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Neurocisticercose: contribuição da necrópsia na consolidação da notificação compulsória em Ribeirão Preto-SP, Brazil

Neurocysticercosis: contribution of autopsies to consolidation of the compulsory notification in Ribeirão Preto-SP, Brazil

Resumos

O presente estudo tem como objetivo a apresentação dos achados de cisticercose nas necrópsias realizadas no Serviço de Patologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP, no período de 1992 a 1997. Das 2522 necrópsias, a neurocisticercose foi detectada em 38 (1,5%) dos casos. Destes, 22 (57,9%) foram diagnosticados apenas na necrópsia enquanto 16 (42,1%) apresentavam exames complementares consistentes com cisticercose. A análise dos prontuários médicos evidenciou que 21 (55,2%) eram neurologicamente assintomáticos e a frequência das diversas manifestações clínicas estava de acordo com os dados da literatura. A elevada frequência de indivíduos assintomáticos detectados apenas através da necrópsia demonstra a importância desta como fonte complementar de dados para a consolidação da notificação compulsória da cisticercose. Embasado nos dados do presente estudo, o atual coeficiente de prevalência da cisticercose no município de Ribeirão Preto é 67 casos/100000 habitantes.

cisticercose; necrópsia; Taenia solium; epidemiologia; tomografia; líquido cefalorraquidiano


Neurocysticercosis is a serious public health problem in several countries of Asia, Africa and Latin America. The objective of the present study is to present autopsy findings of neurocysticercosis in the Pathology Division of the University Hospital, Medical School of Ribeirão Preto, University of São Paulo, from 1992 to 1997. Neurocysticercosis was detected in 38 (1.5%) of 2522 autopsies. In twenty two (57.9%) of these, the diagnosis was made post-mortem, while 16 (42.1%) had a previous diagnosis of cysticercosis based on laboratory and imaging studies. Reviewing the medical records, we found that 21 patients (55.2%) were neurologically asymptomatic, while the various clinical manifestations in the others were in accordance with the literature. The high frequency of asymptomatic individuals detected only post-mortem indicates the importance of autopsies as an additional source of data to consolidate the compulsory notification of cysticercosis. Considering the results of this study, the new coefficient of prevalence of cysticercosis in Ribeirão Preto is 67 cases/100000 inhabitants.

cysticercosis; autopsy; Taenia solium; epidemiology; computed tomography; cerebrospinal fluid


NEUROCISTICERCOSE

CONTRIBUIÇÃO DA NECRÓPSIA NA CONSOLIDAÇÃO DA NOTIFICAÇÃO COMPULSÓRIA EM RIBEIRÃO PRETO-SP

LEILA CHIMELLI* * Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Professora Associada, Departamento de Patologia; ** Pós-graduanda, *** Professor de Pós-graduação, Departamento de Neurologia. Aceite: 24-junho-1998. , ADRIANA F. LOVALHO** * Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Professora Associada, Departamento de Patologia; ** Pós-graduanda, *** Professor de Pós-graduação, Departamento de Neurologia. Aceite: 24-junho-1998. , OSVALDO M. TAKAYANAGUI*** * Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Professora Associada, Departamento de Patologia; ** Pós-graduanda, *** Professor de Pós-graduação, Departamento de Neurologia. Aceite: 24-junho-1998.

RESUMO - O presente estudo tem como objetivo a apresentação dos achados de cisticercose nas necrópsias realizadas no Serviço de Patologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP, no período de 1992 a 1997. Das 2522 necrópsias, a neurocisticercose foi detectada em 38 (1,5%) dos casos. Destes, 22 (57,9%) foram diagnosticados apenas na necrópsia enquanto 16 (42,1%) apresentavam exames complementares consistentes com cisticercose. A análise dos prontuários médicos evidenciou que 21 (55,2%) eram neurologicamente assintomáticos e a frequência das diversas manifestações clínicas estava de acordo com os dados da literatura. A elevada frequência de indivíduos assintomáticos detectados apenas através da necrópsia demonstra a importância desta como fonte complementar de dados para a consolidação da notificação compulsória da cisticercose. Embasado nos dados do presente estudo, o atual coeficiente de prevalência da cisticercose no município de Ribeirão Preto é 67 casos/100000 habitantes.

PALAVRAS-CHAVE: cisticercose, necrópsia, Taenia solium, epidemiologia, tomografia, líquido cefalorraquidiano.

