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Doença dos tiques: aspectos genéticos e neuroquímicos atuais

Genetic and neurochemical factors in tic disorders

Resumos

Após breve revisão dos dados históricos, do conceito, do quadro clínico e dos critérios para o diagnóstico, analisamos os principais aspectos genéticos e neuroquímicos atuais dos tiques e da síndrome de Gilles de La Tourette. Dados epidemiológicos sugerem que todo tique seja de natureza orgânica, a maioria de origem genética, e que obedecem a transmissão autossômica dominante com penetrância aproximada de 100%. Ressaltamos, ainda, os recentes estudos imuno-histoquímicos, particularmente os que se referem aos sistemas dopaminérgico, noradrenérgico e serotoninérgico, que modulam a atividade dos circuitos córtico-estriato-talâmico-cortical, envolvidos na gênese dos tiques e dos transtornos obsessivos-compulsivos.

tiques; síndrome de Gilles de La Tourette; genética; atividade dopaminérgica


We review historical, conceptual, clinical and diagnostic criteria as well as present genetic and neurochemical factors of tic disorders. Epidemiologic data sugest that tic is an organic disease with autosomal dominant transmission. We emphasize imunohistochemical studies particularly related to the dopaminergic, noradrenergic and serotonergic systems. These modulate the activity of the cortico-striato-thalamocortical circuits implicated in both Tourette's syndrome and obsessive-compulsive disorder.

tics; Gilles de la Tourette syndrome; genetics; dopaminergic activity


DOENÇA DOS TIQUES

ASPECTOS GENÉTICOS E NEUROQUÍMICOS ATUAIS

JAMES PITÁGORAS DE MATTOS* * Serviço de Neurologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal Rio de Janeiro (UFRJ) (Chefia: Prof. Sérgio Novis); Chefe do Setor de Distúrbios do Movimento; ** Neurologista. Aceite: 25-fevereiro-1999. ,VÂNIA MARIA DE BARROS CORRÊA MATTOS** * Serviço de Neurologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal Rio de Janeiro (UFRJ) (Chefia: Prof. Sérgio Novis); Chefe do Setor de Distúrbios do Movimento; ** Neurologista. Aceite: 25-fevereiro-1999.

RESUMO- Após breve revisão dos dados históricos, do conceito, do quadro clínico e dos critérios para o diagnóstico, analisamos os principais aspectos genéticos e neuroquímicos atuais dos tiques e da síndrome de Gilles de La Tourette. Dados epidemiológicos sugerem que todo tique seja de natureza orgânica, a maioria de origem genética, e que obedecem a transmissão autossômica dominante com penetrância aproximada de 100%. Ressaltamos, ainda, os recentes estudos imuno-histoquímicos, particularmente os que se referem aos sistemas dopaminérgico, noradrenérgico e serotoninérgico, que modulam a atividade dos circuitos córtico-estriato-talâmico-cortical, envolvidos na gênese dos tiques e dos transtornos obsessivos-compulsivos.

PALAVRAS-CHAVE: tiques, síndrome de Gilles de La Tourette, genética, atividade dopaminérgica.

Genetic and neurochemical factors in tic disorders

ABSTRACT - We review historical, conceptual, clinical and diagnostic criteria as well as present genetic and neurochemical factors of tic disorders. Epidemiologic data sugest that tic is an organic disease with autosomal dominant transmission. We emphasize imunohistochemical studies particularly related to the dopaminergic, noradrenergic and serotonergic systems. These modulate the activity of the cortico-striato-thalamocortical circuits implicated in both Tourette's syndrome and obsessive-compulsive disorder.

KEY WORDS: tics,Gilles de la Tourette syndrome, genetics,dopaminergic activity.

Georges Albert Edouard Brutus Gilles de La Tourette viveu somente 46 anos, tendo sido um dos alunos prediletos de Charcot e, posteriormente, seu chefe de clínicas. Quando contava apenas 28 anos, deixou seu nome na história da Neurologia ao publicar seu mais importante trabalho entitulado " Étude sur une affection nerveuse caractérisée par l'incoordenation motrice accompagnée d'echolalie et de coprolalie". Em nenhum momento utilizou o termo tique, preferindo incoordenação motora, convulsões, contorções e descargas musculares1-4. Os tiques são definidos como movimentos anormais, clônicos, breves, rápidos, súbitos, sem propósitos e irresistíveis. São exacerbados por situações de ansiedade e tensão emocional; atenuados pelo repouso e por situações que exigem concentração. Podem ser suprimidos pela vontade (por segundos ou horas), logo seguidos por exacerbações secundárias3,5.

