Acessibilidade / Reportar erro

Opiáceo intratecal na dor crônica não neoplásica: alívio e qualidade de vida

Intrathecal opioids for treatment of intractable non-malignant pain

Resumos

O uso de agentes morfínicos para o controle da dor crônica não relacionada a câncer é controverso. Este estudo aferiu o alívio da dor e as mudanças nas atividades de 11 doentes com dor crônica não associada ao câncer, tratados pela infusão intratecal de fármacos morfínicos através de bombas implantáveis. A dor era neuropática em 5 doentes e miofascial em 6. A duração média da queixa álgica foi 5,3 anos. A média da intensidade da dor antes da infusão foi 8,6. Sete doentes apresentavam dor durante 6 ou mais horas por dia. Após o tratamento, a média de intensidade da dor reduziu-se para 3,9. Somente 1 doente manteve dor com duração superior a 6 horas. O tratamento melhorou o desempenho de 36,36% dos aspectos funcionais avaliados. O tempo médio de tratamento foi 19,6 meses. A infusão crônica de agentes morfínicos por via intratecal proporcionou alívio da dor, mas não melhorou a funcionalidade com a mesma magnitude.

dor; dor crônica; opióides; morfínicos; dor neuropática; dor miofascial


The use of opioids for treatment of non-malignant pain is controversial. The evaluation of pain relief and of the quality of life of 11 severely incapacitated chronic non-cancer pain patients treated with long term intrathecal infusion of opioids trought implantable pumps was performed. The mean duration of pain complaints was 5.3 years. The mean pain intensity was 8.6. In 7 patients, pain episodes lasted at least 6 hours daily. The mean duration of the therapy was 19.6 months. After the treatment the mean pain score became 3.9. In only 1 patient, the duration of pain episodes was still longer than 6 hours. Quality of life improved in 36.36% of the cases. The long term spinal opioids through implantable pumps for non-malignant pains results in pain relief but not necessarily improves the quality of life.