Neurocysticercosis: contribution of autopsies to consolidation of the compulsory notification in Ribeirão Preto-SP, Brazil

ABSTRACT - Neurocysticercosis is a serious public health problem in several countries of Asia, Africa and Latin America. The objective of the present study is to present autopsy findings of neurocysticercosis in the Pathology Division of the University Hospital, Medical School of Ribeirão Preto, University of São Paulo, from 1992 to 1997. Neurocysticercosis was detected in 38 (1.5%) of 2522 autopsies. In twenty two (57.9%) of these, the diagnosis was made post-mortem, while 16 (42.1%) had a previous diagnosis of cysticercosis based on laboratory and imaging studies. Reviewing the medical records, we found that 21 patients (55.2%) were neurologically asymptomatic, while the various clinical manifestations in the others were in accordance with the literature. The high frequency of asymptomatic individuals detected only post-mortem indicates the importance of autopsies as an additional source of data to consolidate the compulsory notification of cysticercosis. Considering the results of this study, the new coefficient of prevalence of cysticercosis in Ribeirão Preto is 67 cases/100000 inhabitants.

KEY WORDS: cysticercosis, autopsy, Taenia solium, epidemiology, computed tomography, cerebrospinal fluid.

A cisticercose humana, infestação pela forma larvária da Taenia solium, é grave problema de saúde pública em várias regiões da Ásia, África e América Latina, particularmente nos países em desenvolvimento, onde a precariedade das condições sanitárias e o baixo nível sócio-econômico-cultural aliam-se na persistência de sua disseminação.

O complexo teníase-cisticercose acomete 50000000 indivíduos no mundo e 50000 deles falecem anualmente1. A América Latina sofre intensamente seus malefícios2. Schenone et al.3 relataram a existência de cisticercose em 18 países latino-americanos, com uma estimativa de 350000 vítimas. No Brasil, a cisticercose é encontrada com elevada frequência nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Goiás. A prevalência populacional, contudo, não é conhecida pela ausência de notificação da doença4.

A cisticercose é endêmica na região de Ribeirão Preto-SP, sendo responsável por 7,5% das internações na enfermaria de Neurologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto ¾ USP5,6. Em 1992, o município de Ribeirão Preto implantou, em caráter pioneiro no Brasil, a notificação compulsória da cisticercose, revelando um coeficiente de prevalência de 54 casos/100000 habitantes7.

As manifestações clínicas da neurocisticercose estão na dependência de vários fatores: tipo morfológico (formas metacestóides simples ou racemosa), número, localização e fase de desenvolvimento do parasita, além das reações imunológicas locais e à distância do hospedeiro. Da conjunção destes vários fatores resulta um quadro pleomórfico, com multiplicidade de sinais e sintomas neurológicos2,5,8-11, inexistindo um quadro patognomônico.

A gravidade da neurocisticercose pode ser ilustrada pelo elevado coeficiente de letalidade constatado em diferentes serviços, variando de 16,4% a 25,9%2,5,6.

Historicamente, até o final da primeira década deste século, o diagnóstico da neurocisticercose era restrito a simples achados necroscópicos e os conhecimentos a respeito da moléstia concentraram-se nos seus aspectos fisiopatológicos. A introdução dos exames complementares de neuroimagem - radiografia simples, tomografia computadorizada (TC) e ressonância nuclear magnética (RNM) - e de testes imunológicos do líquido cefalorraquiano (LCR) tornou viável o diagnóstico em vida10,12, permitindo o desenvolvimento, mais recentemente, da terapêutica farmacológica anticisticercótica13,14. Apesar do desenvolvimento dos métodos de diagnóstico biológico, a necrópsia continua desempenhando papel fundamental no esclarecimento etiológico de casos duvidosos, na elucidação da causa mortis e na investigação epidemiológica da cisticercose. Dentre os critérios de diagnóstico preconizados pela Organização Panamericana da Saúde (OPAS), a detecção na necrópsia ou na biópsia é um dos únicos critérios considerados, isoladamente, como definitivos para a certeza diagnóstica da cisticercose12.

O presente estudo tem por objetivo a apresentação dos achados de neurocisticercose nas necrópsias realizadas no Serviço de Patologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP, avaliando sua contribuição na notificação compulsória da cisticercose.

MATERIAL E MÉTODOS

No período de janeiro de 1992 a julho de 1997, foram realizadas 2522 necrópsias de indivíduos acima de 15 anos de idade e internados por pelo menos 12 horas nos dois hospitais universitários (Hospital das Clínicas e Unidade de Emergência) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP. A inclusão do prazo mínimo de 12 horas como critério de seleção teve por finalidade a obtenção de detalhes clínicos e laboratoriais do agravo que motivou a internação.

