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Cromomicose do sistema nervoso: estudo anátomo-clínico de um caso

REGISTRO DE CASOS

IAssistente voluntário de Clínica Neurológica da Fac. Med. da Univ. de São Paulo (Serviço do Prof. Aderbal Tolosa)

IIAssistente do Departamento de Anatomia Patológica da Fac. Med. da Univ. de São Paulo (Serviço do Prof. Ludgero da Cunha Motta)

IIIAssistente do Departamento de Microbiología e Imunologia da Fac. Med. da Univ. de São Paulo

RESUMO

Registro de um caso de cromomicose localizada no sistema nervoso central, cujo diagnóstico foi feito pelo exame necroscópico. Esta micose só tem sido descrita no tegumento cutâneo e raramente em mucosas; em outros tecidos, sòmente Carini em 1910 descreveu um caso de localização visceral em anfíbio. O paciente apresentava síndrome de hipertensão intracraniana com 4 meses de evolução progressiva. Clinicamente, foi verificada hemiparesia direita e papiledema bilateral; os exames do liqüido cefalorraquidiano mostraram hipertensão, acentuada hipercitose, linfomo-nonuclear e positividade variável das reações de fixação de complemento para sífilis e cisticercose, principalmente da reação de Steinfeld. Foi submetido à penicilinoterapia e à sulfamidoterapia, tendo melhorado com esta. Alta após 3 meses e meio de internação. Rehrternação 5 meses depois, com reaparecimento da síndrome hipertensiva, rigidez de nuca, protrusão ocular, sinais de comprometimento piramidal no hemicorpo esquerdo, além de sinais bilaterais de automatismo medular e piora acentuada do quadro liquórico. Óbito dias depois, tendo a necropsia revelado processo fibroso das meninges da base, predominando ao nível do orifício occipital e medula cervical alta, diminuindo cranial e caudalmente. Aderência dos folhetos meníngeos entre si, à caixa craniana e ao tronco cerebral, com invasão deste. O exame histológico mostrou que o processo era mais ativo na região cervical alta, sendo constituído de acúmulos celulares densos, formando verdadeiros granulomas, cujo centro era ocupado por gigantó-citos, a maioria do tipo corpo estranho, em mistura com os quais havia histiócitos em precoce diferenciação para fibroblastos e fibrócitos. Na periferia predominavam linfócitos, havendo células eosinófilas e plasmócitos, aparecendo vasos neoformados. No centro dos granulomas, no interior dos gigantócitos e espalhados entre as células histióides, se achavam os fungos, de coloração castanha mais ou menos carregada. O encontro dessas formações fúngicas no sistema nervoso central é excepcional e difícil de ser explicado por não ter sido encontrado processo cutâneo com fungos semelhantes.

SUMMARY

A case of chromomycosis of the central nervous system is reported; the diagnosis was made only upon postmortem examination. This mycosis has been described in most cases in the skin and, rarely, in mucosae, except the description of visceral involvement in an Amphibia by Carini, in 1910. The patient had a four month history of hypertensive intracranial syndrome. The existence of paresis of right limbs and bilateral papilledema was verified. There was cerebrospinal fluid hypertension, a marked hypercytosis and the complement fixation tests for syphilis and cysticercosis were positive in a fleeting way, but the Steinfeld reaction (Wassermann reaction with cerebral antigen) was alwavs firmly positive. Penicillin was administered with no improvement and also sulfas in view of the probable cysticercotic nature of the process. After further medication which seemed to bring improvement the patient was released. Five months later he was readmitted to the Hospital with hypertensive intracranial syndrome, stiffness of the neck, protrusion of the eyeballs, bilateral signs of spinal cord release and increased cerebrospinal fluid changes. Death occurred a few days later. At autopsy an intense fibrotic meningeal reaction in the basis of the skull was found chiefly at the level of foramen magnus passing through it and involving the first cervical segments of the spinal cord. The meningeal membranes were adhered to each other, to the skull and brain stem, which was invaded by the fibrotic process as well. Microscopic examination showed the process to be more active at the level of cervical segments and formed by dense cellular conglomerations with a granulomatous pattern. Its center was occupied by giant cells, of the foreign body type mainly and histiocytes in early differentiation to fibroblasts and fibrocytes. Lymphocytes prevailed at the periphery; eosinophyl cells and plasmocytes were also verified as well as newly formed vessels. Free or included in the giant cells (specially of foreign type) were found the typical dark brown fungi.

