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Psicoses puerperais

ILivre-docente de Psiquiatria na Fac. Fluminense de Medicina. Diretor do Sanatório Bahia

IIAcadêmico de Medicina. Interno-residente do Sanatório Bahia

Sob o nome de psicoses puerperais reunimos, sem dúvida, entidades psiquiátricas diversas. Basta que a síndrome psíquica apareça em relação temporal com o puerpério para enquadrá-la como puerperal. Seria, talvez, mais certo dar a êste trabalho o nome de "psicoses no puerpério". Também como puerpério entendemos um período cuja duração não é aceita por todos os autores. Ao passo que os ginecologistas limitam o puerpério aos 60-90 dias que se seguem ao parto, os obstetras têm do puerpério um conceito aparentemente mais fisiológico e o prolongam até o retorno do fluxo menstrual. Um psiquiatra, Römer, considera como puerperais, as psicoses que se apresentam do segundo ao terceiro mês pós-parto; segundo este autor, por puerpério não se deve entender "o conceito ginecológico em estreito sentido", mas, sim, "as alterações metabólicas e endócrinas totais introduzidas após o nascimento". Em nossa casuística apenas 2 pacientes apresentaram perturbações mentais depois dos 60 dias - prazo mínimo exigido pelos ginecologistas; os demais casos estão dentro do puerpério, qualquer que seja o conceito utilizado. Cumpre dizer que não cogitamos de computar o retorno do fluxo menstrual em nenhum caso. Mas, como todos (menos 2) são de distúrbios mentais dentro dos 60 dias pós-parto, todos êles (menos os 2 que, ainda assim, estão dentro dos 3 meses de Römer) estarão indubitavelmente dentro do período puerperal, no conceito de qualquer autor.

Antes de entrar no estudo das psicoses sobrevindas no puerpério, impropriamente chamadas psicoses puerperais, é indispensável recordar o que se pensa modernamente sôbre os fatôres etiológicos das doenças mentais. A tendência atual é compreender as doenças mentais como filiadas a um dos três grupos: endógeno, exógeno e psicógeno.

As psicoses exógenas se dividiriam em: 1 - sintomáticas (autotóxicas, infecciosas, por doenças internas): 2 - heterotóvicas (álcool, morfina, etc); 3 - orgânicas (traumatismos cranianos, tumores, sífilis, etc). Deve-se notar que as psicoses heterotóxicas poderiam, de acordo com certos autores, entrar no grupo das sintomáticas. Em todo caso estas últimas, em geral, só secundariamente são doenças psiquiátricas, ao contrário das heterotóxicas e orgânicas, quase sempre psiquiátricas e, por vêzes, neurológicas.

Uma série de erros e de mal-entendidos oriundos da orientação nosológica-clínica, começou a ser afastada depois que começou a decadência de tal orientação. Exemplo de um dêsses erros: a demência precoce, entidade única, constitucional, endógena, hereditária, de modo algum seria relacionada com momentos exógenos. Superestimou-se o papel da constituição psíquica, como se superestima a Valencia dos mecanismos psicógenos. Esta última se deu por influência de Freud; quando Bleuler surgiu com sua concepção, teve de defender-se repetidamente dos mal-entendidos suscitados, segundo os quais êle admitia esquizofrenia psicogenética, e acabou por falar numa base fisiogênica, obscura e jamais provada. Com a noção de processo (Jaspers), pela primeira vez cogitava-se de algo parecido com exógeno, embora indefinível; o processo é psíquico e se opõe aos físicos do tipo dos da paralisia geral, demência senil, etc. Enfim, um processo sui generis.

Afinal, só Bumke e o organicista Kleist se firmaram na etiologia exógena da esquizofrenia. Duas ordens de fatos apoiam essa orientação no presente. A primeira nasceu da própria escola de Bumke; já temos hoje as pesquisas de Jahn e Greving sôbre a bioquímica das esquizofrenias; com Scheid, isto tomou feição de distúrbios por doença infecciosa e falou-se já, com Kòrtke, de morbus da demência precoce; há, ainda, a mencionar as pesquisas de Gjessing, igualmente conducentes a alterações importantes de ordem bioquímica nas esquizofrenias. A segunda ordem de fatos partiu dos heredobiologistas que, com seus métodos cada vez mais precisos, foram criando concepções teóricas deduzidas da prática clínica. Hoje admite-se que haja uma só esquizofrenia (Xuxemburger) e não esquizofrenias; também se admite que esta conclusão é obtida porque a pesquisa é orientada pela psico-patologia. Se algum dia se tiver que subdividir a esquizofrenia em mais de um grupo, isso deverá ser feito sob a orientação patofisiológica, muito promissora e, provàvelmente, muito mais capaz de lançar luzes nesse obscuro setor psiquiátrico.

Depois, alguns estudos mostraram que há esquizofrenias indubitavelmente exteriorizadas com auxílio do fator exógeno (traumas, infecções, etc). Mais ainda: nos doentes dêsse tipo, a disposição (Anlage) esquizofrênica é menos forte que naqueles doentes em que a esquizofrenia aparece sem causa desencadeante. Isto quer dizer que há a predisposição endógena, mas ela precisa dum adjuvante, que poderá ser o fator exógeno.

A patologia dos gêmeos mostrou isso com nitidez: nos univitelinos, quando um dêles apresenta esquizofrenia, o outro também a apresenta. Apenas 22% dos casos fazem exceção. Lange verificou, em gêmeos univitelinos, discordâncias especiais: um dos irmãos tornou-se esquizofrênico e outro não; mas a esquizofrenia foi desencadeada por um trauma craniano. Noutro par univitelino, em que só um dos irmãos se tornou esquizofrênico, essa síndrome apareceu depois de encefalite.

