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Afasia pós-traumática

REGISTRO DE CASOS

Afasia pós-traumática

Napoleão L. Teixeira

Do Corpo de Saúde do Exército. Docente de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do Paraná. Médico do Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz (Curitiba)

Afasia é perturbação psicomotora ou, antes, psicossensorial, que impossibilita o doente da compreensão da palavra ouvida ou lida, ao mesmo tempo que o torna incapaz, mesmo sem paralisias, de externar idéias por meio da expressão oral ou escrita. A acuidade visual e auditiva mostram-se ilesas, mas os caracteres e sons percebidos não correspondem às idéias que exprimem. O doente pode mover os lábios e a língua, sua laringe é normal, não se mostra privado do uso da mão - vale dizer, não é disártrico, nem afônico, nem paralítico - mas perdeu a memória dos movimentos a executar para pronunciar ou escrever a palavra que lhe traduza a idéia.

Adotando, em linhas gerais, o conceito de Pierre Marie, Austregésilo1 1 . Austregésilo, A. - a) Clínica Neurológica, 3. ª série, Edit. Guanabara, Rio de Janeiro, 1945, pág. 7-25. - b) Aphasie et apraxie. In Rw. Neurol., 2: 6366 (julho) 1923. considera a afasia como "a perda da inteligência específica da linguagem", sendo, por outras palavras, verdadeira "apraxia agnóstica da linguagem". Ao ver de Brissaud, a linguagem não consiste somente em sons articulados, mas ainda em intonações ritmadas. Uma frase articulada tem, sempre, sua melodia caraterística, segundo exprima a cólera, a alegria, a indignação, a dúvida, etc. Essa música especial exprime, tão bem quanto a outra, os mesmos sentimentos, em todas as línguas. Depois de recordar, com Rousseau, que "l'accent est l'âme du discours". conclui dizendo que "le langage est une chanson articulée".

Assunto dos mais discutidos em Neurologia, todos os problemas atinentes à afasia aguardam ainda solução na opinião unânime dos neurologistas, por isso que lei, nem princípio algum, se acham definitivamente estabelecidos. "A questão das afasias e apraxias não teve solução unívoca em Neurologia", escrevem Austregésilo e Eurídice Borges Fortes2 2 . Austregésilo, A. e Borges Fortes, E. M. — Afasia e lobo parietal esquerdo. Neuro-biologia (Recife), 4: 275-288 (dezembro) 1941. . E acrescentam: "Não é fácil resolvê-la, pois as localizações nos hemisférios cerebrais ainda se acham no domínio das doutrinas e dos fatos. Podemos repetir que das afasias só não se contesta a denominação tudo o mais sendo litigioso".

A primeira contribuição anátomo-clínica deve-se a Broca (1861) cirurgião francês. Trata-se de doente com hemiplegia direita, que perdera a faculdade de falar, apenas conservando a palavra tan. Broca chamou a essa perturbação "afemia" (termo que Trousseuau, mais tarde, substituiria pelo de afasia). O cérebro apresentava amolecimento extenso, que destruía a metade posterior de F3, a metade inferior de FA e PA, grande parte do giro supramarginal e T1, no hemisfério esquerdo. Como a lesão lhe parecesse mais antiga ao nível do pé de F3, Broca considerou-a responsável pela afemia.

Charcot (1863) relatou, porém, o caso de um afásico, cuja autópsia revelou integridade das circunvoluções frontais; o amolecimento destruia T1, o pé de T2 e circunvoluções da insula, giro supramarginal, dobra curva, cápsula interna e núcleo lenticular. A esta verificação, mais tarde, se somariam outras (Laborde e Bouchardat), abalando, estas e aquela, seriamente, a teoria de Broca.

Wernicke3 3 . Wernicke, C — La Sindroma afásica. In La Clinica Contemporânea, V. 6, 1.ª parte, trad, italiana, Milão, 1908. (1874) deu novo impulso ao conhecimento da afasia observando um paciente que apresentava uma perturbação da palavra, no sentido de não compreender o que lhe dizia, nem o que ouvia, embora, por vezes, falasse demasiadamente, a ponto de passar por demente. Essa modalidade de afasia - por Wernicke denominada "sensorial" - foi atribuída à lesão da zona de Wernicke.

