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Síndromes mentais e doenças cerebrais

Livre docente da Fac. Fluminense de Medicina

Uma parte da psiquiatria, mas não a maior, relaciona-se diretamente com o cérebro. "Doenças mentais são doenças cerebrais", disse Griesinger há cem anos, mas ainda hoje não se confirmou no todo a eqüivalência: na classificação simplificada das psicoses (a, orgânica e exógena; b, endógena; c, reações psicógenas, personalidade psicopática e neuroses) o aforismo se comprova como exato apenas para o primeiro grupo.

Não obstante, ùltimamente o estudo dos tumores cerebrais, o avanço da neuro e da psicocirurgia e os estudos neurofisiológicos propeliram os conhecimentos neste setor a tal ponto que dêles há quem espere nada menos que uma psiquiatria em bases neurológicas. Imensa massa de fatos tumultuários anda em elaboração e ameaça destruir velhos conhecimentos.

As relações entre doenças mentais e do cérebro serão aqui esquematizadas, tendo em vista a prática clínica, em poucos itens.

1 - Lesões cerebrais difusas dão alterações psíquicas; lesões cerebrais circunscritas produzem alterações neurológicas. Assim, as lesões disseminadas do tecido cerebral, oriundas da arteriosclerose cerebral, da demência senil, da paralisia geral, etc., relacionam-se com psicoses (arteriosclerótica, senil e "demência paralítica", etc.) e estas psicoses têm sintomatologia idêntica entre si até certo ponto: Lesões circunscritas (vasculares; por gomas, cisticercos, neoplasias; por contusões, etc.) originam síndromes neurológicas que variam com a topografia da lesão e que podem ser desacompanhadas de manifestações psíquicas evidentes (paralisias, hemianopsias, vertigens, etc). Estas regras merecem certas depurações que serão empreendidas progressivamente.

2 - A participação do cérebro na produção de desordens mentais se faz consoante duas modalidades principais: a) em conseqüência de lesões difusas, com alterações anátomo-patológicas evidentes (meningites, encefalites, lues, tumores, lesões vasculares, etc.); b) em conseqüência de distúrbio funcional por acometimento reversível, não lesional, pela ação de toxicoses corporais ou extra-corporais (uremia, ebriez barbitúrica ou alcoólica), de infecções (no curso de septicemias tífica, estreptocócica, colibacilar, etc), de carência (pelagra), de disendocrinias, de dismetabolismo, etc. Os distúrbios do primeiro subgrupo constituem a psicossíndrome orgânica (Manfred Bleuler) e os do segundo configuram os tipos exógenos de reação (Bonhoeffer) sucessivamente elaborados por uma série de autores. Aqui consideraremos apenas o primeiro subgrupo.

Apesar do que foi dito no item 1, o atual avanço dos conhecimentos de fisiología e fisiopatologia cerebral, ao lado dos de cito e mieloarquitetonia, tem levado certos autores à busca de "localizações psíquicas", ou seja, imputar a determinadas formações celulares localizadas no cérebro, responsabilidades por determinados rendimentos de ordem psíquica. Os autores, sobretudo os que trabalham na base de casuística própria, apresentam, nessa ordem de idéias, síndromes que no detalhe não coincidem as de uns com as dos outros, quando se trata por exemplo de lobo temporal, de lobo parietal, de giro cíngulo, etc., e que têm mais uniformidade - qualquer que seja o autor consultado - quandc se trata de polo frontal (convexidade e lobo orbitário) e base do cérebro.