Fatos dessa ordem mostram: a) que a predisposição endógena pode ser insuficiente para produzir a doença, sendo necessário o fator adjuvante, que pode ser exógeno, como vimos, e talvez psicógeno, como vamos ver; como a condição endógena é, então, insuficiente para, autonomamente, produzir a síndrome esquizofrênica, modernamente dizemos que a fôrça de manifestação (Manifestationskraft) da psicose é insuficiente; b) que, provavelmente por carecer do fator adjuvante, o outro membro do par univitelino não se torna esquizofrênico; êle tem o elemento endógeno para isso, mas esse elemento não tetm força de manifestação suficiente; desde que o fator adjuvante não sobreveio, não há esquizofrenia: não há, pois, fatalidade hereditária nessa doença.

Vamos considerar agora o caso da esquizofrenia latente, com fôrça do manifestação insuficiente. Se um fator adjuvante sobrevém, precipita-se a esquizofrenia; no entanto, esta é endógena, apesar do desencadeador exógeno. Pelo menos assim será até que se prove que a esquizofrenia é psicose orgânica, como querem alguns. Há, pois, uma síndrome endógena desencadeada eocògenamente, ou, por puro didatismo, endo-exógena. Já se mostraram capazes de abrir caminho à esquizofrenia, tanto traumas cranianos, como o alcoolismo, a encefalite e outras infecções. Talvez algumas psicoses pós-malarioterápicas devam estar também nesse rol. Muito provavelmente algumas psicoses puerperais, também. Quando não apareçam puras síndromes esquizofrênicas (endogenamente condicionadas), detonadas pelo fator exógeno, a disposição endógena esquizofrênica pode colorir esquizofrenicamente a síndrome eminentemente exógena, e desaparecer com ela.

De qualquer modo, nas catatonias despertadas por um trauma craniano, a "impregnação" disposicional hereditária esquizofrênica é menor que nas esquizofrenias que não necessitam desse adjuvante. De fato, nas esquizofrenias autônomas há, entre os irmãos do doente, 8,3¾ de esquizofrenias; nas esquizofrenias adjuvadas, despertadas por traumas cranianos, só há 2,9% (Plattner-Herberlein) ou 1,9% (Bruno Schulz). Também é verdade que a catatonia nem sempre é esquizofrênica. Ao lado das catatonias exógenas (Bumke) há as maníaco-depressivas (Lange).

Assim, pois, há síndromes endógenas despertadas exogenamente. Pelo menos no que diz respeito à esquizofrenia, isso parece possível, de acordo com o exposto até aqui. No que diz respeito às demais síndromes endógenas (psicose maníaco-depressiva, epilepsia, sem falar em algumas oligofrenias), os fatos, ou são idênticos, ou ainda mais claros, como é o caso de muitas epilepsias.

Boström demonstrou que existem psicoses maníaco-depressivas organicamente provocadas; a paralisia geral, por exemplo, pode desencadear um ciclo (endógeno) de psicose maníaco-depressiva. Serviu-se êste autor do vocábulo provocada, adotado por Lange com conceito próprio. Provocada (provozierte) quer dizer que uma psicose endógena, conservando as características que lhe são inerentes (hereditariedade evidente, evolução autônoma, fisionomia sintomática específica, terminação peculiar, etc.) só aparece sob estímulo exógeno ou psicógeno. O caso de estímulo exógeno será o de Boström; e será de estímulo psicógeno quando o acontecimento afetivo, por exemplo, desencadeia depressão ou mania endògenamente fundamentada na herança. O próprio Lange exemplificou esta espécie psicogenamente provocada ou, como diz Jaspers, ocasionada.

Tais síndromes seriam, respectivamente, exo-endógenas e psico-endógenas. Isso tornou insustentável a exigência de uma causa única - endógena ou psicógena ou exógena. Pelo menos a causalidade única não é obrigatória. Tais fatos deram ainda mais solidez ao diagnóstico polidimensional. Embora a causalidade única não seja a regra, a endógena é, sem dúvida, a mais importante; sem ela dificilmente nascerão determinadas psicoses, ainda que se acumulem causas exógenas e psicógenas. Mesmo nas psicoses classificadas como psicógenas e exógenas, não se dispensa o fator endógeno constitucional.

Grandes tentativas vêm sendo feitas para identificar aquilo que caracteriza cada um dêsses fatôres. É um dos objetivos - a nosso ver o mais importante - da análise estrutural. Séries de pesquisas vêm sendo feitas nesse sentido e, se quiséssemos resumir, diríamos: a) Só há um sinal certo e constante, que identifica a etiologia exógena - o coma, a perda da consciência. Pode aparecer em qualquer indivíduo sem que exista predisposição, mas por vezes só aparece quando a intensidade do fator exógeno é muito grande. Um fortíssimo traumatismo craniano, por exemplo, deverá produzir coma ou, pelo menos, turvação de consciência, em qualquer indivíduo. A turvação de consciência simples pode existir fora das psicoses consideradas estritamente exógenas, embora isso seja raro. Estados crepusculares histéricos, epilépticos, esquizofrênicos e maníaco-depressivos, também a comportam. Mas, mesmo a simples tuivação de consciência, sem coma, é muito mais freqüente nas reações exógenas. b) Como sinal certo da etiologia psicógena, apontaríamos, em resumo: influenciabilidade pela psicoterapia, reversibilidade e compreensibilidade do conteúdo da psicose, da reação ou da neurose. Não são sinais absolutos, pois que por sugestão podem ser eliminados também sintomas somáticos, c) Sinais de etiologia endógena não foram sempre obtidos, ou ao menos, quando eles foram obtidos depois se demonstraram inaproveitáveis, inautênticos. Conforme a psicose, varia o selo autêntico da psicose endógena. Assim, nas esquizofrenias, após se rejeitar uma grande série de sinais patognomônicos, estudam-se hoje os apresentados pela escola fenomenológica (distúrbios da consciência do eu, desordens do pensamento e a incompreensibilidade do conteúdo, etc.); nas psicoses maníaco-depressivas, Kurt Schneider forceja por apresentar uma tristeza ou uma alegria vital. Há algo de corporal nesse estado de humor. Bumke, em polêmica com Schneider, contestou que se pudesse, psicopatològicamente, distinguir uma depressão reativa, de uma depressão endógena. Nas epilepsias, seriam sinais autenticadores endógenos: a deterioração caracterológica (independente do número de ataques), a peiseveração, a lentidão dos processos psíquicos, o empobrecimento intelectual, a nula agilidade mental, afora o caráter hereditário, que é, aliás, comum às três síndromes consideradas.