The finding of these organisms in such a localization is hard to explain in view of the lack of any cutaneous process caused by the same fungi.

A denominação cromomicose é usada em micologia e dermatologia para designar um tipo de dermatite verrucosa produzida por fungos dos gêneros Phialophora (P. verrucosa), Hormodendrum (H. pedrosoi, H. compactuai) e outros; na espécie humana tem sido descrita até hoje apenas localização cutânea e, raramente, mucosa. Carini, em 1910, descreveu localização pulmonar, renal e hepática em anfíbio. O registro do presente caso - micose do sistema nervoso produzida por organismo que apresenta coloração semelhante à dos fungos da cromomicose - se justifica pela sua localização até hoje não assinalada no homem.

O diagnóstico só foi feito mediante o exame necroscópico. Como se verá na seqüência dos exames complementares, as grandes variações encontradas nos exames de líqüido cefalorraquidiano e do sôro sangüíneo não só não permitiram diagnóstico etiológico como, em diversas ocasiões;, desviaram inteiramente o curso da terapêutica empregada.

OBSERVAÇÃO

J. D. S. (reg. H.C. 250851), homem com 34 anos, preto, lavrador. O paciente sempre fora sadio; tivera teníase, negando passado venéreo. Início da moléstia atual em novembro de 1951, com cefaléia frontal, quase contínua e de intensidade progressiva, acompanhada de dor ocular e retro-ocular; diminuição progressiva da acuidade visual e diplopia. Teve, nesse período, duas crises convulsivas no hemicorpo direito, predominando no membro superior, não acompanhadas de perda dos sentidos. Como piorasse, foi internado no Pronto Socorro do Hospital das Clínicas em 3-1-1952, apresentando-se obnubilado, com rigidez de nuca; pulso, 56 bat./min; temperatura, 38,7^0; pressão arterial 100-60 mm Hg; papiledema bilateral. Sob a suspeita de tumor da fossa posterior com engas-gamento das tonsilas cerebelares, foram feitas trepanações occipitais para pun-ção descompressiva dos ventrículos laterais; esta deu saída a liquor hipertenso, levemente turvo. Houve melhora do quadro descrito, mas foi-se instalando déficit motor no hemicorpo direito; foi então internado na enfermaria de Neurologia do Hospital das Clínicas. Nessa ocasião o exame clínico dos diversos aparelhos nada revelou de anormal e o exame neurológico mostrou paciente consciente, orientado, informando com dificuldade, mas de modo satisfatório; decúbito lateral direito preferencial; herr.iparesia direita com hipotonia; ataxia do tipo misto, predominando nos membros inferiores; rigidez de nuca discreta; equilíbrio satisfatório, conseguindo manter-se de pé e andar; marcha com base de sustentação alargada. Os reflexos musculares profundos eram pouco nítidos, especialmente à direita; à percussão direta das massas musculares, resposta fascicular, predominando na musculatura proximal dos membros; esboço de clono no pé direito. Intensa cefaléia; hiperestesia dolorosa profunda da musculatura da nuca. Mioedema provocável nos músculos da cintura escapula r e dos braços. Ani-socoria discreta, com pupila direita maior que a esquerda; reflexos pupüares à luz e à acomodação diminuídos em ambos os olhos; diminuição da acuidade visual; papilas de limites imprecisos, discretamente elevadas, de coloração esbran-quiçada; edema da retina.