Estas três últimas parecem, portanto, mais firmemente estabelecidas. 0 pensamento que leva a admitir síndromes mentais na dependência da sede da lesão, bate-se por um pretendido paralelo com o que ocorre na neurologia. Mas os fatos clínicos e experimentais são de difícil apreciação e ordenação fina porque há, na fenomenologia clínica a analisar, interferência de incidências correntes em fisiopatologia nervosa (fenômenos de repercussão, de compensação e suplência, vizinhança, coparticipação ou exclusão ou déficit por falha de sinergia funcional, rapidez ou lentidão na instalação, momento cronológico do surgimento, variações constitucionais individuais, hierarquia e regência de funções, etc). Ao passo que em fisiologia nervosa se sabe cada vez mais dêsses fenômenos funcionais, em psiquiatria quase nada se comprova objetivamente. A psicorreflexologia, o vasto acervo dos reflexos condicionados de objetividade impecável, exprime "condutas" e grupos de respostas complexos, mas de curto vôo no que tange ao psíquico. Ela enriqueceu a fisiologia nervosa, permitiu assentar a base fisiológica que explica certas respostas psíquicas a estímulos (irradiação, indução, estado paradoxal, "dominância", etc.) ; permitiu, mesmo, certos conhecimentos aplicáveis à psicoterapia ("dressage", amestramento, extinção de reflexos condicionados patológicos) e outros, comparáveis a muito conhecimento de ordem psicanalítica (colisão pavloviana e conflito freudiano, por exemplo), mas seu alcance quanto ao problema da localização do psíquico, é nulo. A transposição dos fenômenos funcionais (subordinação e supraordenação, "diásquise", suplência, sinergia, antagonismo, etc), claríssimos em neurologia, à psiquiatria, é apenas hipótese e tentativa que se empreende raciocinando por analogia. Muitas dessas condições inerentes à fisiología do sistema nervoso central são conhecidas, outras se vêm apresentando à consideração, agora, na investigação com ponto de vista psicopatológico. Assim, por exemplo, qualquer que seja a constituição típica individual, a uma hemiplegia corresponde uma lesão da via motora, ao passo que aos lesados do polo frontal, correspondem resultados psíquicos bem mais variáveis, como se confirmou recentemente com os resultados da leucotomia* * Temos como generalização improcedente a afirmação de que a leucotomia pré-frontal produz sempre apatia e pobreza de impulsos; em nossa casuística há resultados exatamente contrários a isso. . Tem-se apresentado, para explicar a diversidade sintomática, o argumento das lesões em campos arquitetônicos diversos, lesões microscópicas diversas, mas aparentemente idênticas, quanto à sede macroscópica. Esta diversidade de princípios, êste não paralelismo entre síndromes mentais e sede de lesão duma parte e síndromes neurológicas e sede de lesão doutra parte, permite que se negue precisão às síndromes mentais localizatórias (M. Bleuler). Outros autores (Jaspers), raciocinando com crítica muito clara, concluem que a integridade do cérebro no seu todo é indispensável ao bom funcionamento psíquico e que uma lesão qualquer, assestada em qualquer ponto do cérebro, pode resultar em déficit dos rendimentos psíquicos, déficit sem qualquer característica que dependa do local lesado; negam mesmo a procedência do raciocínio pelo qual se pautam os localizacionistas; para êles (Kurt Goldstein é o mais representativo) a lesão eficiente - qualquer que seja sua sede - do cérebro corresponde a uma baixa em todos os rendimentos, respeitadas as possibilidades de compensação. A idéia fundamental é a do cérebro como órgão, cuja totalidade íntegra é necessária para responder às funções diversas.

Como se vê, essa posição doutrinária é claramente contraposta à dos localizacionistas, cujo expoente maior hoje ainda é Kleist, e que exprimem o pensamento segundo o qual, áreas, campos arquitetônicos e sistemas são unidades funcionais organizadas que respondem a funções psíquicas e neurológicas em íntima correlação integradamente.

Todavia, dessa massa tumultuaria de dados recentes em plena elaboração (é possível que êste capítulo se torne anacrônico em pouco tempo) ainda sobrenadam duas grandes síndromes mentais relacionadas com a sede da lesão: a síndrome pré-frontal, que parece variar conforme se trate da convexidade ou da base (síndrome da convexidade e síndrome orbitária, respectivamente) e síndromes da base do cérebro, processos basais do cérebro ou, simplesmente, Basenpsychosen, "psicose da base", de Elsässer.

Quando os depoimentos sôbre funções frontais se faziam com o registro dos casos de excisão de tumores frontais bilaterais (excelentes análises de Beringer e de Brickner), o sintoma axial dos "desfrontalizados" era a perda de iniciativa. Havia, além disso, baixa da capacidade de síntese, falta do sentimento de doença, embotamento afetivo, euforia tola, ausência de prospecção para o futuro e valoração do passado (que perde o Wirkungswert, o valor efetor sôbre a conduta atual), baixa de tono volitivo, desatenção e baixa da memória.

A contribuição da leucotomia permitiu - graças ao interêsse por lesar, na extensão menor possível, o tecido nervoso intacto - tentativa de intervenção seletiva, conjugando o que se sabia de fisiologia experimental, estabelecendo confrontos com o que se passa no homem, empregando conhecimentos de neuronografia, sobretudo; graças à criação de instrumental técnico-cirúrgico delicado (Hess, Spiegel) se vêm abordando seletivamente áreas circunscritas, ora destruindo-as pela eletrocoagulação (talamotomia de Spiegel), ora interrompendo, cirùrgicamente, as conexões neuronais das áreas incriminadas como envolvidas no distúrbio ("undercutting"), ora promovendo a excisão das mesmas áreas (topectomias), ora das circunvoluções (girectomias).