A síndrome de Gilles de La Tourette é definida como um distúrbio neurológico caracterizado por frequentes tiques motores e vocais (fônicos) que costumam começar na infância. Outras manifestações, tais como, ecolalia, ecopraxia, coprolalia e copropraxia podem, também, estar presentes. A associação de hiperatividade com déficit de atenção (HDA) e transtorno obsessivo compulsivo (TOC) é relativamente comum6,7. O quadro clínico pode ser dividido em três categorias: tiques motores, tiques fônicos e sinais acessórios. Os tiques motores ocorrem em 100% dos pacientes, tornando adequada a expressão "doença dos tiques". Podem ser simples ou complexos. Simples, quando ocorrem em um grupo muscular; complexos, quando em mais de um grupo muscular. 80% dos tiques motores são da musculatura do globo ocular. Os tiques fônicos ou vocais são indispensáveis para o diagnóstico, podendo ser, também, simples ou complexos. Os simples incluem a emissão de sons, tais como, o "limpar da garganta", grunhidos, fungação e até gritos. Os complexos compreendem a ecolalia, a palilalia e a coprolalia. Os sinais acessórios constam do tique sensitivo ( "premonitory feelings"), da ecofilia, da coprofilia e dos distúrbios do comportamento, cujas presenças não são obrigatórias para o diagnóstico. O tique sensitivo é definido como sensação somática nas articulações, nos ossos e nos músculos (peso, leveza, vazio, frio ou calor), que obrigam o paciente a executar um movimento voluntário para obter alívio. É muito frequente, aparecendo, em média, em 80-90% dos pacientes. Ecofilia é um termo genérico criado para significar conjuntamente a ecolalia, a palilalia e a ecopraxia. Coprofilia, também, é um termo genérico criado para significar a coprolalia e a copropraxia. Dentre os distúrbios do comportamento, destacam-se o TOC e a HDA3,5-7.

Em 1994, a Associação Psiquiátrica Americana, pelo DSM-IV,estabeleceu os seguintes critérios para o diagnóstico da síndrome de Gilles de La Tourette: 1- Os tiques motores e vocais devem estar obrigatoriamente presentes, não necessariamente ao mesmo tempo. 2- Ocorrem diariamente, várias vezes por dia, por período maior do que um ano. 3- Há variabilidade dos tiques com o passar do tempo, quanto a localização anatômica, ao número, à frequencia, ao tipo, à complexidade e à gravidade. 4- Início dos tiques antes dos 21 anos. 5- Os tiques não podem ser explicados por outra condição médica. 6- Os tiques devem ter sido testemunhados por um examinador de confiança ou, então, registrados em videotape8.

Em que pese o fato de ter sido descrita há mais de um século, não há, ainda, resposta adequada à elementar pergunta: qual é a causa da doença dos tiques? Nos últimos anos, no entanto, temos assistido importantes avanços nos conhecimentos etiopatogênicos que serão abordados, agora, sob dois aspectos: genéticos e neuroquímicos.

ASPECTOS GENÉTICOS

Estudos epidemiológicos recentes sugerem que a maioria dos pacientes que padecem da síndrome de Gilles de La Tourette seja de natureza orgânica, de origem genética, com transmissão autossômica dominante, com penetrância aproximada de 100%, mormente no sexo masculino (em que é de 3-4 vezes mais frequente). A natureza familiar já tinha sido sugerida pelo próprio Tourette, em 1885, por ocasião de sua descrição. No entanto, somente a partir de 1970 é que os estudos demonstraram o aumento da frequência da história familiar positiva para tiques em famílias com a síndrome de Gilles de La Tourette. Logo depois, em 1980, observou-se a presença de tique motor crônico em familiares próximos. Esses e outros dados permitem afirmar que todo tique seja orgânico ou que haja um continuum ao longo de um espectro na doença dos tiques, em que o tique transitório - o mais comum de todos - seja o grau mais leve. Também, estudo curioso recente demonstrou que, quando a transmissão é feita pela mãe, há mais frequentemente tiques motores complexos; quando a transmissão é feita pelo pai, há maior frequência de tiques fônicos, é mais precoce o aparecimento desses tiques, e, ainda, é mais proeminente a síndrome da HDA4,6,7,9.