Para Déjerine4 4 . Déjerine, J. — Sémiologie des affections du systeme nerveux, Masson Cie, Paris, 1914. - o primeiro a ligar a afasia ao lobo parietal esquerdo - a zona da linguagem compreenderia: a) uma parte anterior, frontal - região de Broca - centro das imagens motoras da articulação, compreendendo o pé de F3 e a corticalidade imediatamente vizinha: b) uma parte posterior, temporal - região de Wernicke - centro das imagens visuais da palavra, localizada na prega curva (Fig. 1).


Em 1906. Pierre Marie5 5 . Pierre Marie — Travaux et Mémoires, vol. 1, Paris, 1926. expôs seu conceito da afasia, conceito retomado e defendido por seu discípulo Moutier e, mais tarde, seguindo e retocado por Foix - dando feição completamente nova ao problema. Propondo-se a destruir o que chamou "dogma da 3.a frontal" e o elemento sensorial da afasia, escreveu que, a seu ver, "a afasia é uma desordem puramente intelectual da palavra, sem o componente sensorial, ou seja, há um centro ou zona intelectual da linguagem, não existindo centros das imagens auditivas e visuais. Este centro ou zona intelectual da linguagem ficaria na região denominada "zona da linguagem de Wernicke", sobre os lobos parietal e temporal, contornando a cissura de Sylvius, compreendendo, de uma parte, a circunvoluçao supramarginal e, de outra, o pé das duas primeiras circunvoluções temporais (Fig. 1). Esta zona não seria "sensorial", mas "intelectual": uma lesão, em qualquer ponto dela, daria origem à afasia de Wernicke, mais ou menos completa. Pierre Marie e Foix duvidam das formas de afasia pura; apenas admitem uma cegueira verbal pura (alexia), acompanhada de hemianopsia, elemento extrínseco da afasia, pertencendo ao domínio da artéria cerebral posterior.

Concordam que as lasões da zona de Wernicke podem dar lugar a perturbações afásicas, mas que este centro não é pré-formado, mas adaptado; admitem uma afasia, por lesão da zona de Wernicke e uma anartria, por comprometimento do quadrilátero de Pierre Marie, ou quadrilátero de anartria, ou ainda quadrilátero lenticular (limitado, adiante, por um plano vertical que passa adiante da circunvolução anterior da insula e, atrás, por outro, passando pela parte posterior da insula, ocupando, em profundidade, a cápsula externa, cápsula interna e corpo estriado, tendo, como centro, o núcleo lenticular - este, quase sempre atacado). Afasia e anartria seriam processos diferentes, que, por vezes, poderiam somar-se, realizando a afasia de Broca.

Sob o nome anartria, Pierre Marie6 6 . Pierre Marie — Sémiologie Médicale, 23 de maio de 1903, pág. 243. 7. Austregésilo, A. — Aphasie et lobe pariétal gauche. Presse Méd. (fevereiro, 6) 1940, pág. 126-132. compreende, não somente a anartria absoluta mas, também, a disartria acentuada. "Carateriza-se o fato de a palavra do doente ser mais ou menos nula, ou, no mínimo, incompreensível, de tal maneira que se poderia, neste ponto, confundir-se a anartria com a afasia de Broca; mas, os caracteres distintivos entre os dois síndromos são numerosos e decisivos. Contrariamente aos afásicos, os anártricos compreendem perfeitamente o que se lhes diz, mesmo quando se trata de frases complicadas; podem ler e escrever, sendo mesmo capazes de indicar, por sinais, de quantas sílabas ou letras se compõem as palavras que não podem articular". A anartria é caraterizada pela perda da palavra, conservada a compreensão das palavras, da leitura, da escrita. É produzida por lesão localizada na zona lenticular, lesão que entrava a coordenação dos movimentos necessários à fonação e articulação das palavras, sem verdadeira paralisia dos músculos. "Na anartria", escreve Pierre Marie, "não se trata de perturbações estritamente motoras da articulação, mas também de distúrbios que comprometem o controle dos complexos mecanismos, que concorrem para a exteriorização da linguagem. A elaboração mecânica da palavra compreende, pelo menos, três atos essenciais: 1 — a produção de uma corrente de ar expiratório, regulada por centros nervosos, em sua exatidão, força, velocidade e ritmo; 2 — o ato de fazer vibrar essa corrente, ao nível das cordas vocais, que a tornam sonora e modulam pela intonação; 3 — a elaboração dessa corrente em vogais e sílabas, isto é, a produção da palavra propriamente dita, pela articulação. Na anartria, todos esses mecanismos se acham, simultaneamente, alterados e não só a articulação em si, como geral, e erradamente, se diz".

