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A ciência da psicanálise

CONFERÊNCIAS

A ciência da psicanálise

Theon Spanudis

Analista professor da Sociedade Brasileira de Psicanálise, São Paulo, Brasil

Falar sôbre a ciência da psicanálise a uma audiência constituída quase exclusivamente de psiquiatras, é um prazer, primeiro, porque quase todos sabem bastante acêrca da psicanálise, porquanto a psicoterapia é de emprêgo diário, e a psicanálise, em sua aplicação prática, é considerada como uma forma de psicoterapia; segundo, pela oportunidade de mostrar, em curta palestra, o que é a ciência da psicanálise.

Desde que a maioria dos ouvintes conhece o desenvolvimento histórico da psicanálise, as descobertas e conclusões de Sigmund Freud a partir das observações psicoterápicas de Breuer, não farei a apresentação histórica da questão; focalizaremos a atenção em alguns aspectos da psicanálise que provavelmente possibilitarão uma opinião mais objetiva sobre essa ciência. E suponho que o melhor modo para isso é começar pela comparação entre algumas noções muito difundidas sobrê psicanálise e a verdade objetiva.

A opinião mais comum é de que a psicanálise é, simplesmente, uma forma de psicoterapia; uma forma muito dispendiosa e demorada, exercida por algumas pessoas um tanto exclusivistas, que se defendem através de organizações especiais, e que se separam bastante ostensivamente de tôdas as outras formas de psicoterapia e de psicoterapeutas.

E' verdade que o tratamento psicanalítico é dispendioso e demorado, e é verdade que os psicanalistas têm uma organização especial, separando-os de qualquer outra forma de psicoterapia. Entretanto, o que nos interessa neste momento é a questão de saber se a psicanálise é apenas, e sòmente, uma forma de psicoterapia. E esta noção, bastante vulgarizada, temos que repudiar com um definitivo não!

Psicanálise não é apenas uma outra forma de psicoterapia, e sim, uma ciência biopsicológica que, em algumas de suas aplicações práticas, se apresenta como psicoterapia.

E' verdade que a ciência da psicanálise desenvolveu-se històricamente a partir das atividades psicoterápicas de Sigmund Freud e seus colaboradores porém, seria pouco acertado considerar psicanálise apenas uma forma de psicoterapia. A psicanálise é uma ciência psicológica, ou, mais corretamente, uma ciência biopsicológica baseada em uma multiplicidade de dados de observação referentes ao desenvolvimento psicológico e caracterológico normal e anormal. Ela se interessa especialmente pelo fenômeno de maturação psicológica, porém, sem abandonar os princípios biológicos. Tanto isso é verdade que a psicanálise estabelece, em sua teoria, que todos os fenômenos psicológicos têm uma origem biológica, e chama de instintos àquelas fôrças ou processos biológicos cuja manifestação se pode observar em fenômenos psicológicos.

Tendo estabelecido, a partir das investigações de Freud, que nossa vida psíquica é uma atividade altamente complicada, e muito mais ampla do que aquilo que nós podemos perceber sobre nossos próprios sentimentos, idéias, fantasias e sôbre nós mesmos, ou melhor, muito mais amplo do que a nossa consciência, a psicanálise tornou-se uma verdadeira ciência, interessada especialmente nos fenômenos não conscientes.

Em seu sentido mais amplo, ela investiga as diferentes partes de nossa vida psíquica (Id, Ego e Super Ego), as leis que regem essas partes e que lhe regulam o desenvolvimento e as interrelações. Convém acrescentar que ela nunca esquece a origem biológica de nossa organização psicológica, embora êste último aspecto seja mais da alçada do biólogo e do fisiologista.

Na tentativa de ordenar tôda uma soma de dados e apreciações originais em conceitos inteligíveis, e que pelo seu conteúdo lógico pudessem ser úteis às investigações e aplicações práticas ulteriores, foi que a psicanálise surgiu como uma ciência. Observar novos fatos é uma coisa; porém, elaborar êsses fatos de maneira a enunciá-los sob a forma de conceitos lógicos, permitindo assim a sua transmissão e emprêgo para investigações ulteriores e aplicação prática, é uma coisa completamente diferente.

