal e jogou um punhai tendo na ponta um bilhete com a frase "o amor é cego, não conto com a vida"; ele foi amigo de seu irmão e estava sempre em sua casa; J. C. perseguia amorosamente a declarante, que nunca lhe deu atenção; recusou sua mão e, no dia do pedido, sua mãe deixou-a sozinha com ele; atirou-lhe café quente à cabeça pelo fato de lhe ter dito ele cousas imorais; J. C. hoje é advogado, usa bigode, é de estatura mediana; não conhece a família dele mas ouviu dizer que mora em Rio Preto e advoga em Pinheiros; certo dia, ao ir mudar de roupa, notou que J. C. a espiava e açulou contra ele um cachorro; no Colégio recebia cartas de sua mãe, a primeira que leu sendo imoral, pois lhe ensinava como tentar o sacerdote no confessionário; certo dia, Paulo de tal, irmão da amásia de seu irmão, apareceu lá, dizendo-lhe que assinasse uma consagração espírita, o que recusou, sendo por ele ameaçada com revólver; Paulo quis pregar sua mão na parede, tendo chegado a furar a palma, como mostra, não tendo prosseguido por que o sino do colégio tocou e ele, amedrontado, fugiu; depois disso, foi apunhalada, por Paulo, o ferimento tendo sido leve; foi socorrida por um pedreiro e por um moço que passava na rua do Laticínio; outra vez, foi surpreendida no colégio por J. C. que, de máscara, disse que ninguém tinha o direito de saber dos seus segredos e que, se ele soubesse ter ela se confessado, a mataria e ao sacerdote também; nesse instante, J. C. deu-lhe uma punhalada e uma pessoa que não sabe quem seja, da porta do convento deu-lhe um tiro; soube que tinham telefonado ao Gabinete de Investigações avisando que a declarante ia ser morta, nessa ocasião já estando o convento guardado por dois investigadores e um inspetor; que, no dia indicado, às cinco horas da manhã, na porta da cozinha do colégio, a declarante foi assaltada por J. C armado de punhal, tendo gritado e sendo socorrida pelo inspetor, tendo havido troca de tiros entre ele e J. C.; afirma ser sua mãe conivente em toda essa perseguição, pois ela é falsa e cega por dinheiro".

Em outra parte de suas declarações ao Juiz de Menores, afirmou ser sua mãe freqüentadora de bordéis, casas de macumba e baixo espiritismo, andar à noite, de todo despida, em sua casa, no meio de homens que visitavam a casa na ausência de seu pai, não poupando assim esforços por prostitui-la e arrancá-la da vida religiosa. De par com tais alegações, fatos estranhos iam ocorrendo em qualquer lugar que estivesse a examinada: vidros de janelas misteriosamente partidos (agressão de J. C. e companheiros); pequeninos fragmentos de papel em meio aos alimentos com palavras alusivas a amor, morte, sangue, desonra, casamento; ou cartas anônimas que dizia ter recebido (a paciente tem extraordinária habilidade de imitar letras ou assinaturas), etc. Por tudo isso, o convento e o H. P. Pinel estiveram sob vigilância policial, o Juiz tendo determinado "proteção física" à examinada.

Antecedentes Pessoais e familiais. Nascimento a termo, de parto normal, os primeiros passos e os primeiros esboços de palavra com 1 ano. Contraiu grave doença, segundo informa a mãe, aos 7 meses, perdurando oito dias. Diz a informante ter sido meningite, pois havia contrações e distensão geral do corpo. Restabeleceu-se com relativa facilidade e essa doença não influiu aparentemente no seu desenvolvimento físico e psíquico. Em agosto de 1945, tendo falecido sua irmã, reagiu patologicamente: teve crises convulsivas, com parcial perda do conhecimento durante as 24 horas que precederam ao sepultamento, tendo os clínicos locais diagnosticado "histeria". Em seguida, apresentou certa modificação do estado mental a se refletir no comportamento: inflação psíquica moderada, humor alegre, tendência ao riso fácil, não raro pronunciando frases de conteúdo erótico. Liberdade de maneiras contrastando com a sua atitude anterior; imitava os companheiros do sexo oposto em atos como subir em árvores, assoviando um tanto ostensivamente junto aos pais canções por eles proibidas, etc. Aliás, os professores já haviam notado que a precariedade de sua produção psíquica dependia, não de insuficiência de inteligência - que esta se mostrou sempre pronta, viva, em nível médio - mas sobretudo de certa inquietação e instabilidade psíquica, certo misto de alegria e irritabilidade, rebelde sempre ante as exigências disciplinares da escola. Sete dias após seu nascimento, foi residir com os avós maternos, em ambiente demasiado religioso, voltando à companhia dos pais após completar oito anos de idade. Pouco antes de entrar para o primeiro colégio religioso, apaixonou-se por um rapaz, tendo os pais proibido o casamento. Já exteriorizara antes seu desejo de ingressar para a vida religiosa, o qual se fortaleceu com a rotura desse laço amoroso. Ingressou então para a vida monástica, prematuramente interrompida por todos os sucessos já referidos. Nada de particular quanto aos antecedentes hereditários. Dos 7 filhos que tiveram seus pais, 2 faleceram durante a infância e outro aos 17 anos de idade. Um irmão da paciente cumpriu pena por furto (2 anos) e outro mora com a família, unido ilegalmente a uma mulher, o que tem provocado objeções de ordem moral por parte da examinada.

