Acessibilidade / Reportar erro

Particularidades da apraxia fronto-calosa

Particularidades da apraxia fronto-calosa

Adherbal TolosaI; Antoxio B. LefèvreII; Orlando AidarIII

ICatedrático de Neurologia na Fac. Med. da Univ. de São Paulo

IIAssistente de Neurologia na Fac. Med. da Univ. de São Paulo

IIIAssistente do Departamento de Anatomia (Neuranatomia) da Fac. Med. da Univ. de São Paulo (Prof. Renato Locchi)

A presente observação refere-se a um caso de arteriosclerose generalizada com localizações encefálicas graves, que ditaram uma evolução descontínua, com fases nítidas de agravação, correspondendo a vários acidentes vasculares; conforme se verificou pelo estudo anátomo-patológico, a essas fases corresponderam quadros clínicos diversos, que se sucederam durante a evolução. O paciente estudado foi vítima de três acidentes de natureza trombótica, que se relacionaram sucessivamente à artéria cerebral média, à artéria cerebral anterior, e, novamente, ao território dêste último vaso.

Houve também um amolecimento no território terminal da artéria cerebral posterior, cuja cronologia não foi estabelecida, visto como a situação clínica do paciente não permitiu que se estudassem eficientemente as funções visuais, não tendo sido possível a determinação dos campos visuais.

Já por êsses motivos destaca-se esta observação, pois não é freqüente deparar-se, no mesmo paciente, a agressão sucessiva aos três grandes vasos arteriais do encéfalo, com a possibilidade de apreciação das principais manifestações clínicas. Entretanto, outros fatores vêm aumentar o interêsse dêste estudo, em vista das particularidades observadas, especialmente no que tange à apraxia fronto-calosa e a alguns distúrbios decorrentes da lesão das áreas frontais pré-motoras. Além disso, o caso nos permitiu assistir a uma evolução clínica talvez inédita na literatura, que consistiu no fato de ter o membro inferior direito do doente em aprêço sido paralisado sucessivamente por afecção da artéria cerebral média e da artéria cerebral anterior, fato que comentaremos adiante.

OBSERVAÇÃO

l.º Episódio - Em fevereiro de 1945 deu entrada na enfermaria de Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, um paciente, P. B. C, preto, brasileiro, casado, pedreiro, com 53 anos de idade. Sua moléstia, ou por outra, os fatos que o trouxeram ao Hospital, iniciaram-se em 12 desse mês, em plena saúde aparente, com súbita e violenta cefaléia frontoparietal esquerda e perda de consciência, minutos após. Um quarto de hora depois, o paciente recuperou os sentidos e verificou que seu lado direito estava paralisado e que lhe era impossível articular palavra; este último distúrbio durou pouco, pois, 2 horas mais tarde já havia desaparecido, restando apenas paralisia flácida dos membros no hemicorpo direito. Houve também incontinência esfinctérica, que desapareceu 24 horas depois. Na enfermaria, alguns dias depois do acidente, o paciente apresentava: linguagem normal; hemiplegia ainda flácida, proporcional, já com esboço de volta do reflexo patelar à direita; sinal de Babinski à direita, sem os sinais de Rossolimo, Mendel-Bechterew ou do leque; reflexos cutâneo-abdominais e cremastéricos abolidos bilateralmente; o exame clínico geral revelou tratar-se de paciente com artérias periféricas esclerosadas, com pulso batendo 60 vezes por minuto; pressão arterial 185-135; clinicamente, nada digno de nota quanto ao coração. A evolução deste primeiro episódio foi bastante satisfatório e o doente, já quase livre de sua hemiplegia, teve alta em princípios do mês de abril de 1945. O exame de liqüido cefalorraqueano resultou inteiramente normal, assim como os de sangue (reações de Wassermann e Kahn e taxa de uréia) e de urina.

