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Neurofisiologia álgica na irritação tentorial: descrição de um caso secundário a meduloblastoma

Pathogenesis of pain arising from tentorial irritation: description of a case associated to a medulloblastoma

Resumos

Relatamos o caso de paciente do sexo feminino, com 32 anos de idade, com sintomas álgicos na região occipital, compressivos de forte intensidade e com irradiação frontal, supraorbitária e orbitária esquerda, relacionada a movimentos de flexão e extensão do pescoço, com característica lancinante e duração de até 9 segundos. A investigação radiológica, clínica, neurocirúrgica e neuropatológica evidenciou um meduloblastoma que aderia à membrana tentorial promovendo espessamento e compressão das estruturas venosas desta região. Atribuímos ao estímulo mecânico sobre estas estruturas vasculares tentoriais as manifestações álgicas envolvendo as conexões entre o trigêmeo e os primeiros segmentos medulares cervicais.

cefaléia; meduloblastoma; neuralgia; tentório


We report the case of a 32-year-old woman who complained of dull and compressing occipital pain, with unilateral radiation to the left frontal and supraorbital areas (of the sickenning type). The radiological, clinical, neurosurgical and neuropathologic investigation disclosed a medulloblastoma bulging and tickening the tentorium cerebelli. This case shows how mechanical stimuli of the structures innervated by the tentorial nerve can cause pain with characteristics of trigeminal and cervical involvement.

headache; medulloblastoma; neuralgia; tentorium


NEUROFISIOLOGIA ÁLGICA NA IRRITAÇÃO TENTORIAL

DESCRIÇÃO DE UM CASO SECUNDÁRIO A MEDULOBLASTOMA

ELCIO JULIATO PIOVESAN* * Unidade de Cefaléias, Especialidade de Neurologia, Departamento de Clínica Médica, Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná (UFPR): Mestrando; ** Professor Titular; *** Professor Assistente; **** Médico; ***** Neurologista. Aceite: 21-maio-1998. , LINEU CESAR WERNECK** * Unidade de Cefaléias, Especialidade de Neurologia, Departamento de Clínica Médica, Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná (UFPR): Mestrando; ** Professor Titular; *** Professor Assistente; **** Médico; ***** Neurologista. Aceite: 21-maio-1998. , HELIO A. GHIZONI TEIVE*** * Unidade de Cefaléias, Especialidade de Neurologia, Departamento de Clínica Médica, Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná (UFPR): Mestrando; ** Professor Titular; *** Professor Assistente; **** Médico; ***** Neurologista. Aceite: 21-maio-1998. , FABIO NAVARRO**** * Unidade de Cefaléias, Especialidade de Neurologia, Departamento de Clínica Médica, Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná (UFPR): Mestrando; ** Professor Titular; *** Professor Assistente; **** Médico; ***** Neurologista. Aceite: 21-maio-1998. , PEDRO ANDRE KÓWACS***** * Unidade de Cefaléias, Especialidade de Neurologia, Departamento de Clínica Médica, Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná (UFPR): Mestrando; ** Professor Titular; *** Professor Assistente; **** Médico; ***** Neurologista. Aceite: 21-maio-1998.

RESUMO - Relatamos o caso de paciente do sexo feminino, com 32 anos de idade, com sintomas álgicos na região occipital, compressivos de forte intensidade e com irradiação frontal, supraorbitária e orbitária esquerda, relacionada a movimentos de flexão e extensão do pescoço, com característica lancinante e duração de até 9 segundos. A investigação radiológica, clínica, neurocirúrgica e neuropatológica evidenciou um meduloblastoma que aderia à membrana tentorial promovendo espessamento e compressão das estruturas venosas desta região. Atribuímos ao estímulo mecânico sobre estas estruturas vasculares tentoriais as manifestações álgicas envolvendo as conexões entre o trigêmeo e os primeiros segmentos medulares cervicais.

PALAVRAS-CHAVES: cefaléia, meduloblastoma, neuralgia, tentório.

Pathogenesis of pain arising from tentorial irritation: description of a case associated to a medulloblastoma

ABSTRACT - We report the case of a 32-year-old woman who complained of dull and compressing occipital pain, with unilateral radiation to the left frontal and supraorbital areas (of the sickenning type). The radiological, clinical, neurosurgical and neuropathologic investigation disclosed a medulloblastoma bulging and tickening the tentorium cerebelli. This case shows how mechanical stimuli of the structures innervated by the tentorial nerve can cause pain with characteristics of trigeminal and cervical involvement.