Nas síndromes em que, além da endógena, há outra causa, isto é, nas síndromes exoendógenas e psicoendógenas, pode predominar um ou outro dos elementos. Tende-se a admitir universalmente - sem sérias comprovações e, por isso, sem grande codificação - o seguinte: a) se predomina o endógeno, o prognóstico é mau; b) se predomina o exógeno ou psicógeno, o prognóstico melhora sensìvelmente.

Mas há restrições que impurificam esta simplificação exagerada: a primeira cabível é que o elemento exógeno pode determinar alterações psíquicas leves ou reversíveis e, no entanto, ser mortal por sua índole somática (septicemias, doenças cardíacas, etc.); a segunda é que, mesmo sem produzir êxito letal, há fatores exógenos que originam lesões irreparáveis. Entram eles nas psicoses orgânicas (paralisia geral) ; assim, o item h melhora em precisão se excluirmos dali as psicoses orgânicas; enfim, a terceira restrição - que, aliás, envolve as duas antecedentes - diz respeito à ausência de paralelismo entre a gravidade do agente somático e da síndrome psíquica; não é verdade que quanto mais grave ou mais intenso o acometimento, mais grave seja a síndrome mental.

Feitas estas restrições, o esquema acima poderia ser utilizado, prestando alguns serviços, ao mesmo tempo que uma longa verificação, muito fértil em resultados, logo aplicáveis ao prognóstico em psiquiatria, seria empreendida com seguros pontos de reparo fornecidos pela clínica médica.

Alguma coisa já tem sido feita, não quanto ao exógeno, mas no que concerne às esquizofrenias presumidamente psicogenéticas. O índice de cura é especialmente elevado, diz-nos Bumke; e entre os irmãos destes doentes, o número de esquizofrênicos é singularmente insignificante, como Bruno Schulz verificou. Bumke pensa que nem todos os casos eram de esquizofrênicos.

O extenso intróito visou explicar porque só modernamente as psicoses puerperais vão sendo localizadas na nosologia psiquiátrica. Vários fatos vão recebendo interpretação ajustada: 1) No puerpério irrompem muitas esquizofrenias, ainda que inicialmente o matiz exógeno perturbe o julgamento diagnóstico. O que parecia exógeno revela-se, afinal, esquizofrênico. Mais ou menos o mesmo se pode dizer das psicoses maníaco-depressivas e epilepsias nascidas com o puerpério. 2) Reações tidas como psicógenas aparecem também entre as síndromes mentais do puerpério. Seriam psicógenas, mas escorvadas pela especial condição fisiológica ou patológica dessa época. Na estatística de Runge, elas são, sobretudo, de ordem histérica. Não é de duvidar que o terreno alterado orgânicamente favoreça a aparição destas reações, que serão, então, exo-psicógenas. Numericamente, as reações psicógenas são as menos importantes, na estatística de Runge. 3) Reações tipicamente exógenas são freqüentes; é este tipo que dá a maior parte dos casos mortais por puerpério infectado e complicado de psicose.

Isto tudo quer dizer que o puerpério - especial condição fisiológica ou fisiopatológica - enseja oportunidade para psicoses com uma das três etiologias (endo, exo e psicógena) e para suas combinações em todas as proporções. Esta intrincação etiológica torna muitas vezes inextricável a pista diagnostica quando se quer fazer diagnóstico unidimensional. Inúmeras vezes só o decurso da psicose decidirá o diagnóstico. Só então teremos quadros puros, raros no início da psicose.

A primeira dificuldade aparece quando, frente a uma psicose puerperal, se quer excluir o fator exógeno. A inexistência de febre só serve parcialmente para isso, pois que excluirá a infecção, mas não excluirá a intoxicação, que pode dar subsídio à psicose. Não se sabe ao certo que modificações metabólicas assoalham o puerpério. Sabe-se que ginecologistas e obstetras não concordam em seus prazos de puerpério, e não concordam porque lhes falta um critério seguro. Puérpera será a mulher até que retornem os mênstruos, dizem os obstetras. Mas, ela pode engravidar de novo sem que chegue a ser menstruada. Isso é citado por ginecologistas e mostra, pois, que o não retorno do fluxo menstrual nem sequer é garantia de não se haver restabelecido o ciclo sexual feminino; restabeleceu-se, embora não chegasse à fase de menstruação. Por outro lado, para os ginecologistas, puérpera será a mulher até que se restaurem anatomicamente todos os órgãos sexuais e anexos que a gravidez e o parto alteraram. Eles abrem mão do retorno menstrual, da alteração promovida pela lactação no balanço endócrino e preferem o critério anatômico ao fisiológico. E, não se sabendo quais as alterações bioquímicas básicas do puerpério, não se saberá quando elas atingem a condição tóxica.

Obstetras e ginecologistas afirmam (mesmo desconhecendo suas alterações básicas) que, psicologicamente, o puerpério freqüentemente altera - ainda que sem atingir aos graus das psicoses - o equilíbrio psíquico; isto é tão conhecido que muitos códigos penais atenuam a pena cominada à mãe "que mata, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após" (art. 123 do Código Penal). Mulheres normais também apresentam leves alterações de seu habitual equilíbrio psíquico, assim depõem os obstetras e ginecologistas. As principais alterações residem em depressão, estados neurasteniformes, debilidades emotivo-hiperestésica, excitabilidade emotiva. Naturalmente, motivos psicógenos agravarão tal estado: a ilegitimidade do filho, o desajustamento conjugai prévio, a alteração estética do corpo materno por ela sentido penosamente, a redução da liberdade materna alterando sua rotina.