Pouco a pouco se vai admitindo diferenciação sindrômica mesmo dentro dos espaços limitados do lobo frontal e da base do cérebro. Todavia, isto ainda se estuda. Parece que o lobo orbitário conecta-se com a expressão corporal dos processos emotivos : sua lesão traumática, segundo Grünthal, leva à "desinibição maciça dos impulsos e superficialização dos afetos".

A convexidade frontal lesada resulta em embotamento e perda da impulsividade, da iniciativa, além dum distúrbio do pensamento que impede o vivenciar interno ativo e dificulta ou impossibilita o "alcançar um conteúdo anelado", como disse Binswanger (cit. Kolle). Para M. Bleuler (1949), a síndrome - baixa da impulsividade - é característica de uma "psicossíndrome cérebro-focal" sem ligação com área cerebral, ou seja, qualquer área lesada pode produzir como resultado o déficit da impulsividade, mas sem distúrbios da memória.

As lesões da base do cérebro dão mais rica sintomatologia somática (neurológica, vegetativa) e psíquica, sobretudo aquêles sintomas que exprimem o trânsito do corporal para o psíquico: rendimentos instintivos, sensações gerais e "vitais" com expressão psicossomática evidente, fome e sêde patológicas, libido anormal (Haddenbrock diz anormal na intensidade ou na direção), alterações vegetativas que compõem as reações de defesa e fuga, a busca de alimentos (Hess) e muitas outras. Mas, o mais uniformemente apontado, é o distúrbio do ritmo sono-vigília, seja no sentido do sono patológico, como na encefalite letárgica, seja no da agripnia, vigília ou insônia indefinidas, seja enfim no sentido de distúrbios passageiros da consciência, como os verificados na narcolepsia, na pienolepsia, em estados crepusculares diversos. Haveria uma síndrome diencefálica (Schneider reputa isso tudo como "teorias especulativas") que Stertz inicialmente encontrou em tumores limitados a essa região e também, sempre aí, nas lesões produzidas por abscessos, encefalites, paralisia geral e esclerose múltipla. A síndrome - do máximo interêsse psiquiátrico se se confirmar - consiste num declínio do nível energético geral que se propaga a todos os rendimentos (pensamentos, memória e vontade) que por falha das comutações diencefálicas não conseguem ou mal conseguem pôr-se em atividade. Uma euforia ôca liga-se à conduta apática, que não pode ser estimulada do exterior (Jaspers, citando Beringer, diz que pode, embora transitòriamente). Os doentes dão a impressão de estuporosos (Kolle). A síndrome de Korsakoff talvez esteja relacionada com o diencéfalo ou, com mais precisão, com os corpos mamilares (Grünthal) : as principais expressões sintomáticas da síndrome de Korsakoff (quadro mental inicialmente ligado à polineurite, hoje emancipado dela) são distúrbios do pensamento, da memória e da afetividade (M. Bleuler).

Nota curiosa é que tanto as manifestações positivas como as negativas estão na dependência de áreas, isto é, as manifestações negativas não são decorrentes da exclusão funcional dessa área, mas da excitação funcional de outras vizinhas. Haddenbrock menciona o seguinte quadro em relação com lesões do diencéfalo, onde se vêem muitos componentes da síndrome de Korsakoff: ativação ou inativação (a) da consciência geral com distúrbios da função sono-vigília; (b) do pensamento, ora (do lado plus) com riqueza de ocorrências, julgamentos rápidos, "em golpe" (Schlag-fertiges), sentidos subjetivamente como pensamentos impulsionados, incessantes (como na "insônia ideatória", segundo o autor) sem direção ou com direção imodificada, sentidos até como "compulsivos" (nos pós-encefalíticos, segundo Mayer Gross), ora (no lado minus) com pobreza de ocorrências, arrastamento do pensamento até o vazio do pensamento, vigília sem sentido; (c) distúrbios da lembrança e notação (Gamper, Kleist). Mesmo em vigília, mesmo com aumento da atividade do pensamento combinatório, está bloqueada ou indiferenciada a atualização do material mnéstico, de modo que só conceitos e representações ontogenèticamente velhos (da infância) são "ecforizados", exteriorizados.