Os primeiros exames de líquor encaminharam o diagnóstico etiológico no sentido de neurolues, em virtude do que foi feita penicilinoterapia intensiva por via intramuscular: inicialmente 9.600.000 U.O. de penicilina-G com procaína (300.000 U.O. diariamente) e, a seguir, 30.000.000 U.O. de penicilina-G cristalina potás-sica (500.000 U.O. de 8 em 8 horas). Os quadros clínico e liquórico não sofreram alterações sensíveis, sendo feita, então, medicação com sulfadiazina (1 g cada 4 horas, por via oral, perfazendo um total de 370 g), em virtude de se ter aventado também a hipótese de neurocisticercose, pelo encontro de células eosinófilas no liquor, positividade (embora variável) da reação de Weinberg no liquor, teníase pregressa e eosinofilia sangüínea. Houve melhora gradativa tanto clínica como liquórica. Regrediram em grande parte os distúrbios neurológicos, restando alterações oculares caracterizadas por ligeiro desvio do olho direito para fora, midríase, reflexos fotomotores e de acomodação lentos em ambos os olhos, diminuição acentuada da acuidade visual, maior no olho direito; papilas esbran-quiçadas, de limites pouco nítidos e nível aproximadamente normal; retina apresentando manchas brancas entre a papila e a mácula; a campimetria, possível somente no olho esquerdo, mostrou estreitamento concéntrico do campo visual. No liquor, a hipercitose diminuiu progressivamente e as reações de fixação do complemento continuaram positivas, embora de modo mais intenso e constante com antígeno de Steinfeld. Com a finalidade de afastar outras etiologías, foram feitas pesquisas visando a toxoplasmose, a tuberculose e processos neoplásticos com métastase intracraniana, nada tendo sido encontrado de positivo. O encontro de taxa alta de colesterol no liquor em uma ocasião fêz aventar a hipótese de co-lesteatoma da fossa posterior, o que não foi confirmado. O paciente ficou internado durante 105 dias, período em que permaneceu afebril, permanecendo as condições de pulso, pressão arterial e respiração dentro dos limites da normalidade.

Exames complementares - Hemograma: eritrocitos 4.400.000 por mm3; leucocitos 6.200 por mm3; hemoglobina 11,3 g/100 ml; valor globular 0,8; neutró-filos 47% (bastonetes 5%, segmentados 4-%), eosinófilos 19%, linfócitos 29%, monócitos 4%. Reação de fixação de complemento para cisticercose tio sangue: em 17-3-1952, anticompiementar; em 22-3-1952, negativa; em 21-5-1952, positiva. Reações sorológicas para sífilis: em 3-3-1952, r. Wassermann e Kahn negativas; em 26-3-1952, r. Wassermann duvidosa, r. Kahn e Kline negativas; em 21-5-1952, r. Wassermann, Kahn e Kline negativas. Exame parasitológico das fezes: cistos de Giardia lamblia. Dosagem de colesterol no sangue 270 mg/100 ml. Eletren-cefalograma: ondas lentas (5 a 7 ciclos/seg) de média amplitude, praticamente contínuas e difusas, não alteradas pela hiperpnéia. Exames para o diagnóstico de toxoplasmoses teste de Sabin-Feldman (prova do corante) negativo; reação de fixação do complemento negativa. Radiografia do tórax: ausência de evidência radiológica de lesão específica focai em evolução. Radiografia do crânio: ausência de calcificações patológicas de projeção intracraniana e de sinais de hipertensão. Pneumencefalograma: dilatação dos ventrículos laterais e médio, não havendo desvios ou deformações; quadro sugestivo de bloqueio pregresso do sistema ventricular por causa situada na fossa infratentorial.

O bom estado geral do paciente permitiu que se desse alta, embora o diagnóstico não tivesse sido plenamente esclarecido, sendo o caso rotulado como reação meningoencefalítica, com provável foco tumoral inf ratentorial (neurocist ¡cercóse? neurolues?).

O paciente passou bem os primeiros meses após a alta, reaparecendo depois a cefaléia, acompanhada de dificuldades à marcha, "tremores" e indiferença ao meio, sintomas que se agravaram aos poucos (o informante não convivia com o paciente, não podendo referir outros dados). Trazido novamente para o Hospital das Clínicas, o paciente foi reinternado no Serviço de Neurologia em 25-10-1952. Nessa ocasião se achava emagrecido; pulso 82 bat./min; respiração 20/min; temperatura 36,8°C; pressão arterial 120-70 mm Hg. Ao exame dos diversos aparelhos nada a assinalar além de protrusão discreta dos globos oculares, com olhar parado e de dentes incisivos soltos em seus alvéolos, sangrando com facilidade. O exame neurológico mostrou paciente torporoso com cefaléia intensa; dores na nuca com rigidez, decúbito passivo, com hiperextensão da cabeça; o paciente não conseguia sentar ou mudar de decúbito. Hemiplegia esquerda, desproporcionada; paresia do membro inferior, paralisia do membro superior e paresia da hemiface, tipo central; hipotonia muscular nos membros esquerdos. Tremores intensos, inconstantes, generalizados, mais acentuados nos membros superiores e mandíbula. Reflexos musculares profundos presentes, mais nítidos no hemicorpo esquerdo; reflexos cutâneo-abdominais e cutâneo-plantar ausentes à esquerda; reflexos cremasterinos ausentes bilateralmente; reflexo oro-orbicular com resposta global da cabeça para trás. Exame da sensibilidade objetiva prejudicado. Mioedema provocável nos músculos da cintura escapular e nos biceps bra-quiais, bilateralmente. Atrofia bilateral das papilas ópticas, pós-edema.