Abordamos, agora, a posição nosológico-clínica das psicoses puerperais.

Runge conseguiu obter, estatisticamente, os seguintes dados quanto à distribuição das psicoses puerperais: 36,84% dos casos pertencem à esquizofrenia; 19,64%, à psicose maníaco-depressiva; 25%, a psicoses sintomáticas; 7,89%, a reações histéricas; 6,69%, a psicoses "eclâmpticas". Naturalmente, tal conclusão só foi possível com o critério evolutivo, que permitiu esclarecer os casos inicialmente obscuros; é preciso notar, ainda assim, que a estatística transcrita totaliza apenas 96% dos casos.

Engelhardt informa sôbre a freqüência das psicoses puerperais; dentre 19.910 puérperas, verificou psicose apenas em 0,14%. A insignificância da cifra permitiu supor que a relação entre puerpério e psicose seja ínfima, a ponto de admitir a possibilidade de pura coincidência. Isto tiraria todo o valor - já tão relativo - à autonomia do puerpério como gerador de psicoses. Por êsse raciocínio não haveria, pois, psicoses puerperais propriamente ditas. As cifras de Kraepelin são aproximadas: em cada 400 puérperas., uma tem psicose; para êste autor, 6 a 8% de tôdas as mulheres que entram num hospital de alienados o fazem por psicose puerperal.

Também o fato de haver diminuído grandemente, com a assepsia rigorosa, o número de infecções puerperais, diminuiu a importância clínica das psicoses puerperais. A redução do número de psicoses puerperais operou-se em conseqüência da redução da parcela de psicoses infecciosas, grupo importante das psicoses puerperais.

Schröder analisou 40 casos de psicoses puerperais, dividindo-as em febris e não febris. As febris decorreram com infecção e parto complicado: eram, portanto, sintomáticas puras; 8 pacientes estavam neste grupo, sendo que 5 curaram e 3 faleceram. Nas 32 restantes, o quadro psicótico não tinha matiz sintomático impresso pelo puerpério. Schröder decidiu-se muitas vezes pelo diagnóstico final de esquizofrenia e poucas, pelo de psicose maníaco-depressiva. Entre estas últimas, cita um caso de estupor com "ricos traços catatônicos", que se desvendou mais tarde como uma típica psicose maníaco-depressiva. Embora este grupo de 32 pacientes estivesse separado do anterior, esta separação nem sempre é possível, não sendo indubitável a exclusão exógena. O autor concluiu pela incerteza de nossa precisão diagnostica nas psicoses puerperais, recomendando que devemos nos precatar "contra hipóteses e teorias do momento".

O trabalho de Römer teve orientação diferente. Preocupou-se êste autor com aspectos heredobiológicos e nosológicos, distinguindo: a) quadros endógenos: síndromes maníaco-depressivas e síndromes esquizofrênicas; b) quadros exógenos: síndromes amenciais e síndromes delirantes. Römer esclarece que, em seus 30 casos, o que existe é, "ou o predomínio de quadros mais ou menos explícitos de uma psicose exógena, ou se coordenam psicoses não indubitáveis do círculo esquizofrênico ou maníaco-depressivo".

Römer comparou seus 30 casos de psicoses puerperais com 35 casos de psicoses endógenas que mostraram um início puerperal ou um surto puerperal no seu decurso, deduzindo o seguinte: a) As depressões puerperais principiam, em geral, no 2.° ou 3.° mês pós-parto. b) O elemento exógeno pode desencadear a aparição de um quadro sindrômico endógeno (confirmação da asserção de Bostrõm). c) Do ponto de vista eugênico (para efeitos da legislação de eugenia, então vigente na Alemanha), a incerteza psiquiátrica não permite decisões médico-sociais: as puérperas com psicoses não são obrigatoriamente esterilizáveis. d) Dos 30 casos, com diagnóstico pouco claro - de sintomatologia discordante exo-endógena ou puramente exógena - um terço, no seu término, assemelhava-se à esquizofrenia. Em tais casos em que o quadro não é puramente exógeno e a hereditariedade é pouco esclarecedora, só o decurso decidirá. Objetou-se-lhe que o término em "quadros semelhantes à esquizofrenia", nada decidirá sobre a causalidade endógena ou exógena, a menos que se lance mão duma petitio principii justificadora: a esquizofrenia só poderia nascer endògenamente, nunca podendo ser provocada exogenamente. e) Quanto ao diagnóstico da amência, Römer dá valor primordial à '"fisionomia amencial", ou seja, à expressão fisionômica angustioso-perplexa. A base disso seria a turvação de consciência e o "Affekt" angustioso. A perplexidade, nas psicoses exógenas, resultaria da turvação de consciência, mas isso não permite diferençá-la da perplexidade dos esquizofrênicos ou dos maníacos, onde ela é produzida por outros distúrbios. Esta objeção é do comentador Ulrich Fleck, através do qual conhecemos os detalhes dos trabalhos de Schroder e de Römer, cujos originais não obtivemos. f) A amência nunca se torna crônica e não deixa reliquat. Também não existe especial predisposição amencial, no sentido duma labilidade. Mas as doentes puerperais com síndrome amencial que Römer encontrou, mostravam corporalmente uma constituição unitária: eram., sem exceção, picnoatléticas e, quanto ao temperamento, predominantemente ciclotímicas, "com os traços característicos correspondentes aos atléticos". Römer diz mesmo que o acidente exógeno alcança aí uma constituição que só oferece mínima possibilidade de "reagir psiquicamente de modo peculiar no sentido da loucura maníaco-depressiva ou no da esquizofrenia". Isto significa que apresentam forma amencial aqueles doentes que têm quase nula aptidão a reagir com esquizofrenia ou com psicose maníaco-depressiva. Mas os doentes que têm uma disposição esquizofrênica ou ciclotímica podem colorir uma amência, dando-lhe matiz maniforme ou esquizofreniforme. g) Römer não encontrou particularidades no delírio sobrevindo no puerpério.