O documento de consentimento pós-informação para eventual necrópsia foi assinado pelos próprios pacientes ou por seus familiares por ocasião da internação hospitalar.

A necrópsia foi realizada nas primeiras 12 horas após o óbito e o encéfalo foi, após exame externo, fixado em formol a 10% por período mínimo de 10 dias para então ser seccionado. Áreas selecionadas foram amostradas e processadas para inclusão em parafina. Cortes de 5 µm foram rotineiramente corados pela hematoxilina-eosina.

Os prontuários médicos foram analisados com o intuito de relacionar os achados patológicos com as manifestações clínicas e os exames complementares.

Todos os casos foram notificados à Secretaria da Saúde de Ribeirão Preto, com o preenchimento da ficha de investigação epidemiológica da cisticercose, atendendo ao Decreto 397 (Diário Oficial do Município, 20 de outubro de 1992).

RESULTADOS

Dos 2522 encéfalos examinados, 38 (1,5%) apresentavam cisticercose do sistema nervoso central. A análise dos prontuários médicos evidenciou que a doença havia sido diagnosticada em vida em 16 (42,1%) pacientes, servindo a necrópsia como recurso confirmatório da etiologia. Nos demais 22 casos (57,9%), a detecção de neurocisticercose ocorreu apenas durante a necrópsia e, destes, 21 eram neurologicamente assintomáticos. A única exceção foi o relato de crises epilépticas numa paciente cuja reação de ELISA no LCR havia sido negativa e a necrópsia revelou presença de uma calcificação parenquimatosa.

Os 16 pacientes com diagnóstico prévio de neurocisticercose apresentavam anormalidades compatíveis nos exames de neuroimagem (TC, RNM) e positividade da reação de ELISA no LCR; um deles havia sido submetido a extirpação cirúrgica de cisticerco racemoso, com confirmação anátomo-patológica.

A neurocisticercose foi a causa direta do óbito de 13 pacientes, por descompensação da síndrome de hipertensão intracraniana em 9 e estado de mal epiléptico em 2. Foi responsável indireto em outros 2 pacientes, por meningite bacteriana como complicação de derivação ventrículo-peritoneal.

A Tabela 1 apresenta as características clínicas dos pacientes com neurocisticercose.

Um dos pacientes, masculino, de 25 anos, apresentava concomitância de cisticercose e infecção pelo HIV. Era seguido no nosso serviço por apresentar crises epilépticas; a tomografia evidenciou lesões hipodensas e positividade da reação de ELISA para cisticercose no LCR. A causa do óbito foi pneumonia bacteriana, sem evidências clínicas ou laboratoriais de imunodeficiência. O exame necroscópico revelou a presença de vários cisticercos vesiculares intraparenquimatosos e no interior dos ventrículos cerebrais.

A Tabela 2 apresenta os achados do exame necroscópico dos 38 pacientes com neurocisticercose, num total de 69 cisticercos.

A necrópsia revelou 11 casos de lesões isquêmicas cerebrais, recentes ou antigas, mas nenhum deles apresentava sinais sugestivos de endarterite no exame microscópico.

Um paciente apresentava adenoma hipofisário e outros 5 neoplasias sistêmicas, um deles com metástase de carcinoma broncogênico na dura-máter.

Não foi constatada a presença de cisticercos em outros órgãos ou sistemas.

No período de 20 de outubro de 1992 a 31 de dezembro de 1997, foram notificados 326 casos de neurocisticercose em Ribeirão Preto, incluindo os 16 pacientes com diagnóstico em vida deste estudo. Como a população estimada era, em 31 de dezembro de 1997, de 462.579 pessoas, o coeficiente de prevalência obtido foi 67 casos/100000 habitantes.

DISCUSSÃO

A neurocisticercose foi constatada em 1,5% das 2522 necrópsias realizadas no período de 1992 a 1997, sendo a causa mortis em 0,51% dos casos, predominantemente por descompensação da síndrome de hipertensão intracraniana. A frequência de cisticercose nos estudos necroscópicos brasileiros varia de 0,12% a 6,17%9,15-21.

Os cisticercos podem ser classificados morfologicamente nas formas metacestóides simples, racemosa e numa intermediária22, nos seguintes estágios evolutivos: vesicular, coloidal, nodular e calcificação23. No nosso material, observamos simultaneidade das formas simples e racemosa em 2 casos mas nenhum sob a forma intermediária. Topograficamente, os cisticercos estavam localizados predominantemente no interior do parênquima encefálico. Dois destes casos, contudo, apresentavam a insólita localização no tronco encefálico, sendo um deles assintomático do ponto de vista neurológico.

