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Reações exopsicógenas: Reações psicógenas em terreno alterado

Resumos

O autor aborda o estudo do diagnóstico etiológico em doentes que, sendo portadores de alterações orgânicas leves (incapazes de se denunciarem com fisionomia somática ou psíquica própria), apresentam sintomas aparentemente psicógenos, compreensíveis (Jaspers), decorrentes da situação difícil que enfrentam. Discute-se se há sinais psíquicos seguros, capazes de indicar que o fator exógeno está em jôgo. O Autor lembra as contribuições de Hoche, Kleist, Bonhoeffer, Stertz e Kurt Schneider; êste último só admite como sinal certo exógeno, a alteração da consciência; ainda assim, o sinal só é válido quando a intensidade do fator exógeno é muito grande. Depois é estudada, nas reações exopsicógenas, a questão da presença de sinais primários (obrigatórios, fundamentais de Stertz) ligados ao fator exógeno, e dos sinais facultativos acessórios, mais ligados à constituição psíquica. É exposta a opinião de Stertz, segundo a qual podem aparecer uns ou outros, conforme a intensidade do fator exógeno, sua duração, a ocorrência de lesões definitivas e, finalmente, a concorrência de traços genotípicos. São relatadas 4 observações. Na primeira, tratava-se de indivíduo cuja espôsa estava em período final de caquexia tuberculosa. O doente apresentava depressão agitada, perfeitamente explicável pela sua condição de marido prestes a perder a esposa. Entretanto, o exame somático revelou uma síndrome de demência paralítica, confirmada pelo exame liquórico. O Autor discute o papel do fator exógeno e o do psicógeno. O doente curou-se com a malarioterapia, apesar de haver sua esposa falecido. Dêste comportamento, deduz-se a valência dos fatores exo e psicógenos. Mais 3 casos são analisados; um de alucinose alcoólica em um neurótico de relação (síndrome sensitiva atenuada). Debelado o episódio tóxico, persistiram as notas impressas pelos conflitos da personalidade anterior. O Autor mostra como, numa só síndrome, é, por vezes, possível isolar a natureza psicógena dum sintoma e a exógena de outro (análise estrutural de Birnbaum). Em outro caso - delírio de ciúmes num hipertenso hábil - também existiam sinais decorrentes do fator exógeno e outros, do psicógeno. O Autor demonstra como o fator exógeno favoreceu a agravação de traços anormais pré-existentes na personalidade do doente e como criou outros. Com Kolle, o Autor demonstra que o fator tóxico não é tudo, e que o endógeno explica alguns casos, mas que há, inúmeras vezes, também, a participação de fatôres psicógenos. A constelação psicógena não produz as explosões da embriaguez patológica, mas dirige-as, muitas vezes. O Autor cita um trabalho de Heitor Carrilho, que mostrou, no Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, a alta incidência (22,33%) de líquores parcial ou totalmente positivos para lues, num total de mais de 600 doentes, sem que os sintomas fôssem claramente exógenos. O Autor lembra que muitos dêsses casos talvez coubessem no conceito de reações exopsicógenas (o terreno um pouco alterado facilitaria a influência psicógena, diminuindo a resistência psíquica às solicitações criminosas). Neste trabalho divulga-se, talvez pela primeira vez no Brasil, o conceito de Hintergrundreaktion, de Kurt Schneider, que o Autor traduziu por "reações psicógenas em terreno organicamente alterado". Em inglês, teríamos, mais aproximadamente, as Background reaction.


The Author studies the etiological diagnosis in patients who, showing light somatic disorders (not enough to bring out proper somatic or psychic impairment), have symptoms psychogenic in their appearance, "understood" (Jaspers) and due to hard situations. Discussion is made if there are psychic signs able to point the exogenous factor. The Author claims for Hoche, Kleist, Bonhoeffer, Stertz and Kurt Schneider; he agree with Schneider views, that the only right exogenous sign is impairment in consciousness, even though this sign has its value when the exogenous factor is marked. In exogenous-psychogenic reaction, the primary sign (Stertz's basical sign) together with both the exogenous and evidence of accessory factor in relation to psychic complication, the Author set forth Stertz views that both may appear according to the amount of the exogenous factor, its duration, incidence of definite lesions and convergence of genotypical traits. Four cases are reported: 1 - A man whose wife has tuberculous cachexia. He exhibits agitated depression which could be explained by the lost he would soon experience. However, on physical examination there appeared signs of dementia paralytica, confirmed by changes in the cerebrospinal fluid. He had been healed under malaria even though his wife died in the course of his treatment. This case clears up the value of exogenous-psychogenic factor. 2 - A case of alcoholic delusion in reactional neurosis. After healing the toxic process, remained the conflicts of his former personality. This clear up how in a syndrome one can share the psychogenic nature of a symptom from the exogenous nature of the other (Birnbaum's structural analysis). 3 - In a jealousy delusion of a hypertensive patient, one can find the exogenous and psychogenic factors. In this case, a study is made on the way the exogenous factor aided to worsen the abnormal personality traits. 4 - A case of "abnormal drunkenness" in which Kolle would point to the toxic factor as "not enough". The psychogenic set does not lead to "abnormal drunkenness" but drive it, as may be seen in this case. The Author quotes Heitor Carrilho, who noted 22,33 per cent of cerebrospinal fluid changes for syphilis over 600 patients without clear exogenous symptoms. Many of these cases would perhaps be among those of the exogenous-psychogenic group (completion would allow the psychogenic power to less the resistance of tendencies to crime). This paper introduces to Brasil Kurt Schneider's concept of Hintergrundreaktion, or as it may be said, Background reaction.


RESUMO

O autor aborda o estudo do diagnóstico etiológico em doentes que, sendo portadores de alterações orgânicas leves (incapazes de se denunciarem com fisionomia somática ou psíquica própria), apresentam sintomas aparentemente psicógenos, compreensíveis (Jaspers), decorrentes da situação difícil que enfrentam. Discute-se se há sinais psíquicos seguros, capazes de indicar que o fator exógeno está em jôgo. O Autor lembra as contribuições de Hoche, Kleist, Bonhoeffer, Stertz e Kurt Schneider; êste último só admite como sinal certo exógeno, a alteração da consciência; ainda assim, o sinal só é válido quando a intensidade do fator exógeno é muito grande. Depois é estudada, nas reações exopsicógenas, a questão da presença de sinais primários (obrigatórios, fundamentais de Stertz) ligados ao fator exógeno, e dos sinais facultativos acessórios, mais ligados à constituição psíquica. É exposta a opinião de Stertz, segundo a qual podem aparecer uns ou outros, conforme a intensidade do fator exógeno, sua duração, a ocorrência de lesões definitivas e, finalmente, a concorrência de traços genotípicos.

São relatadas 4 observações. Na primeira, tratava-se de indivíduo cuja espôsa estava em período final de caquexia tuberculosa. O doente apresentava depressão agitada, perfeitamente explicável pela sua condição de marido prestes a perder a esposa. Entretanto, o exame somático revelou uma síndrome de demência paralítica, confirmada pelo exame liquórico. O Autor discute o papel do fator exógeno e o do psicógeno. O doente curou-se com a malarioterapia, apesar de haver sua esposa falecido. Dêste comportamento, deduz-se a valência dos fatores exo e psicógenos. Mais 3 casos são analisados; um de alucinose alcoólica em um neurótico de relação (síndrome sensitiva atenuada). Debelado o episódio tóxico, persistiram as notas impressas pelos conflitos da personalidade anterior. O Autor mostra como, numa só síndrome, é, por vezes, possível isolar a natureza psicógena dum sintoma e a exógena de outro (análise estrutural de Birnbaum). Em outro caso - delírio de ciúmes num hipertenso hábil - também existiam sinais decorrentes do fator exógeno e outros, do psicógeno. O Autor demonstra como o fator exógeno favoreceu a agravação de traços anormais pré-existentes na personalidade do doente e como criou outros. Com Kolle, o Autor demonstra que o fator tóxico não é tudo, e que o endógeno explica alguns casos, mas que há, inúmeras vezes, também, a participação de fatôres psicógenos. A constelação psicógena não produz as explosões da embriaguez patológica, mas dirige-as, muitas vezes.

O Autor cita um trabalho de Heitor Carrilho, que mostrou, no Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, a alta incidência (22,33%) de líquores parcial ou totalmente positivos para lues, num total de mais de 600 doentes, sem que os sintomas fôssem claramente exógenos. O Autor lembra que muitos dêsses casos talvez coubessem no conceito de reações exopsicógenas (o terreno um pouco alterado facilitaria a influência psicógena, diminuindo a resistência psíquica às solicitações criminosas).

Neste trabalho divulga-se, talvez pela primeira vez no Brasil, o conceito de Hintergrundreaktion, de Kurt Schneider, que o Autor traduziu por "reações psicógenas em terreno organicamente alterado". Em inglês, teríamos, mais aproximadamente, as Background reaction.