Estas são as contribuições de Runge, Schröder e Römer aos problemas das psicoses puerperais. Elas afirmam, em síntese, que, no puerpério: a) encontraremos reações exógenas e psicoses endógenas; b) ficam facilitadas as reações exo-psicógenas (as histéricas teriam a favorecê-las algum componente exógeno inerente ao puerpério) ; c) surgem psicoses exo-endógenas (são provocadas exogenamente mas evoluem autônomamente como endógenas); d) a nota exógena, não raro, indica prognóstico benigno ou fatal, mas pode inaugurar uma psicose endógena que depois se cronifica; e) a disposição à psicose endógena, tanto se manifesta no puerpério pela primeira vez, como tem no puerpério mais uma ocasião de se manifestar; f) existem, embora em minoria, quadros puros, esquizofrênicos ou maníaco-depressivos.

Ignora-se, nos puerpérios não febris, se se pode excluir, com exatidão, o fator exógeno. Na maioria das vezes parece que isto não é possível. Mas, se, quisermos deduzir a presença de fator exógeno. pela especificidade que êle imprimiria ao quadro mental, seremos forçados a advertir que, não existindo especificidade propriamente exógena, não temos nenhum indicador diferencial seguro que exclua o exógeno in limine nos casos apenas suspeitos. A "turvação de consciência" não é apanágio do que se conhece como típica reação exógena; certas esquizofrenias também a podem apresentar, bem como reações crepusculares psicógenas e, mais raramente, psicoses maníaco-depressivas. Se se disser que a esquizofrenia é uma reação exógena, responderemos que isso é ainda uma presunção e que a natureza do exógeno é ainda desconhecida. Se se disser que ela é exógena justamente porque comporta, não raro, quadros amenciais e turvações de consciência, diremos que nisso ainda há uma petitio principii. a saber: só os exógenos dariam a turvação de consciência. Será isso totalmente verdadeiro (excluindo-se as turvações psicógenas) quando se comprovar que essas esquizofrenias são, na verdade, exógenas. Falta pouco para isso (a escola de Bumke, com Jahn e Greving, a de Scheid e, finalmente, Gjessing vêm trabalhando nesse sentido com resultados apreciáveis), mas ainda não foram superados os últimos obstáculos. Experimentados psiquiatras não duvidam que muitas esquizofrenias sejam exógenas. Têm disso intuição, provavelmente certa. Mas nós supomos (e é apenas dedução clínica) que há outras esquizofrenias nas quais nada faz presumir o exógeno. Luxemburger contesta que existam esquizofrenias, pois suas pesquisas parecem indicar que só há uma esquizofrenia; assinala, porém, que essa dedução foi tirada quando tomou, como base de pesquisa, a orientação psicopatológica. E se tivermos que desmembrar a esquizofrenia em subgrupos, deveremos recorrer à patofisiologia.

Nas psicoses puerperais estamos às voltas com vários problemas. Todos os autores mencionam a impureza das síndromes psicopatológicas; não se sabe, na maioria das vezes, a posição nosológica exata do quadro mental. No início, pelo menos, êle é freqüentemente "impuro'1. Com nossos meios diagnósticos psicopatológicos, isso é quase regra. Talvez porque estejamos a insistir na orientação psicopatológica, que será aqui imprestável, quando deveríamos tomar outra - patofisiológica - talvez capaz de orientar noutra direção o estudo da esquizofrenia, considerando não o aspecto psicopatológico puro, mas as condições de aparição, as alterações somáticas e a preparação hereditária, que abrem o caminho a síndromes esquizofrênicas, inicialmente "impuras", mas que, com o decurso, cada vez mais se tipificam. Enfim, quanto às esquizofrenias, o puerpério se vem somar a duas outras etapas evolutivas - puberdade (sentido lato) e involução - que parecem favorecer seu advento.

CASUÍSTICA

Observamos 30 pacientes apresentando psicoses puerperais; em lugar de publicar as observações de cada uma - o que, mesmo feito resumidamente, alongaria demais a exposição - julgamos ser mais útil considerá-las em conjunto, sob os pontos de vista da idade, biótipo, herança, personalidade anterior, momento da eclosão dos sintomas, modo de início da psicose, tipo de parto, diagnóstico clínico da psicopatia, sintomatologia e terapêutica empregada. Em todos os quadros que serão expostos e analisados, os pacientes foram divididos em três grupos: os do grupo A tiveram remissão total; nos do grupo B o desfecho é ignorado; os do grupo C evoluíram para a cronicidade.

1. Idade - Em nosso material as psicoses puerperais apareceram entre 16 e 36 anos; 63% dos casos situavam-se entre 21 e 30 anos; 56% entre 24 e 35 anos. As psicoses puerperais surgidas depois dos 30 anos parecem ter melhor prognóstico. Como todas as que se cronificaram (grupo C) se tornaram nitidamente esquizofrênicas e como nenhuma dessas pacientes tinha mais de 30 anos ao iniciar a psicose, parece provável que as psicoses mais curáveis - as que irrompem após os 30 anos - no que tange à idade, afastam-se evidentemente do que se chamava demência precoce; as aproximadas - etariamente, pelo menos - da demência precoce, são incuráveis ou menos curáveis. A recíproca - quanto mais jovem a puérpera com psicose, menos curável será - não foi confirmada em nosso material. Entretanto, isso merece verificações.

2. Biótipo - Nossos biótipos foram determinados de modo falho; com impressão visual e tendência a tipificar um quadro puro. Sabemos como é difícil, nas mulheres, excluir o tipo pícnico e incluir o atlético. Assim mesmo lançaremos nossas conclusões: a) predominam as leptossomáticas; b) as pícnicas de nossa casuística curaram, sem exceção.