2.º Episódio - Em fins de outubro de 1945, isto é, 8 meses mais tarde, o paciente foi novamente internado em estado de subcoma, vitimado por novo insulto cerebral. Tinha então, de pressão arterial, 230 e 150, e apresentava novamente hemiplegia direita, desta vez francamente desproporcionada, com grande predomínio no membro inferior. O exame da linguagem foi impossível pelo estado do paciente c havia incontinência esfinctérica. O estado geral foi melhorando e a anartria que se verificou nessa ocasião cedeu completamente em alguns dias. O quadro neurológico compunha-se, então, do seguinte: hemiplegia predominando no membro inferior direito, com hipertonia de tipo piramidal, sinal de Babinski e esbôço de automatismo; ausentes os sinais de Rossolino de Mendel-Bechterew e do leque; abolição dos reflexos cutâneo-abominais à direita; reflexos cremastéricos conservados; a sensibilidade não pôde ser estudada em virtude da fadiga rápida do paciente; os exames complementares resultaram normais, com exceção do hematológico, que revelou discreta anemia, com leve macrocitose e hipercromia. Foi instituído tratamento com acetilcolina, norofolina, glicose. Paulatinamente o estado geral e psíquico foi melhorando e o paciente, embora com fala vagarosa e monótona, passou a responder às perguntas e a participar mais francamente do ambiente. A pressão arterial desceu a 140-90. Foi, então, possível verificar uma série de fatos que vieram dar novo interesse à hemiplegia apresentada e que estão referidos na súmula que se segue, do exame feito em 20 de dezembro, cerca de 50 dias após a internação:

Revisão do exame neurológico - Hemiparesia direita predominando no membro inferior, estando o superior e a face, praticamente, indenes; nítido sinal de Babinski e esboço de automatismo; ausência dos sinais de Rossolimo, de Mendel-Bechterew e do leque; abolição da sensibilidade artrestésica no grande artelho direito. O exame da linguagem revelou que a expressão oral se fazia de forma aproximadamente correta, sendo as palavras emitidas claramente, porém com excessiva lentidão, dando uma tonalidade viscosa e monótona às frases. Nenhuma alteração da percepção. Tanto a palavra falada como a escrita, esta com as restrições naturais devidas à pequena cultura do paciente, eram perfeitamente percebidas. Assim, diante de uma série de cartões com figuras, conseguia-se que o paciente indicasse precisamente as mesmas, tanto com ordens orais, como escritas; cartões com imagens mais complexas (série de Binet-Terman) eram descritos corretamente, com frases curtas, porém suficientes para demonstrar que o paciente percebera as situações nêles expostas. Nenhuma alteração mental: o paciente era bem orientado no tempo e no espaço, reconhecia bem sua situação procurando corrigir-se tôdas as vêzes que realizava erradamente alguns dos atos ordenados durante o exame. O senso crítico estava conservado: muitas vêzes, percebendo as falhas na execução dêsses atos, o paciente referia-se às mesmas de forma jocosa, com bom humor. Atenção satisfatória; o paciente foi submetido algumas vêzes a provas demoradas, com exames cansativos, sem que se fatigasse. Memória boa para os fatos recentes; não havia elementos para avaliar-se a memória de evocação. Em relação à imaginação e afetividade, nada digno de nota a não ser, talvez, certa indiferença pelo seu estado. Não havia delírios nem alucinações. O paciente mostrou-se sempre muito colaborador.

O exame da praxia evidenciou sensível grau de apraxia no lado esquerdo. A execução de ordens simples fazia-se corretamente: atos voltados contra a própria pessoa bem como os transitivos, com objetos, realizavam-se sem erros. Atos realizados com objetos imaginários como o bater em uma suposta porta, abrir e fechar com uma chave inexistente, eram realizados satisfatoriamente. Alguns atos simbólicos simples (saudação militar) eram bem realizados. Entretanto, os mais complexos, como o ato de persignar-se, realizavam-se com dificuldade e, mesmo, com enxerto de gestos desnecessários e desorientados. Enfim, havia evidente mas discreta apraxia à esquerda, mesmo descontando o fato de tratar-se de indivíduo dextro. No lado direito do corpo não se notavam tais fenômenos, porém, outra série de manifestações era observada:

Em primeiro lugar notava-se que o paciente executava as ordens de movimento, porém, de maneira constante e intensa, esse movimento era entravado ou perturbado pelo reflexo de preensão na mão direita (grasping). Tal distúrbio era descrito de maneira bem curiosa e ajustada pelo paciente quando dizia "que sua mão era um verdadeiro alicate". Assim, de uma feita, o paciente foi encontrado em decúbito lateral esquerdo e permaneceu nessa posição de costas para nós. Estranhamos tal fato, pois o paciente, delicado, não costumava agir dessa maneira, e solicitamos que se voltasse. A resposta foi que isso lhe era vedado, pois sua mão direita, agarrando-se fortemente ao travesseiro, ancorava-o nessa posição. Outra vez encontrámo-lo sentado no leito com as pernas pendentes. Não conseguia deitar-se por estar a mão direita segurando compulsivamente a côxa. Tal fenômeno dominava completamente sua movimentação e, estudado com mais atenção, exibia interessantes detalhes: todo o objeto que fôsse colocado na palma de sua mão direita era rapidamente agarrado pelos dedos, que se fechavam independentemente da vontade do paciente; apesar de seus esfôrços, êste não conseguia romper esta situação, a menos que se socorresse da mão esquerda, e, com esta, abrisse, com grande esfôrço, os dedos da mão direita, vencendo-lhe a obstinada ação preensiva.