SUMMARY

The Author studies the etiological diagnosis in patients who, showing light somatic disorders (not enough to bring out proper somatic or psychic impairment), have symptoms psychogenic in their appearance, "understood" (Jaspers) and due to hard situations. Discussion is made if there are psychic signs able to point the exogenous factor. The Author claims for Hoche, Kleist, Bonhoeffer, Stertz and Kurt Schneider; he agree with Schneider views, that the only right exogenous sign is impairment in consciousness, even though this sign has its value when the exogenous factor is marked. In exogenous-psychogenic reaction, the primary sign (Stertz's basical sign) together with both the exogenous and evidence of accessory factor in relation to psychic complication, the Author set forth Stertz views that both may appear according to the amount of the exogenous factor, its duration, incidence of definite lesions and convergence of genotypical traits.

Four cases are reported: 1 - A man whose wife has tuberculous cachexia. He exhibits agitated depression which could be explained by the lost he would soon experience. However, on physical examination there appeared signs of dementia paralytica, confirmed by changes in the cerebrospinal fluid. He had been healed under malaria even though his wife died in the course of his treatment. This case clears up the value of exogenous-psychogenic factor. 2 - A case of alcoholic delusion in reactional neurosis. After healing the toxic process, remained the conflicts of his former personality. This clear up how in a syndrome one can share the psychogenic nature of a symptom from the exogenous nature of the other (Birnbaum's structural analysis). 3 - In a jealousy delusion of a hypertensive patient, one can find the exogenous and psychogenic factors. In this case, a study is made on the way the exogenous factor aided to worsen the abnormal personality traits. 4 - A case of "abnormal drunkenness" in which Kolle would point to the toxic factor as "not enough". The psychogenic set does not lead to "abnormal drunkenness" but drive it, as may be seen in this case.

The Author quotes Heitor Carrilho, who noted 22,33 per cent of cerebrospinal fluid changes for syphilis over 600 patients without clear exogenous symptoms. Many of these cases would perhaps be among those of the exogenous-psychogenic group (completion would allow the psychogenic power to less the resistance of tendencies to crime).

This paper introduces to Brasil Kurt Schneider's concept of Hintergrundreaktion, or as it may be said, Background reaction.

A psiquiatria, até hoje, carece de bases seguras no capítulo do diagnóstico diferencial. Quando examinamos um portador de distúrbios mentais e encontramos um fator exógeno, somos naturalmente levados a atribuir-lhe um papel causal, nem sempre muito claro, entretanto. Por mais evidente que seja sua natureza, há casos em que a importância etiológica do fator exógeno parece pouco decisiva; ao observador impressionam muito mais a patoplastia sintomática psíquica, a rêde das causas psíquicas, o conteúdo dos sintomas ou a valência do fator endógeno. E quanto mais o observador aprofunda o exame do doente, tanto mais se convence que o fator exógeno é mera causa detonante que, como a clássica gota d'água, fêz extravasar os conteúdo já transbordante de conflitos internos, anomalias constitucionais, desajustamentos ambientais e tensões afetivas extremamente agudas.

O fator exógeno transmite ao quadro mental uns tantos sinais distintivos. Mas nem os trasmite sempre de modo evidente e intenso, nem os sinais são uniformes, invariáveis, patognomônicos. Os mais comumentes apontados são: turvação de consciência (desde o embotamento ao onirismo), quadros amenciais, agitação confusional, alucinações visuais, perplexidade, etc. O fator exógeno tem proposto, em psiquiatria, problemas cuja solução vem sendo tentada de há muito tempo. Algumas vezes, surpreendem-nos casos como o seguinte:

Caso 1 - O ferroviário N. C, com 40 anos, é trazido à nossa consulta ambulatória em hospital militar. O doente é marido exemplar que tem sua espôsa in articulo mortis por caquexia tuberculosa. Desesperado, nosso paciente tem mesmo tentado o suicídio, até jogando-se sob as rodas de um trem. Vem manifestando seu estado de ânimo com crises de inquietação e angústia; teatralmente, puxa os cabelos, anda sem parar em permanente inquietação pela casa tôda, perdeu o sono e o apetite, emagreceu cêrca de 10 quilos em poucas semanas. Trazem-no para que lhe façamos psicoterapia encorajadora e lhe receitemos alguma cousa que o ajude a superar o desenlace do caso da espôsa.

Examinamos o doente por dever de rotina. Do ponto de vista somático, encontramos anisocoria e reações pupilares lentas, de pequena amplitude. Pedido o exame de liquor, revelou-se nele a síndrome da paralisia geral. Malarizamos o doente. No decurso da malarioterapia do marido, a esposa veio a falecer, fato que foi ocultado ao doente. Após a cura arsenobismútica de praxe, o ex-doente, recuperado, tomou conhecimento do falecimento da espôsa. Reagiu a isso de modo normal. Sua recuperação foi tão completa que, 2 anos depois, foi convocado para o Exército durante a guerra e prestou bons serviços por espaço de 3 anos.

O achado somático e o liquórico não eram absolutamente esperados quando recebemos nosso paciente. Pensávamos numa depressão reativa. No quadro mental nada nos feria particularmente a atenção. Não fôsse o exame somático e teríamos catalogado o doente como portador de depressão reativa. Depois que recebemos o exame liquórico, prestando mais atenção à sindrome mental, percebemos que havia algo parecido com episódicas turvações da consciência. Mas isso só foi possível perceber a posteriori, depois que, acuradamente, procuramos sinais mentais de origem orgânica. Também então deparamos com alterações de memória. Mas um bom marido que tem a espôsa pràticamente em agonia não poderia apresentar turvações de consciência e alterações da memória, correndo por conta de fatôres psicógenos? Acrescentemos, afinal, que a personalidade anterior do doente era absolutamente normal, negativo todo antecedente neurótico. Em resumo, só as alterações pupilares, só os sinais somáticos nos levaram a pensar em psicose exógena. Só o objetivo resultado do líqüido cefalorraqueano confirmou-a. Pela síndrome mental nada poderíamos decidir e com certeza não acertaríamos com o diagnóstico e muito menos com a terapêutica adequada.

Fatos semelhantes a êste sempre embaraçaram os psiquiatras, levando-os a procurar o sinal psicopatológico capaz de denunciar a presença do fator exógeno. Haverá algum sinal psíquico patognomônico cuja presença afiance que o fator exógeno está em causa? Quê sinais mentais autenticam a etiologia exógena? Fora da síndrome somática, nada distinguira uma psicose exógena de outras psicoses?

Assinalados psiquiatras se preocuparam com tais questões. Kraepelin renunciou a diagnosticar, pela síndrome psíquica, a natureza dos agentes morbígenos duma psicose tóxica ou infecciosa. Não é possível dizer-se, que uma psicose seja tífica ou urêmica, analisando apenas a síndrome mental. A sintomatologia mental pode ser a mesma, tanto na uremia, como na meningite, no tifo ou no paludismo.

Estabelecido êste fato há tanto tempo, um grupo de psicoses ficava sempre um tanto à parte. Às psicoses alcoólicas pretendeu-se conceder certa autonomia, mercê da fisionomia clínica mais coêsa e mais constante. Quadros como o da alucinose alcoólica, o do delirium tremens, tão individualizados são êles, pareciam merecer lugar próprio no seio das psicoses tóxicas. Não só a fisionomia clínica, mas peculiaridades patogênicas e evolutivas pareciam assegurar a autonomia das psicoses alcoólicas. Apesar disso, os autores ainda não são concordantes quando apreciam aspectos das psicoses alcoólicas, como acontece, por exemplo, com a alucinose. Para alguns autores, ela tem o decurso de dias e, para outros, ela pode durar meses (Meggendorfer).

A tentativa de Bonhoeffer foi bem mais adiante da de Kraepelin. Estabelecendo os "tipos exógenos de reação" (exogenen Reaktionstypen), o autor renunciava ao diagnóstico etiológico geral. Em vez de psicose tífica, falava em psicose infecciosa, ou antes, em psicose por causa extracorporal.

A idéia foi fecunda. Bonhoeffer distinguiu síndromes de repetição periódica. Entre elas, delírios, extitações epileptiformes, estados crepusculares, alucinoses, quadros amenciais de caráter alucinatório, catatônico ou incoerente, e estupores catatônicos. A estas síndromes repetidas periodicamente, correspondem formas evolutivas típicas: terminação por crise ou por lise, desenvolvimento de estados emotivo-hiperestésicos, fases amnésticas do tipo de Korsakoff, instalação de delirium acutum e de meningistno (apud Bumke). Em síntese, poderíamos dizer: a) quando a agressão é muito intensa, o quadro mental é o mesmo, seja qual fôr a natureza do agente agressor; b) quando a intensidade da agressão não é grande, a fórmula pessoal predomina na resposta reativa exógena. Portanto, quando a agressão não é intensa, a síndrome reativa exógena varia de um indivíduo para outro.

Êste último aforisma, mais do que a Bonhoeffer, deve-se a Hoche e a Kleist. Êstes autores estabeleceram que os tipos "exógenos" de Bonhoeffer nem sempre apareciam com traços inconfundíveis impressos pelo fator exógeno. Muitas vezes, a constituição pessoal, a personalidade psíquica pròpriamente dita imprime fisionomia própria ao quadro. São quadros pré-formados (Hoche), pré-existentes no indivíduo, quadros mentais inscritos profundamente na personalidade anterior do doente, em sua individualidade (Neisser). São síndromes homônimas (Kleist) que, antes da psicose, estavam mascaradas, atenuadas ou latentes.