Renovou-se bem a concepção da "incapacidade de fixação" dada como característica da síndrome de Korsakoff. Hoje sabe-se. que a lembrança que não ocorre quando o examinador pergunta, pode ocorrer "encartada" espantosamente numa série de outras representações, ou mesmo quando a pergunta é feita de modo que varia a posição da lembrança na resposta. Grünthal chamou a isso "distúrbios da deposição", depois ditos "distúrbios dos enlaces" (Gamper), que se poderia melhor dizer, parece-nos, "encarte" alterado das lembranças. Salvo num ou noutro autor, a síndrome de Korsakoff é sempre correlacionada com lesões da base do cérebro (tubérculos quadrigêmeos, para a maioria).

Assim, teríamos, nas síndromes de base, como síndrome psíquica axial, os distúrbios da consciência incluindo os do sono-vigília; como síndromes "organísmicas" (Haddenbrock), desordens da fome, da sêde, da libido e, por baixa do tono energético psíquico, caem todos os rendimentos mentais, pela falta de "dinamogenia" ; mas são mais evidentes déficits dos rendimentos que estão no cruzamento psicossomático, sobretudo os sentimentos vitais gerais: bem-estar, energia, atividade geral. Os traços gerais da personalidade se conservam.

Nas síndromes frontais predominam os déficits que se manifestam mais finamente no âmbito da personalidade: carência de impulsividade {convexidade frontal) ou, ao contrário, liberação dos impulsos (lobo orbitário), perda da autocrítica, ausência da previsão, fusão com o momento presente, euforia tola.

Num artigo de divulgação talvez essas noções sejam algo excessivas mas tornar-se-iam imperdoàvelmente exageradas se entrássemos a expor e discutir os dados duvidosos ligados às síndromes que se apresentam como conseqüentes às lesões temporais, parietais, etc, quando já as próprias do lobo frontal não gozam ainda de direitos reconhecidos por todos. Teríamos que preferir um autor, já que êles discutem e discordam.

3 - A natureza da causa lesional cerebral não é decisiva quanto à fisionomia psicossintomática; ela não imprime, quase nunca, sêlo específico à síndrome mental e esta aquisição representa imenso avanço na história do conhecimento psiquiátrico. Não se pode confeccionar diagnóstico etiológico tomando por base exclusiva a síndrome mental apresentada nas doenças infecciosas, tóxicas, traumáticas, carenciais, orgânicas, imunológicas (alergia, paralergia, metalergia), sejam elas acometimentos primários ou secundários do cérebro ; lesões difusas e extensas - luéticas, traumáticas, senis, etc. - têm muito aspecto comum no quadro mental. O diagnóstico etiológico dêsses casos é estabelecido com os recursos da clínica médica e não com os da psicopatologia.

O diagnóstico psicopatológico é feito genèricamente; o quadro mental - síndrome confusional, alucinótica, psicose orgânica ou psicossíndrome orgânica -- não esclarece a etiologia precisa. Nas "psicoses arterioscleróticas" a imprecisão é tal que, se se abstrai o quadro mental genérico que constitui a "síndrome orgânica", restam sintomas, ou de arteriosclerose cerebral com expressão neurológica, ou de arteriosclerose pura e simples, extracerebral, a diagnosticar clinicamente. Ausentes êstes dois últimos grupos sintomáticos - neurológico e clínico - é pràticamente impossível excluir, só com o auxílio da psicopatologia, das "psicoses de involução", aquelas que se acompanham, separando-as das que não se acompanham de arteriosclerose cerebral. A idade involutiva matiza psicològicamente tanto a psicose de involução quanto a grande maioria das "psicoses arterioscleróticas".

Em geral, todos os autores modernos confirmaram, a propósito de estudos que visavam delimitar "síndromes localísticas", o velho preceito segundo o qual uma só causa, por exemplo, o traumatismo craniano, pode gerar os mais diversos quadros e, vice-versa, um determinado quadro, por exemplo o confusional, pode ser produzido pelas causas mais diversas. Em 1950, interessante trabalho de Elsässer mostrou iguais síndromes de base do cérebro em conseqüência de acometimentos diferentes: encefalite epidêmica, tumor da base, coréia de Huntington, meningites tuberculosa e luética, cisticercose da base e comoção cerebral. Enfim, o diagnóstico da natureza da causa não é obtido por via psicopatológica e sim com os recursos da medicina geral.

4 - A idade do doente é fator configurativo, patoplástico, mas decisivo na evolução, sobretudo na infância. Nessa etapa da vida as lesões cerebrais podem, mesmo circunscritas, alterar a evolução do cérebro todo e ocasionar um tipo de minusvalia funcional e orgânica manifesto em "oligofrenia por causa adquirida". As mesmas causas atuando no cérebro adulto ou envelhecido podem ocasionar quadros diversos e, por grave que seja a lesão, o quadro deficitário é sempre diferente do da infância e constitui a demência orgânica, em que se podem ainda perceber restos de conhecimentos adquiridos outrora, conservação de rendimentos, em geral - leitura, conduta pragmática, hábitos profissionais - que perduram apesar da devastação de todo o psíquico e que o oligofrênico jamais adquiriu por incapacidade de fazê-lo, mesmo ensinado.