Austregésilo, já o dissemos, aceitando os pontos de vista de Pierre Marie, mas adaptando-os, propõe sua doutrina da afasia, que admite "ser um pouco revolucionária". Cumpre notar, entretanto, que autores modernos, de conceito - entre os quais V. Dimitri, de Buenos Aires - adotam, ainda, a doutrina clássica das afasias - isto é, afasia motora de Broca e afasia sensorial de Wernicke.

Observações neuro-cirúrgicas de Walter Dandy (1931) muito abalaram as localizações da afasia de Wernicke, pois a ablação total do lobo temporal esquerdo, em indivíduo dextro, não acarretou afasia. Tratava-se de homem de 21 anos, cujo lobo temporal foi totalmente removido pela extirpação de um tumor. Quatro meses depois da operação, o paciente não apresentava alteração alguma da linguagem - não teve, pois, "afasia sensorial". Logo após a operação, manifestou anomia (perda da faculdade de contar os objetos e de reconhecer os números) que, embora houvesse persistido algum tempo, acabou por desaparecer totalmente. Donde haver Dandy concluído não estar o centro da linguagem na parte posterior de T1 e T2 esquerdas; a anomia observada foi atribuída ao traumatismo da parte média do cérebro e dos vasos silvianos do lobo parietal, pois assim não fora e a palavra não voltaria íntegra. A segunda observação do mesmo autor registra o caso de paciente, portador de tumor no lobo occipital, que foi completamente ressecado; nessa ressecção foram incluídas as circunvoluções supramarginal e angular. Um mês depois da intervenção, o paciente demostrou "afasia visual absoluta"; era incapaz de ler uma carta; podia escrever sob ditado, mas não podia ler o que havia escrito. Nenhuma afasia auditiva. Teve leve anomia, que desapareceu posteriormente. Demonstrou este caso que o centro da afasia auditiva é independente da afasia visual.

Admitiam-se, outrora, dois tipos de afasia - extrínseca e intrínseca. Nas afasias extrínsecas (afemia pura, surdez verbal pura, alexia pura, agrafia pura), não se observariam distúrbios da linguagem interior. As afasias intrínsecas caracterizar-se-iam por perturbações, constantes, da linguagem interior; suas lesões localizar-se-iam na zona da linguagem ("linguagem interior" e "zona da linguagem" sendo duas expressões - uma psicológica e, outra, anatômica, estando uma para outra como a função está para o órgão). Atualmente, só se admite um tipo de afasia - a intrínseca. Para Pierre Marie, a afasia de Broca seria igual à afasia de Wernicke mais anartria. "Jamais vi", diz, "afasia de Broca por lesão da terceira frontal, nem surdez verbal pura por lesão isolada da primeira e segunda temporais, nem cegueira verbal - mesmo com a grafia - por lesão isolada da dobra curva. A zona de Wernicke é, por excelência, o centro intelectual da linguagem, tendo sob sua dependência: a compreensão da palavra, a leitura e a escrita, isto é, a afasia verdadeira. Quando uma lesão destrói extensão maior ou menor dessa zona, ou de suas fibras, há déficit dessas funções, segundo a lei da "produção global dos hemissíndromos cerebrais". Sendo muito extensa, observar-se-á déficit grosseiro, isto é, grande afasia. Sendo pouco extensa, o déficit será fraco, a tal ponto que, para demonstrar a existência, em afásicos tipo Broca, dessas perturbações ligeiras da compreensão da linguagem falada ou escrita, será preciso lançar mão de artifícios, como os empregados por Thomas e Roux. Essa gradação na intensidade do déficit em questão evolve por uma série de nuances das mais delicadas. Observar-se-ão doentes, atingidos de afasia de Broca, nos quais a uma grande anartria só se acrescentará discreta afasia; concebe-se que, por insensível transição, se chegará a um ponto em que os sinais da afasia faltarão por completo, tratando-se, assim, de anartria pura e simples e não mais de afasia de Broca. Neste grau derradeiro da escala, será a lesão anártrica da zona lenticular a única a subsistir, faltando a lesão afásica da zona de Wernicke. "Para compreender a infinita variedade de tipos clínicos em presença dos quais se encontra", conclui Pierre Marie, "é preciso compenetrar-se de que se trata de uma série de combinações clínicas de afasia e anartria, em doses extremamente variáveis, cada uma delas adequada, como forma clínica, à intensidade das lesões e sua localização".