Exames complementares - Hemograma: eritrocitos 4.600.000 por mm3; leucocitos 6.200 por mm3; hemoglobina 10,7 g/100 ml; valor globular 0,7; neutró-filos 58% (bastonetes 4%, segmentados 54%), eosinófilos 8%, linfócitos 21%, mo-nócitos 7%. Reação de fixação do complemento para cisticercose no sangue positiva. Reações sorológicas para sífilis: r. Wassermann, Kahn e Kline negativas. Radiografia do tórax: ausência de lesão parenquimatosa em evolução; discreto aumento da área de projeção frontal do coração em predominância do ventrículo esquerdo; alargamento do pedículo vascular, ausência de sinais radiológicos de metastases pleuropulmonares.

O paciente piorou progressivamente, tendo sido feitas várias punções ventri-culares descompressivas. A terapêutica visou a síndrome de hipertensão intracraniana, sem resultado. Surgiu taquicardia (pulso ao redor de 120 bat./min) e taquipnéia (46/min) ; não havia hipertermia; a pressão arterial caiu no segundo dia após a instalação dessas alterações de pulso e respiração, entrando o paciente em estado de choque (pressão arterial 0x0 mm Hg), falecendo em 5-11-1952, dez dias após a reinternação.

Na primeira internação o liqüido cefalorraquidiano (quadro 1) se apresentou hipertenso em várias ocasiões. A hipercitose, muito elevada de início, torna-ra-sc menor ao fim da primeira internação, tendo sido sempre do tipo linfomo-nonuclear, uma só vez apresentando eosinófilos. Do exame químico se destaca apenas uma hiperproteinorraquia elevada inicialmente. As reações coloidais sempre resultaram positivas (tipo parenquiniatoso) e as de fixação de complemento resultaram variadamente positivas, sendo mais uniformes os resultados positivos da reação de Steinfeld (antígeno cerebral). Na segunda internação o liquor ventricular se achava hipertenso, com intensa hipercitose (polimorfonucleares neutro-filos) ; as demais reações inalteradas em relação à primeira internação. Não se conseguiu extrair liquor à punção suboccipital; o liquor lombar mostrou pressão nula, sugerindo haver septamento entre as cavidades ventriculares e as aracnoidéias.


Os exames do liqüido cefalorraquidiano orientaram o diagnóstico inicialmente para neurolues, não se tendo afastado a hipótese de cisticercose cerebral. Com a suspeita de tumoração infratentorial de evolução muito lenta, foi explorada a hipótese de colesteatoma dessa região, pois a colesterolorraquia se mostrou elevada em um dos exames. Por fim, em virtude da discrepância das reações de fixação de complemento, firmou-se a hipótese de se tratar de processo localizado provavelmente na fossa infratentorial, bloqueando parcial ou totalmente as vias de drenagem encefálica do liquor, determinando reação meningo-encefálica do tipo crônico, reagudizada na fase final, com pseudo-positividade das reações de fixação de complemento. O exame bacteriológico e micológico, direto e por cultura, nada revelou embora repetido em várias ocasiões.