Bonhoeffer, tomando como ponto de partida as psicoses febris, estabeleceu que há, nelas, formas gerais de reação exógena, que se dividem em 3 tipos: amência, alucinose e delírio ("Delirium", em alemão, com especial conceito coincidindo mais ou menos com o nosso delírio onírico).

Stertz deu o principal passo a seguir. Procurando sempre o traço sintomático psíquico capaz de denunciar o fator exógeno, criticou as síndromes apontadas como tais por Bonhoeffer. Sua principal restrição recaiu sôbre o valor equiparado que Bonhoeffer concedia a tôdas as síndromes que criou. Diz Stertz1 1 . Stertz, G. - Die Beziehungen von Krankheitsprozess und Krankheitserscheinungen. Ztschr. f. d. ges. Neurol, u. Psychiat. 127: 788. : "zunàchst wird sich vergegen-wârtigen müssen, dass die vor Bonhoeffer unterschiedenen exogenen Typen, worauf ich ebenso Seelert schon vor lángerer Zeit hingewiesen habe, unter sich nicht gleichwertige sind. Meine Untersuchungen haben mich zur Unterscheidung von obligaten und fakultativen Syndromen dieser Reihen geführt. Zu den ersteren záhlen wir nur Benommenheit, Delirium und amnestiches Zustandsbild, zu den letzteren die manischen, depressiven, halluzinatorischen und amentiellen Syndrome. Eine verglei- chende Betrachtung lásst erkennen, dass beide Reihen ganz verschiedene Beziehungen zu dem verursachenden Krankheitsprozess haben". (Em primeiro lugar, deve-se representar que os diversos tipos exógenos de Bonhoeffer não são equivalentes entre si, como já há muito tempo tanto Seelert como eu demonstramos. Minhas pesquisas conduziram-me a distinguir neste grupo síndromes obrigatórias e facultativas. Entre as primeiras, contamos apenas o torpor, o delírio e os quadros amnésticos permanentes e, entre os últimos, as síndromes maníacas, depressivas, alucinatórias e amenciais. Uma observação comparada deixa reconhecer que ambos os grupos têm relações muito variadas com os processos mórbidos causais).

E agora, as "leis" de Stertz: a) O acontecimento exógeno geral do cérebro deve, se fôr bastante forte, ocasionar os sintomas obrigatórios; existe, pois, íntima relação entre a intensidade do processo e a da síndrome. b) Processo e síndrome estão, por conseguinte, temporal e totalmente interrelacionados, de modo que, à cessação do primeiro, também a segunda desaparece, desde que não se tenham constituído lesões definitivas; a duração do acometimento somático não é sempre determinante da fixidez (Fortdauer) da psicose, mas sobrevêm intervalos lúcidos ou remissões (Aufhellungen: clarificações), irrupções, que talvez se possam relacionar com as oscilações da capacidade de resistência ou com a habituação. c) A presença desse tipo de reação permite seja ela imputada a um acometimento cerebral exógeno.

Diz Stertz: "Inteiramente diversas as síndromes facultativas: a) Como elas inci cdem também, e com predileção, em psicoses endógenas, só adquirem fôrça probante (Beweiskraft) de acometimento exógeno, quando são acompanhadas de sinais obrigatórios. b) Elas possuem, quanto ao processo causal, muito maior independência; nem são proporcionais à intensidade do processo, nem a êle ligadas no que concerne à permanência; elas mostram, mesmo, autonomia própria (Eigengesetzli-chkeit). c) Dada sua relativa raridade, segue-se que, aqui, a predisposição individual tem papel decisivo, em oposição aos tipos obrigatórios".

A contribuição de Stertz seria valiosíssima, se ficassem definitivamente apurados quais os sinais facultativos e quais os obrigatórios. Entre os primeiros, Stertz aponta síndromes maníacas, depressivas, alucinatórias e amenciais. Entre os obrigatórios, cita o torpor, o delírio e os quadros amnésticos permanentes. Bumke julga que a contribuição de Stertz permitiria separar o que é psicótico passageiro, do que é psicótico definitivo. Na paralisia geral, por exemplo, o quadro maníaco (delírio de grandezas, euforia) seria passageiro, ao passo que os quadros amnésticos seriam definitivos. Esta seria outra contribuição, já um tanto fora do que se propôs Stertz; com efeito, este autor não se preocupou com quadros "transitórios e permanentes", e sim com "sinais obrigatórios e facultativos".

Todavia, é de assinalar que a contribuição de Stertz estabeleceu uma distinção preciosa: na sintomatologia das reações exógenas, existem sintomas que decorrem do fator etiológico, exógeno (os sinais obrigatórios), ao lado de sinais que decorrem principalmente do fator individual (os sinais facultativos). Daí, conseqüências práticas e teóricas tiradas justamente do que chamamos "leis" de Stertz; a leitura atenta desses postulados imediatamente lança luz sôbre tais conseqüências.

Pretendemos concluir o seguinte: a) Os sinais "facultativos" de Stertz, levando o sêlo do constitucional, poderão induzir o observador ao diagnóstico errado de psicose constitucional (esquizofrenia, mania, epilepsia), se os sinais "obrigatórios" são desprezados, pouco evidentes, como não é raro ocorrer. b) Os sinais "facultativos" derivados da constituição serão, de certo modo, mera acentuação quantitativa da personalidade anterior pré-existente. Isto explica que as síndromes "facultativas" de Stertz coincidam com as "pré-formadas" de Hoche, com as homônimas de Kleist, opostas às heterônomas, não pré-existentes. Estas últimas coicidem com as síndromes "obrigatórias" de Stertz, onde os sinais são impressos pelo fator exógeno. A coincidência seria, pelo menos, parcial.

Sendo assim, o indivíduo que tenha forte predisposição psicopática constitucional, sob a ação de leve acometimento exógeno, exibiria uma síndrome mental de tipo constitucional (da órbita dos sinais facultativos de Stertz, pré-formados de Hoche, homônimos de Kleist), com leves sinais obrigatórios (leves porque êles têm intensidade proporcional ao acometimento exógeno, conforme reza a primeira "lei" de Stertz). Aos leves sinais da série obrigatória corresponderia, entretanto, uma síndrome facultativa de intensidade variável. Se a predisposição psicopática constitucional fôsse forte, forte seria a proeminência da síndrome de tipo constitucional então declarada. Tão forte que os sinais da série obrigatória estariam ofuscados pelos constitucionais.

A contribuição de Stertz tem parecido incompleta e mesmo insuficiente. Mereceu de Kurt Schneider uns quantos comentários: "Seria chamado obrigatório o quadro mental (correspondente à gravidade da injúria) aparecido em todos os acometidos exogenamente, e facultativo o quadro que se observa em casos individualizados. Os quadros facultativos poderão, pois, subentender que, em cada indivíduo, pelo efeito produzido sôbre determinadas regiões cerebrais, aparecem determinados sintomas e, mais longinquamente, poderão subentender que disposições individuais são necessárias para sua aparição. Se alguém, após uma contusão cerebral, é tomado de alucinações visuais, isto quer dizer que houve lesão de determinada zona cerebral (occipital, no caso); porém, pode significar, também, que a lesão acometeu um cérebro que, em oposição a outros, tem especial tendência à alucinose".

Schneider tem em vista, "como tipo mais puro de reação exógena", a psicose traumática (com lesão cerebral). Diz êle, depois: "Quando perguntamos quais dos quadros exógenos são os obrigatórios, quais os facultativo-localizatórios e quais os facultativo-individuais, muitas vezes ficaremos, infelizmente, só na pergunta. Como sinal obrigatório certo - e, ainda assim, apenas quando, em virtude da suficiente intensidade do acometimento, pode-se supor algum efeito local - deve ser consignada somente a perda de consciência (Bewusslösigkeit), o torpor, isto é, todo homem que sofre uma contusão cerebral grave, torna-se inconsciente. Como sinal facultativo-localizatório certo, deve ser mencionada a demência total (allgemeine Demenz), sendo necessário para ela um determinado ponto de ataque (Angriffspunkt) e é difìcilmente aceitável que, para isto, seja necessária uma determinada disposição individual. Nesta série deve-se, presumivelmente, colocar também a síndrome de Korsakoff".

Nesta altura, Schneider explica porque nunca ou só raramente se encontra a síndrome de Korsakoff e a "demência parcial" em ferimentos cerebrais por tiro, síndromes mentais essas encontradiças nas concussões e intoxicações. A explicação que Schneider encontra é que, para a síndrome de Korsakoff e para a demência, é necessária superfície lesional difusa, que não ocorre, como regra, nos ferimentos cerebrais por tiro. Continua o autor: "Em que sentido quadros deliróides e amenciais são facultativos, é impossível responder. Existem alucinoses, tanto em sentido facultativo-localizatório, quanto em sentido facultativo-individual. Talvez aconteça que o tipo da alucinose exógena pertença ao primeiro e o da alucinose hipnagógica, ao segundo tipo. Quadros esquizofrênicos e paranóides, também talvez quadros hipertímicos e depressivos, são possìvelmente facultativo-individuais; de resto, os depressivos jamais possuem a fisionomia da depressão endógena (ciclotímica). A série de alterações da personalidade consistente em apatia e pobreza de impulsos tem, sem dúvida, muitas vezes, relação com o cérebro frontal e seria facultativo-localizatória"2 2 . Schneider, K. - Psychiatrisch Systematik und Aufbau der Psychose. In "Psychiatrische "Vorlesungen für Arzte", Ed. 2, pág. 169-171. . Para estas considerações, que interessam às psicoses exógenas, Schneider tomou como padrão o que se passa com as psicoses traumáticas.