Com sua completa formação científica e seu genial fervor pela verdade científica, Freud foi capaz de estruturar tôda uma quantidade de observações insuspeitadas e apreciações originais, em laboriosa, cuidadosamente formulada e amadurecida concepção. Freud mesmo ficou tão surprêso com as conseqüências de suas descobertas que escreveu no prefácio da "Interpretação dos sonhos", primeira obra fundamental da teoria psicanalítica: "Vislumbre como êste só nos é dado uma vez na vida". Não fôra essa surpreendente concepção, Freud teria ficado nos anais da história da medicina apenas como mais um psicoterapeuta de sucesso, um outro Breuer, Janet ou Mesmer.

Por causa da aplicação prática da psicanálise ao material clínico - e com isso nos referimos ao tratamento psicanalítico das neuroses - a ciência da psicanálise é muito comumente chamada "Psicologia médica". Muitas vêzes, a fim de diferençá-la da psicologia pré-analítica, meramente descritiva dos fenômenos conscientes, a psicanálise é denominada "Psicologia Dinâmica", desde que ela se interessa particularmente pela dinâmica dos fenômenos psicológicos. Dada a importância dos processos inconscientes, a psicanálise tem sido também intitulada "Psicologia Profunda".

Porém, apesar de todos êsses nomes, a verdade é que a psicanálise é uma ciência tôda particular, uma biopsicologia que tem por objetivo o estudo dos fenômenos psicológicos sob três aspectos: 1) topográfico, isto é, em qual parte de nossa organização psíquica tem lugar um determinado fenômeno; 2) dinâmico, isto é, quais são as fôrças, iguais ou contrárias, que resultam dêste ou daquele fenômeno; 3) econômico, isto é, saber porque um determinado resultado ou produto (digamos, de fôrças conflitivas) foi aquêle que se manifestou, e não um outro, e que condições e possibilidades existem para outras formas de solução mais adequadas à economia psíquica do indivíduo.

Naturalmente, a psicanálise, como ciência nova, tem seus capítulos obscuros, tanto em sua teoria como em algumas de suas formas de aplicação prática, e tem ainda vasto campo de fenômenos por investigar. Isto, porém, não pode ser considerado como falha, se fôr encarado o longo tempo necessário para observar e sistematizar objetivamente quaisquer dados, como seja, por exemplo, a reconstrução do desenvolvimento psicológico infantil tendo como base o tratamento de um neurótico adulto. Ao contrário, pode ser creditado a seu favor como prova de verdadeira ciência, o cuidado extremo com que são feitas correções em sua teoria ou em suas aplicações práticas, sua resistência às fáceis generalizações que abandonam os problemas a fim de se refugiarem no domínio das fantasias e das especulações.

Uma parte da ciência "Psicanálise", um aspecto de suas aplicações práticas, a saber, o tratamento psicanalítico das neuroses, é psicoterapia. Porém, nem tôda aplicação prática da psicanálise é psicoterapia. Por exemplo, o emprêgo de conhecimentos psicanalíticos em questões de educação, cujo objetivo é evitar um desenvolvimento psicopatológico da criança, uma espécie de psico-higiene, não pode ser chamado psicoterapia, pôsto que a higiene tem por finalidade excluir a terapêutica.

Por outro lado, o tratamento psicanalítico das neuroses, é psicoterapia. E, imediatamente, surgem as questões: Quê espécie de psicoterapia? Em quê se diferencia das várias formas conhecidas de psicoterapia prática? (sugestão simples, ou combinada com hipnose medicamentosa ou não; tratamentos breves muitas vêzes camouflados sob as asas da psicanálise, porém, em última instância baseados na sugestão; emprêgo de medicamentos vários ou de meios físicos contra perturbações psíquicas).

Se uma generalização é permitida, poderíamos caracterizar tôdas essas várias formas de psicoterapia não analítica sob um epíteto que também é adequado a tôda a medicina, e que nos vem da antigüidade romana através de Asclepíades, famoso médico romano, que prometia curar seus pacientes "tuto, cito, jucunde", isto é, certamente, ràpidamente e agradàvelmente.

De fato, o psicoterapeuta não analista tem geralmente dois objetivos: como fazer desaparecer os sintomas tão ràpidamente quanto possível, seja com medicamentos, fisioterapia, sugestões, ou ordens; e, como reajustar o paciente ao seu meio social, trabalho, etc, se êle mostra distúrbios marcantes. No momento em que o psicoterapeuta consegue êsses dois resultados, mesmo que temporàriamente, êle considera sua tarefa terminada.