Em segundo lugar, havia outro fato digno de menção: uma vez desencadeada a preensão forçada, com um objeto, era inútil ordenar-se ao paciente que o largasse; contudo, tal escopo era plena e constantemente atingido sempre que déssemos nova e diferente ordem relacionada com outro objeto. Nessas condições, com essa interferência, e daqui em diante assim denominaremos tal fenômeno, interrompia-se o ato tônico involuntário, tornando possível a execução da nova ordem; se, por exemplo, nosso dedo estivesse agarrado pela mão direita do paciente, êste só o largava quando lhe dizíamos "tome êste lápis", ou "bata com a mão na parede". Espontânea e voluntariamente a preensão só era interrompida com a ação da mão esquerda.

Em terceiro lugar, evidenciava-se o caráter francamente persecutório (groping) dêste fenômeno de preensão. Assim, se puséssemos um objeto ao alcance da mão direita do paciente e fugíssemos com êle no momento em que se ia fazer a preensão, a mão acompanhava involuntariamente o objeto, descrevendo o mesmo percurso, até agarrá-lo. Era, portanto, uma preensão, não só imperativa, como persecutório. Tal fato tornava difícil o manuseio do doente, quer durante as provas, quer nas atividades rotineiras da enfermaria. Os enfermeiros tinham grandes embaraços para lavá-lo ou arranjar-lhe a cama, pois o paciente os agarrava fortemente a todo o momento. Muitas vêzes, para examinarmos a movimentação do membro superior esquerdo, éramos obrigados a imobilizar a mão direita do doente, pois, do contrário, esta iria agarrá-lo de maneira imperiosa e duradoura.

Em quarto lugar, notávamos distúrbios bastante curiosos que também se exibiam durante a movimentação do membro superior direito. Tratava-se de absoluta deficiência inibidora, que impossibilitava ao doente interromper êstes atos iniciados sob ordem. Assim, no estudo da grafia, notávamos que o ato não podia ser interrompido, nem pela vontade do doente, nem por uma ordem específica do médico; o ato prolongava-se indefinidamente até que o doente usasse a mão esquerda, e, com esta, à maneira do "pick-up" de uma vitrola, suspendesse o braço direito, interrompendo sua atividade. De nada valia ordenarmos que interrompesse o ato, dizendo-lhe "chega" ou "pare"; para tanto era preciso que déssemos outra ordem diferente com utilização do braço em atividade. Se, ao darmos a ordem de parar, permitíssemos a utilização da mão esquerda, o paciente conseguia deter-se, provando isso, bem claramente, que sua percepção era satisfatória. Como exemplo deste interessante fato observamos que, quando mandávamos que o paciente batesse com um bastão três pancadas sôbre a mesa, a ordem era bem executada, com a mão esquerda; com a direita, porém, após a terceira pancada, o doente olhava-nos com expressão que traduzia o seu esfôrço e sentimento, mas o bastão continuava sendo batido até que a série fôsse interrompida pelos processos já expostos. Se a prova fôsse feita com a palma da mão, o fenômeno era o mesmo, apesar das dores que certamente isto provocava. Outra demonstração dessa persexwração no ato foi dada pelo seguinte fato: utilizando pequenos cubos de madeira de uma polegada (cubos de Knox da bateria de Grace Arthur) mandamos que fosse construída uma tôrre com três cubos, com a mão esquerda, tendo o cuidado de deixar sobre a mesa maior número de cubos; tal ordem era perfeita e exatamente realizada. Ao fazer o mesmo com a mão direita o doente não conseguia deter-se no terceiro cubo e ia empilhando peças sôbre peças, enquanto o precário equilíbrio do sistema o permitisse; chegou, assim, a seis cubos. Se ordenássemos que fizesse a série no plano horizontal, em que não influía a fator equilíbrio, a sucessão só se interrompia com o último cubo disponível. Ainda assim, notava-se no observado uma expressão ansiosa à procura de novos cubos, como se aquela interrupção forçada lhe fôsse intensamente penosa.