Para Austregésilo, a afasia seria síndromo exclusivo do lobo parietal esquerdo (nos indivíduos dextros), particularmente limitado às 2.a e 3.a circunvoluções parietais; ao seu ver, "les zones denomées de Broca (pied de la troisième circunvolution frontale) et primitive de Wernicke (portions postérieures des circunvolutions temporales gaúches) ne sont pas des regions anatomiques indispensables à la production des aphasies".

O afásico é sempre um hemiplégico direito, exceção feita dos canhotos, nos quais a afasia coincide com hemiplegia esquerda. "Note-se que, se a hemiplegia de um lado corresponde a lesões do hemisfério oposto, e se as lesões abolidoras da palavra estão situadas no hemisfério esquerdo, o canhoto afásico com hemiplegia; esquerda, ou tem ambos os hemisférios lesados, ou tem só o direito lesado e, neste caso, os centros da palavra situam-se, indiferentemente, num ou noutro hemisfério, conforme a educação. O canhoto "fala" com o cérebro direito. Como falará o ambidextro ?" (A. Austregésilo8 8 . Austregésilo, A. — Nota à tradução brasileira de: Rimbaud - Neurologia, Cap. Afasia. ). "Nous tenons cependant à faire remarquer que, si l'aphasie est freqüente chez les hémiplégiques gaúches, les troubles du langage sont loin d être rares chez les hémiplégiques gaúches. Pierre Marie et Kattwinkel, sur 50 hémiplégiques gaúches, ont note 25 fois des troubles passagers, soit au total 82% de troubles de la parole dans rhémiplegie gauche (chez des droitiers); ces troubles de la parole sont d'ailleurs le plus souvent purement dysarthri-ques, la notion même du mot n'etant pas atteinte" (Pierre Marie et André de Léri9 9 . Pierre Marie e Léri, A. — Hemiplégie. In Sémiologie Nerveuse (col. Brouardel, Gilbert, Thoinot), Paris, 1911, pág. 342. 10. Gilebrt-Ballet e Laignel-Lavastine — Aphasie. In Sémiologie pág. 183. ). "La localization (habituelle) dans ITiémisphère gauche des centres du langage ne saurait surprende. Gratiolet a indique que cet hemisphere se développe d'une façon plus precoce que le droit. Au reste, A. de Fleury et Ogle ont appelé l'attention sur ce fait, que la disposition des artères assure à l'hémisphere gauche une irrigation plus facile et plus large qu'a celui du cote oppose" (Gilbert-Ballet et Laignel-Lavastine

Baseado na sua e na literatura mundial, pensa Austregésilo que a zona prerípua da afasia deve, provavelmente, ser a dobra curva (giro angular) e giro supramarginal (Fig. 1). As circunvoluções temporais seriam "centros corticais receptivos sensorials", ligados à audição; as circunvoluções occipitais, próximas à dobra curva, seriam igualmente receptoras, ligadas à visão. Baseia sua doutrina no estudo da citoarquitetonia, da fisiologia e da evolução filo-ontogenética e, finalmente, na patologia do lobo parietal. Acredita, pois, serem zonas responsáveis pelo síndromo afásico P2 e P3, sendo as regiões que as margeiam apenas receptoras; o centro intelectual deve estar limitado ao lobo parietal esquerdo.