pain; chronic pain; opioids; pain relief; neurophatic pain; miofascial pain


OPIÁCEO INTRATECAL NA DOR CRÔNICA NÃO NEOPLÁSICA

ALÍVIO E QUALIDADE DE VIDA

CIBELE ANDRUCIOLI DE MATTOS PIMENTA* * Enfermeira, Profa. Dra. do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), Coordenadora de Enfermagem da Liga de Dor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP); ** Neurocirurgião, Prof. Dr. do Departamento de Neurologia da FMUSP, Chefe do Ambulatório de Dor da Divisão de Clínica Neurológica do HC-FMUSP; *** Neurocirurgião, Médico do Ambulatório de Dor da Divisão de Clínica Neurológica do HC-FMUSP; **** Enfermeira, ex-integrante da Liga de Dor do HC-FMUSP; ***** Aluno da FMUSP, ex-integrante da Liga de Dor do HC-FMUSP. Aceite: 24-março-1998. ,MANOEL JACOBSEN TEIXEIRA** * Enfermeira, Profa. Dra. do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), Coordenadora de Enfermagem da Liga de Dor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP); ** Neurocirurgião, Prof. Dr. do Departamento de Neurologia da FMUSP, Chefe do Ambulatório de Dor da Divisão de Clínica Neurológica do HC-FMUSP; *** Neurocirurgião, Médico do Ambulatório de Dor da Divisão de Clínica Neurológica do HC-FMUSP; **** Enfermeira, ex-integrante da Liga de Dor do HC-FMUSP; ***** Aluno da FMUSP, ex-integrante da Liga de Dor do HC-FMUSP. Aceite: 24-março-1998. , CLÁUDIO FERNANDES CORREA*** * Enfermeira, Profa. Dra. do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), Coordenadora de Enfermagem da Liga de Dor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP); ** Neurocirurgião, Prof. Dr. do Departamento de Neurologia da FMUSP, Chefe do Ambulatório de Dor da Divisão de Clínica Neurológica do HC-FMUSP; *** Neurocirurgião, Médico do Ambulatório de Dor da Divisão de Clínica Neurológica do HC-FMUSP; **** Enfermeira, ex-integrante da Liga de Dor do HC-FMUSP; ***** Aluno da FMUSP, ex-integrante da Liga de Dor do HC-FMUSP. Aceite: 24-março-1998. , FABIANA S. MULLER **** * Enfermeira, Profa. Dra. do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), Coordenadora de Enfermagem da Liga de Dor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP); ** Neurocirurgião, Prof. Dr. do Departamento de Neurologia da FMUSP, Chefe do Ambulatório de Dor da Divisão de Clínica Neurológica do HC-FMUSP; *** Neurocirurgião, Médico do Ambulatório de Dor da Divisão de Clínica Neurológica do HC-FMUSP; **** Enfermeira, ex-integrante da Liga de Dor do HC-FMUSP; ***** Aluno da FMUSP, ex-integrante da Liga de Dor do HC-FMUSP. Aceite: 24-março-1998. , FABRÍCIA C.G. GOES**** * Enfermeira, Profa. Dra. do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), Coordenadora de Enfermagem da Liga de Dor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP); ** Neurocirurgião, Prof. Dr. do Departamento de Neurologia da FMUSP, Chefe do Ambulatório de Dor da Divisão de Clínica Neurológica do HC-FMUSP; *** Neurocirurgião, Médico do Ambulatório de Dor da Divisão de Clínica Neurológica do HC-FMUSP; **** Enfermeira, ex-integrante da Liga de Dor do HC-FMUSP; ***** Aluno da FMUSP, ex-integrante da Liga de Dor do HC-FMUSP. Aceite: 24-março-1998. , RAPHAEL M. MARCON***** * Enfermeira, Profa. Dra. do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), Coordenadora de Enfermagem da Liga de Dor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP); ** Neurocirurgião, Prof. Dr. do Departamento de Neurologia da FMUSP, Chefe do Ambulatório de Dor da Divisão de Clínica Neurológica do HC-FMUSP; *** Neurocirurgião, Médico do Ambulatório de Dor da Divisão de Clínica Neurológica do HC-FMUSP; **** Enfermeira, ex-integrante da Liga de Dor do HC-FMUSP; ***** Aluno da FMUSP, ex-integrante da Liga de Dor do HC-FMUSP. Aceite: 24-março-1998.

RESUMO - O uso de agentes morfínicos para o controle da dor crônica não relacionada a câncer é controverso. Este estudo aferiu o alívio da dor e as mudanças nas atividades de 11 doentes com dor crônica não associada ao câncer, tratados pela infusão intratecal de fármacos morfínicos através de bombas implantáveis. A dor era neuropática em 5 doentes e miofascial em 6. A duração média da queixa álgica foi 5,3 anos. A média da intensidade da dor antes da infusão foi 8,6. Sete doentes apresentavam dor durante 6 ou mais horas por dia. Após o tratamento, a média de intensidade da dor reduziu-se para 3,9. Somente 1 doente manteve dor com duração superior a 6 horas. O tratamento melhorou o desempenho de 36,36% dos aspectos funcionais avaliados. O tempo médio de tratamento foi 19,6 meses. A infusão crônica de agentes morfínicos por via intratecal proporcionou alívio da dor, mas não melhorou a funcionalidade com a mesma magnitude.

PALAVRAS-CHAVE: dor, dor crônica, opióides, morfínicos, dor neuropática, dor miofascial.

Intrathecal opioids for treatment of intractable non-malignant pain

The use of opioids for treatment of non-malignant pain is controversial. The evaluation of pain relief and of the quality of life of 11 severely incapacitated chronic non-cancer pain patients treated with long term intrathecal infusion of opioids trought implantable pumps was performed. The mean duration of pain complaints was 5.3 years. The mean pain intensity was 8.6. In 7 patients, pain episodes lasted at least 6 hours daily. The mean duration of the therapy was 19.6 months. After the treatment the mean pain score became 3.9. In only 1 patient, the duration of pain episodes was still longer than 6 hours. Quality of life improved in 36.36% of the cases. The long term spinal opioids through implantable pumps for non-malignant pains results in pain relief but not necessarily improves the quality of life.

KEY WORDS: pain, chronic pain, opioids, pain relief, neurophatic pain, miofascial pain.

