Resumos
Registro do caso de um menino de 11 anos de idade que apresentou uma paraplegia sensitivo-motora, coincidindo com osteomielite da mandíbula. O exame do liquor mostrou um quadro de bloqueio quase total do canal raquidiano e dissociação proteíno-citológica. Foi tratado com antibióticos, tendo regredido totalmente a osteomielite e, parcialmente, o quadro medular, com desaparecimento das alterações liquóricas. Foi discutido o diagnóstico diferencial das infecções piógenas intra-raquidianas.
A case of a boy 11 years old with crural paraplegia coincident with osteomyelitis of the mandible is reported. Cerebrospinal fluid examination showed nearly complete block of the spinal cord space and protein-cytologic dissociation. Antibiotics were used with total remission of the osteomyelitis and partially of the spinal cord symptoms; the cerebrospinal fluid was normal after treatment. The differential diagnosis of intraspinal pyogenic infections is discussed.
REGISTRO DE CASOS
Antonio B. LefèvreI; Maria Líbia de BédiaII
IDocente Livre de Clínica Neurológica
IIMédica interna
RESUMO
Registro do caso de um menino de 11 anos de idade que apresentou uma paraplegia sensitivo-motora, coincidindo com osteomielite da mandíbula. O exame do liquor mostrou um quadro de bloqueio quase total do canal raquidiano e dissociação proteíno-citológica. Foi tratado com antibióticos, tendo regredido totalmente a osteomielite e, parcialmente, o quadro medular, com desaparecimento das alterações liquóricas. Foi discutido o diagnóstico diferencial das infecções piógenas intra-raquidianas.
SUMMARY
A case of a boy 11 years old with crural paraplegia coincident with osteomyelitis of the mandible is reported. Cerebrospinal fluid examination showed nearly complete block of the spinal cord space and protein-cytologic dissociation. Antibiotics were used with total remission of the osteomyelitis and partially of the spinal cord symptoms; the cerebrospinal fluid was normal after treatment. The differential diagnosis of intraspinal pyogenic infections is discussed.
Pareceu-nos interessante o registro dêste caso, não sòmente pela raridade da incidência como também pelos problemas diagnósticos. Com efeito, embora sejam pouco freqüentes as compressões medulares na criança, a tendência natural do clínico é a de relacioná-las com neoplasias ou afecções vertebrais traumáticas ou infecciosas. Um quadro medular conseqüente a infecção piógena epidural, particularmente quando esta infecção é originária de um foco à distância, merece ser divulgado, seja para chamar a atenção para esta etiologia, seja para salientar o bom êxito obtido com a terapêutica clínica, sem necessidade da intervenção cirúrgica, habitualmente indicada nestes casos.
Observação - O. F., 11 anos, sexo masculino, branco, brasileiro, internado em 14-1-1958 (R.G. 498.180). Nos primeiros dias de dezembro de 1957, o paciente sentiu dor no ângulo do maxilar esquerdo. Uma semana após, foi extraído um dente dêsse local; no mesmo dia apresentou edema de todo o maxilar, impedindo a abertura da bôca. Cêrca de 5 dias depois passou a ter dor na coluna vertebral e, concomitantemente, déficit motor no membro superior direito, que depois regrediu. Foi consultado médico, que diagnosticou reumatismo e aconselhou extração de outro dente infectado; a dor mandibular cedeu parcialmente, porém, continuou a dor nas costas. Após alguns dias o paciente passou a ter déficit motor nos membros inferiores e retenção de fezes e urina. Já não conseguia manter-se sentado e continuava com dor intensa na região dorsolombar da coluna vertebral. Foi encaminhado ao Hospital das Clínicas e internado na Clínica de Moléstias Infecciosas. Ao ser internado apresentava: pulso 100 bat./min, rítmico; pressão arterial 110-90 mm Hg; temperatura 36,8°C; freqüência respiratória 24 mov./min; bom estado nutritivo e geral; edema na hemiface esquerda; gânglios submaxilar esquerdo, axilares e ingüinais, pequenos e duros; psiquismo íntegro; déficit motor e hipotonia nos membros inferiores; rigidez de nuca; trismo; sinal de Lasègue positivo a 45° nos dois membros inferiores; sinais de Kernig e Brudzinski esboçados; reflexos profundos presentes. Durante a internação naquela Clínica (28-12-57 a 14-1-58), apresentou curva térmica variável, com surtos de hipertermia, que atingiam 39,8°C. O déficit dos membros inferiores foi-se acentuando progressivamente, inicialmente com arreflexia e depois com sinais de libertação. Nenhum distúrbio da sensibilidade objetiva; dôres na coluna vertebral ao nível da região dorsal e nos membros inferiores; retenção de fezes e urina. O paciente foi medicado, inicialmente, com Iloticina. Em 7-1-1958 foi substituída a Ilocitina por cloranfenicol.