Por outro lado, certos déficits por lesão cerebral ocorridos na juventude e infância, compensam-se e são superados melhor que na vida adulta (afasia, por exemplo, ou o uso supletivo dos membros esquerdos). Há ainda "formas juvenis" de certos processos cerebrais (encefalite, traumas cranianos, meningites, etc.) que determinam alterações do caráter, como sejam a perversidade, a explosividade, a "fogosidade"; é raro que no adulto tais processos cerebrais desencadeiem as mesmas conseqüências. Parece necessário, para o advento de tais alterações de caráter, não só uma constituição psíquica pré-formada, homóloga do distúrbio (e então êste seria pura acentuação dos traços de personalidade), como ainda que as lesões se assestem no diencéfalo.

5 - O ritmo com que se instala ou evolui a causa lesional - lento como em certos tumores, rápido como nas hemorragias cerebrais - importa de tal maneira que, conforme a sede, a sintomatologia pode ser simplesmente ausente ou pouco clara (tumores ou lesões cerebrais que são surpresas de autópsia) ou, ao contrário, fulminante como em certos ictos, •ou instantâneo e reversível como nas meras concussões cerebrais. O livro de Kolle registra um caso de indivíduo com graves distúrbios de conduta que foi periciado, atribuído como responsável, julgado, condenado à morte e executado; a autópsia mostrou graves e extensas lesões nas regiões orbitaria e temporal direitas; neurològicamente, havia apenas paresia facial; a sintomatologia mental era constituída apenas de piora do caráter já defeituoso antes dos dois traumas cranianos responsáveis pelo quadro anátomo-patológico extenso; dois anos depois do segundo traumatismo craniano os conflitos criminógenos, que já existiam antes dos traumas, recrudesceram com gravidade crescente.

Pode ocorrer, tão lenta seja a progressão da lesão, que a sintomatologia seja apagada, ou que ocorram, concomitantemente ao comprometimento anatômico, suplências funcionais que impeçam a evidência do déficit.

6 - A extensão da lesão interfere de maneiras várias: nos tumores, por exemplo, pode ocorrer compressão de regiões vizinhas ou edema cerebral generalizado, alterando a sintomatologia inicial. No domínio psiquiátrico, os fatos paralelos a êsses outros correntes em neurologia, mal estão esboçados quanto ao conhecimento do especialista: lesões encefalíticas, arterioscleróticas, ou hipertensivas de decurso crônico permitem o reacender de velhos focos, ou o acometimento de novos. E' possível ou admissível que a sintomatologia psíquica, decorrente da nova área comprometida, varie conforme o valor hierárquico dessa área. Teríamos, assim, uma tarefa indispensável para confeccionar o diagnóstico: a ordenação cronológica dos sintomas psíquicos, isto é, a sucessão temporal. Qualquer psiquiatra conhece a variação sintomática que se vai imprimindo no curco da paralisia geral, seja quando progride, seja quando remite lentamente. As áreas cerebrais atinentes às diferentes funções mentais se escalonam por subordinação, supraordenação, "dinamização" (o diencéfalo seria centro dinamogênico), regência, interdependência, "tomada de consciência" (atribuída ao frontal), e a extensão da lesão cerebral evolutiva vai incluindo todos êstes fatôres em sua progressão, o que vai alterando o quadro mental, com o correr do tempo.

7 - A personalidade anterior e a constituição total do indivíduo imprimem traços próprios às síndromes mentais conexas com doenças cerebrais. Na síndrome de Korsakoff as confabulações se apresentam em indivíduos de certas vivacidades temperamentais ; há traumatizados de crânio apáticos, outros eufóricos, outros explosivos e intranqüilos. A própria atitude perante a doença, a reação pessoal diante do déficit nos rendimentos ou diante do agravo representado por sintomas neurológicos, varia dum a outro indivíduo, independentemente da sede da lesão. E' possível que, uma vez surgida a lesão cerebral, a possibilidade de compensar as funções comprometidas ou de adicionar, "ilegìtimamente", reduções funcionais aos déficits orgânicos, tenham a ver com a personalidade do doente, não só quanto ao aspecto reivindicador dos lesados do crânio, mas mesmo quanto à restauração supletiva da função, quanto à reorganização das possibilidades funcionais que ainda restam ao doente, sua exercitação, sua posição perante o mundo novo imposto pelas novas condições mórbidas.