Exame psíquico. Envergando sempre seu hábito de religiosa, apresenta-se M. H. C. nas diversas sessões de exame em atitude correta, tranqüila, respondendo com boa vontade às questões formuladas, aparentemente cooperando no sentido do esclarecimento dos seus problemas. Repete uma e mais vezes, quando solicitada, as afirmações feitas ante o Juiz de Menores, com pequenas variantes, por vezes, mas em essência repetindo quase esteriotipadamente sua longa história: perseguição por parte de J. C. que, em sua "idéa fixa" de com ela contrair matrimônio, não tem hesitado em levar a efeito as mais variadas e extravagantes tentativas de crime. Narra com cada vez mais ricos pormenores, fatos de sua infância, os primeiros encontros com J. C, o amor dele e o pedido de casamento, a insistência da mãe para que o aceitasse, sua tenaz recusa, sua vocação religiosa, cenas múltiplas de hostilidade e perseguição por parte de sua mãe, o mau procedimento desta tentando conduzi-la a centros de macumba e prostituição, ou então atraindo homens para o próprio lar transformado em repugnante bordel. Vezes outras, refere-se ao próprio pai como foragido criminoso que a ama muito e, como prova de amor, confiou à filha querida toda uma longa e terrível história de banditismo e crime. Assassinara o próprio pai (avô da examinada), para dele furtar o título de conde e também por represália ou vingança, por ter sido internado, contra sua vontade, em um mosteiro na Síria. Não hesitara na fabricação criminosa de papel-moeda falso e, muitas vezes, a examinada observou, no quintal de sua casa, grande quantidade de dinheiro em papel secando, imediatamente antes de ser posto em criminosa circulação. Todavia, após tais asserções, à guisa de certo arrependimento ou remorso, afirma que ele é muito bom, meigo e carinhoso, que nada tem contra ele, mas que odeia sua mãe por ser "falsa, mentirosa, louca por dinheiro" (sic). Diz que está ela de acordo com J. C. e, além de ter sido diretamente ferida, apunhalada pela própria mãe por se ter recusado a fazer "consagração" espírita e desposar J. C., é ela quem orienta J. C. e Paulo de tal na maioria dos atentados de que tem sido vítima a paciente.

Quanto ao motivo fundamental de tal perseguição e de tais atentados, explica a examinada: "querem desonrá-la (já que não consegue J. C. sua mão em casamento), para que seja expulsa do convento e por fim o aceite como esposo". E repete enfaticamente: "não serei mulher dele nem de ninguém, mas sim a esposa de Cristo". Logo ao entrar neste Hospital, afirmou a examinada ter visto J. C. por trás duma árvore de um dos páteos e convictamente disse: "ele espera apenas uma oportunidade para realizar os seus desejos". E não tardou que se realizassem suas suspeitas. Vidros das janelas foram misteriosamente quebrados e, quando isso sucedia, enfermeiras afirmavam estar a paciente longe da janela, por mais duma vez com as mãos presas entre as suas e até "ficava a examinada muito assustada", com tontura e palpitações, a procurar abrigo e proteção. A maioria das janelas com vidros partidos, pequenos fragmentos de papel com frases alusivas a amor, morte, sacrifício, sangue, etc. encontrados no meio de seus alimentos, as contínuas asserções da examinada de que sua vida corria perigo, tudo dava um aspecto geral de algo extraordinário, misterioso, não sem laivos de comicidade e ridículo, pois era de ver-se sua tranqüila indiferença ao narrar todos esses alegados atentados à sua vida. Mesmo imediatamente após a suposta agressão (pedras ou setas quebrando vidros, ou ameaças em cartas, ou pequenos fragmentos de papel em meio aos alimentos), permanecia impassível ou sorria dissimuladamente, expressando assim íntimo contentamento pelo que se passava ao seu derredor. "Belle indifference", escreveu Charcot.

