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Ventriculocisternostomia (operação de Torkildsen)

REGISTRO DE CASOS

Assistentes de Neurologia (Prof. A. Tolosa) no Hospital das Clínicas da Fac. Med. da Univ. de S. Paulo

A despeito dos notáveis progressos que a neurocirurgia fêz nestes últimos 50 anos, a extirpação dos tumores infiltratives das regiões mais centrais do encéfalo, do 3.° ventrículo e, particularmente, dos tumores da região pineal, só se faz mediante pesadíssimo tributo à mortalidade operatória. Dos 16 casos dessa natureza que Dandy publicou em 1933, apenas 3 sobreviveram um ano ou mais e a mortalidade operatória imediata foi de quase 40%. A cirurgia dos craniofaringiomas também não apresenta estatísticas de sobrevivência muito promissoras.

Por outro lado, estas neoplasias traduzem-se clinicamente, quase sempre, por uma síndrome precoce e gravíssima de hipertensão intracraniana que, não raro, consome a resistência do doente em curto lapso de tempo, levando-o à morte, precedida de grande sofrimento, com cefaléias insuportáveis, em amaurose e organicamente espoliado pelos vômitos repetidos.

É o bloqueio pela compressão tumoral direta ou indireta de certas partes angustiadas do sistema ventricular, como o aqueduto de Sylvius ou buracos de Monro, que está na origem desta síndrome de hipertensão intracraniana. Acrescentemos a este grupo aqueles casos, não menos graves, de oclusão inflamatória, parasitária ou congênita destes mesmos orifícios e aqueduto, e teremos formado um grande grupo de afecções de sintomatologia muito semelhante, de difícil tratamento, seguido sempre de altos índices de mortalidade. De fato, as tentativas de reconstituição do trânsito liquórico, pela dilatação cirúrgica do aqueduto de Sylvius, obstruído nestes casos, têm sido seguida de morte em cerca de 50% dos doentes.

Como solução curativa, paliativa ou simplesmente preparatória, Torkildsen propôs, para tais casos, uma operação tecnicamente muito simples, consistindo, em resumo, numa anastomose entre um dos ventrículos laterais e a cisterna magna, mediante um tubo de matéria plástica ou mesmo de borracha comum.

Em rápida pesquisa bibliográfica, não encontramos referência, na literatura brasileira, ao emprego deste interessante tratamento cirúrgico. Pareceu-nos, por isso, útil a comunicação e publicação deste nosso caso, que se enquadra bem nos limites mencionados. Trata-se de um doente cujo diagnóstico sindrômico foi de hipertensão intracraniana grave associada à síndrome de Parinaud. Topogràficamente, apresentava bloqueio total e permanente da porção mais alta do aqueduto de Sylvius. Se difícil foi estabelecer a etiologia, tumoral ou inflamatória, fácil foi a indicação cirúrgica, pois o estado do doente, muito abatido e desnutrido, não permitia propuséssemos uma exploração cirúrgica de grande envergadura na região pineal.

J. A. V., de 27 anos de idade, solteiro, brasileiro, lavrador, internado em 23 de julho na Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas da Fac. Med. da Univ. São Paulo. Queixava-se de cefaléia, que se iniciara cêrca de um mês antes. O dia 29 de junho marcou o início da moléstia: sentiu dores de cabeça nas regiões frontais, de fraca intensidade, porém constantes, sem propagações, mais intensas pela manhã, cedendo quase completamente à noite. Nos dias que se seguiram, esta cefaléia aumentou de intensidade e, num paroxismo de dor 4 dias após, vomitou subitamente material gástrico de estase, sem que tais vômitos tenham sido precedidos de náuseas. Desde então, vinha sofrendo quotidianamente destes dois sintomas, sobretudo pela manhã, em jejum. Esta sintomatologia agravou-se progressivamente. A cefaléia, embora cada vez mais forte, nunca apresentou irradiações para outras regiões, incidindo sempre nas regiões frontais. Vinha, além disso, sofrendo perda progressiva da visão, cada vez mais nebulosa, principalmente no olhar ao longe. Outras vezes, também tinha diplopia. Não havia, na história da moléstia, referência a distúrbios da motricidade e da sensibilidade dos membros e, tampouco, febre. O equilíbrio sempre fora normal. Queixava-se ainda de hipoacusia e zumbidos à direita, desde o início da moléstia. Nada foi apurado no passado mórbido, de interêsse para a moléstia atual. Negava o paciente, particularmente, ter sofrido de moléstias venéreas.

O exame clínico revelou tratar-se de indivíduo bem constituído, porém emagrecido e muito abatido. Afebril, tinha pressão arterial normal, pulso 80 e respiração de ritmo e freqüência normal. Nada foi encontrado digno de nota ao exame dos aparelhos cardiovascular, respiratório, digestivo e urogenital.