A atitude do psicoterapeuta não analista para com o seu paciente é aquela de superioridade para inferioridade: o psicoterapeuta é o normal, forte, poderoso; o paciente é o anormal, doente, e vítima de seus sintomas. Essa posição de superioridade é usada pelo psicoterapeuta para persuadir ou impor sua vontade ao psiquismo do doente, a fim de fazer desaparecerem os sintomas, desviando sua atenção para direções distantes de sua doença e focalizando-a em outras atividades; é êste um procedimento que lembra a sublimação obtida no tratamento analítico, mas que desta se diferencia pela transitoriedade de seus resultados e por ser obtida através da fôrça.

Psicanalìticamente, diríamos que tais resultados são obtidos através da superioridade com que se apresenta o psicoterapeuta. Aos olhos do doente, com suas necessidades e suas regressões infantis, o médico surge como infalível e perfeito; o mesmo acontece aos olhos do próprio psicoterapeuta, cujo narcisismo faz com que se sinta e acredite ser extremamente superior em comparação com o pobre enfêrmo; além disso, a autoconfiança lhe dá a possibilidade de impor sua vontade ao psiquismo do paciente. Parece que as mudanças no paciente (o desaparecimento dos sintomas e o reajustamento social) são conseguidos, pelo menos quanto ao que depende do doente, através de amor, admiração, dependência, ou mêdo, ou ambos, pelo médico superior e perfeito.

Se se trata de um caso fácil, com sintomas ligeiros e iniciais, e se os desconhecidos e inconscientes fatôres das interrelações entre o psiquismo do paciente e do médico são favoráveis (digamos, uma simpatia mútua, ou uma aceitação absoluta do médico como uma benvinda figura paterna por parte do inconsciente do doente), o resultado pode não ser apenas temporário, e sim permanente. Porém, tememos que tais coincidências felizes sejam algo relativamente raras e que, comumente, os resultados da psicoterapia não analítica sejam temporários.

Se atentarmos profundamente nos complicados processos de uma neurose, ou uma delinqüência, sem falarmos nos de uma psicose, se considerarmos que a maior parte dêsses processos está ausente da consciência e do autocontrôle do paciente, e se compreendermos que êste não nos pode dar nenhuma explicação dos processos (desde que racionalizações nunca são verdadeiras explicações, nos tornamos muito cépticos sôbre os resultados de um método meramente persuasivo de ação exterior, e que não considera todos aquêles complicados e inconscientes processos que se manifestam em sintomas neuróticos e dificuldades de adaptação social.

"Tuto, cito, jucunde", além do sentimento de absoluta superioridade do psicoterapeuta, excluem a possibilidade de acesso a todo um complicado mundo de processos alheios ao conhecimento e contrôles conscientes. Naturalmente, é possível obter resultados com essa forma de tratamento, e muitas vêzes mais ràpidamente e com menor dispêndio de esfôrço de ambas as partes. Porém, em última análise, parece que essa solução é menos favorável, especialmente por causa de seu caráter temporário.

E, agora, quê dizer da psicoterapia psicanalítica? Assiste tôda razão aos que propuserem esta questão, desde que falei com tanto cepticismo sôbre a psicoterapia não analítica, assim como a de perguntarem em nome de que melhor método tenho eu o direito de criticar tôdas as várias formas de psicoterapia não analítica, qualificando-as sob o epíteto de Ascle-píades. Foi, naturalmente, do ponto de vista da psicanálise que fiz tôdas aquelas críticas e tentarei, tanto quanto possível, descrever o que é a psicoterapia psicanalítica.

Talvez seja surpreendente ouvir que o analista não está primàriamente interessado nos sintomas de seu paciente, nem em seu desaparecimento, fato que ocorre muitas vêzes espontâneamente nas primeiras fases do tratamento como fenômeno passageiro. Sabemos que os sintomas são a expressão final de processos inconscientes bastante complicados. São êsses processos que polarizam tôda a atenção do analista, e não seus têrmos finais, isto é, sintomas. Sabemos que, se formos capazes de penetrar nesses complicados processos e se conseguirmos trazê-los até a consciência do doente, apesar das resistências do seu ego, torna-se absolutamente secundário todo o problema dos sintomas por serem estes apenas uma expressão final dêstes processos.