Solicitada a presença de uma enfermeira experiente e atenta, foi surpreendida a examinada quando, num gesto de astúcia e grande rapidez, com seu próprio sapato, tentava quebrar mais um vidro de mais uma janela do Hospital. Negou a princípio, admitiu logo que era "obra do demônio" para, logo após, vendo-se perdida, tudo confessar... E confessou tudo. J. C. é um rapaz pacato que jamais pensou em amar e, muito menos, desposar a examinada. Paulo de tal não existe. Tudo nada mais foi que seu desejo de fabular, fantasiar e tomar parte num romance cujo conteúdo foi tomado de muitos contos e de novelas policiais, outrora sua predileta leitura. Mencionou-nos "A Filha do Povo", que diz ter lido cerca de cinco vezes durante noites de vigília e insônia de sua mãe. Quase gravou-o inteiramente no seu cérebro, afirma. Quis fantasiar, viver como heroína e criou e fantasiou: "Era uma vez... uma moça perdidamente amada por um jovem que não receava de, a todo instante, escrever "o amor é cego, ou M. H. C. ou a morte". A moça não gostava dele mas de Cristo, e foi para um convento. Disse: "o meu prazer era pôr a polícia em movimento e quanto mais acreditavam em mim mais difícil se tornou eu tudo confessar". Atualmente, diz-se arrependida. Escreve-nos repetidas cartas, solicitando nossa intervenção para que seja perdoada pelo Juiz, pelas Irmãs Superioras, pelo Bispo, pelos seus próprios pais. Diz sentir-se feliz em "tudo ter sido desfeito, descoberto". Esclarece minuciosamente a técnica empregada para a todos enganar: pequenos pedaços de papel (recortes de jornal, revistas), às dezenas nos interstícios de seu hábito de noviça dissimuladamente colocados nos pratos com alimentos, o sapato habilmente tirado e vibrado sobre os vidros das janelas, telefonemas misteriosos para o Gabinete de Investigação, de que ela própria foi a única autora, em rápidas fugas do convento.

Tudo confessou e, arrependida, promete corrigir-se. Por algum tempo ainda manteve as fantasias do mau procedimento dos seus pais, último reduto que relutou em abandonar. Mas abandonou-o por fim. Continua demonstrando sua capacidade para tabular, seus fortes traços mitomaníacos, a riqueza algo descontrolada de suas funções imaginativas, em pequenos contos que submete à nossa leitura. Revela neles precária cultura intelectual, graves erros gramaticais, algumas faltas de coerência em seus conceitos, mas acentuada capacidade imaginativa, criando situações estranhas e fantásticas para seus personagens. Comunica-nos que deseja ser agora repórter policial, desvendar crimes perigosos com risco de sua própria vida, quer ser útil à Polícia e à Pátria. Pediu ao enfermeiro-chefe que trouxesse um revólver para que aprendesse a atirar. Ou então fantasia cenas que mostram a influência do cinema, nas proezas de gangsters ou cowboys. Vê-se cavalgando em grande velocidade, dando tiros num gesto heróico de salvar alguém em periiro. Revela, todavia, certa capacidade de domínio de tais desejos e tendências. Recebeu com satisfação a visita dos pais, mostrando-se carinhosa para o progenitor e esquiva ou levemente hostil para com sua mãe. Poucos dias anos, escreveu a ela pedindo perdão e prometendo comportar-se bem para o futuro. Não revelou jamais fenomenologia mórbida de tipo psicótico: idéias delirantes, pseudo-percepções. desorientação auto e alopsíquica, frases sem sentido, comportamento extravagante não passível de ser compreendido ou explicado psicologicamente, sinais mórbidos de tipo psicomotor, etc. Excetuando os atos em relação com sua atividade fantástica e mitomaníaca, com seu desejo de atrair a atenção, nas atividades da vida cotidiana, seu comportamento permaneceu sempre dentro dos limites da normalidade.