Necrópsia - Exame macroscópico: Folhetos meníngeos da base do encéfalo fibrosados e espessados, aderidos entre si à calota craniana e ao encéfalo, rodeando o orifício occipital à maneira de manguito de espessura variável, tornando o orifício assimétrico. O pedúnculo cerebral, em virtude dessa assimetria, se apresentava deslocado para a direita. A leptomeninge da convexidade mostrava-se de aspecto normal. Na região da base, ao lado da fibrose da leptomeninge, havia fitas fibrosas que a uniam ao quiasma, que se achava repuxado posteriormente. Nervos ópticos afastados posteriormente, achatados contra os uncus herniados e a êles presos por lâminas fibrosas densas; nervo óptico esquerdo de aspecto atrófico. A fibrose da leptomeninge cerebral prosseguia ininterruptamente para os correspondentes folhetos meníngeos do pedúnculo cerebral e da medula. O processo se tornava mais intenso na parte alta da medula, diminuindo em sentido cranial e caudal. Na meninge da parte alta da medida e cerebelo percebia-se, em certos pontos, pequeninos depósitos de côr amarelada, de aspecto purulento, demonstrando estar o processo ainda em atividade em certas áreas, ü encéfalo pesava 1.280 g, percebendo-se, ao exame externo, alargamento e aeha-tamento das circunvoluções, ao lado de intensa congestão venosa. Raras sufu-sões hemorrágicas na superfície dorsal do cerebelo. Os cortes frontais sucessivo» demonstraram dilatação intensa e simétrica dos ventrículos laterais e terceiro; quinto ventrículo (ventrículo de Verga) presente e dilatado. Aqueduto cerebral achatado no sentido ântero-posterior e transformado em fissura. Ependimite do quarto ventrículo. Vasos cerebrais espessados no seu ponto de penetração no córtex cerebral.

Exame microscópico - Histològicamente (coloração pela hematoxilina-eosina e método de Weil), o processo era mais ativo ao nível da medula cervical alta e pedúnculo cerebral. Havia espessamento dos folhetos meníngeos, unidos entre si e à medula por faixas fibrosas que comprimiam as raízes nervosas; em torno destas, acúmulos celulares densos, constituindo verdadeiros granulomas, cujo centro era ocupado por inúmeras células gigantes, muitas do tipo corpo estranho e algumas do tipo de Langhans. De mistura com as células gigantes eram verificados histiócitos em precoce diferenciação para fibroblastos e fibrócitos; raros neutrófilos, linfócitos e eosinófilos. Em direção à periferia do granuloma aumentava o número de linfócitos e eosinófilos, surgindo plasmócitos, tomando o conjunto a forma de acúmulos celulares densos, com diferenciação mais evidente para fibroblastos e aparecimento de vasos neoformados. No centro dos granulomas, tanto no interior dos gigantócitos (especialmente dos de tipo corpo estranho), como espalhados difusamente entre as células histioeitárias, se achavam os fungos. Kstes eram encontrados nas lesões, ora como formações filamentosas constituídas por células alongadas, ora por células mais curtas, de membrana espessa, sempre, porém, com coloração castanha mais ou menos carregada. Esses elementos eram encontrados livres no tecido (fig. 1) ou fagocitados (fig. 2). Na figura 2 verifica-se um parasita fagocitado que parece dar origem a um filamento, inicialmente fino e depois mais grosso. Em outros trechos dos preparados foram encontradas formas fúngicas com aspecto semelhante ao encontrado nas lesões cutâneas de cromomicose. Nestes casos, porém, os fungos só raramente se apresentam com forma filamentosa e possuem, quase sempre, o aspecto de células mais ou menos esféricas, reproduzindo-se por divisão.



Afastada dos granulomas em atividade, havia predominância da fibrose, tendendo a unir os folhetos meníngeos entre si. Com a acentuação desta, o infiltrado, de caráter crônico, tendia a diminuir em intensidade. Em pontos mais afastados do processo ativo observava-se acentuação do infiltrado, formado predominantemente por linfócitos e plasmócitos, que junto aos pequenos vasos se dispunha à maneira de manguito; a parede vascular, entretanto, não se mostrava alterada. Caudal e cranialmente à medula cervical alta e tronco cerebral, havia diminuição dos granulomas ativos, o infiltrado se tornava menos acentuado e a fibrose aumentava. O parasita, em suas diversas formas, diminuía em número.

Junto à leptomeninge cerebelar, o exsudato tomava caráter agudo e purulento. Em meio aos neutrófilos, com sinais degenerativos, havia formas vegetativas do parasita, de morfología típica. Na base do processo agudo, a fibrose e o infiltrado crônico voltavam a ser proeminentes, havendo, em raros pontos, gigantócitos do tipo corpo estranho.