Nosso objetivo imediato, repetimos, não é curar sintomas e sim trazer à consciência do paciente todos os processos inconscientes responsáveis pelos sintomas. Se formos bem sucedidos nessa difícil tarefa, então teremos dado ao ego do paciente a possibilidade de empregar suas próprias fôrças (até então alheias ao contrôle consciente e usadas para a produção e manutenção de sintomas), para melhores fins.

Naturalmente, o ego do paciente, ao se ver cercado e bloqueado por uma série de sintomas que se apresentam como absolutamente estranhos e incompreensíveis, reage com ansiedade. Êle gostaria de se ver livre dêsses fatos estranhos, sem realizar a difícil e desagradável tarefa de penetrar nos complicados processos inconscientes existentes para lá dos sintomas. Tais processos se tornaram inconscientes por causa de seu caráter desagradável, por causa do desapontamento, da dor ou da ansiedade que êles produziam.

O que o analista tem a fazer é manter-se firme e decididamente ao lado do ego do paciente para: 1) ajudá-lo a entrar lentamente, e em fases sucessivas, em todos aquêles processos inconscientes que determinaram a neurose; 2) auxiliá-lo para suportar em plena consciência tôda essa massa de desapontamentos, dores e ansiedades, da qual êle fugira até agora como a criança do fogo, após queimar o dedo. Através do seu repetido aporte à consciência, e do seu continuado reexame com olhos de adulto, os fatos passados perdem sucessivamente seu caráter patogênico; 3) acompanhá-lo, na última fase da análise, na reorganização de suas fôrças anteriormente inconscientes, o que liberta o ego de suas amarras ao passado e permite que êle estruture novas atitudes e valores em relação a si mesmo, à vida e à realidade.

Isto é, em resumo, o que acontece em um tratamento psicanalítico. Começamos estabelecendo que os sintomas dos pacientes são de importância secundária aos olhos do analista. Tal não acontece com o psicoterapeuta não analista que, ao contrário do analista, deixa-se impressionar e afetar pelos sintomas dos pacientes: êle participa da ansiedade do ego do paciente, o qual está sempre às voltas com fatos estranhos e extravagantes - os sintomas; êle identifica-se com o ego do paciente e começa forçadamente a combater os sintomas até conseguir suprimi-los e aliviar o paciente de sua ansiedade. O psicoterapeuta não analista, nesse caso, parece agir bem mais humanamente que o analista, pois, alarmado com a ansiedade do paciente, êle inicia o combate imediato aos sintomas.

Não age assim o analista que, inevitavelmente, desapontará o paciente com sua quase sistemática recusa em entrar em ação imediata contra os sintomas causadores de tantas ansiedades, dificuldades e sofrimentos. Sob êsse aspecto, o analista parecerá muito menos humano que o psicoterapeuta não analista: porém, podemos também dizer que, embora êste último pareça mais humano que o analista, em relação aos desejos imediatos do paciente, êle é ao mesmo tempo quase tão fraco como o paciente, reage com ansiedade semelhante à do ego do doente e usa os mesmos meios que êste último emprega para combater os sintomas.

Fôrças combinadas dão melhores resultados. Psicoterapeuta e paciente conseguem aquilo que ambos desejavam. Os sintomas desaparecem "tuto, cito, jucunde". Mas, por quanto tempo? Isso é outra questão.

Embora sempre desapontando o paciente com sua sistemática indiferença pelos sintomas, caso oriente corretamente a situação analítica, o analista pode conseguir uma dissolução permanente de tôda a neurose, ao fim de um tempo mais longo e sem resultados dramáticos e imediatos, e uma reorganização da personalidade do paciente.

Permitam-me a última comparação. O psicoterapeuta não analista muitas vêzes não apenas deseja aceitar, mas realmente necessita todos os atributos de onipotência, normalidade e fôrça com os quais o paciente o reveste. Isso com o fito de se sentir capaz de manter o paciente sob uma atmosfera de conselhos, dependências e ordens, até a supressão dos sintomas.