A dor crônica neuropática e a dor por afecções do aparelho locomotor são frequentemente rebeldes ao tratamento. As estratégias terapêuticas devem ser adaptadas à condição nosológica, à localização das condições álgicas, à magnitude do sofrimento, ao comprometimento funcional e às perspectiva de vida dos doentes. A utilização de agentes morfínicos em doentes com dor crônica não neoplásica é ainda controversa. Alguns autores julgam que a morfina e derivados sejam ineficazes nessa condição1,2. Outros observaram que muitos doentes podem beneficiar-se com estes agentes3-11.

A morfina liga-se aos receptores morfínicos das estruturas do sistema nervoso central e periférico que modulam a atividade nociceptiva12,13. Tolerância, efeitos adversos, piora da incapacidade, dependência física e psíquica e dificuldades para à aquisição são, entre outras, as razões para o não uso frequente de tais agentes analgésicos, a não ser em casos de intenso sofrimento1,3-11,14-18. Diretrizes, para o uso de morfínicos na dor do câncer e para o controle da dor aguda, foram estabelecidas há muito tempo19,20. Entretanto, os critérios para o uso em doentes com dor crônica não neoplásica estão ainda sendo elaborados. Indaga-se se a morfina alivia a dor neuropática por tempo prolongado, se proporciona melhora funcional dos doentes, qual a magnitude e frequência da toxicidade, dos efeitos colaterais e da habituação. Busca-se identificar quais os doentes mais susceptíveis a apresentar melhores resultados4,6,16,17,21.

Estudos sobre este tema são ainda pouco frequentes em países desenvolvidos. Desconhece-se a existência de estudos sobre o tema no nosso meio. O objetivo desta apresentação é descrever os resultados quanto ao alívio da dor, às mudanças nas atividades de vida diária, aos efeitos colaterais, à variação das necessidades dos agentes e aos receios dos doentes com dor crônica não relacionada a câncer, tratados com a infusão crônica de agentes morfínicos no compartimento liqüórico espinal através de bombas implantáveis.

CASUÍSTICA E MÉTODOS

Foram avaliados e acompanhados 11 doentes com dor crônica não neoplásica (5 de origem neuropática e 6 miofascial) em tratamento no Centro de Dor do HC/FMUSP. Todos concordaram em participar do estudo. Os dados foram coletados no período compreendido entre outubro e dezembro de 1995. As idades dos doentes variaram entre 32 e 72 anos (média 50,8 anos).

Todos os doentes haviam sido submetidos previamente a tratamento com antiinflamatórios não hormonais, com agentes morfínicos (6), com antidepressivos (3), com neurolépticos (5), e com anticonvulsivantes (5). O resultado do tratamento prévio foi considerado regular ou mau em 82% dos casos. Nove doentes informaram terem sido submetidos a tratamento fisiátrico representado por alongamento (5), acupuntura (4), infiltração dos pontos-gatilhos com anestésicos locais (4), calor (3), hidroterapia (3), estimulação elétrica transcutânea, (2), corrente farádica (1), massagem (1) e ultra-som (1). Os resultados destas intervenções foram regulares ou maus em 86% dos casos. Todos haviam sofrido um ou mais procedimentos cirúrgicos prévios. Consistiram de descompressão cirúrgica da cauda equina (5), rizotomias percutâneas lombares (4), remoção de tumor raquidiano (4), exérese de disco intervertebral (3), descompressão da medula espinal (2), estimulação elétrica medular (2) e descompressão de nervo periférico (1). Haviam sido realizados, em média, 1,9 procedimentos cirúrgicos por doente e os resultados haviam sido insatisfatórios.

A duração da queixa álgica variou entre 2 e 15 anos (média 5,3 anos). Sete doentes informaram estar com dor durante 2 a 5 anos e 4, entre 6 e 15 anos. Em 10 doentes, a dor localizava-se no tronco e nos membros inferiores e, em 1, na região cervical e no membro superior direito.