Depois de relembrar que as conclusões da anatomia comparada mostram que, no homem, os lobos parietal e frontal têm maior desenvolvimento que em qualquer outra espécie animal, reeorda que o lobo parietal se mostra "o mais humano" entre os lobos encefálicos, sendo, por outras palavras, a parte mais diferenciada do cérebro do homem. Noção capital, visto ser a palavra consciente a demonstração definitiva do grau superior da nossa espécie, na escala zoológica. "O homem é, especialmente, o animal da palavra e das mãos" acentua. Sua inteligência superior manifesta-se pelos elementos fisiopsicológicos, acima citados.

A zona da linguagem interior se acha localizada no lobo parietal. O comprometimento do lobo parietal dá lugar a síndromos diversos: sensitivos, apráxicos e afásicos. A apraxia ideomotora é sintoma freqüente nas lesões do lobo parietal. "On croit qu'il existe au niveau du gyrus supramarginalis, ou dans sa profondeur, um siege d'eupraxie dont la lesion provoquerait l'aphasie (Schwob)11 11 . Schwob, R. A. — Les syndromes pariétaux, Paris, pág. 133. . Isto não é, de modo algum, regra fixa, pois, segundo Foix e Morlaas, pode a apraxia ideomotora ser expressão sintomática do comprometimento dos dois hemisférios; também aparece quando as lesões atingem a prega curva e a parietal ascendente. Ao ver de Liepmann, além de uma apraxia parietal, haveria também uma apraxia calosa.

Os diferentes síndromos, ligados ao lobo parietal, podem ser assim resumidos: nas lesões da circunvolução parietal superior, observam-se distúrbios da sensibilidade, epilepsia sensitiva com ou sem desvio dos olhos e da cabeça, astereognosia e ataxia; se há lesão na circunvolução parietal inferior, notadamente do giro supramarginal, observa-se, como sintoma principal, a apraxia ideomotora bilateral, de Liepmann. Isso, habitualmente, ligado ao hemisfério esquerdo; Forlaas, Morlaas e Krell, entretanto, acreditam que a zona parietal direita pode dar lugar à apraxia esquerda. Se é lesada a região medular interparietal, os distúrbios apráxicos assumem caráter especial, de que não nos ocuparemos, para não nos alongarmos mais. Sabe-se que apraxias, agnosias e afasias andam sempre juntas. Austregésilo chega mesmo a considerar uma "apraxia agnóstica da linguagem". Todo afásico é apráxico, embora todo apráxico não seja afásico.

Entre as afasias traumáticas, registram-se, entre outros, os seguintes casos: O de Florêncio de Abreu12 12 . Florêncio de Abreu — Sobre um caso de afasia total (Doente apresentado em 1929 à reunião dos clínicos do H. C. E. e reconsiderado, em 1944, na Academia Brasileira de "Medicina Militar). Publicações Médicas (Rio de Janeiro) 16, setembro-outubro, 1944. , consecutivo a coice na região frontoparietal esquerda. Benon assinalou um caso, conseqüente a ferimento por bala de revólver, na região temporal esquerda; o autor trepanou, retirou esquírolas e a afasia curou-se rapidamente. Alexandre trepanou indivíduo de 36 anos, acometido de epilepsia jacksoniana direita com afasia, após forte traumatismo por bloco de hulha na cabeça; constatou pseudocisto edematoso na parte posterior de F3 e, por punção, recolheu líqüido claro; o pós-operatório foi excelente; a paresia da mão direita, que existia a seguir as crises epileptiformes, desapareceu e, de igual forma, a afasia.