Exames subsidiários - Exame de liqüido cefalorraquidiano: punção lombar (L5-S1); pressão inicial 16 cm de água; pressão final 0 (após a retirada de 7 ml); provas manométricas de Stookey mostrando estar o canal raquidiano quase completamente bloqueado; liqüido levemente xantocrômico; 140 mg/100 ml de proteínas; 700 mg/100 ml de cloretos; 63 mg/100 ml de glicose; reação de Pandy fortemente positiva; reação de benjoim 01222.2112.2.22210.0. Hemossedimentação: 21 mm na primeira hora (normal: 6 mm). Dosagem de uréia no sangue: 53 mg/100 ml. Reserva alcalina: 48,5 vol. de CO2/100 ml. Hemograma: leucócitos 14.900 por mm3 (neutrófilos em bastonetes 7%, neutrófilos segmentados 55%, eosinófilos 12%, linfócitos 25%, monócitos 1%); hemoglobina 14,5 g/100 ml (91%); hematócrito 44%. Exame de urina: densidade 1017; reação ácida; 0,2 g/l de proteínas; ausência de substâncias redutoras; no sedimento, 20 leucócitos por campo, agrupados e degenerados.
O paciente foi transferido para a Clínica Neurológica em 14-1-1958, apresentando: início de escara glútea à direita; face assimétrica, apresentando tumoração ao nivel da mandíbula à esquerda, no ramo ascendente; no ramo horizontal da mandíbula, à esquerda da linha mediana, havia também uma saliência arredondada de mais ou menos 1 cm de diâmetro. Na coluna vertebral e membros não existiam anormalidades ósseas palpáveis, porém, a percussão da região dorsolombar da coluna vertebral provocava dor. Incontinência de fezes e urina. Exame neurológico - Paciente consciente, colaborando bem no exame. Mantinha-se no leito em decúbito dorsal, só conseguindo passar ativamente para os decúbitos laterais e para o ventral, com grande dificuldade, com o auxílio dos membros superiores, movimentando os inferiores apenas passivamente. Não se mantinha sentado, a não ser com o apôio das mãos no leito. Não se mantinha de pé, nem mesmo sustentado pelas axilas. Movimentava ativamente os membros superiores e a cabeça, com ligeiro déficit de força no membro superior direito, principalmente nos movimentos de extensão do braço e movimentos da mão; íntegra a coordenação dos membros superiores. Hipotonia difusa, discreta nos membros superiores, ligeiramente mais acentuada à direita, e acentuada nos membros inferiores. Déficit motor completo nos membros inferiores. Reflexos profundos normais nos membros superiores, vivos nos membros inferiores; sinal de Babinski bilateral. Anestesia táctil, térmica e dolorosa nos membros inferiores e tronco, até o nível de T3 aproximadamente; sensibilidade artrestésica comprometida nos artelhos.
Com êsse quadro neurológico e considerando a tumoração mandibular, a primeira hipótese aventada foi a de tumor localizado na mandíbula, com metástase na coluna vertebral, o que explicaria o bloqueio parcial do canal raquidiano e a paraplegia sensitivo-motora. O exame radiográfico da mandíbula mostrou perda de substância óssea, ao nível do segmento anterior do ramo esquerdo e acima do ângulo da mandíbula. O exame radiográfico da coluna vertebral (região dorsolombar) não forneceu sinais de metástases ou lesões vertebrais. Novo hemograma mostrou: leucocitose (15.700) com 48% de neutrófilos segmentados e 11% de bastonetes. Cistometria: bexiga do tipo paralítico-motor, tendendo ao tipo autônomo; havia resíduo purulento; a cultura de urina foi positiva para Aerobacter aerogenes.
Em 4-2-1958 foi feita punção na mandíbula, com saída de sangue escuro, sendo retirado fragmento para biopsia; o exame citológico mostrou a presença, apenas, de hemácias e histiócitos; não foram encontradas células neoplásicas, sendo diagnosticado processo inflamatório crônico em tecido conjuntivo e tecido ósseo. Foi feito, pelo quadro clínico-radiológico e pela biopsia, o diagnóstico de osteomielite da mandíbula, que foi tratada cirürgicamente pela seqüestrectomia.
Procuramos então esclarecer a causa da paraplegia sensitivo-motora. Em 7-2-1958, a perimielografia mostrou trânsito livre do lipiodol. Em 12-2-58, foi repetido o exame do liqüido cefalorraquidiano: punção lombar; pressão inicial 16 cm de água; pressão final 10, após retirada de 7 ml de liqüido; provas manométricas de Stookey normais; liquor límpido e incolor; 40 leucócitos por ml (81% de linfócitos, 19% de monócitos, regular quantidade de células histióides); 45 mg/100 ml de proteínas totais; 680 mg/100 ml de cloretos; 61 mg/100 ml de glicose; reações de Pandy e Nonne positivas; reação de benjoim 01100.02210.00000.0.