Em 11 doentes foram implantadas bombas Cordis-CecorR. Em 1, a bomba Cordis-CecorR foi substituida por bomba a gás InfusaidR. O implante das bombas foi precedido de período de testes que consistiu da injeção através de catéter epidural dorsal e da infusão periódica de 3 mg de cloridrato de morfina ou 30 mg de tramadol (1 dose) de acordo com as necessidades e ocorrência de efeitos adversos, durante pelo menos 2 semanas. Quando ocorreu melhora da sintomatologia, os sistemas foram implantados. As cirurgias foram realizadas com os doentes sob anestesia geral, inalatória e intravenosa. Consistiram do implante, por punção percutânea, do compartimento subaracnóideo, de catéter de silicone com a extremidade posicionada na região do nono segmento espinal dorsal em casos de dor nos membros inferiores e no tronco e, no quarto segmento dorsal, no casos de dor acometendo os membros superiores e a região cervical. Através de dispositivo especial, o catéter raquidiano foi conectado com uma bomba de acionamento manual, implantada no tecido celular subcutâneo que cobria o gradeado torácico, na região da linha mamária, junto à reborda costal. Após o sétimo dia foram instruídos sobre o método e poderiam utilizar as bombas. A bomba a gás foi implantada no tecido celular subcutâneo do hipocôndrio direito. A bomba a gás foi abastecida com cloridrato de morfina a 0,5% e as de acionamento manual com solução 1%. A solução de tramadol a 5% foi utilizada para abastecer 1 bomba de acionamento manual.

A intensidade da dor foi quantificada pela escala numérica de 0 a 10. O trabalho, a atividade física, o autocuidado, a recreação, o sono, a atividade sexual e as alterações do humor e da capacidade de concentração foram investigadas por meio de questões fechadas, contendo 5 graduações, em que se indagou se o tratamento em questão não interferiu, melhorou, melhorou muito, piorou ou piorou muito a capacidade/habilidade para esses aspectos. Os receios e conceitos do doente quanto ao método utilizado foram investigados por meio de questões abertas. Os dados relativos à doença e tratamentos anteriores foram obtidos por entrevista, informações do médico assistente e prontuários.

RESULTADOS

Nove doentes sentiam, pré-operatoriamente, dor intensa (entre 8 e 10); 1, dor moderada (entre 4 e 7); e 1, não precisou a intensidade. A intensidade média da dor era 8,6. Após o tratamento, 4 doentes avaliaram a dor como leve (entre 1 e 3); 6 disseram que a dor tornou-se moderada; e 1 relatou que a dor era intensa. A média da intensidade da dor após o tratamento foi 3,9 (Fig 1). Sete doentes informaram que sentiam dor durante 6 ou mais horas por dia; 3, durante 1 a 5 horas diárias; e 1, durante menos de 1 hora. Após o tratamento, 1 doente referiu que a dor desapareceu; 6 informaram que a dor durava menos de 1 hora ao dia; 1, que durava entre 3 e 5 horas ao dia; e 1, 6 horas por dia. Dois doentes não precisaram a duração dos episódios dolorosos (Fig 2).



A duração do tratamento variou de 2 a 60 meses (média 19,6 meses). O medicamento utilizado por 10 doentes foi o cloridrato de morfina. Em 1, foi empregado o tramadol. A dose diária inicial de morfina variou entre 1 e 4 mg (média 2,00 mg). A dose diária de morfina no período da coleta de dados variou entre 0,5 e 3 mg (média 1,55 mg). O doente que recebeu tramadol iniciou o tratamento com 60 mg diárias e, no momento da avaliação, utilizava a mesma dose. Quatro doentes mantiveram a dose inicial; em 4, foi possível diminuí-la; e em 3, foi necessário o aumento da dose. Alguns doentes relataram períodos em que ocorreu necessidade de variação da dose decorrente da piora do quadro álgico.

Os dados da avaliação sobre capacidade para as atividades de vida diária estão apresentados na Tabela 1. Em 42,1% dos doentes, o tratamento não alterou a condição dos 8 aspectos de desempenho avaliados; em 36,4% dos casos ocorreu beneficio; e em 17,1%, piora da funcionalidade.