Interessa-nos, neste trabalho, muito mais o outro conceito do mesmo autor, explanado nesse mesmo capítulo, poucas linhas adiante: "Nun fehlt noch etwas Wichtiges: der Gesichtspunkt der abnormen seelischen Reaktionen auf dem Boden der organischen Persöníichkei-tenverönderung oder auch der subjektiven Beschwerden. Wie etwas jemand im Zustand der Migräne oder der körperlichen Erschöpfung, seelich anders reagiert ais sonst, so ist es auch bei dem chronisch Gehirnkranken. Seine seelischen Reaktionen sind gewissermassen getragen von seine organisch veränderten Dauerzustamd. Wir heissen diese Reaktionen, H inter gr undreaktioncn. Sie sind ungemein häufig. Wenn ein Benommener, z.B. ein Fieberkranker, in abnormer Weise auf seine Umwelt reagiert, etwas mit Ungeduld, Reizbarkeit oder Misstrauen, so darf man diese Erscheinungen nicht einfach ais Folge, ais "symptom" eines veränderten Hirnzustandes auffassen, sondem dieser bildet nur den Boden, den Hintergrund für ein verändertes Reagieren. Hesse hat solohe Fali gezeigt. Diese Hintergrundreaktionen, die im Rahmen der ganzen Psychiatrie viel zu wenig beachtet werden, erlauben manche anscheinend fremdartigen Züge bei Psyeho-sen jeder Art zu verstehen"3 3 . Loc. cit. 2, págs. 171 e 172. . (Falta-nos algo de importante: o ponto de vista das reações psíquicas anormais sobre o terreno de alterações orgânicas da personalidade ou ainda do sofrimento subjetivo. Assim como alguém afetado de hemicrânia ou de esgotamento corporal, reage psiquicamente de modo diverso ao antigo, assim também acontece com os doentes cerebrais crônicos. Suas reações psíquicas são certamente trazidas por seu estado alterado organicamente de modo permanente. Elas são extraordinàriamente freqüentes. Quando um doente em torpor, por exemplo, febricitante, reage a seu ambiente de modo anormal, com alguma impaciência, excitabilidade ou desconfiança, não se pode conceber essa irrupção simplesmente como conseqüência, como "sintoma" de um estado cerebral alterado, porém êste fornece apenas o terreno, o "background" para um modo alterado de reagir. Hesse mostrou tais casos. Estas reações em terreno alterado, que têm merecido pouca atenção nos quadros de tôda a psiquiatria, permitem compreender, dêste modo, muito traços de aparência estranha nas psicoses).

Reduzindo a esquema o que nos ensina Kurt Schneider, teremos:

I) Reações exógenas:

1) Sinais obrigatórios (dependentes da intensidade do acometimento).

2) Sinais facultativos:

a - localizatórios (dependem da sede e difusão de lesão).

b - individuais (dependem da personalidade).

c - localizatórios ou individuais ou ambos: Alucinose. Ausência.

- turvação da consciência (único sinal certo) - perda da consciência por fator exógeno intensíssimo.

demência total

S. Korsakoff (provàvelmente) apatia (frontal)

S. paranóides

S. esquizofrênicas

S. hipertímicas (talvez)

S. depressivas

II) Reações exopsicógenas (Hintergrundreaktionen) - reações psicógenas em terreno alterado - Reações psicógenas enxertadas em indivíduos com cérebro organicamente alterado.

Ao passo que a aparição de sinais obrigatórios não é condicionada por nenhuma predisposição individual, a aparição de sinais individuais exige-a de modo absoluto. Os localizatórios só excepcionalmente não dispensam a predisposição individual. Exigem-na, por exemplo, as alucinoses, onde a alucinação requer certa contribuição localizatória constitucional; já o delírio que faz parte da alucinose exige mais intensa predisposição (figura no esquema integrando quadros paranóides). Quanto às Hintergrundreaktionen, não há dados precisos; a nossa casuística, exposta em seguida, fala no sentido da necessidade de predisposição.

Da massa de reações exógenas só exemplificamos com os casos concretos e típicos de que dispomos, onde, ao lado do fator exógeno, é evidente também o fator psicógeno, tal como no caso 1, já relatado. Focalizaremos casos de alucinose alcoólica, delírio de ciúme no curso de uma encefalopatia hipertensiva e embriaguez patológica.

Na alucinose alcoólica tem-se estabelecido que: 1 - é aparentada com a esquizofrenia (Bleuler); em 30 casos de alucinose, Pohlisch encontrou-a 20 vezes como prodrômica da esquizofrenia; 2 - é aparentada com as reações paranóicas ("paranóia alucinatória dos bebedores"). E, do ponto de vista clínico, que: 1 - é reação exógena com aparência de psicose constitucional, quando não é efetivamente constitucional (esquizofrenia desencadeada pelo álcool); 2 - aparecem na alucinose apenas sinais facultativo-individuais (delírio de perseguição), facultativo-localizatório (alucinações) e raros ou raríssimos sinais obrigatórios (turvações de consciência).

No delírio de ciúmes ligado a causas exógenas (delírio de ciúmes alcoólico, por exemplo) tem-se admitido: 1 - uma psicogênese que se resumiria no fato de o alcoolista perder a potência genésica e consevar a libido; esta situação se agrava com o íntimo sentimento de decadência física e moral, que o torna indesejável como parceiro sexual; a espôsa não o toleraria, maxime impotente. O "terreno alterado" dá aos complexos ótimo campo de sementeira, de cultura; 2 - uma condição endógena de tonalidade paranóide (paranóia alcoólica, não alucinatória). Do ponto de vista sintomático, novamente teríamos: 1 - uma síndrome exógena com aparência de constitucional ou realmente constitucional (autores há que também aceitam parentesco com a esquizofrenia); 2 - presença de sinais facultativo-individuais (delírio), sem sinais obrigatórios (turvação de consciência).

Na embriaguez patológica tem-se admitido: 1 - uma constelação explosiva (e ainda se fala em "epileptóide") com fundamento constitucional, que se deve procurar sempre; tal fator explosivo poderia, mesmo, ser adquirido (traumatizados de crânio, encefalopatas); 2 - também se admite, mais raramente, que a embriaguez patológica é uma forma de reação exógena que acaba por aparecer com a continuação do hábito de beber; seria uma modalidade reativa que se vai adquirindo devido a possíveis lesões cerebrais. Do ponto de vista sintomático: 1 - é uma reação exógena que se procura explicar com o radical psicopático endógeno (explosividade); 2 - aparecem sinais obrigatórios (turvação de consciência) e facultativos (delírios). Êstes são bem mais raros.

De modo que quase não se dá margem à constelação psicógena (a não ser no delírio de ciúmes) em nenhum dos dois casos - alucinose e embriaguez patológica. No delírio de ciúmes, mais do que nos fatôres psicógenos, pensa-se nos endógenos. Apenas Kurt Kolle, quando aborda o problema da embriaguez patológica, demora-se um pouco a distinguir o que é psicógeno do que é exógeno. Diz êle: "Exemplo n.° 5 - Em alegre reunião é consumido álcool. Gracejam então com um dos convivas. Êste salta, apodera-se dum objeto pesado, com êle golpeia o gracejador até que êste cai morto". Kolle, que vínha classificando os 4 exemplos anteriores como exógenos, endógenos e psicógenos, não decide se se trata de reação psico ou exógena. Diz apenas: "Tipo? (intoxicação do corpo e do cérebro pelo álcool - estado psíquico anormal)". Mais adiante comenta: "Difícil de interpretar o exemplo n.° 5, que tem por objeto uma assim-chamada embriaguez patológica, que também pode aparecer sem o menor ensejo externo, se bem que tais vivências desencadeantes sejam muito freqüentes. A acurada análise dá a seguinte colaboração de vários modos de reação: a princípio, temos diante de nós uma reação exógena em forma duma habitual euforia (o veneno circulante no corpo age sôbre o cérebro). Ao estado psíquico alterado no sentido duma forma dc reação exógena. introduz-se então uma vivência psíquica, a qual não produziria rotura do equilíbrio do indivíduo em estado psíquico médio (seelisch Durchschnittzustánd): a reação vivencial seguinte e conseqüente põe em marcha uma nova reação exógena (a saber, a assim-chamada embriaguez patológica). O exemplo mostra de novo como são relativos os conceitos com os quais nós trabalhamos"4 4 . K. Kolle. Psychiatric Urban und Schwartzemberg. Berlin und Wien, 1939, págs. 66-67.

Êste exemplo focaliza um dos cruzamentos entre os fatôres exógenos e psicógenos. Desde já fixemos que isolar um fator é um artifício da psiquiatria. Não deveremos falar de reações exógenas puras ou psicógenas puras ou de puras psicoses endógenas, porque muito raramente isso é verdadeiro. Deveríamos dizer: "reações predominantemente exógenas ou psicógenas e psicoses predominantemente endógenas". Isto porque, se analisarmos detidamente o doente, acharemos a colaboração de todos os fatôres. Regra geral, só conseguiremos separar as causas e os defeitos quando aparecerem com evidente destaque, com traços grosseiros na sintomatologia.