Tal não se dá com o analista. Ao contrário, êle não se sente superior ao seu paciente, sabendo que a única diferença entre ambos é apenas de organização interior. Em outras palavras, as fôrças instintivas existentes em ambos são as mesmas, estando elas mais harmônicamente organizadas no analista (muito comumente após sua própria análise), significando isso que o seu ego mantém relações melhores e mais controladas com o seu mundo instintivo, bem como com a sociedade e a realidade. No paciente neurótico, há uma organização menos feliz das mesmas fôrças, com permanente luta inconsciente contra as tendências instintivas, determinando dificuldades nas relações interpessoais e na atividade social (trabalho, por exemplo). No neurótico há, assim, um excessivo dispêndio de energia psíquica com os conflitos inconscientes; uma vez livre, essa energia poderia ser empregaria muito mais adequadamente no desenvolvimento de sua personalidade e de suas relações com a realidade.

Esta é a única diferença entre o psicanalista e o paciente; nada mais e nada menos do que isso. Isto quer dizer que o analista nunca terá o orgulho do psicoterapeuta não analista, nunca se sentirá superior ou desprezará seu paciente, e nunca tentará governar ou guiar o doente com ordens infalíveis. Êle respeitará integralmente a personalidade do paciente, isto é, não apenas o ego do paciente e sim a tôda a sua existência bio-psicológica; e êsse respeito do analista contrasta freqüentemente com a pouca estima que o paciente sente por si mesmo.

O analista tentará compreender, tanto quanto possível, os problemas inconsciente do paciente e facilitar esta compreensão também ao ego do paciente, apesar das defesas dêstes; estas defesas do ego terão que ser analisadas e afastadas, lenta mas sistemàticamente, de acôrdo com a maior ou menor capacidade do ego em suportar as novas condições ou situações. O analista tornar-se-á, assim, uma espécie de "companheiro mental" ou amigo, pronto a permanecer ao lado do paciente enquanto êste o necessitar.

Se, antes de sua análise pessoal, o analista tinha o orgulho de ser o salvador do pobre e desgraçado paciente, deve ter com sua análise perdido totalmente esta ilusão, ou sublimado seu narcisismo em atividades mentais superiores, por exemplo no desejo de orientar o tratamento analítico o mais corretamente possível, ou no esforço para dominar perfeitamente a técnica analítica.

A onipotência do psicoterapeuta e a sua tendência bem humana pelo "tuto, cito, jucunde", deve ser substituída, na psicanálise, por paciência, simplicidade, compreensão e conhecimento. Se a psicoterapia não analítica é, geralmente, um produto de afetividade, ansiedade e insegurança - e esta é a razão do emprêgo de meios violentos no tratamento e da tran-sitoriedade dos resultados - a psicoterapia psicanalítica é um produto de conhecimento e de compreensão, um método muito mais racional e seguro para o médico e o paciente, e, por isso, pode proporcionar resultados permanentes quando aplicada corretamente.

O segundo assunto sôbre o qual eu gostaria de falar, dada a existência e a divulgação de inúmeras noções falsas, é o fenômeno da transferência.

Sabemos que, com exceção da chamada "neurose traumática", tôdas as formas de neuroses do adulto, não importa quando se torne ela manifesta, têm suas raízes na infância do indivíduo. Não existe um germe específico para neurose, como não o existe também para as várias formas de delinqüência ou psicose, porém sabemos que o núcleo de um distúrbio psicológico tem sua origem na infância como resultado de distúrbios do desenvolvimento instintivo e das relações interpessoais; tais distúrbios são geralmente condicionados pelo meio onde vive a criança, ou pelas disposições inatas desta, ou, então, por êsses dois fatores.

De acôrdo com a teoria psicanalítica, a vida psíquica e a afetividade da criança se desenvolvem a partir de fôrças instintivas, as quais são consideradas como a expressão de necessidades biológicas somáticas na esfera psicológica. Êste desenvolvimento afetivo e mental torna-se progressivamente mais complicado, e passa por várias fases já pré-determinadas por disposições inatas, mas que, não obstante, podem ser provocadas, aceleradas ou coíbidas pela educação. Se as exigências do meio entram em desacôrdo com as possibilidades de uma determinada fase do desenvolvimento infantil, quer por excesso, quer por falta de solicitação, o processo de desenvolvimento é prejudicado.