Os medos e os receios expressados pelos doentes quanto ao procedimento e quanto aos fármacos foram: 5 referiram ter medo de dano físico; 3, medo de dependência; 2 consideraram ser a morfina o último recurso; e 1 preocupava-se com a impotência sexual. Nove doentes referiram que a vantagem do procedimento era o alívio da dor. Dois consideraram não ter havido vantagem. A alteração da auto-imagem e da auto-estima (3), dependência do médico (2), impotência (1), obstipação (1), síndrome de abstinência (1) e outros efeitos colaterais (1) foram as desvantagens apontadas. Quatro doentes não assinalaram desvantagens. Efeitos colaterais foram experimentados por 6 doentes, representados por; náuseas/vômitos (6), obstipação (3), prurido (2), retenção urinária (1) e síndrome de abstinência (1). Quando da coleta de dados, 7 doentes disseram não estar apresentando efeitos colaterais; 3 relataram sentir náuseas; e 2, referiram obstipação. Quando indagados sobre se recomendariam ou não o tratamento para alguém, 7 doentes disseram sim e 4, não. As justificativas foram o alívio da dor (4), melhora da funcionalidade (1) e ausência de alternativas (2).

DISCUSSÃO

A dor neuropática e por afecções do aparelho locomotor é difícil de ser tratada. Vários autores observaram melhora da dor crônica por afecções neuropáticas e músculo-esqueléticas com o uso de opiáceos3,5,7,9,11. Poucos relataram haver melhora da funcionalidade9,11.

Há complicações decorrentes do uso inadequado destes agentes. A administração repetida induz à instalação de tolerância, dependência física e, talvez, psíquica12. Tolerância é a necessidade do aumento da dose para obtenção do mesmo efeito analgésico. Dependência física é o fenômeno caracterizado pelo aparecimento de síndrome de abstinência quando a droga é descontinuada de modo abrupto ou quando um antagonista é administrado. É prevenida pela diminuição gradativa da droga12,16,17. Tolerância e dependência física são advindas da ação competitiva destes agentes com os neuropeptídios naturalmente produzidos e não constituem limitação para o seu uso6,12. Dependência psicológica ou vício é a maior preocupação advinda do emprego destes fármacos. É caracterizada por uso compulsivo sem finalidade analgésica, apesar do prejuízo físico, emocional e social advindos6,12,16,17. Comportamento inadequado, caracterizado pela busca incessante e perda do controle sobre o uso da droga, a preocupação constante pela sua falta e manutenção de seu emprego, apesar dos danos decorrentes, e ausência de efeito analgésico significativo são elementos importantes para configurar a adição8. A não aceitação da proposta de outras terapias, o não alívio da dor com outros métodos, a preferência por morfínicos de ação curta ou em bolo, a procura de prescrições em muitos serviços, o uso de drogas fornecidas por traficantes, a redução da capacidade funcional, apesar da aparente analgesia, a persistência de efeitos colaterais, o uso de fármacos sem acatar prescrições, o consumo exagerado da medicação e as perdas ou extravios frequentes da prescrição16,17 são sinais sugestivos de adição. Um único sinal não indica, necessariamente, dependência psíquica, mas a constelação deles pode ser sugestiva. Considera-se também que os critérios para o diagnóstico de anormalidades relacionadas ao uso de substâncias propostas pela DSM III não são adequados para configurar adição nos doentes com dor crônica, pois 5 dos 9 deles referem-se à dependência física e tolerância, condições frequentes em doentes que utilizam morfínicos por tempo prolongado16,17. Apenas os 4 critérios que se referem à funcionalidade poderiam indicar adição. O termo pseudoadição refere-se a comportamentos semelhantes aos apresentados por aqueles com dependência psíquica, mas decorrentes da busca da analgesia quando a dor é intensa e não controlada efetivamente. Os doentes solicitam os fármacos para melhora dos sintomas e da capacidade funcional e os utilizam de acordo com as prescrições, sem perda do controle16,17. Não se conhece a real ocorrência de dependência psicológica nos doentes com dor que utilizam morfínicos, possivelmente, devido à falta de critérios que definam a dependência psíquica4-6,12,15-17. Neste estudo, não foram observados doentes com comportamentos correspondentes aos acima descritos. Dois mecanismos são os mais provavelmente relacionados à dependência: o aumento da atividade dopaminérgica no córtex frontal, tegmental ventral e do nucleo accumbens e as anormalidades das atividade de enzimas envolvidas no metabolismo da encefalinas. O potencial para adição não resulta somente das propriedades dos fármacos, mas também da interação entre estas e aspectos físicos, psíquicos e sociais de cada indivíduo4,6,12.