Psicodiagnóstico de Rorschach. R: 32, T: 59, T/R: 1, 9, G: 7, D: 22, d: 3. F%: 55, F +: 12, M: 0, FM: 1, F-: 5, C: 2, CF: 4, FC: 5, Int.: 1. cF: 1, Interp.: 1, H: 1, Hd: 4, A: 5, Ad: 1, At: 8, obj.: 3, sangue: 3, desenho 2. PI.: 1. ferida: 1, tinta: 1. Interpretação: 2. Cartões mais bonitos: 8, 9, 10. Os mais feios: 1, 2, 4.

Na primeira coluna ressalta a preferência para os grandes pormenores, os D, enquanto se evidencia a dificuldade para respostas globais, que são pobremente elaboradas. O mundo exterior, os aspectos práticos da vida atraem a atividade mental da paciente. O F% excede levemente 50%, sugerindo, à primeira vista, discreta tendência à constricção. Mas destaca-se na 2.a coluna a reatividade à determinante cor, ou melhor, sua reação às cores vivas, brilhantes: 2C, 4 CF, dando apenas uma resposta de textura, uma cF. Nenhuma M. Tipo de vivência largamente extratensivo com perturbações na esfera afetiva, isto é, descontrole emocional, sugerindo mesmo conflitos mentais intensos e impossibilidade de controlá-los. A inexistência de M denota ausência de controle interno acrescentado aqui da ausência de controle externo pelo aparecimento de 2 C puras, não sublimadas, 4 CF, embora se esforce por equilibrar tão grande reatividade à cor, com os elementos formais nas 5 FC que produz.F

Choque cromálico (cores vivas): 80" para a primeira CF do cartão 2 (2 artérias para os vermelhos superiores), logo outra CF (4.a resposta do mesmo cartão) produzindo em seguida, algumas F; 60" para produzir uma C pura no 8.° cartão, quase rejeição do cartão IX, perturbada e perplexa ante seus elementos cromáticos. Exclamações, dúvidas, empobrecimento do conteúdo das respostas estão a traduzir com clareza o choque de cor, tão bem descrito por Brosin e Fromm. Mas não há choque ante os cartões escuros, sombreados, o que, juntamente com ausência dos claro-escuros, tão bem se reflete na ausência de ansiedade, na sua "belle indifference". Como é sabido, descreveram Miale e Harrower Erickson nove sinais nos neuróticos: R nao excedendo 25, M não mal? que uma, FM em maior número que M, choque de cor, choque de sombra, recusa de um ou mais cartões, F% maior que 50%, FC não mais que uma. Em nossa paciente notamos: R algo aumentado (32), nenhuma M e uma FM, choque de cor, quase recusa de um cartão (o 9.°), F%: 55, e certa tendência, quanto ao conteúdo, para as respostas anatômicas antes que para as animais (desejo de parecer culta nessa preocupação com assuntos de anatomia, por estar internada em hospital, num ambiente médico, portanto). Tem o presente protocolo a maioria dos sinais descritos por Miale e Harrower Erickson. Como assinalaram Klopfer e Kelley (The Rorschach Technique, 1942, pág. 390): "Histéricos mostram profundo choque de cor e freqüentemente exagerada reação aos cartões coloridos em forma de cor pura (C) e CF (cor forma) indicando sua egocentricidade, afetividade descontrolada, dependência e fácil influência em relação ao meio exterior. Suas F podem ser ou não bem vistas, mas geralmente são mais pobres que nos estados de ansiedade e nos tipos obsidentes-compulsivos". O presente protocolo sugere, portanto, tratar-se de uma psiconeurótica de tipo histérico, cuja vida instintiva-afetiva se mosra bastante perturbada, incapaz de rica produção interior e de controle externo, capaz, portanto, de exteriorizar graves irregularidades de comportamento, o que a aproxima, do ponto de vista diagnóstico, de um tipo de personalidade psicopática (histérica), antes que de uma forma ricamente autoplástica (histeria com sintomas na esfera somática).