Do grupo das psicoses alcoólicas sairá exemplo nosso. Vem a pêlo porque nosso caso ilustra flagrantemente uma das modalidades etiológicas que modernamente se buscam: o despertar do psicoses psico ou endógenas pelo acometimento exógeno. Desencadeada a psicose "exógena", aparece uma massa de sinais "facultativos" que, mesmo após a desaparição do fator tóxico, continua presente. Organiza-se mesmo em seguida uma psicose de tipo "reativo" psicógeno sem solução de continuidade com a exógena. Parece que o fator exógeno desempenha apenas o papel de "gôta d'água".

Caso 2 - E. M., com 18 anos, branco, solteiro, estudante. Nos antecedentes hereditários: o pai teve uma depressão reativa por ter a filha entrado para um convento; uma tia paterna é doente mental crônica.

Personalidade anterior e história social - Criado no interior. Bom aluno, estudioso, não muito inteligente. Retraído, com poucos amigos. Boa a situação econômica da família. Diz-nos seu irmão: "Êle sempre foi diferente de nós. É tímido demais, medroso, sensível. Parece mulher". Trata-se dum tipo hiperestésico autista, talvez mesmo esquizóide com tara esquizofrênica (a tia). O próprio doente nos relata vários fatos importantes de sua vida anterior: logo que atingiu a puberdade, supôs que tinha ginecomastia (na realidade, mamilos volumosos). Passou a evitar os esportes e, quando isso era impossível, fazia-os vestindo camisa. Masturbava-se regularmente. Fêz uma tentativa de cópula e não a consumou por mêdo à mulher (prostituta de ínfima categoria). Isso o sensibilizou fortemente e não mais tentou repetir. Sempre foi por demais tímido. Ao entrar num salão cheio de gente, supunha que o comentariam e tomava-se de receio. Julgava-se diferente dos demais rapazes, odiando sua própria timidez e retraimento.

História da doença atual - Foi passar o carnaval no interior. Era a primeira vez que se afastava da família. Nostálgico, pôs-se a beber e a inalar lança-perfume. Calcula em 15 os episódios de embriaguez pelo álcool e em 10 ou 12 os devidos ao éter. Até o regresso prosseguiu nessas práticas. Note-se que jamais bebera.

Ao encetar a viajem de volta, ainda, de "ressaca", notou que, no vapor fluvial, todos "falavam a seu respeito", comentando-o como a "vergonha da família, palhaço, pederasta, masturbador". Ocorreu-lhe que "muitas desgraças cairiam sôbre a família, por culpa dêle mesmo". Grupos de viajantes só se ocupavam dêle. Chegando à Bahia, percebeu que o jornal também falava a seu respeito e sempre a detratá-lo. O rádio, os colegas na escola, os vizinhos na rua, todos o comentavam desairosamente em voz alta.

Um médico foi chamado e fêz-lhe psicoterapia, recomendando repouso à beira-mar. Melhorou, mas o delírio de auto-referência continuava, se exacerbando de vez em quando. Um mês depois da total abstinência de álcool, as desordens psíquicas continuavam. Não saiu mais de casa. Angustiado e inseguro, evitava até sair do quarto. Por fim, tentou suicidar-se dando um tiro no pescoço. Em estado lisonjeiro foi socorrido e pôsto fora de perigo. Então foi internado.

Os exames neurológico e somático nada revelaram de especial. É um leptossomático hipoevoluído. O exame de liquor e o de sangue resultaram negativos para lues.

Exame Psíquico - Fortemente angustiado e inseguro. Acusa que querem matá-lo e que todos comentam a seu respeito: o jornal, o rádio, as pessoas desconhecidas e os colegas. Todos o dizem pederasta, certamente porque "tem ginecomastia" e o doente mostra-nos as mamas, que são levemente aumentadas de volume. Conta que fêz uma primeira tentativa de cópula, mas fracassou. Nunca mais tentou a cópula desde êsse episódio ocorrido há mais de ano. Interrompe o interrogatório para queixar-se sempre das perseguições e dos comentários sôbre pederastia, masturbação e hermafroditismo. Não se deixa convencer da irrealidade dos relatos, não se demove de suas convicções e, quando parece abalado nelas, volta a insistir, demonstrando que a crítica razoável dêle mesmo era apenas aparência. Toma, nas suas manifestações verbais, um tom angustiado, com visível necesidade de amparo. Pede que o deixem sair do sanatório. Revela que sempre foi tímido, inseguro, reservado e sensível. Quando cerramos o interrogatório sôbre os "fatos" lidos no jornal - onde? em que página? como era o título? a notícia a respeito - passa por cima dos detalhes, não os especifica, não os relembra, mas "tem certeza" que o jornal teria estampado tal notícia. Também o episódio dos colegas é uma convicção adquirida, e sôbre isso sua acusação faz-se apontando nomes de colegas seus conhecidos (não inimigos). Ao ver um livro ("A histeria") sôbre uma mesa, protesta que se trata duma indireta contra si próprio e que o livro foi ali deixado em sua intenção, "para acoimá-lo de histérico". Leu numa revista um artigo assinado por um homônimo. Queixa-se disso, "porque teria uma intenção qualquer depreciativa contra si próprio" (mas não esclarece qual seria o significado dela). Em resumo: delírio sistematizado de estrutura sensitivo-paranóica, de instalação súbita após sucessivos episódios de embriaguez alcoólica e pelo éter. Na personalidade anterior encontramos os mesmíssimos complexos ocasionando conflitos internos e dificuldades na evolução sexual. Intensíssimo sentimento de inferioridade ligado a pseudo-mal formações corporais.

Decurso - (21-4-1947). Foi submetido ao eletrochoque. Após o primeiro, melhorou consideràvelmente. Após o segundo, a remissão parecia completa. Contou-nos então o seguinte: chegando pela primeira vez à cidade de Barra, sentiu-se nostálgico e solitário. Era a primeira vez que se afastava da família para tão longe. "O álcool foi recurso de que lançou mão para afogar a nostalgia" e para encorajar-se. Hoje admira-se de seu delírio e "não sabe como apreciar as interpretações e as certezas absurdas, exibidas por ocasião do delírio". Esclarece que, desde fevereiro, o delírio instalou,-se, após bebedeiras de álcool e inalações de éter volatizado. Isto foi, aliás, sua primeira falta de morigeração. O delírio melhorara um pouco sob influência psicoterápica dum médico assistente, mas nunca desaparecera de todo. Apesar de haver sua família suposto estivesse êle curado, nesse lapso de tempo, sob influência psicoterápica. apenas melhorara, mas o delírio continuava mitigado. A junta que, desde os tempos anteriores ao episódio psicótico, tinha, por vezes, ao entrar numa sala, "a impressão que falavam de si".a a Êste fato mostra, com nitidez, que no episódio psicótico tratava-se duma síndrome pré-formada (Hoche), homônima (Kleist).

(27-4-47) - O observado vai às aulas, sai e volta ao Sanatório, retoma às suas atividades normais sem apresentar nenhuma anomalia. Abordado, ri-se do episódio passado. Bem humorado aparentemente, mantém-se conforme seu feitio anterior: algo reservado, mas acessível ao contacto direto. Não conserva o menor resquício aparente do episódio passado. Foram aplicados 4 eletrochoques.

Após a alta (3Q-4-47), o doente reapareceu-nos por intermitências. Inseguro, ainda angustiado, pede-nos amparo terapêutico. Alega que seu ex-médico assistente prescrevera-lhe psicanálise. Julga que os estudos interrompidos há dois meses não podem ser retomados sem graves esforços que poderão prejudicar-lhe a saúde. Pede-nos opinião: se convém interrompê-los por um ano. Respondemos afirmativamente. O doente exibe-nos suas dúvidas sôbre a normalidade psíquica e física (chega a supor-se quase hermafrodita). A família do doente procura-nos para dizer que percebem-no ainda preocupado, angustiado. Pedimos que o doente volte ao exame. Verificamos então que o seu estado é o seguinte:

Perfeita autopatognose - sabe o que se passou consigo; pensa que o álcool lhe haja "detonado" a psicose, mas esclarece que "sempre teve esses conflitos e essas cismas"; de vez em quando, ao entrar num salão concorrido, acreditava que falavam a seu respeito; sempre foi desconfiado e tímido. Assim é que, ao perceber que "seus mamilos eram demasiado grandes", retraiu-se dos esportes, inicialmente, praticando os esportes de camisa e depois desistindo dêles para não ter que denunciar seu defeito físico. Julga-se melhor, mas sabe que não está curado e que precisa de "longo tratamento psicanalítico para pôr em ordem seus conflitos". Sente-se inferior e diferente dos demais rapazes. Ainda acusa que de vez em quando, põe-se a interpretar as conversas dos circunstantes como referentes a si e seus defeitos físicos, inclusive a homossexualidade, que repele vivamente. Mas não há mais alucinações. Persistem as idéias de minusvalia corporal, embora com menor intensidade.