De acordo com Schofferman 6, os morfínicos devem ser indicados para doentes com doença estruturada, em que a queixa de dor e incapacidade sejam coerentes com a história e quadro clínico, os aspectos emocionais e sociais sejam compatíveis com o quadro álgico, não haja antecedentes de uso de álcool ou drogas. Segundo este autor, estes doentes são os que mais se beneficiam com o tratamento. Infelizmente, constituem minoria entre aqueles com dor crônica não neoplásica.

Todos os doentes deste estudo apresentavam dor crônica de origem neuropática e miofascial com duração prolongada e haviam se submetido a diversas terapias analgésicas sem resultado satisfatório. A opção pelo tratamento não foi, portanto, a estratégia inicial, critério já definido por outros5,7,11. Alguns autores4,9,21 sugerem que a falência dos métodos analgésicos tradicionais, a avaliação física e emocional, preferencialmente por 2 especialistas, a ausência de história anterior de uso abusivo de drogas e álcool, a possibilidade de consultas com especialistas em adição a drogas e de consultas aos serviços de entorpecentes são necessárias para a inclusão de doentes na fase de testes destinados à seleção de casos de dor crônica para terapia com morfínicos. Recomendam também que as decisões sejam determinadas por equipes multiprofissionais, que haja consentimento por escrito dos doentes, que seja enfatizada a avaliação da melhora da atividade física e social proporcionadas pelo alívio da dor, que se empreguem, na fase de testes por via oral, agonistas µ de longa duração, segundo horários pré-determinados, que sejam realizadas avaliações frequentes (mensais) para rever a dose, aferir a eficácia analgésica, os efeitos colaterais e a melhora funcional, que os morfínicos sejam prescritos por 1 único profissional, que a terapia física e social seja mantida e que sejam realizados contratos com os doentes explicitando as possibilidades de interrupção do tratamento e notificação ao serviço de controle de entorpecentes em situações em que o uso é recreacional, quando há perdas dos agentes, escaladas injustificadas de doses e solicitação de morfínicos em outros serviços. Recomendam ainda a possibilidade de haver supervisores e de internações para avaliações em casos de exacerbação inexplicável da dor ou do aumento injustificável da dose e que seja realizada a reavaliação continuada da situação, considerando-se outros métodos para o controle da dor.

A média da intensidade da dor referida pelos doentes após o tratamento (3,9) foi significativamente inferior à média da intensidade prévia (8,6). A duração diária dos episódios dolorosos apresentou mudança substancial. Antes da terapia, 7 doentes informaram sentir dor durante 6 ou mais horas por dia e após o tratamento, apenas 1. Antes da terapia, apenas 1 doente apresentava episódios dolorosos diários com menos de 1 hora de duração e após o tratamento isto foi relatado por 6 doentes.

As doses utilizadas foram baixas e não se observou progressão acentuada. Os critérios para determinar-se as doses limites foram a existência de analgesia ou a ocorrência de efeitos colaterais significativos sem analgesia adequada. Portenoy e Foley5 avaliaram 38 doentes com dor crônica não neoplásica tratados com agentes morfínicos por via oral, durante 6 meses. A maioria (24) referiu melhora da dor. A melhora da capacidade laborativa e social foi pequena. Em 2 doentes, com história de uso prévio de drogas, o manejo dos opiáceos foi problemático. Shulzeck et al.7 avaliaram a ação analgésica da morfina por via oral em 60 doentes com dor neuropática e músculo-esquelética. Não houve melhora em 23, em 14 houve interrupção da terapia, devido aos efeitos colaterais. Dos 23 restantes, 10 apresentaram alívio duradouro e efeitos colaterais toleráveis. Em 43% dos doentes, houve necessidade do aumento da dose. Zens et al.11 avaliaram 100 doentes com dor neuropática ou lombalgia, 14 dias e 1 ano após o início da terapia com morfínicos. Em 21 não houve alívio da dor, 28 informaram melhora parcial e 51 melhora significativa. Os efeitos colaterais, após 1 ano, foram obstipação (45%), náuseas (25%), tonturas (30%), fadiga (5%) e outras adversidades (15%). Moulin et al.3 observaram que os doentes com dor do aparelho locomotor que receberam morfina apresentaram dor menos intensa que os do grupo placebo e efeitos colaterais mais frequentes.