A frequência de indivíduos assintomáticos no nosso material foi 55,2%. Em estudos similares, a frequência do achado fortuito de cisticercose na necrópsia apresenta uma ampla variação, de 43,3% a 91,6%15,19,22,24. Em contraposição, nos estudos clínicos, a forma assintomática é raramente observada, variando de 1,2% a 4,5%6,9,25. Os fatores que determinam o surgimento ou não de manifestações clínicas não estão ainda plenamente esclarecidos. Além dos fatores intrínsecos ao cisticerco (tipo morfológico, número, localização e fase evolutiva), a complexa resposta imunológica do hospedeiro26 e a susceptibilidade ligada ao HLA27 têm importante participação na evolução clínica. Adicionalmente, Del Brutto et al.28 detectaram maior gravidade da resposta imunológica na mulher que no homem; a preponderância do sexo masculino em nosso material (68,4%) pode ter contribuído para a maior frequência de indivíduos assintomáticos.

Entre as manifestações clínicas, o predomínio de crises epilépticas, síndrome de hipertensão intracraniana e meningite, observado no nosso material, é consistente com os dados da literatura2,5,6,8,9,11,13,29.

A descompensação da hipertensão intracraniana foi a principal causa direta do óbito dos nossos pacientes, principalmente por hidrocefalia obstrutiva. A síndrome de hipertensão intracraniana é a manifestação mais grave da cisticercose5,6, justificando a designação "forma maligna", assinalada por Lima8. As demais causas de óbito foram meningite bacteriana purulenta, como complicação de intervenções neurocirúrgicas, e estado de mal epiléptico.

A forma apoplética ou endarterítica é manifestação infrequente da neurocisticercose30. Tem como base fisiopatológica a peri e a endarterite de vasos de pequeno e médio calibres, levando a quadro de hemiplegia11. Na era da terapêutica parasiticida com praziquantel ou albendazol, a reação inflamatória por estes induzida pela morte dos cisticercos14,26,31 pode ser o fator desencadeante de angeíte e consequente obstrução vascular13,32. Apesar de 11 (28,9%) dos nossos pacientes apresentarem lesões isquêmicas cerebrais, não pudemos caracterizar a associação etiopatogênica com a cisticercose pois o exame histológico não evidenciou angeíte e/ou proliferação endotelial dos vasos cerebrais sugestivas de endarterite cisticercótica. A maioria destes pacientes apresentava calcificações intraparenquimatosas e era constituída de indivíduos idosos com outros fatores de risco para acidente vascular cerebral isquêmico. Nos antecedentes, nenhum deles havia recebido drogas parasiticidas. Curiosamente, um dos pacientes apresentava oclusão de vasos meníngeos por células neoplásicas de carcinoma broncogênico.

A co-morbidade neurocisticercose e síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS) é achado excepcional33, resultado mais provavelmente de mera coincidência, sem qualquer vínculo predisponente entre si. Na nossa casuística, constatamos um paciente apresentando infestação maciça da cisticercose e soropositividade para HIV, sem evidências clínicas ou laboratoriais de imunodeficiência.

Segundo a OPAS34, as informações disponíveis sobre a situação epidemiológica do complexo teníase/cisticercose na América Latina são incompletas, entre outras razões pela inexistência da notificação compulsória da cisticercose e pela heterogeneidade dos métodos de investigação. A falta de uniformidade dos estudos epidemiológicos inviabiliza a análise comparativa entre diferentes localidades, representando sério obstáculo para o planejamento de estratégias de prevenção.

A prevalência calculada através de testes imunológicos no soro, como o de ELISA35,36, tem sua validade questionada pelo baixo nível de sensibilidade e de especificidade do teste36, sendo melhor indicador de teníase35 que de neurocisticercose37. Tem sido sugerido, como melhor alternativa, o EITB (enzymelinked immunotransfer blot) no soro38 ou na saliva39. Entretanto, o EITB apresenta baixa sensibilidade na detecção de pacientes com cisticercose única, especialmente quando calcificada40 e seus resultados são frequentemente discrepantes com os achados da tomografia computadorizada41.

Embora a TC seja considerada método de escolha no diagnóstico da neurocisticercose34, o potencial risco à saúde humana inviabiliza sua utilização no estudo populacional envolvendo indivíduos assintomáticos. Por outro lado, o elevado custo torna proibitiva a opção pela RNM, particularmente nos países em desenvolvimento onde a neurocisticercose é endêmica. A investigação da frequência de neurocisticercose nos serviços de neuroimagem é útil para a detecção de novas áreas endêmicas mas, pelo viés de seleção, não permite a correta avaliação da prevalência populacional.