KEY WORDS: headache, medulloblastoma, neuralgia, tentorium.

Quando processos expansivos encefálicos exercem estímulos mecânicos sobre o sistema vascular, ricamente povoado por nociceptores trigêmino-cervicais, podem originar diferentes padrões álgicos, os quais variam de acordo com a localização e a agressividade do processo expansivo1,2. Relatamos o caso de paciente em que um meduloblastoma fortemente aderido a membrana tentorial e a sua drenagem vascular, produziu quadro clínico algico atípico, com distribuição cervical e trigeminal.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo feminino, com 32 anos de idade. Há 90 dias da avaliação começou a apresentar sensação de pressão nas regiões suboccipital e occipital. Sessenta dias após o início do quadro, referiu piora dos sintomas e o surgimento de forte dor irradiada para a região frontal, orbicular e supraorbicular esquerda (E) com duração máxima de 9 segundos, sem sinais autonômicos associados e desencadeada exclusivamente por movimentos de versão, rotação, flexão e extensão do pescoço. Os dois últimos movimentos produziam dor mais acentuada, referida pela paciente como a mais intensa percebida em toda a sua vida. A paciente não apresentava história pregressa de cefaléia, trauma e qualquer outra desordem neurológica.

O exame dos nervos occipital maior, occipital menor, mentoniano, supraorbitário, infraorbitário e dos nervos cranianos era normal. Testes cognitivos revelaram estado mental normal. Encontramos dismetria e disdiadococinesia no membro superior E. Os reflexos profundos, superficiais e a força muscular estavam normais. A tomografia computadorizada craniana mostrou área de atenuação reduzida no lobo cerebelar E com discreto deslocamento do IV ventrículo e hidrocefalia supratentorial. A ressonância nuclear magnética encefálica revelou lesão expansiva extra-axial com componentes hemorrágicos que estava aderida à membrana tentorial promovendo espeçamento dela, com deslocamento do IV ventrículo (Figs 1 e 2). A arteriografia cerebral foi normal.



A paciente foi submetida a craniotomia suboccipital E, que mostrou um tumor hemisfério cerebelar E, medindo 2,5 cm em seu maior diâmetro superior. O tumor era bem demarcado e altamente friável, sangrante, porém sem necroses ou área capsular hemorrágica. O exame histológico mostrou lesão composta por pequenas células com núcleo hipercromático, com a presença de matriz fibrilar no citoplasma, compatível com meduloblastoma. Até o início da radioterapia a paciente apresentava-se assintomática.

COMENTÁRIOS

O primeiro ramo do nervo oftálmico, imediatamente anterior ao gânglio de Gasser, adquire trajeto recorrente posterior em direção à tenda do cerebelo, onde forma o nervo de Arnold ou o nervo da tenda do cerebelo3,4. Na cavidade infratentorial, o nervo de Arnold juntamente com ramos de C2 e C3 são os responsáveis pela sensibilidade das estruturas vasculares. As estruturas vasculares da cavidade supratentorial são, na sua grande parte, inervadas pelo primeiro ramo do trigêmeo5,6 .

Na membrana tentorial encontramos seios venosos7-10, também conhecidos como canais venosos11. Estes canais transportam o sangue venoso vindo do seio reto e do seio transverso12: o seio reto drena para o seio tentorial e este para o petroso, que finalmente termina no seio cavernoso; o seio transverso e o sigmóide, após receberem seus aferentes venosos silvianos superficiais, drenam para o tentorial e este para o seio cavernoso13, permitindo dessa maneira a comunicação entre os seios durais posteriores e os seios cavernosos10. A importância dos canais tentoriais é fundamental, como colaterais venosos, quando de processos patológicos que comprometem direta ou indiretamente os seios reto e torcular10.

A relação anatômica entre o nervo trigêmeo e as raízes dorsais cervicais superiores é de interesse clínico e fisiológico nas síndromes dolorosas hemicranianas, particularmente devido à convergência dessas fibras no subnúcleo caudalis14 . A este nível encontramos diferentes tipos de neurônios secundários que, conforme sua habilidade discriminativa nociceptiva podem ser classificados em: a - mecanoreceptores de baixo limiar (MBL); b - mecanoreceptores dinâmicos de longo alcance (MDLA); c - nociceptores específicos (NE)2. Tanto os neurônios MBL como os MDLA respondem a estímulos tácteis leves, porém somente os neurônios MDLA têm a capacidade de se adaptar ao aumento progressivo dos estímulos mecânicos sobre os nociceptores.