Investigação pela narcossíntese (Colaboração com Dr. Sebastião Rodrigues Machado, em 19-7-1946). Tempo total de exploração: 1 hora e 10. Injeção venosa lenta (1 cc. por minuto) de solução de tionembutal (1,0 em 20 cc. de água bidestilada). Leve narcose ao receber 4 cc. Referiu os mesmos fatos já conhecidos, compreendendo agora os dois períodos separados pelo episódio crítico em que confessou a simulação. Acrescentou, todavia, demonstrando certa emoção, que "amou com loucura certo rapaz com 28 anos de idade e que estava afetado por tuberculose pulmonar". Por esse motivo e por ser muito jovem, sua mie proibiu o namoro, opondo-se a qualquer tentativa de casamento, fazendo-a voltar da casa dos avós freqüentada pelo tal rapaz. Teve, por isso, grande desgosto e "entrou para o convento para esquecê-lo" (sic). A uma pergunta nossa, diz que hoje ele lhe é de todo indiferente. Diz que "o pai tem loucura por ela", que a mãe, porém, preferia a irmã falecida, o que lhe causava " ressentimento" (não aceitou a palavra ciúme sugerida por nós). Acrescentou ainda que, quando ela faleceu, fingiu ataques.

Condições físicas - Paciente de cor branca, de estatura média, tipo preponderantemente leptossômico, ótimo estado de nutrição, sem vícios quaisquer na conformação óssea. Ulcerações superficiais na região clavicular dos dois lados, de forma circular à esquerda e à direita, oblonga, quatro outras disseminadas da região mamaria esquerda à abdominal média. Todas superficiais, com tendência à dcatrização. Informou a examinada, a princípio, traduzirem elas as punbaladas e depois disse serem feitas com lâminas de gilete cuidadosamente desinfetadas e mais cuidadosamente ainda manejadas. O exame dos diversos aparelhos nada de anormal revelou. Temperatura axilar 36°,2 (pela manhã); pulso a 76; pressão arterial 11-7 (método auscultatório). O exame objetivo do sistema nervoso foi igualmente negativo.

Exames complementares - Reações de Wassermann, Kahn, Eagle negativas no sangue (Dr. Brandi). Reações liquóricas dentro dos limites da normalidade (Dr. Brandi). Exame neurocular normal (Dr. Cândido da Silva).

Diagnóstico diferencial. Discussão. Trata-se de paciente que, há cerca de dois anos, iniciou sua carreira religiosa, vivendo ultimamente sob o regime de abstenção severa e rígida disciplina da vida monástica. Há poucos meses, surpreendeu as irmãs religiosas e agitou o ambiente severo e pacato do convento, com queixa de que estava sendo víüma de estranha perseguição amorosa per parte de um jovem, antigo pretendente à sua mão. A queixa tornou-se cada vez mais convincente, pois as palavras da noviça eram a cada momento aparentemente confirmadas por fatos os mais estranhos: janelas quebradas, cartas ameaçadoras que recebia fragmentos de papel em meio aos alimentos, sinais das agressões alegadas sob forma de lesões no corpo da examinada. A queixa foi levada ao Gabinete de Investigações; o convento, de ambiente sóbrio e austero, passou a receber a proteção da Polícia. Zombando da capacidade de vigilância dos investigadores, telefonemas misteriosos chegados ao Gabinete Policial anunciaram certa vez, dia e hora em que se realizaria o rapto da noviça. No local e hora anunciados, houve indícios da presença dos raptores, troca de tiros entre os investigadores, etc. A perseguição prosseguia sempre secundada por tentativas mais ou menos frustadas de homicídio, enquanto a imprensa ia not:ciando os estranhos acontecimentos. Entregue ao Juiz de Menores foi, por ordem dele, internada no Hospital Psiquiátrico Pinel. A farsa continuou por pouco tempo e, apóts os sucessos referidos em outra parte deste trabalho, veio a confissão franca, leal, por parte da examinada.

Do ponto de vista da investigação policial ou mesmo da perícia psiquiátrico-legal visando particularmente o problema da simulação, o caso poderia ser considerado como encerrado e nossa tarefa terminada com a confissão pura e simples por parte de nossa examinada. Todavia, não só à investigação científica interessam maior precisão diagnostica, maior aprofundamento do "diagnóstico de personalidade" neste caso. Tal esclarecimento atinge de cheio o âmago do problema terapêutico e prognóstico. M.H.C. não é uma simuladora cemum. Diz-nos sempre: "Eu queria parar de dizer e fazer tudo aquilo mas não podia". A paciente, dotada de alta capacidade imaginava, fabulava sempre e cada vez mais. Inventava, com rapidez extraordinária, difíceis e estranhas situações e as punha em prática sem demora. Mesmo após suas primeiras confissões, relutou em abandonar outras alegações fantásticas e foi a contragosto que por fim confessou "tudo ser invenção de sua cabeça" (sic). Escreve contos com extraordinária facilidade, de conteúdo fantástico, cem situações estranhas e laivos de mistério. Com precário grau cultural, com relativa pobreza do patrimônio ideativo, compensa tais insuficiências com a superatividade imaginativa de que é dotada.