3. Herança - Para este estudo estatístico, cada um dos pais das pacientes foi tomado como unidade. Incluímos no "grupo neurótico" quando havia um ou mais dos seguintes diagnósticos: alcoolismo, psicopatias, neurose.

Apesar da deficiência dos nossos dados, há fatos dignos de relevo: no grupo que não remitiu, com um total de 5 puérperas (10 pais), 5 pais são neuróticos, personalidades psicopáticas ou alcoolistas (50%), sendo os restantes normais; no grupo que remitiu, do total de 17 (34 pais) só 16 mulheres são bem conhecidas sob este aspecto (32 pais), sendo que 4 pais são neuróticos, personalidades psicopáticas ou alcoolistas e 2 são alienados, ao passo que 26 pais (81%) não têm desordens mentais ou da personalidade. Vemos que: a) a freqüência de desordens mentais (excluída a alienação) nos pais das doentes que remitiram (18,7%) é quase 3 vezes menor que a do grupo que não remitiu (50%) ; b) a ausência das mesmas desordens é muito maior (81,20%) no grupo que remitiu: c) a presença de alienação na ascendência não agrava o prognóstico.

Considerando os irmãos das pacientes com psicose puerperal (a unidade contada aqui é a puérpera e não o irmão anormal), teríamos:

Considerando os colaterais (cada colateral anormal conhecido é contado como unidade e ignora-se o número total porque ignoramos se havia anomalias mentais entre os colaterais desconhecidos), teríamos:

Tomando agora a puérpera e não o colateral como unidade, verificamos que, no grupo A (todas com remissão total), das 17 puérperas, são conhecidos os colaterais de 16: 8 não têm tara nos colaterais, 4 têm-na de alienação, 1 tem-na de neuróticos, 2 têm-na de suicidas, 1 tem-na de psicose puerperal. No grupo C, das que não remitiram (5 puérperas) verificamos que 3 não têm tara nos colaterais, uma tem-na de alienação e uma tem-na de neuróticos.

Procuramos, também, verificar a existência de taras em ascendentes afastados, obtendo os seguintes dados:

Dêstes dados relativos à herança ressalta o predomínio proporcional de desordens mentais entre os pais do grupo das pacientes que não remitiram, mesmo levando em conta nossas grandes deficiências anamnéstieas. Sobremodo curiosa é a aparição de psicoses puerperais, em qualquer categoria de parentesco (excetuadas as mães) de nossas doentes. Em 29 doentes com tara conhecida encontramos 5 com um ou mais parentes acometidos de psicose puerperal. Entretanto, ainda mais curioso é que uma de nossas doentes tem 7 irmãs, uma avó e uma sobrinha que foram acometidas de psicose puerperal. Também notável é que uma de nossas doentes tenha tido 6 primos que se suicidaram, tendo ela própria tentado a auto-eliminação. Talvez mereça menção o fato de duas doentes nossas terem progenitoras falecidas de parto e uma outra falecida de ginecopatia. A presença de alienação mental nos pais, colaterais ou ascendentes afastados é maior no grupo que remitiu. A tara de alienação não parece, pois. ter papel agravador do prognóstico.

4. Personalidade anterior - Não se pôde apurar com exatidão a personalidade anterior de todos os doentes. As fichas de nossas doentes haviam sido confeccionadas sem uniformidade, de modo que não era possível usá-las todas para uma estatística. Observamos, na personalidade pré-psicótica das puérperas com doença mental: a) forte predomínio das extrovertidas (16 em 23 casos conhecidos); b) forte predomínio das ajustadas conjugais (19 em 25 casos conhecidos); c) predomínio das ciumentas (9 em 15 casos conhecidos); d) leve predomínio das mulheres de boa escolaridade (12 em 21 casos conhecidos).

Quanto ao prognóstico há pouca coisa a registrar: a) A introversão pré-psicótica é rara mas não parece ser de mau prognóstico, como talvez se pudesse presumir do que se conhece em outras psicoses. Encontramos, ao todo, 5 introvertidas, das quais 4 curaram, b) A extroversão pré-psicótica nada indicou quanto ao prognóstico. De 13 em tais condições, 10 curaram, mas a extroversão é tão freqüente que este predomínio nada indica. Deve-se notar que, em nosso material, predominaram as extrovertidas não pícnicas. Percebe-se logo a dissociação: o biótipo pícnico indica bom prognóstico mas a extroversão sem biótipo pícnico não dá indicação prognostica.