O exame da grafia foi bastante prejudicado pelos fatos já expostos. Foi dado ao paciente um lápis para que escrevesse o próprio nome: tôdas as tentativas resultaram inúteis; o primeiro traço vertical da letra P repetia-se indefinidamente. Fizemos numerosas provas nesse sentido. Pedimos que desenhasse a lápis um círculo sôbre um papel; com a mão esquerda a cópia era realizada, embora com certa dificuldade. Com a direita, o doente ficava obstinadamente a traçar círculos sôbre círculos, sem conseguir deter-se. Solicitado a copiar um quadrado, o resultado variava: o doente ficava a repetir o primeiro traço vertical sem conseguir fazer o ângulo reto. Tal resultado é perfeitamente comparável ao da prova do círculo, pois compreende-se logo que o círculo constitui uma figura de um só traço, que não exige espontaneidade nem iniciativa para uma mudança brusca de direção, como acontece no caso do quadrado. Evidentemente, ao passar de um lado do quadrado para outro, algum poder inibitório se faria necessário para a mudança de direção. Seria uma espécie de atividade descontínua mais complicada, consideradas as coisas do ponto de vista fisio-cinético, que a do traço circular. Enfim, o círculo pode ser considerado como figura elementar que se repetia, ao passo que a figura quadrada pode ser decomposta em 4 elementos que, de per si, admitem repetição. O exame da escrita com letras de tipógrafo revelou a mesma ordem de fatos. Pedimos ao paciente que escrevesse o próprio nome, dando à sua disposição apenas os caracteres necessários para PAULINO BEATO. Inicialmente, escreveu: PAILON BET AO. Corrigiu depois para: PAILON BEAOT. Finalmente, escreveu de maneira correta, deixando o U em espelho. Em seguida pedimos que compusesse a palavra PIANO, deixando, porém, a seu dispor três letras a mais: OUL. Escreveu: PIANOU e comentou: "Com estas letras não dá". Foram-lhe fornecidas outras letras e então escreveu PIANOBUAOLTB, esgotando todas as letras disponíveis.

3." Episódio - O paciente continuou mantendo êste quadro neurológico com pequenas variações até que, a 17 de fevereiro de 1946, foi acometido de novo icto, agravando-se extraordinariamente o seu estado; tornou-se apático, torporoso, completamente anártrico, raramente atendendo a alguma solicitação, mas houve o suficiente elemento para verificarmos que se agravara a apraxía esquerda. Encontrâmo-lo em posição estranha, com a cabeça fora do travesseiro e a face colada à parede em que se encostava o leito. Pedimos que descançasse no travesseiro e êle, ao invés de realizar êste ato, fletiu fortemente o membro inferior esquerdo a ponto de encostar o joelho no tórax. Em 14 de março havia: hemiplegia direita predominando no membro inferior, com pronunciada hipertonia; ausência de sinal de Babinski e presença do sinal de Rossolimo; apraxia à esquerda; incontinência esfinetérica; desapareceram completamente a preensão forçada e o reflexo de preensão, anteriormente verificados. Com êsse quadro o doente permaneceu na enfermaria, em decadência orgânica progressiva, em franco marasmo, vindo a falecer em 20 de outubro de 1946.

Fig. 1 - Caso P. B. C. (SS-23.717). Secções frontais do cérebro, em vista posterior; face anterior nos lobos occipitais. Rombencéfalo em vista ventral. Intensa arteriosclerose em todo o encéfalo. Corte 1, pelo joelho do corpo caloso: a artéria cerebral anterior esquerda apresenta-se quase ocluída acima do corpo caloso, porém com luz praticamente normal inferiormente ao mesmo; a metade superior do lado esquerdo do corpo caloso e o giro cíngulo homolateral apresentam-se nitidamente lesados. Corte 2, pela comissura anterior: artéria cerebral anterior esquerda completamente ocluída. À esquerda, estão lesados os giros frontal superior e cíngulo, bem como o corpo caloso. Corte 3, pelos corpos ma-milares: alterações semelhantes às do corte precedente. Corte 4, pelos núcleos rubros: mesmas lesões da artéria cerebral anterior esquerda, corpo caloso e giro cíngulo; o giro frontal superior esquerdo apresenta alterações menos marcadas, porém ainda evidentes; outro foco de necrose compromete, à esquerda, o núcleo caudado, a cápsula interna e a porção lateral do putâmen. Corte 5, pelos pul-vinares do tálamo: mesmas lesões do corpo caloso e giro cíngulo esquerdos; o lóbulo paracentral esquerdo apresenta pequeno foco de amolecimento na sua porção súpero-medial, além de algumas outras alterações menos evidentes na fotografia. Cortes 6,7 e 8, entre os lobos parietais e occipitais: amolecimento de todo o córtex calcarino direito.