Evolução - Nos primeiros 15 dias o paciente apresentou picos febris e infecção urinária, que cedeu com o uso de Dibiotyl. Manteve-se afebril até 27-2-1958, quando a temperatura se elevou a 39,8°C. Foi ministrada, então, Cloromicetina por 20 dias, com o que se manteve afebril. A afecção mandibular regrediu completamente. O quadro neurológico teve remissão gradativa; inicialmente, houve recuperação da sensibilidade; a seguir, houve recuperação do contrôle dos esfincteres; mais tarde, desapareceram os automatismos e melhorou a capacidade motora dos membros inferiores. Em 2-5-1958, ao ter alta, o paciente já conseguia dar alguns passos sem apôio e andar com apôio de uma das mãos.
Novo exame de líqüido cefalorraquidiano em 12-5-1958: punção lombar (L3-L4); pressão inicial 13; pressão final 7 cm após retirada de 7 ml de liquor; provas raa-nométricas de Stookey normais; liquor límpido e incolor; 0 células; 20 mg/100 ml de proteinas totais; 710 mg/100 ml de cloretos; 64 mg/100 ml de glicose; reações de Pandy e Nonne negativas; reação do benjoim 00000.22000.00000.0.
COMENTÁRIOS
Pela história clínica e quadro neurológico, a primeira hipótese aventada foi a de tumor de mandíbula, com metástases na coluna vertebral, determinando compressão medular; um primeiro exame de liquor com dissociação proteíno-citológica e bloqueio parcial parecia em favor desta hipótese. Entretanto, exames radiológicos da mandíbula não evidenciaram sinais de tumor e os da coluna vertebral não mostravam sinais de metástases ou lesões vertebrais. A biopsia da lesão mandibular não mostrou células neoplásias, mas apenas sinais de infecção crônica; o quadro radiológico era bastante sugestivo de osteomielite, com o que concordavam os achados da biopsia. A esta altura o quadro neurológico já apresentava alguma melhora, o exame de liquor e a perimielografia mostravam já não haver bloqueio do canal raquidiano.
Levando em consideração êstes fatos, foi feito o diagnóstico de infecção do espaço epidural da medula: granuloma ou abscesso extradural. De acôrdo com Ford (Diseases of the Nervous System in Infancy, Childhood and Adolescence, 3ª ed., Charles Thomas, Springfield, 1952), em ambos os casos, a infecção pode alcançar o espaço epidural, seja pela circulação sangüínea ou por extensão direta de um processo local; no início, há dôres intensas nas costas, que se irradiam ao longo das raízes raquidianas. No abscesso extradural ocorre paralisia dos membros inferiores ao têrmo de 3 a 9 dias (paralisia flácida associada a abolição de reflexos, anestesia e perda de contrôle dos esfincteres); a paralisia se completa em um a dois dias. No granuloma há um período de latência de várias semanas e, a seguir, debilidade das pernas, lentamente progressiva; o curso é mais semelhante ao dos tumores medulares. Na maioria dos casos de abscesso extradural há pleocitose liquórica e obstrução do canal raquidiano. Em vários casos tem sido retirado pus ao ser tentada a punção lombar. No granuloma geralmente não há pleocitose e existe bloqueio mais ou menos completo do canal raquidiano. Em nosso caso, só foi notada hipercitose no segundo exame, feito 5 dias depois de realizada a perimielografia com Lipiodol. A fórmula citológica de tipo monolinfocitário permite atribuir esta reação celular à irritação produzida pelo contraste, pois no primeiro e terceiro exames não foi notada qualquer reação celular. No abscesso epidural há sempre febre alta, leucocitose e outros sinais de infecção e, ao lado disto, rigidez da coluna vertebral e hipersensibilidade local. Nos casos de granuloma, geralmente não há evidência de infecção atual, nem hiperestesia da coluna vertebral. O diagnóstico de certeza é feito, nos casos de abscesso extradural, pelo achado de pus no espaço epidural, ao lado da história e quadro clínicos já referidos; nos casos de granuloma epidural o diagnóstico é feito durante o ato cirúrgico. Quanto à evolução, lembramos que, nos casos de abscesso extradural, o prognóstico é reservado, pois em geral o processo determina paraplegia permanente ou êxito letal; os granulomas são benignos, havendo retorno de função.
Clínica Neurológica da Fac. Med. da Univ. de São Paulo (Prof. A. Tolosa).
Clínica Neurológica - Hospital das Clínicas da Fac. Med. da Univ. de São Paulo Caixa Postal 3461 - São Paulo, Brasil.
Infecção piógena do espaço epidural raquidiano
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Dez 2013 -
Data do Fascículo
Mar 1959