Típico para as neuroses é o distúrbio na regência do instinto sexual na última fase do seu desenvolvimento infantil, antes de entrar no chamado período de latência, distúrbio êsse que, se não é causado por sedução direta ou por severas punições das atividades, sexuais, resulta de distúrbios afetivos da chamada fase edipiana, quando são causados pelas relações e reações inadequadas dos pais para com a criança. Nas delinqüências encontramos distúrbios na formação do ego e do super-ego, com parada do indivíduo em sua fase narcísica; esta parada impossibilita as identificações, condicionando uma deficiência ou ausência de formação do super-ego. Nas psicoses tudo fala a favor de distúrbios muito precoces no desenvolvimento de várias funções do ego, como, por exemplo, a apreciação da realidade.

Está claro que, se quisermos tratar uma neurose com o objetivo de dissolvê-la definitivamente, e de devolver ao ego do paciente, para melhor uso, tôdas as fôrças que eram empregadas na manutenção do estado neurótico, teremos que penetrar inevitàvelmente na infância do paciente. E' nesse processo de investigação, de descoberta dos fatos infantis desagradáveis e de sua devolução à consciência, que os fenômenos de transferência são de inexcedível importância.

Transferência não é, simplesmente, o apaixonamento da paciente pelo seu médico - uma noção muito difundida e uma situação que se supõe seja embaraçosa se o médico deseja manter sua atitude profissional.

Na realidade, os fenômenos de transferência são de tão grande complexidade, que poderíamos descrevê-los simplificadamente, da forma seguinte :

Antes de tudo, temos a chamada transferência do ego. Ela provém da parte mais madura, consciente e normal da personalidade do paciente. E' esta parte que procura o auxílio do analista a fim de tratar da neurose; é a parte que se prontifica a colaborar com o analista, a aceitar a regra básica de associação livre, e a fornecer todo o material possível de sua vida mental e emocional. Para o tratamento de um neurótico adulto esta é a transferência mais valiosa e fundamental, aquela que o fará vir diàriamente às sessões e colaborar tanto quanto possível.

Tanto quanto possível, porque logo esta transferência mais adulta é obscurecida, atrapalhada, interferida quase até a extinção por uma variedade de transferências infantis; estas, exatamente por seu caráter infantil, apresentam todos os sinais de absolutismo e de violência no sentido de amor, ódio ou mêdo. Se a parte mais adulta e consciente do ego do paciente é forte bastante e bem desenvolvida, êle muito cedo perceberá o caráter irracional dessas reações para com o analista, o que o estimulará a tentar encontrar sua origem infantil. Porém, se o paciente tem um ego fraco, cuja objetividade ou senso de realidade é neutralizado pelas emoções violentas da transferência infantil, a situação torna-se difícil.

Paciência e muito tacto são necessários ao analista, que tentará mostrar ao paciente o caráter infantil de sua transferência, com todo o cuidado, a fim de não assustá-lo ou repudiá-lo, e terá que esperar até que o ego do doente seja capaz de reconhecer a situação por si mesmo a fim de então passar ao segundo passo, isto é, a procura da origem infantil dessa reação. E' êste segundo grupo de transferências infantis também de magna importância para o tratamento psicanalítico. E não apenas por sua reativação, que ocorre inevitàvelmente no decorrer do tratamento, mas também pelo seu reaparecimento na consciência, com a compreensão do seu desenvolvimento e do seu nexo lógico com a situação infantil.

Durante todo o tratamento analítico, o analista terá que assumir e manter uma dupla função: 1) representar a realidade (por exemplo, cobrar os honorários, terminar cada sessão, recusar realmente vários desejos do paciente, etc.); 2) representar os vários objetos da transferência infantil, permitindo que a fantasia do doente o veja e o sinta sob êste ou aquêle aspecto, num contínuo processo de revivescência das experiências afetivas infantis com as pessoas de seu meio infantil, e tentar, ao mesmo tempo, analisar essas transferências, o que quer dizer, reduzi-las à sua origem infantil.

A mesma atitude dupla é requerida do paciente. Êle deve se acostumar a aceitar a dura realidade e ao mesmo tempo permitir a si próprio todos os seus sentimentos e impulsos infantis. Esta é, certamente, uma difícil situação para o paciente, requerendo muito tacto e inteligência da parte do analista, a fim de levar todo êsse mundo de sentimentos infantis a uma solução satisfatória.

