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Walter Edgard Maffei

IN MEMORIAM

Em 15 de janeiro de 1905 nascia na cidade de Salto de Itú o menino Walter Edgard. Formou-se no ano de 1930 na Faculdade de Medicina da Universidade da São Paulo, aonde a partir de então dedicou-se à carreira docente, obtendo seu título de Livre Docente e aí permanecendo até 1945. Após esse período foi o mentor dos Departamentos de Patologia das Faculdades de Medicina de Sorocaba e da Santa Casa de São Paulo. Nesta tinha fundado o Serviço de Anatomia Patológica em 2 de janeiro de 1952, auxiliado pelos jovens patologistas Drs. José Donato de Próspero e Carlos Marigo. Logo seus conhecimentos e seu entusiasmo pela Neuropatologia despertavam interesse além dos muros da Santa Casa e dos limites do próprio Brasil.

Durante o ano de 1969, quando cursava o terceiro ano da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, estava fazendo o curso de Patologia Geral e Especial. Desde aquela época já me interessava muito pelo estudo do Sistema Nervoso, mas não conseguia me decidir se gostaria de me dedicar a um enfoquei fisiológico, morfológico ou clínico. Então, durante aquele curso, tive a minha primeira aula com o Dr. Maffei. Eu já o conhecia muito de nome, todos o consideravam irreverente e ninguém conseguia ficar indiferente à sua personalidade, ou o amavam ou o não o levavam muito a sério. Aquele primeiro contacto me atingiu frontalmente. Fiquei extremamente intrigada, pois não conseguia atinar com toda aquela ironia e com seus conceitos absolutamente não convencionais. Decidi depois daquela aula que deveria me aproximar dele, pois estava profundamente impressionada com sua personalidade, e com seu carisma.

A partir do terceiro ano e nos anos que se seguiram passei a fazer parte da «corte do Maffei». Mas nunca me coloquei numa atitude estática em relação a ele e sim de questionamento que me instigava a estudar cada vez mais a fundo as Neurociências. Constituímos um grupo de alunos que, organizou uma série de temas de estudo não só neuropatológicos, pois o Dr. Maffei era antes de tudo um patologista geral. Reuníamo-nos semanalmente com o Professor em horários extra-curriculares. Naquele entusiasmo despertado pelo Mestre e potencializado pela nossa energia juvenil, imaginávamos uma série de linhas de pesquisa com o intuito de provarmos suas idéias. Mas, um dos primeiros choques, para o Dr. Maffei não interessava provar nada. Eu ainda não sabia que estava diante de um «livre pensador».

Outro aspecto de sua personalidade que me fascinava era sua didática. Quem pode esquecer do início de seu curso de Neuropatologia quando ele comparava os lobos cerebrais com os sete anões da Branca-de-Neve. As suas aulas eram uma mistura de conhecimentos científicos, de dados históricos e de fábulas.

Quando cheguei ao sexto ano resolvi fazer Patologia. Como todos os patologistas formados em nosso Departamento também tive uma formação geral, que muito me auxiliou no estudo do Sistema Nervoso. Durante a Residência Médica em patologia me apaixonei pela especialidade. O meu interesse maior continuava a ser a Neuropatologia, porém nunca mais consegui dissociar o Sistema Nervoso do organismo como um todo. Logo no início da minha Residência lembro-me que disse a ele que tencionava fazer Neuropatologia e que gostaria muito de sua orientação. Ao que ele me respondeu: «Muito bem, pois de hoje em diante você vai ser a responsável por todas as atividades relacionadas com a Neuropatologia — anato-moclínicas com os neurologistas e neurocirurgiões, estudos necroscópicos dos encéfalos e estudos histopatológicos das peças cirúrgicas». E eu então rebati: «Mas Dr. Maffei, eu não sei nada». E ele: «Minha filha, é assim que se aprende». Quero enflatizar esse seu espírito aberto, não competitivo e para mim extremamente estimulante, que me abriu todas as portas físicas e do conhecimento para a Neuropatologia. A partir desse momento posso dizer que fui uma das raríssimas pessoas que puderam desfrutar o privilégio da sua companhia diária durante cerca de 20 anos.