Tínhamos, então, remissão das alucinações pelo tratamento convulsivo. Perdurava a síndrome pré-formada - as interpretações (que, de delirantes, baixaram à condição de supervalentes) no sentido de complexos sobretudo de natureza sexual e de inferioridade corporal. Optamos aí pelo tratamento insulínico, porque já vimos remissão de muita síndrome neurótica com esse tratamento e pelo desencadear exógeno de possível esquizofrenia.

Após 20 comas completos, a remissão do doente parece total. Ajuntamos concomitante psicoterapia encorajadora, persuasiva, inspirada nos moldes psicanalíticos. Isto durou um mês e meio. A família do doente, que nunca se dera por satisfeita com a terapêutica convulsiva, agora observa seu parente e o julga bom. Mantem-se assim há algum tempo, sem problemas maiores. Contudo, ainda não resolveu o problema sexual.

Comentários - Trata-se, pois, de síndrome de tipo alucinótico desencadeada agudamente pela ingestão de álcool e inalação de éter em grande quantidade, em poucos dias. A síndrome pré-existia com quase todos seus elementos; apenas a intensidade das interpretações agravou-se até a condição delirante e apareceram alucinações auditivas não pré-existentes. Supomos que o fator exógeno é responsável, tanto pela agravação das interpretações, como pela aparição de alucinações. Mas muitos elementos pré-existiam como complexos psiquicamente gerados nessa personalidade insegura. Tratava-se duma reação exógena, reação homônima, pré-formada, pré-existente em grau atenuado (fugia dos desportos por vergonha da ginecomastia, que indicaria homossexualidade, era tímido e "diferente", pressentia que o comentavam). Do ponto de vista de Stertz, só percebemos "sinais acessórios" e nenhum "fundamental". Do ponto de vista evolutivo, vemos que um fator exógeno desencadeou um episódio que estruturalmente é das reações psicógenas. Esta, afastado o fator exógeno, perdura imutável, autóctone. Do ponto de vista terapêutico, a convulsoterapia removeu parte da sintomatologia (parte da ansiedade e as alucinações). A insulina e a psicoterapia removeram quase tôda a síndrome psicótica. Permanecem alguns conflitos inerentes à personalidade insegura. Mas não existe mais psicose e sim aptidão a ela. Talvez irremovível.

Caso 3 - R. C. S., com 61 anos de idade, capitão do Exército, reformado, branco, casado. Há, nos ascendentes, dois tios alienados. Nos comemorativos pessoais, nada de importante. Há cêrca de um ano, hospitalizou-se para tratar-se de hipertensão arterial. Tem apresentado nesse lapso de tempo: dispnéia de esfôrço, edemas dos membros inferiores e crises convulsivas espaçadas. Radiològicamnte, há aumento da área cardíaca. O exame do fundo de ôlho revela retinopatia hipertensiva.

Do ponto de vista psicopatológico foi observado o seguinte: a) Há cêrca de 8 meses, acusou a dama de companhia de sua espôsa de andar pelos corredores escusos do hospital em "namoros indecentes" com os enfermeiros. Que não era verdadeiro o fato, foi seguramente apurado. Entretanto, o doente continuou a exigir a demissão da acusada e foi, afinal, atendido pela espôsa. Depois disso, parecia normal. Não mais falou no "caso"; b) Manifestou, veladamente, muitas vezes, e claramente, uma vez, idéias de ciúme da espôsa, com quem é casado há 34 anos e que conta agora 54 anos. Na ocasião em que demonstrou seu ciúme, fe-lo com extrema violência, com acusações veementes, injuriando a mulher e seu suposto "amante". Foi mesmo mais longe e admitiu que houvesse até relações homossexuais da espôsa; c) Há algumas semanas, o observado, que vinha sendo "luminalizado" de muito tempo, apresentou manifestações de ordem alérgica. Suspenso o luminal, o paciente passou a dormir bem menos. Poucos dias depois, deu-se a cena que determinou seu internamento: acordou cêrca de meia-noite e chamou a espôsa que, com outras pessoas, estava a conversar no quarto contíguo (as portas de comunicação estavam abertas de par em par) e acusou-a de estar a prevaricar em bacanal com seus 4 companheiros (dois homens e duas mulheres). Passou, de pronto, a exigir-lhe que assinasse o desquite que êle providenciaria logo que amanhecesse o dia: avisou-a que "se ela não assinasse, êle, marido ultrajado, relataria os vergonhosos fatos aos amigos da família". A espôsa, assombrada, foi à procura dum dos médicos do hosnital, que logo compareceu ao quarto.

No dia imediato, foi o doente transferido para o sanatório onde o examinamos: Afirma-nos que a esposa "preparara o golpe" já de muito tempo. Assim é que, quando ele exieira que a dama de companhia fôsse despedida, a espôsa o atendera realmente; fizera-o porém movida, não pelo seu pedido, mas porque tinha ciúmes do enfermeiro ("amante da dama de companhia"). Julga nosso observado que a espôsa já então amava o enfermeiro. Além disso, sabia que a espôsa "lhe preparava um golpe", porque, ao ter de remeter dinheiro para o Rio, ela prontificou-se a fazê-lo em lugar dêle próprio. "Com isto ela, que premeditava meu internamento em hospital de loucos, se ia habilitando a tornar-se a remetente habitual do dinheiro, de modo que os credores não mais estranhariam, depois, que fôsse ela e não eu, o remetente do dinheiro para o resgato da hipoteca". Relatou também que vira, nitidamente, na véspera, à noite, uma cena espantosa: a espôsa servia de espia a dois homens e duas mulheres, que, em volta duma mesa, passavam para baixo desta, onde se entregavam a furiosas atividades lúbricas. Sabia que se tratava de atividade erótica oral dos homens sôbre as mulheres. Ouvira o ruído que outra mulher fazia ao masturbar-se. Sua espôsa teria o papel de avisar aos parceiros se êle estava dormindo ou acordado. Ao vê-lo despertar, avisara aos comparsas. Uma das mulheres, já vivamente erotizada, replicara: "êle que dê escândalo" (trocara o segundo a por e, dizendo erradamente escândelo). O doente então chamara a espôsa e a repreendera acerbamente, terminando por exigir que ela anuísse na separação sob pena dêle denunciá-la aos parentes. No dizer do doente, a espôsa, a esta altura, fizera um jôgo dúplice: ela própria foi chamar um médico, porém dizendo ao clínico que o marido estava louco. Com isso, "não só ela conjurava as prováveis acusações dêle, como ainda obteria que o tranca fiassem num hospital de doidos". Assim ultimaria seu "golpe" de aniquilar o marido. A juntou o doente: "agora não queria mais vida em comum" e logo nos pediu acautelássemos dela uns papéis que esquecera no hospital militarb b Nesse dia, a pressão arterial do doente era 160 por 100. .

Com dois dias de psicoterapia intensiva, logramos reconciliar o casal. O doente recebeu em prantos a espôsa e murmurou-lhe aos ouvidos: "perdoo-te"c c Nesse dia, a pressão arterial do doente era 190 por 120. Não havia, pois, paralelismo entre a agravação da síndrome e a da hipertensão. . Mas já uns três dias depois, como a espôsa saísse e demorasse um pouco a chegar para o almôço, o doente nos chamou para dizer que "acabara de acontecer consigo o que acontecera antes com o Prof. C. B., cuja espôsa, sexagenária, fugira para a Argentina com um jovem". Ajuntou que "só não sei se minha mulher foi para a Argentina, mas que ela fugiu com um jovem, parece certo". Justamente nessa altura, a espôsa chegou. Ao vê-la, o doente murmurou apenas: "ainda bem".

Empregando recursos psicoterápicos, removíamos as convicções ciumentas do doente, mas elas recidivavam, de pronto, ao menor ensejo externo e até mesmo sem ouseis pròpriamente dito.

Procurou-nos várias vezes o doente para dizer-nos que a espôsa devia andar "sexualmente irritada", pois já havia mais de um ano que não tinham relações sexuais. Ela, temendo as crises convulsivas do marido, recusava-se ao comércio sexual. O marido julgava a espôsa "intoxicada pela abstinência" e pediu-nos que a examinássemos do ponto de vista mental, pois isto estaria a transtorná-la. Acreditava o doente que tal fato "explicava que ela claudicasse na sua honestidade". "Todavia", ajunta o paciente, "ela não prevaricou ainda, apenas teve a fraqueza de servir de espia na noite da libidinagem". Estas e outras acusações eram removidas sempre com a psicoterapia. Mas recidivavam interminàvelmente. O doente dizia-nos: "o senhor faz a apologia dela. Também eu a faria. Eu não acreditaria em nada, dado o passado de minha espôsa. Mas eu vi naquela noite como se passaram os fatos: ela era espiã dos quatro ordinários que a arrastaram por fraqueza dela".

A espôsa dava os seguintes dados sôbre a personalidade anterior do doente: "Êle sempre foi ciumento. Jamais permitiu que eu saísse sòzinha. Quanto, às vezes, êle vinha chegando em casa e já da rua me via à janela conversando com alguém, apressava o passo, entrava em casa com cara feia e tornava-se grosseiro com o visitante. Também era explosivo: saindo a passeio, se via um ambulante com seu taboleiro sôbre a calçada, arremessava o taboleiro ao meio da rua".