8 - Certas escolas altamente credenciadas admitem que os rendimentos psíquicos podem claudicar, não só por lesões cerebrais comprovadas, mas por labilidade funcional de sistemas (chamar-se-ia sistema ao conjunto de campos citoarquitetônicos cerebrais, de morfología, tamanho e distribuição idêntica ou não, correlacionados entre si e prepostos a uma função). Esta labilidade funcional "sistêmica" seria responsável, na etapa passageira da claudicação, por uma sintomatologia específica mas transitória; se o sistema se altera degenerativamente, a sintomatologia é a mesma, com a diferença de ser definitiva. Com isto, Kleist reivindica para o cérebro, e em acepção claramente localística, a responsabilidade por doenças mentais para as quais não se encontrou até hoje substrato lesional ("psicoses marginais" da esquizofrenia, epilepsia e psicose maníaco-depressiva). São tôdas curáveis, endógenas e o mais das vêzes recidivantes. Êste gênero de disfunção patofisiológica somática - que não é destrutivo, lesional e não verificável necroscòpicamente - ganha cada vez maior aceitação. Tem símiles em tôda a patologia funcional e credencia-se como admissível ao raciocínio por analogia, por exemplo, com a fisiopatologia do sistema endócrino, do vascular, do sistema neurovegetativo, etc.

9 - Se se prova concludentemente a estreita relação entre cérebro e psiquismo, é bem mais difícil provar a existência de área topográfica responsável pelos rendimentos psíquicos individualizados, como Hess o fêz, ùltimamente, com os rendimentos que chamou ''rendimentos coletivos". Além das dificuldades mencionadas até agora, há ainda outra, evidenciada nos trabalhos de Hess e na exposição de Schaltenbrand. Numa série de animais se procura o local exato cuja excitação desencadeia uma resposta instintiva, uma "conduta organísmica" (Haddenbrock), seja ela a reação de defesa ou o sair farejando pelo chão, por exemplo, cada vez que num animal se encontra o local cuja excitação provoca essa resposta, anota-se topogràficamente no "mapa cartográfico" do órgão o ponto correspondente ao que se revelou útil à excitação; repete-se a excitação em séries de animais, marcando-se os pontos de cada um e verifica-se que êles não se superpõem. Ao fim de extensas experiências, no mapa há uma "nuvem de pontos", indicando que certa área é preferencial, isto é, que é mais comum encontrar-se naquele espaço limitado do que noutro qualquer, o ponto cuja excitação foi útil para obtenção da resposta. Mas, numa minoria de animais experimentados, o "ponto útil" não está nessa área e sim noutra vizinha ou mais afastada. Isto indica a variação individual topográfica dos "centros", ou seja, que a cada indivíduo corresponde uma topografia especial, embora quase sempre a "sede" da função tenha circunscritas áreas de preferência; enfim, na maioria dos indivíduos os "centros", se não coincidem exatamente quanto à "sede", variam apenas dentro duma área mais ou menos circuncrita; é pequeno o desvio padrão.

10 - As objeções definitivas contra a localização do psíquico e contra a proclamada aproximação com a neurologia, se poderiam resumir num argumento: em neurologia trata-se de conhecimentos positivos (a excitação adequada dum ponto da área motora, por exemplo, produz um movimento). Em psiquiatria os conhecimentos são de ordem diferente: a urna lesão (não a uma excitação) frontal, por exemplo, corresponderia uma síndrome que nem sequer é uniforme. Até aqui - fora os experimentos de Hess - a extirpação, a destruição (por tumores, focos de amolecimento, pela cirurgia, etc.) têm sido os métodos que se proclamam como comprovadores da localização psíquica. Não há experimentos positivos; não se produz, por exemplo, percepção (são possíveis sensações elementares), representação, atos volitivos, pensamentos ou vivências, por excitação de qualquer área cerebral. Não há paralelo em nenhum outro domínio da medicina, pois que só no cérebro se procuram correlações diretas entre lesão (por doença ou artifício experimental) e psiquismo. Entretanto, verificam-se alterações psíquicas se se alteram outros órgãos - por exemplo, a tireóide - ou se se introduzem substâncias estranhas - por exemplo, o álcool, os barbitúricos - no organismo com cérebro intacto. Diz-se, então, que o cérebro é o órgão efetor, o elaborador supremo da totalidade de parcelas necessárias ao rendimento mental normal. Já isto restringe o valor do que se procura atribuir aos setores partitivos cerebrais, o valor do "centro"; deixa de ser "centro" o elo duma extensa cadeia onde nem a posição de hierarquia superior lhe está garantida. Poder-se-ia dizer, face aos sintomas psíquicos em relação com lesões cerebrais, que estas áreas cerebrais agora lesadas, quando ainda sadias estavam cooperando na manutenção da vida normal, o que não mais foi possível depois da lesão. Mas não se poderá dizer que aquela área lesada é responsável pelos sintomas psíquicos ocorridos ou que, quando sadia, era, só ela, responsável pela conduta normal ("centro" desta ou daquela função ou comportamento). A própria neurologia conhece restrições a êsse modo de pensar, pois na dissolução de funções, por exemplo, aferem-se sintomas negativos e positivos sem a estreita dependência entre sede de lesão e causa imediata dos sintomas e sua fisionomia.