Diferentes tipos de fibras chegam a esses neurônios trazendo informações sensoriais que variam de acordo com as características próprias de cada fibra: as mielinizadas (A-delta) transmitem estímulos súbitos e potentes de curta duração e que originam síndromes dolorosas de alta intensidade; as desmielinizadas (fibras C) transmitem estímulos tônicos ,de fraca intensidade porém de longa duração ou contínuos15. Ambas as fibras, de origem trigeminal ou cervical, podem confluir para um único neurônio do subnúcleo caudalis, produzindo um sistema de convergência (Fig 3). Acredita-se que somente 21% dos neurônios secundários, MDLA e NE, não apresentam convergência de fibras16.


Quando estimulamos fibras A-delta desencadeamos clinicamente uma dor brusca e acentuada, bem localizada e que na maioria das vezes dura poucos segundos, e que pode repetir-se inúmeras vezes face a novos estímulos. Esta dor é conhecida como dor primária15. A dor secundária origina-se do estímulo sobre as fibras C e caracteriza-se por sensação de queimação, pulsátil ou contínua, menos localizada, de longa duração e fraca intensidade. As fibras C podem originar síndromes dolorosas mais intensas se ocorrerem mecanismos de perpetuação ou somação temporal ("wind up") destes estímulos ao nível do subnúcleo caudalis17. Os mecanismos de "wind up" são produzidos após a ativação dos receptores mediados pelo N-metil-D-aspartato (NMDA)18.

Estudos laboratoriais, mostraram que, dependendo da intensidade e localização do estimulo sobre diferentes partes da membrana tentorial, os pacientes referiam sintomas álgicos na região retroorbicular, supraorbicular, orbicular, frontal, occipital e suboccipital, com localização, intensidade e duração variáveis6,19-21.

O processo expansivo no lobo cerebelar esquerdo, no nosso caso, originou cefaléia leve, contínua e bem localizada na região suboccipital e occipital. Esta apresentação clínica foi, provavelmente, produzida pela presença de estímulos leves porém duradouros sobre os nociceptores de fibras C (vasculares) cervicais.

Com a evolução do processo expansivo, é provável que outras estruturas vasculares tenham sido acometidas. O surgimento de um novo padrão de cefaléia de curta duração (9 segundos), muito mais intenso e agora ultrapassando os limites da inervação cervical, chegando a comprometer o primeiro ramo do trigêmeo, região orbitaria, supraorbitária e frontal esquerda, sem sinais autonômicos, caracteriza o envolvimento de nociceptores de fibras A-delta (vasculares) trigeminais ou cervicais, com importante mecanismo de convergência ao nível dos núcleos dorsais da medula.

O espessamento da membrana tentorial, demonstrado na ressonância magnética, sugere engurgitamento dos canais venosos tentoriais22, secundário ao aumento da drenagem venosa. Esta dilatação, associada com períodos transitórios de aumento da pressão venosa nos seios tentoriais e reto, após os movimentos do pescoço, originaria estímulos nociceptivos sobre a inervação trigêmino-cervical.

Sugerimos que a membrana tentorial, quando submetida a estímulos fracos porém contínuos, responde com sintomas característicos de dor secundária localizada na topografia sensitiva cervical. Entretanto, quando os estímulos forem vigorosos e de curta duração, a dor terá características primárias e localizadas nas regiões sensitivas cervicais e do primeiro ramo do trigêmeo, graça aos mecanismos de convergência.

Dr. Elcio Juliato Piovesan - Serviço de Neurologia - Hospital de Clínicas da UFPR - Rua General Carneiro 181 - 80069-155 Curitiba PR - Brasil. E-mail: piovesan@avalon.sul.com.br

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  • *
    Unidade de Cefaléias, Especialidade de Neurologia, Departamento de Clínica Médica, Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná (UFPR):
    Mestrando;
    **
    Professor Titular;
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    Professor Assistente;

    ****

    Médico;

    *****

    Neurologista. Aceite: 21-maio-1998.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Dez 2000
    • Data do Fascículo
      Set 1998

    Histórico

    • Aceito
      21 Maio 1998
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