No exame neurológico verificou-se a integridade do estado psíquico, da linguagem e da praxia. A motricidade e a sensibilidade do tronco e membros revelou-se normal. Boa coordenação muscular, dinâmica e estática. Ausência de hipercinesias. Ao exame dos nervos cranianos, verificou-se a existência de estrabismo convergente bilateral, com abalos nistagmiformes ao olhar em frente, e paralisia dos movimentos de elevação do olhar. As pupilas, isocóricas, apresentavam-se em midríase e não reagiam à luz. No olhar lateral, notava-se discreto déficit de ambos os músculos retos externos. Intenso edema de papila bilateral. Apresentava, ainda, hipoacusia acentuada à direita.

O liqüido cefalorraquídio, extraído em 23 de julho por punção suboccipital, apresentava-se límpido e incolor, sendo a pressão inicial de 28 e a final, de 10. Quocientes de Ayala: Qr - 3,4 e Qrd - 1,8. Citologia, 125 células por rim^ (linfócitos 76%, médios mononucleares 16%, grandes mononuclears 8%, polimorfonucleares neutrófi-los 0%, eosinófilos 0%). Proteínas totais 0,20 g. por lt. Cloretos 6,90 grs. por lt. Glicose 0,51 g. por lt. R. Pandy e Nonne-Apelt, opalescentes. R. benjoim 00000.12210.00000.0. R. Takata-Ara, negativa. Reações específicas negativas, inclusive para a cisticercose. A reação de desvio do complemento para a cisticereose, no sangue, foi negativa. O exame neuroftalmológico confirmou, em 30 de julho, os dados já referidos. O campo visual mostrava-se normal. Tampão de cerume no ouvido direito, retirado; o exame neurotorinolaringológico revelou-se absolutamente normal. O hemograma revelou discreto desvio para a esquerda, com 11.000 leucócitos por mm3, e pequena eosinofilia (7%) e linfocitose (35%). A reação de Was-sermann no sangue apresentou-se anticomplementar, inclusive em repetição, m.is a reação de Kahn foi sempre negativa.

Desde sua internação, submeteu-se ao tratamento desidratante pelo sulfato de magnésio, por via intravenosa, tendo-se observado melhora apreciável ao fim de 10 dias. A cefaléia diminuiu e a visão melhorou subjetivamente; persistia, não obstante, a paralisia do olhar para cima. A midríase também regrediu ligeiramente, tornando-se a pupila direita menor que a esquerda. O reflexo fotoniotor continuava ausente, sendo a acomodação e a convergência quase normais.

Foram realizadas as perfurações occipitais em 8 de agôsto. A amostra de líqüido ventricular esquerdo, obtida nessa ocasião, revelou hipertensão liquórica (não medida); 2 células por mm3; proteínas 0,05 g. por lt.; cloretos 8,0 g. por lt.; glicose 0,81 g. por lt.; demais reações normais. Feita a insuflação dos ventrículos com ar, em 13 de agosto, obtiveram-se clichês nos quais se vê grande dilatação quase simétrica dos ventrículos laterais, e do terceiro ventrículo, e o não aparecimento das imagens do aqueduto de Sylvius e do 4.º ventrículo. Nota-se, além disso, nas chapas de perfil, a existência de uma calcificação serpiginosa na parte posterior do terceiro ventrícido, nas visinhanças da região pineal. Nesta região, um aparente defeito de enchimento pelo ar, apresenta-se como uma imagem suspeita de tumor.

No dia 10 de setembro procedeu-se ao exame ventriculográfico com lipiodol. Injetados 4 cm3 dêste contraste no ventrículo lateral direito; sob contrôle radioscópico foi ele transportado para o 3.º ventrículo, confirmando-se, por êste meio, os achados da pneumoventriculografia, isto é, "obstrução da parte superior do aqueduto de Silvius". Contudo, não se conseguiu visualizar melhor a imagem tumoral. É de se notar que o contraste impregnou o epêndima do ventrículo lateral direito e do 3.º ventrículo, desenhando-lhe os contornos e mostrando o grande aumento do buraco de Monro. Após a injeção de lipiodol o paciente sofreu uma exacerbação da cefaléia e apresentou-se febril durante alguns dias. Porém, cerca de 3 dias depois, seu estado voltara ao anterior.