11 - Outra anotação crítica que caberia registrar é que os conhecimentos ùltimamente obtidos, arrolados na órbita do problema corpo-alma, de modo algum eram os que se presumia. Desde Gall procuravam-se coisas assim: "centros" da vontade, dos afetos ou formações cerebrais responsáveis por desvios éticos, etc. O que se tem encontrado é algo imprevisto e era mesmo imprevisível à especulação. Só o estado patológico mostra que há, incluídas no normal, insuspeitadas componentes psíquicas, despercebidas e não analisáveis, cuja existência é registrada quando estas componentes se dissociam ou se ampliam ou se isolam na vivência psíquica mórbida. A queda dos rendimentos mentais nas lesões da base do cérebro (Stertz, Beringer, Elsässer) por falência da "dinamogenia" dos comutadores diencefálicos, a perda da perspectiva do futuro, a fusão com o momento presente, a "sintonização regressiva" (Barahona Fernandes) dos feridos frontais, não eram dados previstos, não constituíam unidades psicológicas buscadas pelos somaticistas e localizacionistas. A posição do problema para êles era outra; o que aparece nos portadores de tais lesões, constituindo-se em déficit psíquico, consiste em algo que não era absolutamente concebido por antecipação. Buscavam localizações daqueles rendimentos isolados artificialmente como "funções" psíquicas - inteligência, vontade - ou como "conceitos" - éticos, valorativos, etc. - mas o que surgiu, se já tem campo de aplicação na vida psíquica (o diencéfalo "dinamiza", tem valor efetor sôbre as aptidões intelectuais, volitivas, apetitivas, etc.), não é, entretanto, da categoria do psíquico previsto e anelado. Isto significa que até aqui se tem procurado localizar coisa diversa do que a biologia legitimamente autoriza.

12 - Os experimentos capitais de Hess, pela primeira vez, trazem à consideração excitações do diencéfalo com respostas que constituem um comportamento complexo onde já se incluem componentes psicológicas, embora primárias** ** Jaspers dissera: "Es ist charakteristisch, dass Symptome, die man auf bestimmte Stellen des Gehirns beziehen kann, solche sind, deren eigentlich psychischer Charakter zweifelhaft ist. Es sind immer Werkzeugstörungen oder motorisch-sensorisch Reiz und Ausfallerseheinungen verwickelter Art, die im Erieben gegenwartiges als stoff des Erlebens nicht Selber zum ursprunglisch Sealisehen gehoren" (Jaspers - Allgemeine Psychopathologie, ed. 5, Springer, Berlim e Heidelberg, 1948, pág. 405), isto é: "E' característico que sintomas que se podem relacionar com determinados lugares do cérebro, são aquêles cujo caráter pròpriamente psíquico ê duvidoso. São sempre, além disso, distúrbios instrumentais ou ocorrências por excitação ou lesões sensitivo-motoras confusas, que estão, no vivenciar, presentes como matéria de vivência, mas não pertencem ao próprio psíquico, originàriamente". . Excitando pontos do nucleus perifornicalis no hipotálamo, surge uma atitude de ataque no gato, como se estivesse frente a um cão: irrita-se e rosna, eriçam-se os pêlos do dorso, empina-se a cauda, as orelhas abatem-se para trás ou vão e vêm, as pupilas se dilatam e o corpo apresta-se, concentrado, para o salto. Se a excitação elétrica do hipotálamo prossegue, o ataque se executa; o gato dirige-se para a pessoa existente nas proximidades e salta sôbre ela ou golpeia-a com a pata; "surgem todos os sintomas exteriores do afeto que se denomina cólera; em seu humor agressivo o gato procura um adversário que visa e toma como objeto de sua explosão afetiva" (Kretschmer - Medizinische Psychologie, ed. 10, G. Thieme, Stuttgart, 1950, pág. 68). Não se trata de respostas isoladas mas de "Kollektivleistungen", rendimentos coletivos, conjugação de sintomas vegetativos com funções do sistema motor subcortical, resultando atos dirigidos a um objetivo, impulsos, afetos e expressão dêles, como diz Kretschmer. Pode ocorrer que essa resposta se transmude em fuga, tal como ocorre na vida habitual do gato. E, desde que se interrompe a excitação elétrica ("fast im Moment benimmt sich die Katze wie normal"), quase num momento, o gato comporta-se como normal.