Informantes vários diziam do doente: "Era um brigão. Deu várias queixas contra os superiores e solicitou vários inquéritos em sua repartição, quando pensava que suspeitavam dêle. Sua fôlha de serviços é cheia de querelas. Mesmo punido, voltava à carga. Era um oficial "duro". Tanto "para baixo, como principalmente para cima". Até com coronéis e generais êle brigava.

Remetemos o doente para São Paulo, para junto de seu filho casado. Acusou de novo a espôsa. O filho não teve outro remédio que não fôsse o internamento dêle em sanatório de doentes mentais, onde até hoie se encontra, com intermitências de remissões e recidivas. No novo hospital, sonega sempre o delírio de ciúmes. Dá-se como doente de pura hipertensão.d d Os episódios delirantes mais graves não estavam em relação com paroxismos hipertensivos, nem com elevações da taxa urêmica, que nunca foi anormal. Era bom o poder de concentração renal (densidade da urina, 1024). Também os acessos convulsivos não tinham estrita dependência com paroxismos hipertensivos. Tampouco eram os ataques evitados pela retirada do liquor. A punção feita num dia não evitou que outros dois acessos convulsivos sobreviessem poucas horas após a punção.

Comentários - Indivíduo litigante, ciumento, explosivo. Confinado ao leito por moléstia geral que o invalida, acarretando-lhe forçada abstinência sexual, reagiu a estas condições anormais com delírio de ciúmes, compreensível, penetrável psicologicamente: via a abstinência como nociva à espôsa. A encefalopatia hipertensiva dá o "terreno alterado" que explica as convulsões. Possivelmente é este terreno alterado que torna graves as reações psicógenas, que anteriormente não alcançavam tal intensidade. Todavia, o clima psicológico - invalidez, abstinência sexual, espôsa com liberdade jamais fruída - parecem explicar a síndrome que o doente exibia. Como era psicoteràpicamente influenciável, parece ser psicógena, ao menos parcialmente (Kretschmer).

O papel fator exógeno só é indiscutível porque a encefalopatia hipertensiva é inegável (episódios fugazes de desorientação e de turvação de consciência, crises convulsivas, alterações do fundo de ôlho, insônia). Não fôssem êstes sinais "fundamentais" fugazes, os outros episódios constituídos exclusivamente pelos "sinais acessórios" (Stertz) seriam capazes de induzir o clínico ao diagnóstico de "delírio de ciúme". Sobretudo, levando em conta que havia uma "síndrome pré-formada", pré-existente. Entretanto, trata-se de uma reação exógena, que é também homônima.

Preferimos adotar esta atitude teórica, a rotular o doente como portador de "psicose hipertensiva" (Krapf), apesar de serem os distúrbios acessionais. Não é possível excluir o doente da síndrome que Krapf estudou conscienciosa e profundamente. A orientação de Krapf em nada é antagônica à que expusemos, quando diz: "Die dauernde Veränderung der Persönlichkeit, die einerseits den Hintergrund für episodische Störungen abgibt, anderseits aber auch unabhängig von diesen bestehen kann"5 5 . Krapf, E. E. - Cit. em Fortschritte der Neurologie, Psychiatrie und ihrer Grenzgebiet. Ulrich Fleck, março de 1938. . (A alteração permanente da personalidade, que por um lado fornece o terreno para o distúrbio episódico, por outro lado, porém, também pode existir independente dêste).

Com Schneider, diríamos que estão presentes: a - o sinal obrigatório (perda transitória de consciência); b - sinais facultativo-individuais (quadros alucinatórios e paranóides). Não diremos que a alucinação visual complexa da "noite terrível" seja localizatória-facultativa, porque é demasiado intrincada para ser puramente "mecânica", para reduzir-se ao tipo alucinótico, como Schneider exige para classificar de localizatória.

O quarto caso é o de uma embriaguez patológica, onde as explosões são ocasionadas pelo álcool, mas até certo ponto dirigidas pelos complexos afetivos. Se quisermos ir mais longe, poderemos dizer que os fatôres psicógenos influem diretamente no hábito de beber. Depois de desmoralizado no seu pequeno meio social, o doente só conseguia enfrentar os comentários e a opinião pública se estivesse alcoolizado. O álcool é que lhe dava coragem para aparecer entre os comentaristas de sua má vida. Depois, já sob a ação do álcool, o bebedor enfurecia-se com os críticos e esbordoava-os. A observação vai em resumo, para não alongar mais o trabalho, cujo pensamento condutor está suficientemente exposto (reações exopsicógenas).

Caso 4 - A. P. S., com 29 anos de idade, solteiro, soldado, branco. Há tara psicopática, mas pouco susceptível de maior precisão. O paciente está internado no Hospital Militar para ser periciado por delito de desacato à autoridade e resistência à prisão, delito em que é reincidente. Já houve perícia anterior, que o deu como psicopata (personalidade).

De seu passado consta: Aos 10 anos, perdeu o pai. Era filho único. Foi educado pelo avô, que não vinha vê-lo todos os dias. Residia com a mãe, economicamente dependente. Contraiu o hábito de beber quando ainda adolescente. Adotou o ponto de vista de outros companheiros - só é homem quem bebe. quem enfrenta as situações, quem não teme a vox populi. A roda de boêmios atraiu-o e, com tais companheiros, fêz seu aprendizado "de homem". Êles o iniciaram na vida sexual com prostitutas. Após a primeira embriaguez, estabeleceu conflitos internos: desagradava com o vício a sua mãe e degradava o bom conceito de que gozava. A roda de companheiros foi-se tornando mal vista e até mesmo execrada pelas famílias. Com seu contumaz alcoolismo, foi provocando êsse isolamento moral, ou antes, acentuando-o. A repulsa era por êle percebida, fôsse no bilhar, nas ruas ou em festas familiares. Ùltimamente, já vinha, quando embriagado, reagindo ao boicote com violência, agredindo aquêles que evitavam sua companhia. Com os componentes de sua roda boêmia, acabara com vários bailes familiares e promovera conflitos coletivos nas ruas. Entrar para o Exército convocado pelo serviço de guerra: já reagira à patrulha que o prendera, embriagado, a vagar pelas ruas do meretrício, onde andava sem a permissão indispensável. Doutra feita, tentara, embriagado, entrar num cinema sem comprar entrada, pretendendo valer-se de sua qualidade de militar; chamada a patrulha, negou-se a entregar-se à prisão. Conduzido à fôrça, já dentro do xadrez, forçara a sentinela e a guarda que acorrera, desacatara um oficial de plantão a quem tentara agredir, recusando sua intervenção amistosa; acabou sendo transferido para outra prisão, menos confortável, em regime solitário. No dia imediato, acordara naturalmente e dirigira-se à porta da prisão para sair. Abordado pela sentinela, surprendeu-se e inquiriu dela o que motivara sua prisão; ignorava o que fizera na véspera. Mais tarde interrogou também os outros companheiros da prisão onde pouco tempo passara. Esta sua lacuna mnética foi por nós comprovada com os meios existentes (interrogatório inquisitorial, que pretendia desmascarar simulação, promessa de aliviar sua pena se o doente confessasse lembrar-se de tudo, incitação a confessar os fatos, a fim de evitar a agravante do álcool como causa de amnésia, pois que já estava processado como antigo ébrio, etc).

Apuramos, ao exame psíquico, que o oficial agredido pelo soldado era seu protetor, o único talvez a quem sua conduta não despertava reprimendas, mas sim conselhos. Êste fato é mesmo invocado pelo doente para demonstrar sua inocência. Durante o ano que passou na enfermaria, mostrou-se indivíduo sem iniciativa digna dêsse nome: limitou sua cooperação a dar poucas injeções. Passava o dia a ler jornais e revistas. De seu passado, devemos ainda registrar que teve, até a época, um único emprêgo em Ilhéus, no pôrto. Quando foi para Ilhéus, fizera-o para afastar-se de sua cidade natal, envergonhado das cenas de que fôra protagonista. Aí deixou de beber por espaço de 8 meses. Retornando a sua terra, voltou à roda de bebedores e ao vício. Novamente tentou fugir ao descrédito geral e, em enérgica tentativa de emancipação, resolveu ir trabalhar em São Paulo. Fêz a viagem, mas não chegou a pôr o pé fora do Estado da Bahia, pois em viagem veio a conhecer uma mulher amasiada, a quem cortejou e com quem se amasiou. Quando o amante da mulher deveria chegar, êle fugiu retornando a sua terra após haver gasto tôda as economias que o ajudariam a atingir São Paulo. Voltou para casa, aguardando a calada da noite, evitando ser visto pela vizinhança, que infalìvelmente comentaria êste novo e grave fracasso. Dias seguidos passou sem sair de casa. Afinal, embriagou-se e saiu. Os comentários foram os mais desfavoráveis possíveis. Datam daí seus primeiros episódios de explosividade. Qualquer alusão a seu fracasso era replicada com violência crescente. Todavia, ainda no Ctia. imediato, sabia do que ocorrera, se bem que, às vezes, por fragmentos. Depois de sua entrada para o Exército, sua coduta de alcoolista já estava consolidada. Vimos que, ainda uma vez, reagira a um "opressor" (como êle próprio chamava ao oficial que o aconselhava). Tornara-se sensível demais à critica e à opinião pública, ainda que em miniatura.