Orientar-nos-emos na análise da fenomenologia psíquica exteriorizada e na dos móveis do seu comportamento, para melhor compreensão diagnóstica. Supenprodutividade imaginativa, mitomania, aproximando-se esta do tipo "maligno e perverso" descrito por Dupré. Mitomania no sentido desse grande psiquiatra francês, como "a tendência constitucional à alteração da realidade, à fabulação, à mentira e à simulação". Tal conceito aproxima-se muito, até não raro se confundir, com o de histeria, ou melhor, caráter histérico, personalidade histérica, com acento não na "simulação do patológico" (Logre), não na capacidade de conversão somática (histeria de conversão de Freud) ou mitoplastia (Dupré, Logre), mas em francos distúrbios de caráter (neurose de caráter, caráter neurótico dos autores psicanalistas.) integrados no moderno conceito de personalidade psicopática (personalidade neurótica). Personalidade psicopática de tipo histérico ou oniróide (Mira), constituição histérica (Bumke), onde ressalta esse desejo de chamar a atenção, de atrair e focalizar o interesse do ambiente (Jaspers), de viver cenas onde o exibicionismo, a perversão, o sadismo se entrosam, dando esse aspecto teatral, espetacular, com traços de mistério e falsa grandeza. Em apoio de tal diagnóstico está também o fato de já ter ela desenvolvido crises convulsivas diagnosticadas como piliáticas por ocasião do falecimento de sua irmã, aos 14 anos de idade, seguidas de modificações do comportamento também de tipo histérico. Não se nos afigura razoável postular aqui a "pseudologia fantástica" de Delbrück, onde as pseudo-remíniscências e o acentuado enfraquecimento do juízo crítico parecem predominar sobre a fabulação consciente, não raro a paciente tendo firme convicção da realidade de suas produções mórbidas. M.H.C. foi sempre consciente de que estava simulando. Sentia impulso para fabular e para viver suas fabulações em ação, o que dá ao quadro franco colorido histérico. Mitomania, concluímos nós, com desordens acentuadas do comportamento, sem aceitarmos, todavia, com Dupré, a absoluta determinação constitucional e isso pelos motivos que passamos a expor.

Aspecto psicodinâmico - Nas primeiras sessões de exame afirmou a paciente ter vocação religiosa desde os 8 anos de idade e a explicava pelo ambiente demasiado católico em que foi criada, com seus avós, em Aparecida do Norte. Asseverou jamais ter tido qualquer interesse amoroso, aspirando devotar-se de corpo e alma aos misteres divinos como pura e amantíssima esposa de Cristo. A afirmação feita por uma colega de que não tinha vocação religiosa provocou violenta reação, rápido protesto. Seus pais informaram, todavia, que ela amou certo rapaz em Aparecida do Norte, querendo com ele contrair matrimônio. Contava a paciente 14 anos e ele, 28. Os pais se opuseram c teve ela que voltar para casa deles. Durante suas associações em leve narcose pelo tionembutal venoso não só confessou que "amava até à loucura o tal rapaz", como que sua decisão de entrar para o convento foi uma tentativa desesperada para esquecê-lo para sempre. Parece ter conseguido reprimir tal conflito, mas falhou nos seus esforços de sublimação religiosa, não resolvendo assim outros conflitos mais fundamente radicados. Sempre demonstrou certa hostilidade para a mãe, pela preferência que esta demonstrava pela irmã falecida, enquanto afirma ter sido a preferida do pai. Tal hostilidade d.ve ter aumentado muito com a proibição de seu matrimônio, principalmente pela genitora. Tal ódio retornou da repressão com as críticas, calúnias que lançou contra sua mãe, incentivando a capacidade imaginativa no sentido de colocá-la como sua principal perseguidora. Sempre elogiou muito o pai, e quando fantasiou ser ele um criminoso, logo acrescentou: "somente a mim confiou ele este segredo, porque gosta de mim com loucura" (sic). Não se nos afigura descabida a suposição que J. C., que pretende um amor impossível, seja apenas uma contraface do seu grande conflito: o amor impossível pelo pai. A atividade mitomaníaca desenvolveu-se para mascarar, compensar, derivar sempre tão insuportável sofrimento, uma vez falhada a sublimação religiosa.