O tecido nervoso pròpriamente dito não apresentava alterações além de certo grau de congestão e edema. Ao nível da parte alta da medula cervical a substância cinzenta apresentava su fusões hemorrágicas; as células nervosas, entretanto, mostravam apenas tumefação aguda. No lobo temporal direito, foi verificada macroscópicamente pequena vesícula, cujo exame histológico revelou tratar-se de um eisticerco, delimitado do parênquima por uma cápsula fibrosa, parcialmente hialinizada.

No restante da autópsia foram verificados glossite catarral, anemia da tra-quéia e dos grandes bronquios, amigdalite crônica, anemia e enfisema pulmonar bilateral, ateromasia da aorta, hipertrofia do ventrículo esquerdo e espessamento das bordas livres da mitral, com encurtamento da sua cordoalha (endocardite reumatismal pregressa). Foram praticados cortes histológicos (corados pela he-matoxilina-eosina) no miocardio, válvula mitral, hipófise, próstata, testículo, rim, suprarrenais, fígado, baço, amígdala e pulmão, sendo demonstrado somente a existência de miocardite crônica com áreas de miocardiosclerose e tromboses nas ramificações menores da artéria pulmonar.

COMENTÁRIOS

Tratava-se de paciente portador de síndrome de hipertensão intracraniana, que evoluiu de modo crônico, com fase de melhora e recidiva ulterior, no qual os exames complementares encaminharam a localização da causa determinante para a região infratentorial. O estudo do liqüido ce falorraquidiano mostrou na fase final diferença entre o material colhido dos ventrículos e do espaço subaracnóideo lombar (provável bloqueio), não tendo sido possível obter liquor à punção suboccipital; em ambos se demonstrava reação meníngea acentuada, diferente num e noutro (de caráter predominantemente crônico, no ventricular, e agudo, no lombar), com reações de tipo parenquimatoso, falando a favor de comprometimento do parênquima nervoso: reação do benjoim coloidal atingindo a zona esquerda e média, reação de Takata-Ara do tipo floculante e reação de fixação de complemento com antígeno cerebral (Steinfeld) forte e constantemente positiva. Na fase final, além do quadro deficitário piramidal à esquerda, apareceram sinais de libertação medular (reflexo do tibial anterior, sinal de Piotrowski e sinal de Rossolimo, com respostas bilaterais concomitantes e constantes).

Os achados anátomo-patológicos confirmaram a hipertensão intracraniana (edema cerebral, hidrocefalia interna) originada pelo processo meníngeo de caráter crônico fibrosante, restringindo o tronco cerebral de modo acentuado, predominantemente na sua face anterior. A diferença entre o liquor lombar e o ventricular é explicável pelo mesmo processo bloqueante meníngeo no nível cervical ; a não obtenção de liquor por punção suboccipital foi devida à fibrose acentuada dos folhetos meníngeos nessa região.

Os sinais de libertação medular são explicáveis, provàvelmente, pela extensão do processo aos envoltórios da medula cervical alta (a qual era comprimida e invadida através da bainha dos vasos que nela penetraram), bem como pelas sufusões hemorrágicas coalescences encontradas na sua substância cinzenta. As contrações fasciculares na cintura escapular e o mioedema provocável nessa região talvez sejam explicáveis pelo sofrimento do neurônio motor periférico na medula cervical.

O diagnóstico de cisticercose aventado pela positividade da reação de Weinberg no sangue, pela eosinofilia e pela teníase pregressa, foi confirmado anátomo-patològicamente como achado isolado.

O encontro das formações fúngicas referidas constitui fato raro, mòrmente por que o paciente não apresentava qualquer processo cutâneo com fungos semelhantes. Torna-se muito difícil encontrar explicação para a localização no sistema nervoso central, de um fungo que normalmente só é encontrado no tegumento cutâneo.

Trabalho entregue para publicação em 28 maio 1953.

Serviço de Neurologia - Fac. Med. da Univ. de São Paulo.

  • Cromomicose do sistema nervoso. Estudo anátomo-clínico de um caso

    A. Spina França NettoI; Thales de BrittoII; Floriano Paulo de AlmeidaIII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Abr 2014
    • Data do Fascículo
      Set 1953
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