Operação - Foi operado em 16 de setembro sob anestesia combinada, intravenosa mais inalação de ciclopropana e de protóxido de azoto com intubação intratraqueal. A intervenção durou cêrca de 2 horas e o estado geral do doente, nesse lapso de tempo, manteve-se perfeitamente. Foi praticada, na região suboccipital, uma incisão mediana estendendo-se desde a protuberância occipital externa até o arco da 3.º vértebra cervical que, aprofundada até o esqueleto, pôs a descoberto a parte baixa e central da escama occipital e os arcos do atlas e áxis. Com auxílio de trépano manual, praticamos uma perfuração na escama occipital, que, a seguir, foi aumentada com auxílio de pinças goivas. Extirpamos da escama uma superfície simétrica de dimensões reduzidas, cerca de 2 x 3 cms., com abertura ampla do buraco occipital. Para maior conforto, extirpamos também o arco do atlas, embora não fosse estritamente necessário. A dura-máter, não muito tensa, foi aberta por uma incisão oblíqua em semi-ferradura de concavidade para cima e para a esquerda. Exposta a cisterna magna e verificada a inexistência de formações patológicas na fossa posterior, procedemos à outra parte da operação, que consistiu na colocação de tubo de matéria plástica, quimicamente inerte, no interior do ventrículo lateral direito, através da perfuração occipital aí realizada para fins de ventriculografia. Verificada a situação correta da extremidade do tubo no interior do ventrículo lateral direito pela saída espontânea de líquido cefalorraquídio, foi sua extremidade oposta passada para a fossa posterior, através de um túnel cavado com auxílio de ruginas entre osso e periósteo da região occipital, desde o orifício de ventriculografia até a incisão mediana. Mergulhada esta extremidade inferior na cisterna magna, foi aí fixada à dura-máter, que, a seguir, foi herméticamente fechada. O tubo foi ainda afixado ao periósteo e gálea logo após sua saída do orifício de ventriculografia. À inspeção, via-se, no interior do tubo, que é transparente, pequenas bolhas de ar sujeitas aos movimentos oscilatórios de vai-e-vem transmitidos pelo líquido cefalorraquídio, comprovando-se, assim, o bom funcionamento da anastomose. Fechadas as incisões mediana e de ventriculografia como habitualmente, foi realizado um curativo seco imobilizando a cabeça em uma posição média entre extensão e flexão.

O pós-operatório decorreu excelentemente. O pulso, pressão arterial e respiração não sofreram variações dignas de nota. Apresentou-se febril com 38,5ºC de febre durante a tarde dos 4 dias consecutivos à operação. A febre foi facilmente debelada com os antitérmicos comuns. Os pontos da pele foram tirados no 9º dia. A cefaléia desapareceu desde o momento em que o paciente voltou a si da anestesia e não mais voltou até hoje. O estado geral melhorou consideràvelmente. Alimentando-se muito bem, com excelente apetite, engordou cêrca de 7 quilos, nunca mais tendo vomitado. A partir do 15º dia do pós-operatório não recebeu mais nenhuma medicação, exceto o que se refere à radioterapia, da qual fêz várias sessões, num total de 2.310 r, visando a parte superior do tronco cerebral, terapêutica que suportou muito bem. Do ponto de vista neurocular, exames realizados em 11 e 28 de outubro, mostraram: 1) regressão completa do edema papilar do lado esquerdo e persistência de apenas um "fiou" papilar no bordo nasal do olho direito; 2) volta ao estado normal dos reflexos de acomodação e de convergência; 3) reaparecimento do reflexo fotomotor direto e indireto, embora diminuído ainda de intensidade; 4) desaparecimento da midríase bilateral e da anisocoria; 5) diminuição da acuidade visual à direita - 0,8 a 0,5 - e aumento à esquerda - 0,8 a 1,0: G) ausência de alterações dos campos visuais, que se mantiveram sempre dentro dos limites da normalidade; 7) persistência da paralisia da elevação do olhar, até esta data. Radiografias do crânio realizadas posteriormente mostraram a presença do contraste na porção posterior do 3.9 ventrículo e a não visibilidade do tubo de substância plástica usado para a anastomose. Entretanto, este pode ser facilmente palpado abaixo do couro cabeludo em seu trajeto desde o orifício de ventriculografia até a linha mediana na fossa posterior. Realizamos também, em 7 de novembro, novas punções, tanto ombar quanto venfricular esquerda. A pressão liquórica foi 10 nestes dois pontos. A compressão da região abdominal, nessas circunstâncias, provocou aumento rápido la pressão ventricular esquerda para 40 cm. de água. O aumento da pressão raquiliana só poderá ter-se transmitido ao ventrículo esquerdo através do tubo de anastomose entre o ventrículo lateral direito e a cisterna magna.

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  • Ventriculocisternostomia (operação de Torkildsen)

    Sylvio de Vergueiro Forjaz; Roberto Paulo de Araujo
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1950
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