Na inexistência da notificação compulsória, a OPAS 34 recomenda, como método alternativo, a investigação de cisticercose nas necrópsias de hospitais gerais. No entanto, a maioria dos estudos necroscópicos é procedente de hospitais universitários15,16,22,24, acarretando a ocorrência de um vício de seleção. Os pacientes autopsiados em hospitais universitários são altamente selecionados pois, sendo estes direcionados ao atendimento terciário, há tendência de concentrar os casos mais graves e as necrópsias serem voltadas frequentemente ao esclarecimento de casos duvidosos. Tavares Jr20 ressalta ainda a influência da participação de um patologista geral ou de um neuropatologista, de sua experiência, do número de cortes no encéfalo e do preparo prévio da peça anatômica na detecção de neurocisticercose. Por conseguinte, os dados necroscópicos não devem também ser utilizados diretamente como sinônimo de prevalência populacional.

Segundo a OPAS34, a notificação compulsória da cisticercose é o melhor recurso para a investigação epidemiológica e análise comparativa da prevalência nas diferentes localidades. Permite, adicionalmente, o mapeamento do local de residência dos pacientes para melhor direcionamento das medidas de prevenção. Embora compulsória, a notificação da cisticercose está aquém da realidade. Segundo Fischmann42, a subnotificação é motivada pela falta de credibilidade, pois não se espera que providências sejam tomadas. Em Ribeirão Preto, no programa Ações de Controle da Cisticercose, o Serviço de Vigilância Epidemiológica vem realizando visitas domiciliares dos casos notificados para investigação de teníase através do exame coproparasitológico dos familiares e fornecimento gratuito de medicamentos antiparasitários. Outro benefício deste programa foi a implantação da fiscalização das hortas produtoras de alface no município, com a criação do selo de qualidade de verduras, inédito no Brasil, pelo Serviço de Vigilância Sanitária da Secretaria da Saúde que, com o intuito de coibir o abate clandestino, tem também fiscalizado de forma rigorosa o comércio de carne.

O caráter pioneiro da notificação compulsória da cisticercose em Ribeirão Preto envolveu desafios para sua consolidação e exigiu permanente integração dos vários órgãos públicos envolvidos para a tomada de decisões visando seu aprimoramento. Uma das lacunas da prevalência calculada previamente7 foi a ausência de dados oriundos dos serviços de necrópsia que, embora não representem a verdadeira prevalência populacional, são fundamentais como fonte complementar de notificação. A elevada frequência de indivíduos assintomáticos detectados apenas pela necrópsia demonstra a importância desta como fonte de informações epidemiológicas, permitindo, no nosso material, a notificação adicional de 22 casos. A notificação compulsória restrita aos pacientes sintomáticos, diagnosticados clinicamente através de exames complementares, é certamente incompleta, fadada a fornecer valores epidemiológicos subestimados.

A necrópsia é também fonte imprescindível de informações sobre a evolução clínica dos pacientes previamente notificados, contribuindo decisivamente na precisão e atualização do coeficiente de prevalência. Como a prevalência representa a proporção da população que apresenta a doença, os casos de óbito devem ser excluídos de seu cálculo. Assim, embasado nos dados do presente estudo, o atual coeficiente de prevalência da cisticercose em Ribeirão Preto é 67 casos/100000 habitantes. O incremento do coeficiente de 54 para 67 casos/100000 habitantes num intervalo de 2 anos7 pode representar um agravamento da situação epidemiológica ou, mais provavelmente, maior adesão dos profissionais da saúde na consolidação da notificação compulsória da cisticercose no nosso meio.

Os dados obtidos nos serviços de neuroimagem, de LCR e de necrópsia apresentam, isoladamente, graves limitações para o estudo da prevalência populacional da cisticercose. Entretanto, a utilização de cada um deles como fonte complementar de dados para a notificação compulsória pode propiciar maior grau de precisão epidemiológica. Sugerimos que a implantação da notificação compulsória da cisticercose seja priorizada em outras localidades e, se possível, em todo o território nacional.

Dr. Osvaldo M. Takayanagui - Departamento de Neurologia, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto USP - 14048-900 Ribeirão Preto SP - Brasil.

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  • *
    Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP).
    Professora Associada, Departamento de Patologia;
    **
    Pós-graduanda,
    ***
    Professor de Pós-graduação, Departamento de Neurologia. Aceite: 24-junho-1998.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Dez 2000
    • Data do Fascículo
      Set 1998

    Histórico

    • Aceito
      24 Jun 1998
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