5. Prognóstico em relação a episódios psicopáticos anteriores e ulteriores, puerperais ou não, ao número de partos c abortos, ao número de episódios mentais, ao número de ordem do parto em que apareceu a psicose - Para o estudo destes dados tomaram-se 29 puérperas (quanto à 30º, ignora-se em que parto sobreveio a psicose puerperal) que tiveram 86 partos e 11 abôrtos, sendo de 37 (33 em partos e 4 em abortos) o número total de surtos psicóticos. Chegamos às seguintes conclusões: 1) Nossos dados não confirmam que as primíparas sejam vítimas prediletas das psicoses puerperais; a preferência proporcional oscila sem que o acme de preferência caiba às primíparas. 2) As psicoses puerperais têm, em regra, bom prognóstico. Dos 37 surtos psicóticos, curaram-se 24 e 5 cronificaram-se; ignoramos o desfecho de 8 casos. Todos os casos que se cronificaram, adquiriram a fisionomia esquizofrênica, qualquer que tenha sido a fisionomia clínica inicial. 3) Das 8 recidivas que observamos (em 6 mulheres houve um episódio recidivante e em duas houve 2 episódios recidivantes) em 5 houve cura, em 2 o desfecho foi ignorado e unia cronificou-se. Isto permite concluir que, em regra, também a recidiva de psicose puerperal tem bom prognóstico. Uma mulher que teve por 3 vêzes psicose puerperal, remitiu todas as 3 vezes; outra com 3 psicoses em 3 puerpérios, remitiu de 2, sendo ignorado o desfecho da última recidiva. 4) Quando aparece episódio psicótico extra-puerperal em mulher que já teve psicose puerperal e que dela remitiu completamente, o prognóstico, via de regra, é mau. Mas se o episódio extra-puerperal é anterior ao puerperal, o último episódio psicótico puerperal não terá agravado, pela condição puerperal, o seu prognóstico. Mas a mulher não puérpera que apresenta um surto psicótico, embora haja vencido um episódio puerperal no passado, tem o prognóstico consideravelmente agravado agora. Naturalmente, somos levados a pensar que se trata de esquizofrenias que, conforme necessitem ou não da ajuda do puerpério, têm melhor ou pior prognóstico. Se são puramente endógenas, o prognóstico é pior do que quando há uma ação exógena, como o puerpério; excetuam-se os casos em que o episódio anterior ao puerpério não era esquizofrênico. 5) Impossível decidir, com o escasso material que temos, se o prognóstico das psicoses em primíparas é pior (como se costuma afirmar) do que nas restantes puérperas com psicoses; entretanto, parece que não é esse o caso. 6) Das 29 puérperas com 86 partos (33 surtos psicóticos) e 11 abortos (4 surtos psicóticos), deduz-se que a freqüência de psicoses no parto e no aborto é mais ou menos a mesma. 7) Quanto ao prognóstico das psicoses no pós-parto ou no pós-abôrto, não temos número que autorize conclusões. Nosso escasso material indica que só poderemos comparar o material do grupo A (no qual a psicose remitiu) com o do grupo C (no qual a psicose não remitiu) e assim, teremos, quanto ao parto e aborto: a - em 56 partos, verificamos 23 psicoses, das quais 4 cronificaram-se e 19 curaram; b - em 9 abortos, verificamos 3 psicoses, das quais uma cronificou e 2 curaram. Conforme tais dados, o prognóstico parece ser o mesmo no parto ou no aborto. S) Duas vezes vimos mulheres que tiveram por três vezes psicose puerperal; seis vezes vimos mulheres que tiveram duas vezes psicose puerperal. Portanto, num total de 29 mulheres, oito delas repetiram a psicose puerperal. Se das 29 puérperas, retiramos aquelas que não poderiam repetir episódio psicótico porque não mais tiveram puerpério e que são em número de oito, teremos que, das 21 puérperas multiparas, oito tiveram mais de um episódio. A nosso ver, isto demonstra que quase 40% das mulheres que tiveram psicose puerperal voltarão, se novo parto ocorrer, a tê-la, o que autoriza, em nossa opinião (e inspirados na legislação alemã, indiscutivelmente sábia) a cogitar da indicação da contraconcepção.

6. Influência do modo de início, febril ou subfebril - 1) Quase metade das psicoses foi acompanhada de início febril ou subfebril. 2) Pacientes que tiveram ou não febre têm a mesma probabilidade de cura, mas podem igualmente se cronificar - e para isto há uma ligeira tendência dos casos não febris. 3) É conceito clínico que a reação exógena típica freqüentemente tem um de dois desfechos: remissão completa ou morte. Dos nossos 8 casos febris de desfecho conhecido, dois passaram à cronicidade e nenhum teve êxito letal. Êste é um terceiro desfecho - menos freqüente - de término de uma reação exógena: abre a porta para psicose endógena. 4) O início febril tem, por si só, valor prognóstico quase nulo e não é suficiente caracterizar um caso com exógeno quando o quadro psíquico concomitante não o apoia.

7. Influência dos fatôres ligados à dificuldade no parto - 1) As psicoses puerperais advindas nos partos simples são mais numerosas que nos partos complicados (17 para 9); ignoramos se tal coisa se confirmará proporcionalmente, a saber, se o parto complicado gera psicoses mais freqüentemente que o simples. Tal indagação só é possível nas maternidades. É necessário, naturalmente, estabelecer a proporcional freqüência entre partos simples e complicados. Só depois poderemos saber se as psicoses incidem mais em um dos grupos que no outro. 2) Os abortamentos - contidos no item anterior sob a rubrica "partos complicados" - foram considerados invariavelmente como "complicados", ainda que não houvesse febre; assim agimos com os partos com fórcipe, sob anestesia ou sem ela, mesmo que ocorresse febre, nascimento por cesariana, etc. Naturalmente não consideramos, para nossa casuística, a simples rotura do períneo como complicação. 3) Não nos pareceu que com o ser o parto simples ou complicado, se pudesse tirar indicações prognósticas.

8. Diagnóstico mais cabível para a psicopatia - Psicologicamente considerados, os quadros endógenos e exógenos se equilibram (12 por 12). Daí estão excluídos os psicógenos e os depressivos, êstes últimos porque não eram suficientemente límpidos, sendo, por isso, impossível dizê-los endógenos quando havia suspeita de serem reativos. Evitamos o diagnóstico de psicose maníaco-depressiva porque êste conceito atualmente ganhou maior precisão com as "constituições pícnico-timopáticas". De nossas pacientes com depressão, uma poderia ser rotulada como pícnico-timopática, mas a outra é incerta. Por isso, resolvemos reunir os dois casos depressivos sem maiores pretenções. Os demais diagnósticos compreendem-se por si mesmos. Raras vezes a psicose exógena "típica febril" declinava e o quadro mental tomava tonalidades maníacas; noutro serviço possivelmente seria rotulada de maníaca esta sín- drome. Mas nossa preocupação aqui diz respeito sobretudo à etiologia geral e, só depois, à fisionomia clínica. Podemos concluir que: 1) a aparição de típicos traços exógenos foi, de modo geral, sinal de bom prognóstico ou de morte (4 por 1). 2) A aparição de quadros atípicos de esquizofrenia também significou prognósticos favoráveis (4 por 1). 3) As formas depressivas e as reações psicógenas também tiveram bom prognóstico (5 por 0). 4) As formas típicas de esquizofrenia conservam, quanto ao valor prognóstico, a percentagem geral das psicoses puerperais; em cada 4, aproximadamente 3 são curáveis. 5) Há psicoses cujo quadro mental permite que se pense em etiologia exógena, mas que evoluem sem sinais somáticos e sem febre, como psicoses endógenas. Em nossa casuística, das 3 vezes que isto aconteceu, houve cronificação em 2 casos.