RESULTADO DO EXAME ANÁTOMO-PATOLÓGICO

Deixando de parte referências que não interessam diretamente ao aspecto desta observação, limitar-nos-emos a considerar os achados para o lado do sistema nervoso, especialmente do encéfalo. Diremos apenas que havia tuberculose disseminada nos pulmões, fígado, baço, intestinos e arteriosclerose generalizada. Encéfalo com forma, volume e consistência normais. Meninges normais. Artérias intensamente comprometidas por arteriosclerose: paredes irregularmente espessadas e endurecidas por placas salientes de coloração amarelada, densamente confluentes nos grossos troncos, porém, gradativamente mais isoladas e menos numerosas à medida que diminuía o calibre dos vasos.

Cérebro - Circunvoluções de conformação e disposição normais. Sulcos e fissuras bem individualizados, talvez ligeiramente alargados. Nos cortes frontais mostram as artérias as alterações referidas, bem como acentuada redução de seu lume. Sistema ventricular ligeira e uniformemente dilatado. Epêndima normal. Nos hemisférios encontram-se 3 zonas de necrose isquêmica relativamente antiga (dois à esquerda e um à direita), onde a substância nervosa foi substituída por massa amorfa, irregular, finamente granulada, de coloração levemente ferruginosa e consistência diminuída. No hemisfério direito, a necrose atinge todo o córtex que reveste a fissura calcarina e a substância branca correspondente. A artéria calcarina tem parede fortemente espessada e luz praticamente obliterada. No hemisfério esquerdo, uma das zonas de necrose, de forma laminar, destroi parte do núcleo caudado (transição entre cabeça e cauda), a porção adjacente da cápsula interna (metade posterior do segmento lentículo-talâmico) e a face lateral do putâmen (irrigação dependente dos ramos centrais da artéria cerebral média). Inferiormente à lesão, a cápsula interna apresenta-se estreitada e acinzentada. A outra zona de necrose, mais extensa, abrange tôda metade esquerda do corpo caloso, exceto o rostro e o esplênio, destroi praticamente todo o giro cíngulo e lóbulo paracentral, porém, é apenas incipiente no precuneus e na porção dorsal do lobo parietal superior. A artéria cerebral anterior apresenta-se com parede fortemente espessada e luz praticamente desaparecida, a partir da emergência de seu ramo frontal interno anterior (fronto-polar). No rombencéfalo. afora as alterações arterioscleróticas dos vasos, nada há digno de nota. Sob o ponto de vista histopatológico, no encéfalo especificou-se: amolecimento antigo; necrose de liquefação bastante adiantada, notando-se a presença de inúmeros corpúsculos granulogordurosos; as arteríolas apresentam as paredes bastante espessadas. Diagnóstico: Artério e arteríoloselerose cerebral. Amolecimento.

AJUSTAMENTO ANÁTOMO-CLÍNICO

Comparando-se os vários episódios descritos na evolução do caso com o que nos revelou a autópsia, vemos, com muita clareza, que, salvo um ou outro ponto, os dois aspectos do caso se superpõem de maneira completa e coerente. Nestas considerações somos obrigados a deixar de lado o amolecimento da fissura calcarina direita, porquanto não surpreendemos o quadro clínico correspondente. Não podemos sequer imaginar a época do seu aparecimento, provavelmente remota. Além disso, em se tratando do hemisfério direito, as possibilidades seriam ainda menores.

O primeiro episódio descrito na observação adapta-se perfeitamente ao amolecimento profundo no território da artéria cerebral média esquerda. Com efeito, apresentou o paciente uma hemiplegia completa, proporcional, com distúrbios transitórios da linguagem. Esta hemiplegia regrediu facilmente, o que aliás se compreende muito bem, reparando nas relativamente pequenas proporções do amolecimento. Provavelmente, grande papel representou aí o edema perifocal. Em poucos meses houve quase completa "restitutio ad integrum". É interessante notar êsse fato, pois veremos que, na etapa seguinte, êle poderá ser invocado no esclarecimento dos fatos.