Comentários - Neste doente, à medida que seu conceito decaia e que moralmente se degradava e, sobretudo, após fracassos em tentativas de emancipar-se do álcool, a embriaguez habitual assumiu, aos poucos, o aspecto de patológica. Nem lhe falta a amnésia pós-crise (que não é, aliás, de todo indispensável, para muitos autores). Pensamos que o descontentamento consigo mesmo, o sentimento de derrota no combate ao vício geraram uma atitude de "dessublimaçãó" (Pfister), ou seja, o doente recalcava os ditames morais, reincidia nos desafios-aos "opressores" responsáveis pelo boicote, repudiava o cordão de isolamento e a evangelização do oficial que o protegia, numa auto-afirmação ostensiva, revoltosa, de combate aberto aos que lhe apontavam o desprezível "bom caminho". Êle mesmo nos disse que só poderia enfrentar a opinião pública de sua terra, com o auxílio do álcool. Não é temerário dizer que a explosividade dêste doente era desencadeada especìficamente contra 03 indivíduos que combatiam mais de perto o seu vício - os "opressores" e o oficial que o tentava proteger. Temos, pois, uma embriaguez patológica onde preponderam os fatôres psicogênicos. Apenas o alcoolismo forneceu o "terreno alterado" gradativamente pela cronificação do hábito. São crônicas: o hábito de beber e os conflitos estabelecidos no sentido de libertar-se do álcool. Da tentativa de regeneração, à rebelião sem consideração, oscilava com o álcool. Registemos como desfêcho que o doente fugiu do hospital militar há um ano. Nada sabemos de sua conduta ulterior.

Do ponto de vista prognóstico e terapêutico, os 4 casos expostos demonstram que não há evolução e desfecho das reações exopsicógenas. No caso 1 houve remissão completa com a malarioterapia, apesar das causas psíquicas serem irremovíveis (morte da espôsa). No caso 2 houve remissão quase total pela terapêutica insulínica associada à psicoterapia; o fator exógeno (álcool) extinguiu-se sem que a evolução fôsse, com isso, favoràvelmente influenciada; empregamos a convulso-terapia com resultado parcialmente favorável; afinal, a insulina e a psicoterapia associadas, parecem haver resolvido satisfatoriamente êste caso. No caso 3 tratava-se de uma "cadeia de reações" (Kettenreaktionen), com sucessivos episódios análogo?, intervalados de períodos de saúde; tais períodos eram curtos, havendo tendência à estabilização da síndrome mental na cronicidade; os episódios independiam de pa-xismos da pressão arterial; talvez esta causa concorresse para fornecer o "terreno alterado" sôbre o qual os velhos temas de ciúme alcançaram forte poder patoplástico e até patogênico. O caso 4 mostra uma reação onde o fator exógeno (álcool) orientou explosões contra "opressores", como os chamava o doente, isto é, explosões até certo ponto compreensíveis, penetraveis psicològicamente; as explosões revelavam complexos em alta tensão, ou seja, fatôres psicógenos em ação; o fator exógeno gerava reações explosivas que os psicógenos conduziam; a própria embriaguez tomou o cunho de patológica, graças à colaboração dos fatôres ambientais, isto é, psicógenos; quanto à evolução e prognóstico, consideraremos que, depois dos crimes, já não era possível a solução puramente médica; intervém o aspecto social, que complica a questão assistencial-médica com a legal; isto mostra-lhe a gravidade.

Em síntese, podemos dizer que, removendo o fator exógeno, tanto pode desaparecer a reação (caso do ferroviário), como ela pode perdurar (caso do estudante). Não removendo o fator exógeno, tanto pode a reação desaparecer (Schneider exemplifica com um contusionado cerebral cujas reações psicógenas eram fàcilmente desencadeadas e facilmente remissíveis), como podem perdurar (nossos casos do militar reformado e do alcoolista).

Quanto à influência do fator psicógeno isolado, é muito mais difícil apreciar. Como regra prática, estabelecemos: 1 - afastar ambos os fatôres (exógenos e psicógenos), sempre que possível, utilizando terapêuticas empíricas ou biológicas (Sakel, Cerletti, Meduna, malária) ou terapêuticas etiológicas, quando possível (para as causas exógenas); - jamais deixar de promover psicoterapia, parecendo-nos mesmo que esta, muitas vezes, auxilia até o doente acometido de causa exógena irremovível de pronto (tuberculose, por exemplo).

Do ponto de vista, quer teórico quer prático, o tema parece interessantíssimo - o prognóstico não se mostra ião dependente dos fatôres exógenos, como poderíamos supor. Talvez muito mais importante do que êles seja a personalidade anterior do doente. Quanto mais hígida, tanto melhor prognóstico, provàvelmente.

Quando lemos um trabalho de Heitor Carrilho6 6 . Carrilho, H. - Neurossífilis e delinqüência. Arq. Manicomio Judiciário do Rio de Janeiro, 1938. , no qual o consagrado fundador da psiquiatria forense do Brasil mostrou que 22,33% de seus 600 doentes manicomiais tinham uma ou várias reações liquóricas positivas para neurolues, não pudemos deixar de evocar uma explicação que serviria ao menos para alguns de seus casos: não se trataria de doentes portadores de reações psicógenas (delituosas) em "terreno alterado" pela sífilis? O próprio autor, no referido trabalho, manifesta dúvidas em imputar sempre à sífilis um papel causai quanto às reações delituosas. Eis porque lembramos as Hintergrundreaktionen, como hipótese explicativa a ser verificada. Num "terreno alterado" pela sífilis as solicitações criminosas (psicógenas) podem ser menos refreáveis, sem perder a fisionomia psicógena, compreensível, ausentes os sinais "fundamentais", como turvação de consciência, onirismo, etc.

Pensamos, com êste trabalho, divulgar esta modalidade de psicoses de reação levemente impurificadas pelo fator exógeno. Que elas são freqüentes, e entretanto desprezadas habitualmente, afirma-nos a autoridade de Kurt Schneider. Aguardemos que nossos colegas patrícios confirmem, com observações, o que nos ensinou o grande mestre de Munich.

Trabalho exposto no Centro de Estudos Franco da Rocha (Hospital de Juqueri) em 27 julho 1947. Recebido para publicação em 19 agosto 1947.

Hospital Militar - Salvador (Brotas) - Bahia

* Poucos autores consignam esta modalidade de alucinose: indivíduo abstêmio, após alguns episódios de embriaguez, contrai alucinose.

  • 1. Stertz, G. - Die Beziehungen von Krankheitsprozess und Krankheitserscheinungen. Ztschr. f. d. ges. Neurol, u. Psychiat. 127: 788.
  • 2. Schneider, K. - Psychiatrisch Systematik und Aufbau der Psychose. In "Psychiatrische "Vorlesungen für Arzte", Ed. 2, pág. 169-171.
  • 4. K. Kolle. Psychiatric Urban und Schwartzemberg. Berlin und Wien, 1939, págs. 66-67.
  • 5. Krapf, E. E. - Cit. em Fortschritte der Neurologie, Psychiatrie und ihrer Grenzgebiet. Ulrich Fleck, março de 1938.
  • 6. Carrilho, H. - Neurossífilis e delinqüência. Arq. Manicomio Judiciário do Rio de Janeiro, 1938.
  • Reações exopsicógenas. Reações psicógenas em terreno alterado

    Nelson Pires
    Docente-livre de Psiquiatira na Fac. Fluminense de Medicina. Diretor clínico do Sanatório Bahia
  • a
    Êste fato mostra, com nitidez, que no episódio psicótico tratava-se duma síndrome pré-formada (Hoche), homônima (Kleist).
  • b
    Nesse dia, a pressão arterial do doente era 160 por 100.
  • c
    Nesse dia, a pressão arterial do doente era 190 por 120. Não havia, pois, paralelismo entre a agravação da síndrome e a da hipertensão.
  • d
    Os episódios delirantes mais graves não estavam em relação com paroxismos hipertensivos, nem com elevações da taxa urêmica, que nunca foi anormal. Era bom o poder de concentração renal (densidade da urina, 1024). Também os acessos convulsivos não tinham estrita dependência com paroxismos hipertensivos. Tampouco eram os ataques evitados pela retirada do liquor. A punção feita num dia não evitou que outros dois acessos convulsivos sobreviessem poucas horas após a punção.
  • 1
    . Stertz, G. - Die Beziehungen von Krankheitsprozess und Krankheitserscheinungen. Ztschr. f. d. ges. Neurol, u. Psychiat. 127: 788.
  • 2
    . Schneider, K. - Psychiatrisch Systematik und Aufbau der Psychose. In "Psychiatrische "Vorlesungen für Arzte", Ed. 2, pág. 169-171.
  • 3
    . Loc. cit.
    2, págs. 171 e 172.
  • 4
    . K. Kolle. Psychiatric Urban und Schwartzemberg. Berlin und Wien, 1939, págs. 66-67.
  • 5
    . Krapf, E. E. - Cit. em Fortschritte der Neurologie, Psychiatrie und ihrer Grenzgebiet. Ulrich Fleck, março de 1938.
  • 6
    . Carrilho, H. - Neurossífilis e delinqüência. Arq. Manicomio Judiciário do Rio de Janeiro, 1938.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1947
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