O Dr. Maffei nunca se posicionou como uma pessoa inatingível e inacessível, pelo contrário, ao mesmo tempo em que me contava a história da sua vida profissional desde seu início no Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, passando pela sua estada na Salpêtrière em Paris e na sua volta para o Brasil em consequência da segunda guerra mundial, também conversávamos sobre os mais ecléticos assuntos culturais — desde Agatha Christie, passando pelos clássicos da literatura até música lírica ou clássica. O Dr. Maffei dizia, quantas vezes falou nisso, que não tinha conseguido realizar um dos seus maiores sonhos — tocar violino — apesar das horas intermináveis que se dedicou ao estudo desse instrumento. Finalmente se convenceu que essa habilidade — fazer música — era, como todas as outras habilidades humanas, genética. Mas nem por isso deixou de ser um profundo conhecedor e apreciador da Música.

Voltando aos pilares básicos de, seus ensinamentos me lembro bem dos que mais enfatizava: — A herança genética: referia-se sempre à penetrância dos gens e aos caracteres fenotípicos nem sempre iguais aos genotípicos. — Alergia X Anergia: quando a imunologia ainda engatinhava o Mestre já elaborava suas teorias que mais tarde se concretizaram e seu raciocínio clínico era sempre baseado nesse binômio. — O terreno favorável para se desenvolver a doença fundamentado nos biótipos humanos: quando o Mestre chegava ao necrotério, sem saber qualquer dado clínico daquele paciente, discorria sobre sua doença e, quase sempre, acertava. — Suas reservas quanto à indústria farmacêutica: dizia que éramos propagandistas de laboratório e que não nos preocupávamos em entender como aconteciam as doenças. Aliás, o Dr. Maffei era antes de tudo um observador dos fatos e esse aspecto me intrigava muito pois me parecia um fatalista no sentido de que não poderíamos interferir muito no rumo dos acontecimentos, talvez apenas amenizá-los. — Seu desprendimento pela remuneração financeira: o Dr. Maffei era procurado por muitos pacientes que em geral eram trazidos por seus alunos. Esses pacientes tinham características comuns, eram pacientes crônicos e já tinham passado por uma série de tratamentos médicos convencionais, sem resultados. Invariavelmente sua lista de medicamentos se resumia, dos que eu consigo me lembrar, ao ácido clorídrico a 50%, ao levedo de cerveja, ao cloreto de cálcio, aos emplastros cutâneos para deslocar o órgão de choque para pele, etc... Mas, quanto à remuneração pelas consultas, nunca quis cobrar qualquer delas. Contava que a única vez que cobrou uma consulta foi roubado quando ia para casa de ônibus e esse foi um aviso de que não deveria ter cobrado.

Durante os anos em que trabalhámos juntos comecei a sentir que eu deveria encontrar o meu próprio caminho. Afinal não via sentido em me tornar mais uma cópia do Maffei. O original era muito mais interessante, A partir daí procurei adquirir novos conhecimentos, sempre tentando me atualizar cada vez mais. Mas quero salientar que sempre continuei discutindo todas as minhas dúvidas com o Mestre e posso afirmar que, em nenhum momento, ele se empenhou em me demover dessa minha avidez por novas informações, mesmo quando estas se confrontavam diretamente com as suas idéias. Lembro-me até que uma vez lhe disse: «Professor, é desleal a comparação de sua figura de professor com a nossa, os outros professores. Veja, procurei dar aos meus alunos a classificação atual de Cirrose Hepática, mas parece que falei para as paredes, pois eles só conseguem se lembrar sobre a sua exposição da patogenia da Cirrose de Laennec». Ele só sorriu para mim. E quando durante meus estudos neuropatológicos comecei a me interessar pelas Encefalites Virais, muitas vezes o procurei para discutirmos e outras tantas para lermos juntos os textos relativos a esse tema.

Por todos esses motivos considero o Professor Maffei o principal norteador da minha carreira profissional.

E, quando em 10 de setembro de 1991 ele nos deixou, aos 86 anos de idade, apesar da profunda tristeza que me causou, posso dizer que ele me legou uma grande herança que poderia sumariar em duas frases suas:

«Não existe sentido em se guardar o seu conhecimento só para si. Ele sempre precisará ser repassado a outros, senão não terá qualquer valor».

«O Médico existe porque existem Doentes». Obrigada Dr Maffei

CARMEN LÚCIA PENTEADO LANCELLOTTI

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1992
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