Nota - Dizemos que uma esquizofrenia é típica quando, além de ser apirética e sem etiologia demonstravel, apresenta um ou mais dos seguintes sintomas: incompreensibilidade do conteúdo psíquico, alterações do "eu" (Ichstörungen), percepções alteradas com tipo esquizofrênico, idéias delirantes verdadeiras (Wahnideen). Serão atípicas as esquizofrenias que apresentam sintomas que também se vêm fora da esquizofrenia: agitação, autismo, desleixo pessoal, inafetividade (total ou parcial), idéias de perseguição, apatia, angústia, solilóquios, risos e choros sem aparente motivo, alucinações sem o sinete esquizofrênico, agressividade, perda do sentido ético.

9. Sintomatologia - Os sintomas mais freqüentes foram: agitação ou inquietação considerável, alucinações (visuais e auditivas), incoerência, insônia, perda especificada da afetividade (ou em relação ao marido ou em relação aos filhos, etc.) e idéias delirantes de perseguição. Pelos dados assinalados no quadro abaixo percebe-se que foram sintomas de bom prognóstico: insônia, angústia, choros constantes, depressão, sensação de morte iminente. Ora, êstes sinais são comuns nas neuroses e nas depressões psicógenas ou endógenas. Percebe-se que foram sinais de mau prognóstico: (notar que estamos comparando 17 casos curados com apenas 5 crônicos): inafetividade total, ciúme delirante, autismo. Ora, êsses são sinais encontradiços sobretudo nas esquizofrenias, incluindo aí as suas afins, psicoses paranoides dos francêses. Não deram segura indicação prognostica: a agitação, as alucinações, a incoerência, a desorientação, a percepção de tipo esquizofrênico e a perda "especificada" da afetividade.

Nota - Vê-se, pois, de acôrdo com o item anterior, que o quadro esquizofrênico típico ou atípico não dá indicações prognósticas. Também não as dá a presença de quadros esquizofrênicos ou não esquizofrênicos. Entretanto, certos sinais da série esquizofrênica podem dar indicação prognostica; uns nada indicam e outros são de mau prognóstico. Também em relação aos pacientes esquizofrênicos Langfeldt disse coisa análoga. Verifica-se, assim, que talvez se possam obter dados para o prognóstico, apurando o significado de cada sintoma, em vez de síndromes (hebefrênica, catatônica, etc).

10. Terapêutica - 1) O método mais empregado - eletrochoque - deu maior número de resultados. Usado vinte e três vezes, ocasionou doze remissões. Em 3 vezes das 6 em que falhou, a insulinoterapia rematou curando os doentes inalterados frente ao método de Cerletti. 2) A insulinoterapia foi empregada 8 vêzes; quatro remissões se devem a este tratamento; também êle falhou 2 vezes. 3) Duas vezes observamos remissão espontânea. Êste fato, observado poucas vêzes no material que esteve sob nossas vistas, não foi raro que ocorresse em puerpérios anteriores de nossas pacientes, que não foram então observadas por nós; alguns dos episódios são mesmo anteriores aos modernos tratamentos de Sakel e Cerletti. Tivemos a impressão de nem sempre serem eles psicógenos límpidos, como foi o caso de dois (em total de 3) psicógenos que pudemos observar. 4) Em um caso de psicose puerperal febril, após o tratamento medicamentoso o fator exógeno remitiu sem que a síndrome mental também o fizesse. Foi então empregado o método de Cerletti, com cura completa.

Do exposto verifica-se que, com os modernos tratamentos, as psicoses puerperais têm prognóstico análogo ao que tinham antigamente. Na estatística do Römer, um terço dos casos com início exógeno puro ou exo-endógeno terminava na esquizofrenia. No trabalho de Schröder, de 8 psicoses puerperais puramente sintomáticas (exógenas), 5 curaram e 3 morreram. Nossa casuística é semelhante. Em 8 casos nas condições dos de Römer verificamos o seguinte desfecho: 5 curaram, 1 faleceu e 2 cronificaram. Nosso material demonstra menor número de mortes e mais ou menos o número de remissões que Römer e Schröder obtiveram.

O início febril, que deveria garantir o selo exógeno da psicose, nem sempre o faz com nitidez: a psicose é febril ou subfebril, mas o colorido exógeno - onirismo, alucinações visuais, desorientação e incoerência - nem sempre se salienta ou nem sempre se completa.

Acreditamos ter visto quadros esquizofrênicos em psicoses assim iniciadas. Sem dúvida, foi quando observou fatos dessa ordem, que Römer falou em exo-endógeno e nós falamos em "possivelmente exógenas", ao lado das "exógenas típicas". Schröder tem linguagem diferente, como foi citado na introdução do presente trabalho. Assim considerando, as psicoses iniciadas desta maneira nem por isso têm melhor prognóstico (5 remissões em 8 casos).

Observamos que psicoses surgidas após parto, foram, por 2 vêzes, quase silenciadas pelo tratamento. Logo depois, porém, reacendeu-se a psicose e nenhum tratamento mais logrou resultado. O mesmo aconteceu com outra doente do grupo B, que iniciou o tratamento somente quatro anos após o início da doença. Isto significa que aquelas duas doentes (não levando em conta a do grupo B) portaram-se como não é raro acontecer com esquizofrênicas. A síndrome atual de ambas é de tipo esquizofrênico característico.

Trabalho apresentado ao V Congresso de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, realizado em outubro-novembro de 1948, no Rio de Janeiro e São Paulo.

Sanatório Bahia, Largo da Lapinha, 27 - Salvador - Bahia.

  • Psicoses puerperais

    Nelson PiresI; Heitor Pinto FilhoII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1950
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