Seis doentes avaliados durante este estudo relataram efeitos colaterais, representados por náuseas/vômitos (3), obstipação (2), prurido (1), retenção urinária (1) e síndrome de abstinência (1), na fase inicial da terapia. Náuseas (3) e obstipação (2) foram relatadas por 4 doentes, a longo prazo. Os efeitos colaterais, portanto, diminuíram com o tempo. A tolerância aos efeitos dos agentes morfínicos desenvolve-se segundo velocidades diferentes. A tolerância aos efeitos colaterais geralmente instala-se mais rapidamente que os efeitos analgésicos12. Os efeitos colaterais relatados pelos doentes deste estudo foram de menor magnitude que os observados em outros trabalhos7,11. Talvez isto se deva ao fato de que menores doses tenham sido necessárias para a analgesia por infusão intratecal. A doente que referiu síndrome de abstinência teve o sistema de infusão por acionamento manual trocado por um sistema a gás, de infusão contínua, manobra que possibilitou o desaparecimento do fenômeno.

Há autores que admitem que o uso de opiáceos compromete a funcionalidade e a reabilitação pois, entre outras razões, retira do indivíduo e deposita no remédio o controle da situação1,2,6,8,14,18,21. Realçam que a melhora do sintoma, sem melhora da função, não é argumento suficiente para a continuidade da terapia. No presente estudo, a auto-avaliação sobre o desempenho para 6 atividades de vida diária (trabalho, atividade física, autocuidado, lazer, atividade sexual e sono), humor e capacidade de concentração, antes e após tratamento, revelou que não houve alteração de 37 (42%), das 88 observações. Em 32 (36,3%) das observações, ocorreu melhora ou muita melhora da habilidade ou da condição avaliada e, em 15 (17%), ocorreu piora ou muita piora dos aspectos avaliados. O autocuidado, a capacidade de concentração e o sono foram os itens que mais apresentaram melhora. Observou-se que, apesar da melhora do quadro álgico ter sido significativa e os efeitos colaterais não terem sido muito importantes, a melhora da funcionalidade não ocorreu na mesma proporção. O alívio da dor parece favorecer a melhora da qualidade de vida em parcela variável dos doentes mas, nem sempre isto ocorre. Componentes biológicos, emocionais e sociais podem estar tão comprometidos, devido à prolongada duração da condição álgica ou a outras causas que, apenas o alívio da dor, não é suficiente para normalizar.

A avaliação da eficácia pode ser influenciada pelo interesse do observador3. Parcela significativa dos médicos e dos doentes considera que a redução da dor é o melhor indicativo da eficácia do tratamento. Outros, considerando o fato de o alívio da dor não ser possível em muitas síndromes álgicas, julgam que a melhora da funcionalidade deveria ser o critério de eficácia. Para a maioria dos doentes deste estudo (9), a eficácia da terapêutica foi avaliada pela redução da dor. Sete doentes recomendariam este tratamento para outras pessoas devido ao alívio da dor (4), melhora da funcionalidade (1) ou ausência de alternativas (2). Ausência de alívio da dor (2), comprometimento da auto-imagem e da auto-estima (2) e efeitos colaterais (1) foram as razões da não recomendação do tratamento. A dependência dos profissionais de saúde e a necessidade de visitas periódicas para suprir as bombas com os fármacos foram apontados por 3 doentes, como desvantagens do método. As preocupações que os doentes mencionaram ter quanto ao uso de morfina foram: medo de desenvolvimento de dependência psicológica (3) e impotência sexual. Dois doentes referiram ser este fármaco a última opção terapêutica. Seis doentes não referiram ter qualquer preocupação.

Conclui-se que o uso de morfínicos por via intratecal foi eficaz para o controle da intensidade da dor e da duração dos episódios dolorosos em doentes com dor neuropática e por afecções do aparelho locomotor. Os efeitos colaterais não foram expressivos. No entanto, melhora da funcionalidade não ocorreu com a mesma magnitude. A eficácia e a segurança do emprego de morfínicos para o controle da dor crônica não neoplásica são questões ainda não completamente respondidas.

Enf. Cibele A. de Mattos Pimenta - Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica, Escola Enfermagem USP Av. Enéas de Carvalho Aguiar 419 - 05403-000 São Paulo SP - Brasil.