A paciente quer atualmente ser repórter policial, desvendar crimes com o risco da sua própria vida, quer dar tiros, matar para salvar velhos e inocentes e aceita já que não mais pode voltar à vida do convento. Falhados os esforços para sublimar, tenta fugir ao sofrimento, dando vasão mais uma vez às tendências reprimidas, agora principalmente de conteúdo sádico. Precisa de tudo isso para, conseguir certo equilíbrio intrapsíquico. Que seu conflito básico é principalmente na esfera emotiva, confirma a psicodiagnóstico de Rorschach: choque de cor; falta de controle interno (nenhuma M) e externo (2C, 4CF, 5FC), tipo de vivência predominantemente extratensivo, enquanto a "belle indiférence", a falta de ansiedade se reflete n.a ausência de respostas claro-escuro (K, FK, k, C, ou Cies, na terminologia nacional), dando apenas uma cF (textura). Mesmo a baixa incidência de F positiva, a falta de riqueza interior de sua atividade psíquica (nenhuma resposta original, poucas e mal elaboradas G e nenhuma M) estão em relação aqui, em grande parte, com inibiçõeis por conflitos na esfera afetiva, antes que por insuficiência intelectual.

Cremos que irregularidades na casa dos pais (um irmão tendo cumprido pena, outro unido ilicitamente a uma mulher e vivendo com a família, pai sempre ausente de casa por necessidade de sua orofissão), a contrastar com o ambiente repressivo religioso da casa dos avós, o contacto periódico cem os pais e irmãos, atmosfera propícia para o incremento de fantasias de tipo incestuoso, dando precoces conflitos intrapsíquicos, tudo isso foi de molde a facilitar o estabelecimento de repressões como defesas patogênicas em nossa paciente. Seu desequilíbrio afetivo-imaginativo, certos traços de perversidade e sadismo, certa hipertrofia das funções de produção e reprodução psíquicas a serviço das tendências reprimidas, o desajustamento profundo de sua personalidade em face a tais prcblemas não solvidos, tudo isso nos leva a opinar que, ao lado de certa predisposição constitucional (cuja natureza exata desconhecemos), fatores ambientais atuaram preponderantemente, dando essa incapacidade fundamental de adaptação que vem a paciente demonstrando. Julgamos ter havido acentuada perturbação na evolução da vida instintivo-afetiva, incompleta integração da personalidade, que, em muitos aspectos, continua a proporcionar rendimentos psíquicos de tipo infantil, traços de puerilismo ressaltando em suas fantasias, em seus atos anormais, em suas alegações, onde se mostram deficientes as funções de frenação, inibidoras e controladoras da vida impulsiva e básica. As irregularidades do ambiente familial e as já assinaladas condições em que viveu seus primeiros anos dificultaram, senão impossibilitaram mesmo, a normal identificação com a genitora e a aceitação do papel feminino. Como esforço por resolver a situação edipiana, tentou identificar-se com o pai, desenvolvendo-se as fantasias do tipo masculino (papel heróico, vendo-se como gangster, cowboy a salvar velhos e crianças em perigo, etc). De qualquer forma, parece gozar acentuada importância nessa má integração de sua personalidade e no quadro psicopatológico, o fato de não ter conseguido satisfatória identificação com qualquer dos genitores. Falhou a sublimação tentada na vida religiosa (por intensidade dos conflitos, deficiente capacidade de sublimação por motivos que em grande parte desconhecemos), as desordens do comportamento nas circunstâncias em que se realizaram e a amante traduzindo uma fuga da vida solitária, de abstenção forçada e absoluta, do mosteiro, absolutamente incompatível com as necessidades e tendências de nossa paciente.

Nada mais se nos afigura necessário acrescentar para que seja justificada nesse caso a indicação de uma psicoterapia ampla, sistematizada, visando a liberação de impulsos e tendências reprimidos, solução dos conflitos, eventualmente secundada por técnicas de reeducação terapêutica, a chamada psicagogia. Somente assim, é uma convicção nossa, poderá se tornar capaz de enfrentar os problemas da vida, dar-lhes solução adequada, igualmente adaptada às solicitações de sua vida interior, do seu mundo subjetivo.

Trabalho apresentado ao 1.° Congresso Médico Interamericano (Rio de Janeiro) em setembro de 1946.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Set 1947
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