Através da repetida interpretação da situação infantil, especialmente analisando o fenômeno da transferência, e através do reconhecimento das atividades inconscientes, os fenômenos neuróticos perdem seu caráter estranho, tornam-se inteligíveis e ficam sob o contrôle consciente do ego do paciente. Com êsse novo conhecimento que o paciente ganha sôbre si mesmo, bem como através da oportunidade de viver, em suas fantasias, situações que não lhe foram proporcionadas na infância, é que a chamada cura da neurose se inicia.

O ego torna-se mais adulto e maduro, os excessivos mecanismos de defesa infantis são abandonados como inadequados, os laços com o passado tormentoso são afrouxados, e o ego, escapando do domínio do passado, descobre sua liberdade e suas possibilidades; assim, o paciente, empregando para outros fins as fôrças que estavam mantendo o processo neurótico, reorganiza sua vida de acôrdo com suas disposições inatas (refiro-me ao tipo biológico), suas possibilidades mentais e seu padrão social e ético.

O resultado aqui descrito lembra demais o fim bonito de uma fita de cinema. Entretanto, o desfêcho de um tratamento analítico depende de uma variedade de fatôres e, antes de tudo, do próprio analista e do grau de sua preparação analítica. Supondo o analista bem preparado e tão bem analisado que não mais necessite usar inadequados mecanismos de defesa para com seus próprios problemas e tendências, pois de outro modo teria escotomas em relação ao paciente por não poder jamais ver no doente coisas que êle não é capaz de ver ou aceitar em si mesmo, e supondo que o analista seja bastante adulto e consciente para controlar perfeitamente suas contratransferências e não reagir às infantilidades do paciente com suas próprias infantilidades, podemos então afastar o analista como um fator para o resultado do tratamento analítico e considerarmos apenas o paciente.

Do lado do paciente, o resultado também dependerá de uma variedade de fatôres: do grau de sua neurose, da relativa conservação do seu ego, do espaço de tempo em que viveu e, de certo modo, se adaptou à sua neurose, de sua idade, etc; em última análise, da gravidade dos traumatismos em sua infância e da repercussão dêstes em sua organização instintiva inata, bem como de sua idade, que determina a maior ou menor flexibilidade das formações neuróticas.

O analisar, tão logo quanto possível, a polifonia de transferências infantis, o que quer dizer, logo que haja material suficiente para demons- trar contra que figura esta ou aquela reação é dirigida e, a seguir, investigar as razões da reação, constitui, como já dissemos, a parte mais importante do tratamento psicanalítico do adulto neurótico.

Todavia, nem sempre é factível a análise da transferência. E' o que acontece, por exemplo, no tratamento psicanalítico de crianças, durante várias fases da análise dos delinqüentes, ou nas tentativas psicanalíticas com psicóticos. Mas, êsses são problemas particulares de técnica psicanalítica, problemas que, infelizmente, não podemos abordar agora.

Estamos prestes a finalizar esta palestra e verificamos, com pesar, que não pudemos abordar a teoria da psicanálise, suas afirmações, seus aspectos ainda em investigação, seus vários problemas e suas relações com outras ciências. Restringimo-nos apenas à aplicação prática desta ciência, desde que nos dirigimos principalmente a psiquiatras, tentando apontar as diferenças entre psicoterapia analítica e não analítica, e descrevemos, sumariamente, os fenômenos da transferência.

Sabemos que omitimos muitos aspectos que certamente interessariam, como, por exemplo, os problemas da interpretação, o uso do material onírico, as modificações de técnica analítica adequadas às várias formas de neurose, delinqüências e psicoses. Mas a falta de tempo tornou a escolha difícil e concentramo-nos sôbre os aspectos que supusemos interessassem à maioria do auditório.

Se fomos bem sucedidos no mostrar, senão totalmente, pelo menos aproximadamente, que a psicanálise é uma ciência vasta, a única adequada à investigação racional e objetiva dos fenômenos biopsicológicos e psi-copatológicos, e de importância crescente por suas aplicações práticas, e se conseguimos deixar salientado que ela requer de seus representantes um sistemático estudo teórico e prático que sem dúvida alguma lhes ampliará a personalidade, poderemos dizer que atingimos o nosso objetivo.

Conferência pronunciada em sessão do Centro de Estudos Franco da Rocha, em 30-10-1951, na Associação Paulista de Medicina.

Rua Dr. Vieira de Carvalho, 192, 4º andar - São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Mar 1952
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