Observação - Indivíduo de cor branca, de 50 anos, casado, lavrador, alfabetizado (curso primário completo). Seus antecedentes familiais e pessoais carecem de importância. Dezesseis dias antes de o examinarmos, em uma briga, o paciente foi atingido na cabeça por um projétil de arma de fogo disparado a queima-roupa, caindo ao solo "como morto", permanecendo durante muitas horas (não pudemos saber, ao certo, quantas) em absoluta inconsciência; voltando a si, mais tarde, observou-se que podia alimentar-se e locomover-se embora de maneira incompleta, mas não conseguia falar e fazer-se entender, nem entender o que se lhe dizia.

Exame clínico-neurológico - Leucodermo, tipo corporal atlético (Kr.) Bom estado de nutrição. Pele e mucosas bem coradas. Na região parietal esquerda a 10 cms. da arcada orbitária e a 12 cms. do conduto auditivo, apresentava ferimento circular, de bordos irregulares, em cuja circunvizinhança ainda se observam orla de chamuscamento, tatuagem e areola equimótica. O exame dos diversos aparelhos nada revelou digno de registo. Discreta assimetria facial, com apagamento dos sulcos frontais e nasogeniano direitos. Quando de pé, observa-se que o ombro direito se mostra mais abaixo que o homólogo do lado oposto. O paciente pode ficar na posição bipede?tal, de olhos fechados e pés unidos, sem oscilar nem cair (ausência do sinal de Romberg). Apresenta hemiparesia total direita; o membro superior direito apresenta-se caído ao longo do corpo, mão suculenta, levemente cianótica, em semiflexão. Os movimentos são possíveis, embora limitados; diminuição da força muscular à direita. A pálpebra fecha-se com menos força que a esquerda. Ao abrir a boca, nota-se ligeiro desvio oblíquo, com maior abertura à direita. Discre'a hipertonia muscular à direita, menos intensa no membro inferior. O paciente marcha arrastando contra o solo o pé do lado parético, com movimento de circundunção bem acentuados. Reflexos osteotendinosos exaltados à direita; ausência de clono do pé, da mão, da rótula e mandibula. Sinal de Babinski esboçado, à direita. Demais reflexos superficiais diminuídos à direita. "Reflexos de automatismo e defesa presentes, do mesmo lado. Esfinctere normais. Pupilas iguais, circulares, reagindo à luz e acomodando à distância. O exame da sensibilidade difícil, dada as condições do paciente, que evidencia distúrbios na compreensão e articulação da palavra. Dá, contudo, impressão de reconhecer excitações dolorosas, vibrações do diapasão, tendo noção das posições segmentares em ambos os lados do corpo. Não parece haver distúrbios da visão, audição, gustação e ol facão, pois o observado dá a perceber, por gestos, os estímulos. O exame psíquico, eivado de não pequenas dificuldades, revela, como elementos de maior importância, atenção rapidamente esgotável, grande labilidade de humor, com freqüentes crises de choro e desespero; durante estas, esmurra-se, repuxa os cabelos, chegando mesmo a tentar agredir quantos o cercam; torna-se difícil, dadas suas dondições, levar a efeito exame das demais funções psíquicas. Registemos, antes que fique despercebido, ter nosso doente, mais tarde, depois de recuperação praticamente total, apresentado grande mudança caracterológica, com traços de perversidade, mostrando freqüentes raptos agressivos de crescente periculosidade, que o tornaram grandemente temido entre os seus. Exame da palavra: a) — Compreensão da palavra falada: não dá mostras de entender ordens, mesmo as mais simples, como: "mostre a língua", "ponha a mão no peito", "mostre o cabelo", "ponha a língua de fora". Não é capaz de mostrar objetos usuais, cujos nomes vamos indicando, como: prato, garfo, faca, colher, mesa, cadeira, janela, etc. b) — Compreensão da palavra escrita: não parece compreender palavras de uma só sílaba, como: pá, cão, pé, mão, etc. As letras escritas isoladamente não são indicadas; tanto a letra de fôrma, quanto o cursivo ou manuscrito, não são entendidos pelo observado. Operações singelas, como 1 + 1, não são levadas a efeito, c) — Articulação da palavra: 1. palavra espontânea — não articula palavra alguma, mesmo monossilábica, salvo "má" e "mamá", que repete amiúde, a propósito de tudo; qualquer objeto que se lhe apresente, qualquer pergunuta que se lhe faça - provocam a repetição de "má", "mamá"; 2. palavra escrita — não é capaz de escrever uma só letra do alfabeto, nem número de qualouer tipo. d) — Provas da apraxia motora*, serve-se mal de objetos comuns, é incapaz de usar corretamente o talher, o copo, etc. Dada a dificuldade de compreensão, conclui-se ser difícil a exploração; depois de muitas tentativas, conseguimos fizesse o "sinal da cruz". Exames complementares: a) De sangue — rrações sorológicas para lues negativas, b) — Do líqüido cefalorraquidiano — Punção-suboccipital em decúbito horizontal; pressão inicial 47; pressão final 15 (Claude); volume retirado I5cm3; liquor homogêneamente hemorrágico: após centrifugação: liquor límpido e xantocrômico. c) Exame radiológico — Presença de corpos estranhos, opacos, com caraterísticas radiológicas de fragmentos de projétil de arma de fogo, situados na região frontoparietal esquerda, com fratura da tábua externa e possível fratura da tábua interna. Diagnóstico: Afasia, apraxia, hemiparesia direita, consecutivas a traumatismo, em indivíduo dextro. Evolução: Com o tratamento, teve evolução favorável. A pouco e pouco, deu-se a recuperação da palavra, praticamente em toda sua plenitude. Como reliquat, mudanças caracterológicas acentuadas, com traços de perversidade.