O grau de concordância entre pares de gêmeos monozigóticos é maior do que 50%, enquanto que, em pares de gêmeos dizigóticos, é de 10%. Se forem incluídos gêmeos com tiques motores crônicos, o grau de concordância aumenta para 77-90% entre os monozigóticos e para 30% entre os dizigóticos. As diferenças entre os graus de concordância nos pares de gêmeos monozigóticos e dizigóticos indica que os fatores genéticos desempenham papel importante na origem da síndrome de Gilles de La Tourette7.

Poucos casos de tiques são não-genéticos, como, por exemplo, desencadeados por uso de neurolépticos, por intoxicações por monóxido de carbono, por traumatismo crânio-encefálico, por encefalites virais, por abuso de cocaína ou pela retirada de opiáceos, entre outras causas. Esses são denominados de "touretismo" ou tiques secundários6.

ASPECTOS NEUROQUÍMICOS

Estudos imuno-histoquímicos têm sido ultimamente realizados na síndrome de Gilles de La Tourette, particularmente os que se referem aos sistemas dopaminérgico, noradrenérgico e serotoninérgico. Esses sistemas, que veremos a seguir, modulam a atividade dos circuitos córtico-estriato-talâmico-cortical (CETC), envolvidos na gênese dos tiques e dos TOC.7,10

1-Sistema dopaminérgico - Em 1961, em estudo clássico e histórico, Seignot11 demonstrou a eficácia do haloperidol em controlar os distúrbios da síndrome de Gilles de La Tourette. Esses resultados sugeriram, então, que os tiques estivessem ligados à hiperatividade dopaminérgica ao nível dos gânglios da base. Mais de 20 anos depois, em 1983, Devinsky12 sugeriu que fosse o resultado da alteração da função dopaminérgica no mesencéfalo, baseado no paralelismo entre os tiques, as vocalizações e os TOC observados em alguns pacientes com a encefalite letárgica. A partir desses e de outros estudos, estabeleceram-se, então, duas hipóteses neuroquímicas: a da hipersensibilidade dos receptores dopaminérgicos pós- sinápticos D2 e a da hiperinervação do núcleo estriado7,10. A primeira hipótese, hipersensibilidade de D2, não foi confirmada, ou seja, não ficou demonstrado que o ácido homovanílico, principal metabólito da dopamina, esteja reduzido no líquido cefalorraquidiano (LCR). A segunda, hiperinervação dopaminérgica do estriado, levaria ao aumento da concentração da dopamina7. De fato, em alguns pacientes, estudos em tecidos postmortem, demonstraram o significativo aumento do número de receptores pós-sinápticos no núcleo estriado. Se verdadeira, a hiperinervação levaria a estimulação aumentada do circuito CETC. Sugeriu-se, então, que a síndrome de Gilles de La Tourette e os TOC estariam associados com a falha da inibição dos minicircuitos CETC. Assim, as obsessões e a necessidade obsessiva por simetrias e exatitudes seriam o resultado da falha da inibição dos minicircuitos pré-frontais; as obsessões com agressividade e temas sexuais, com os minicircuitos límbicos; os tiques faciais com as áreas ventromedianas do núcleo caudado e do putamen7.

2- Sistema noradrenérgico - A evidência do envolvimento do sistema noradrenérgico na fisiopatologia da síndrome de Gilles de La Tourette está baseada nos efeitos benéficos da clonidina e da guanfacina. Tradicionalmente, são agonistas seletivos do receptor D2 adrenérgico. Especula-se que a eficácia desses medicamentos seja devido a habilidade em reduzir a liberação da noradrenalina dos neurônios centrais. Bem recentemente, foram encontrados níveis elevados de noradrenalina no LCR de pacientes adultos7,10.

3- Sistema serotoninérgico - Estudos no LCR de pacientes com a síndrome de Gilles de La Tourette têm evidenciado redução do principal metabólito da serotonina, o ácido hidroxi-indolacético. Em tecidos postmortem, estudos preliminares também têm mostrado que a serotonina está diminuída globalmente na gânglia basal. Essa alteração metabólica, no entanto, está mais relacionada nos pacientes com TOC, explicando a eficácia bem estabelecida dos inibidores seletivos da recaptação de serotonina nessa alteração do comportamento7,10.

Dr. James Pitágoras de Mattos -Av. São Sebastião 165/SS101- 22291-070 Rio de Janeiro RJ - Brasil.

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  • *
    Serviço de Neurologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal Rio de Janeiro (UFRJ) (Chefia: Prof. Sérgio Novis);
    Chefe do Setor de Distúrbios do Movimento;
    **
    Neurologista. Aceite: 25-fevereiro-1999.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Dez 2000
    • Data do Fascículo
      Jun 1999

    Histórico

    • Aceito
      25 Fev 1999
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