Os experimentos de Hess ainda lidam com outros impulsos - sexuais, motores (Bewegungsdrang, impulsão a mover-se) - com comportamentos onde entra o sono-vigília, o farejar, o mastigar, o defecar, o correr, o beber, etc. - sempre determináveis por excitações elétricas de pontos ou áreas difusas e esparsas pelo diencéfalo.

Com esta contribuição de significado transcendente, inscrevem-se novas esperanças de localizar rendimentos psíquicos complexos, condutas totais que estão adstritas e correlacionadas com áreas, ora perfeitamente delimitadas, ora difusas. Não se tiraram ainda tôdas as deduções e inferências cabíveis diante de fatos tão límpidos e tão impecáveis quanto ao artificialismo experimental. E' de notar-se, porém, que o "psíquico" que aqui se exterioriza é uma reação primária instintiva ( os antigos diriam reflexa, automática) de velho registro ontogenético, prototípico para todo reino animal (ataque, fuga, procura de alimento) sem superestrutura individualizadora. São arquetipos de reações fundamentais onde o que diferencia psiquicamente um indivíduo de outro não aparece, isto é, psicològicamente é o que há de pobre em psíquico. E é o mais conjugado com o visceral e com a psicomotilidade.

13 - As teorias psicossomáticas tendem a impugnar a estreita causalidade somática, à dependência "mecanicista". Elas incluem sempre o elo psíquico nas conexões do organismo e apregoam-lhe significado causal, concausal ou finalista. Conforme seja o autor, o valor do psíquico na clínica psicossomática desce ou sobe até o especulativo puro, mas, seja qual fôr o autor, o que sempre se conclui é que a pretensão de localizar o psíquico concretamente no cérebro, nestas teorias psicossomáticas, é preocupação mais ou menos completamente omissa. E, até certo ponto, se se lograsse comprovar a localização do psíquico no cérebro, o grande significado das teorias psicossomáticas sofreria pesado abalo porque, ao que parece, cessaria a concepção da onipotência e onipresença do psíquico, que passava a ter âmbito de ação estreitamente enquadrado dentro das possibilidades "mecanicistas", férreamente delimitadas pelo grosseiro materialismo cerebral. Em vez de conceber como possível o elemento psíquico em qualquer desordem somática e em qualquer trâmite (como causa, como adição, como refôrço, como amparo teleológico de sintomas) da seqüência de fenômenos patológicos, o psíquico estaria - se localizável e regulado como os fenômenos neurológicos - evidentemente sujeito a determinismos funcionais diversos dos que se lhe atribui por não ter esta "prisão" somática localística.

R. Siqueira Campos, S, 2º andar, apartº 6 - Salvador - Bahia.

  • Síndromes mentais e doenças cerebrais

    Nelson Pires
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    Temos como generalização improcedente a afirmação de que a leucotomia pré-frontal produz sempre apatia e pobreza de impulsos; em nossa casuística há resultados exatamente contrários a isso.
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    Jaspers dissera: "Es ist charakteristisch, dass Symptome, die man auf bestimmte Stellen des Gehirns beziehen kann, solche sind, deren eigentlich
    psychischer Charakter zweifelhaft ist. Es sind immer Werkzeugstörungen oder motorisch-sensorisch Reiz und Ausfallerseheinungen verwickelter Art, die im Erieben gegenwartiges als stoff des Erlebens nicht Selber zum ursprunglisch Sealisehen gehoren" (Jaspers - Allgemeine Psychopathologie, ed. 5, Springer, Berlim e Heidelberg, 1948, pág. 405), isto é: "E' característico que sintomas que se podem relacionar com determinados lugares do cérebro, são aquêles cujo
    caráter pròpriamente psíquico ê duvidoso. São sempre, além disso, distúrbios instrumentais ou ocorrências por excitação ou lesões sensitivo-motoras confusas, que estão, no vivenciar, presentes como matéria de vivência, mas não pertencem ao próprio psíquico, originàriamente".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Abr 2014
    • Data do Fascículo
      Mar 1953
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