Rua Coronel Dulcídio, 956 - Curitiba (Estado do Paraná)

  • 11
    11 . Schwob, R. A. — Les syndromes pariétaux, Paris, pág. 133. ). A maior parte dos dextros cultivados são, na realidade - diz Dégerine - ambidextros; sua plasticidade cerebral é nitidamente mais marcada que nos indivíduos única e exclusivamente dextros ou canhotos, estando a cura da afasia, de certa maneira, subordinada a essa condição.
  • 1
    . Austregésilo, A. -
    a) Clínica Neurológica, 3.
    ª série, Edit. Guanabara, Rio de Janeiro, 1945, pág. 7-25. -
    b) Aphasie et apraxie. In Rw. Neurol., 2: 6366 (julho) 1923.
  • 2
    . Austregésilo, A. e Borges Fortes, E. M. — Afasia e lobo parietal esquerdo. Neuro-biologia (Recife), 4: 275-288 (dezembro) 1941.
  • 3
    . Wernicke, C — La Sindroma afásica. In La Clinica Contemporânea, V. 6, 1.ª parte, trad, italiana, Milão, 1908.
  • 4
    . Déjerine, J. — Sémiologie des affections du systeme nerveux, Masson Cie, Paris, 1914.
  • 5
    . Pierre Marie — Travaux et Mémoires, vol. 1, Paris, 1926.
  • 6
    . Pierre Marie — Sémiologie Médicale, 23 de maio de 1903, pág. 243.
    7. Austregésilo, A. — Aphasie et lobe pariétal gauche. Presse Méd. (fevereiro, 6) 1940, pág. 126-132.
  • 8
    . Austregésilo, A. — Nota à tradução brasileira de: Rimbaud - Neurologia, Cap. Afasia.
  • 9
    . Pierre Marie e Léri, A. — Hemiplégie. In Sémiologie Nerveuse (col. Brouardel, Gilbert, Thoinot), Paris, 1911, pág. 342.
    10. Gilebrt-Ballet e Laignel-Lavastine — Aphasie. In Sémiologie pág. 183.
  • 11
    . Schwob, R. A. — Les syndromes pariétaux, Paris, pág. 133.
  • 12
    . Florêncio de Abreu — Sobre um caso de afasia total (Doente apresentado em 1929 à reunião dos clínicos do H. C. E. e reconsiderado, em 1944, na Academia Brasileira de "Medicina Militar). Publicações Médicas (Rio de Janeiro) 16, setembro-outubro, 1944.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1948
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