No segundo episódio o paciente teve o lado direito novamente afetado; porém, desta vez, como se verificou após a saída do subcoma, os fenômenos paralíticos predominaram nitidamente no membro inferior. É preciso recordar que já havia um estado de deficiência, conseqüente ao episódio anterior. Ainda assim, tal fato poderia não ter atraído nossa atenção, não fora o aparecimento de nítida apraxia unilateral esquerda. Estávamos, pois, diante de uma monoplegia crural direita, ou, se quisermos, uma hemiplegia predominantemente crural direita, com apraxia unilateral esquerda. Mais não era necessário para que se reconhecesse uma disfunção da artéria cerebral anterior esquerda. E' a confirmação da genial concepção de Liepmann no seu esquema das apraxias calosas. Segundo êste esquema, qualquer que fosse a artéria cerebral anterior obstruída, com amolecimento do corpo caloso, haveria sempre apraxia à esquerda. A monoplegia crural ou hemiplegia com predomínio crural seria à esquerda nas tromboses do lado direito, e à direita, como no nosso caso, nas lesões da artéria esquerda. Vemos, assim, como se ajusta esta fase ao foco de amolecimento que englobou quase todo o corpo caloso, mais o giro cíngulo, além do lóbulo paracentral.

Todavia, outros fatos foram observados neste segundo episódio, que não encontram explicação na deficiência da artéria cerebral anterior esquerda. Referimo-nos aos fenômenos interessantíssimos observados no lado direito, no membro superior pouco afetado pela paresia. O reflexo da preensão (grasping reflex), a preensão forçada (forced grasping) e a preensão per-secutória (groping), que poderiam ter sua explicação nas lesões das áreas pré-motoras esquerdas, fogem ao âmbito das síndromes da artéria cerebral anterior, a menos que se admita, para o caso, uma variante na distribuição do território cortical, o que nos pareceria um tanto problemático. Entretanto, melhor explicação podemos sugerir se recordarmos que o acidente com a artéria cerebral anterior veio agravar um estado de coisas já anteriormente comprometido pela precedente interrupção da artéria silviana. Assim, o amolecimento desta última, que em parte foi curado, teria deixado um território já predisposto. Ora, se a artéria vizinha, a cerebral anterior que, como vizinha, deveria suprir as deficiências da cerebral média, entrou também em regime de déficit, fácil é admitir que as áreas dependentes da silviana também sentiram seus efeitos e daí o aparecimento dos fenômenos distônicos observados. Dêsse modo compreenderíamos como a trombose da cerebral anterior foi capaz de provocar os fenômenos de preen-são forçada, preensão persecutória e perseveração do ato com impossibilidade de inibição voluntária. É útil destacar aqui, também, o fenômeno que chamamos de interferência, que consistia no fato de poder ser, o ato em execução, inibido ou interferido pela execução, sob ordem, de outro ato. O nosso paciente que, espontaneamente, não conseguia interromper as batidas na parede, fazia-o, entretanto, quando, obedecendo a uma ordem, levava a mão à cabeça. Essa interferência traduziria, em última análise, a impossibilidade de ação de áreas inibitórias conscientes com a conservação dessa inibição quando se realiza outro ato sugerido.

Como se vê, nesta fase da doença vemos o lado direito duas vêzes afetado em sua motricidade, sendo uma pela lesão da artéria silviana e outra pela da artéria cerebral anterior. Vemos, ainda, que a lesão da cerebral anterior pôs a claro a disfunção de áreas motoras extrapiramidais, disfunção esta que pré-existia latente após a lesão da cerebral média.

Finalmente, chegamos ao terceiro episódio, conhecido pela clínica, que foi o que ocorreu em 17 de fevereiro de 1946. Aí se deram vários fatos dignos de nota: 1) aumentou a apraxia esquerda; 2) desapareceu a preensão forçada; 3) desapareceu o sinal de Babinski; 4) surgiu o sinal de Rossolimo que, como sabemos, é considerado atualmente como tradutor de lesão extrapiramidal. Pensamos que, neste período, houve novo acidente, aprofundando ou completando a lesão do território da cerebral anterior, especialmente do corpo caloso, intensificando a apraxia com o estabelecimento do quadro que acompanhou o paciente até a morte, morte esta que se verificou por tuberculose miliar.

Hospital das Clínicas da Fac. Med. da Univ. de São Paulo - Serviço de Neurologia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Set 1950
Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.arquivos@abneuro.org