  • 1. Finlayson RE, Maruta T, Morse RM, Martin MA. Substance dependence and chronic pain: experience with treatment and follow-up results. Pain 1986;26:175-180.
  • 2. Gildenberg PL, DeVaul RA. O paciente de dor crônica: avaliaçăo e tratamento. Rio de Janeiro: Colina, 1987.
  • 3. Moulin DE, Iezzi A, Amireh R, Sharpe WKJ, Boyd D, Merskey H. Randomised trial of oral morphine for chronic non-cancer pain. Lancet 1996;347:143-147.
  • 4. Portenoy RK. Chronic opioid therapy in nonmalignant pain. J Pain Symptom Manag 1990;5:46-62.
  • 5. Portenoy RK, Foley KM. Chronic use of opioid analgesics in non-malignant pain: report of 38 cases. Pain 1986;25:171-186.
  • 6. Schofferman J. Long-term use of opioid analgesics for the treatment od chronic pain nonmalignant origin. J Pain Symptom Manag 1993;8:279-288.
  • 7. Schulzeck S, Gleim M, Maier C. Factors contributing to the results of long-term treatment with oral morphine tablets in patients with chronic non-malignant pain. Anaesthesist 1993;42:545-556.
  • 8. Sees KL, Clark HW. Opioid use in the treatment of chronic pain: assessment of addiction. J Pain Symptom Manag 1993;8:257-264.
  • 9. Tennant FS; Uelmen JD. Narcotic maintenance for chronic pain: medical and legal guidelines. Posgrad Med 1983;73:81-94.
  • 10. Turk DC, Brody MC, Okifuji EA. Physicians attitudes and practice regarding the long-term prescribing of opioids for non-cancer pain. Pain 1994;59:201-208,
  • 11. Zens M, Strumpf M, Tryba M. Long-term oral opioid therapy in patients with chronic nonmalignant pain. J Pain Symptom Manag 1992;7:69-77.
  • 12. Foley KM. Opioids. Neurol Clinics 1993;11:503-522.
  • 13. Stein C. Morphine: a "local analgesic". Pain Clin Updates 1995;3(1):1-4.
  • 14. Hanks GW, Justins DM. Cancer pain: management. Lancet 1992;339:1031-1035.
  • 15. Maruta T, Swanson DW, Finlayson RE. Drug abuse and dependency in patients with chronic pain. Mayo Clin Proc 1979;54:241-244.
  • 16. Savage SR. Addiction in the treatment of pain: significance, recognition and management. J Pain Symptom Manag 1993;8:265-278.
  • 17. Savage SR. Long-term opioid therapy: assesssment of consequences and risks. J Pain Symptom Manag 1996;11:274-286.
  • 18. Taylor CB, Zlutnick SI, Corley MJ, Flora J. The effects od detoxication, relaxation and brief supportive therapy on chronic pain. Pain 1980;8:319-329.
  • 19. Agency For Health Care Policy And Research. Acute pain management: operative or medical procedures and trauma. Rockville: U.S. Department of Health and Human Services, 1992.
  • 20. Jacox A, Carr DB, Payne R, et al. Management of cancer pain. Rockville: U.S. Departament of Health and Human Services, 1994.
  • 21. Schug SA, Large RG. Opioids for chronic noncancer pain. Pain Clin Updates 1995;3(3):1-4.
  • *
    Enfermeira, Profa. Dra. do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), Coordenadora de Enfermagem da Liga de Dor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP);
    **
    Neurocirurgião, Prof. Dr. do Departamento de Neurologia da FMUSP, Chefe do Ambulatório de Dor da Divisão de Clínica Neurológica do HC-FMUSP;
    ***
    Neurocirurgião, Médico do Ambulatório de Dor da Divisão de Clínica Neurológica do HC-FMUSP;

    ****

    Enfermeira, ex-integrante da Liga de Dor do HC-FMUSP;

    *****

    Aluno da FMUSP, ex-integrante da Liga de Dor do HC-FMUSP. Aceite: 24-março-1998.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Dez 2000
    • Data do Fascículo
      Set 1998

    Histórico

    • Aceito
      24 Mar 1998
    Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista.arquivos@abneuro.org