Acessibilidade / Reportar erro

Fatores prognósticos da meningoencefalite criptocócica

Prognostic factors in cryptococcal meningoencephalitis

Resumos

OBJETIVO: Identificar variáveis demográficas, clínicas e liquóricas associadas com a letalidade intra-hospitalar de pacientes com meningoencefalite criptocócica. DESENHO DO ESTUDO: Estudo de prognóstico a partir de uma coorte retrospectiva. POPULAÇÃO: Pacientes admitidos no Hospital Couto Maia, na cidade de Salvador, nordeste do Brasil, no período de 1972 a 1996, com diagnóstico de meningoencefalite criptocócica. RESULTADOS: A letalidade foi 42,7%. As alterações neurológicas mais encontradas foram: rigidez de nuca, diminuição do nível de consciência, alteração do comportamento, alterações visuais e de nervos cranianos. Tempo de doença maior que 30 dias, comprometimento do nível de consciência e celularidade liquórica < 40 cels/mm³ foram associados a maior letalidade. CONCLUSÃO: Tempo de doença superior a 30 dias, acometimento do nível de consciência e diminuição da celularidade foram os únicos preditores de letalidade na população estudada.

criptococose; Cryptococcus neoformans; meningite; meningoencefalite; prognóstico


OBJECTIVE: To identify demographic, clinical and cerebrospinal fluid (CSF) variables associated to intrahospitalar lethality of patients with cryptococcal meningoencephalitis. STUDY DESIGN: Retrospective cohort to study prognosis. SETTING: Hospital Couto Maia (HCMaia) reference for patients with infectious diseases in the State of Bahia Northeastern Brazil. POPULATION: Patients admitted at HCMaia, from 1972 to 1996, with the diagnosis of cryptococcal meningoencephalitis. RESULTS: Lethality rate was 42.7%. The most important neurological abnormalities were neck stiffness, decreased consciousness level, behavior changes, cranial nerve palsy and visual alterations. Disease time over 30 days, involvement of consciousness level and cerebrospinal fluid cells under 40/mm³ were associated to a higher lethality rate. CONCLUSION: Disease time over 30 days, involvement of consciousness level, and CSF decreased cellularity were the only predictors of lethality in the studied population.

cryptococcosis; Cryptococcus neoformans; meningitis; meningoencephalitis; prognosis


FATORES PROGNÓSTICOS DA MENINGOENCEFALITE CRIPTOCÓCICA

CALIL DARZÉ* * Divisão de Neuroinfectologia e Neuroepidemiologia Universidade Federal da Bahia (UFBA): Pós-graduando: ** Livre-Docente, Chefe do Serviço de Neurologia do Hospital Universitário Professor Edgard Santos / UFBA. Aceite: 14-abril-1999. , RITA LUCENA* * Divisão de Neuroinfectologia e Neuroepidemiologia Universidade Federal da Bahia (UFBA): Pós-graduando: ** Livre-Docente, Chefe do Serviço de Neurologia do Hospital Universitário Professor Edgard Santos / UFBA. Aceite: 14-abril-1999. , IRÊNIO GOMES* * Divisão de Neuroinfectologia e Neuroepidemiologia Universidade Federal da Bahia (UFBA): Pós-graduando: ** Livre-Docente, Chefe do Serviço de Neurologia do Hospital Universitário Professor Edgard Santos / UFBA. Aceite: 14-abril-1999. , AILTON MELO** * Divisão de Neuroinfectologia e Neuroepidemiologia Universidade Federal da Bahia (UFBA): Pós-graduando: ** Livre-Docente, Chefe do Serviço de Neurologia do Hospital Universitário Professor Edgard Santos / UFBA. Aceite: 14-abril-1999.

RESUMO - Objetivo: Identificar variáveis demográficas, clínicas e liquóricas associadas com a letalidade intra-hospitalar de pacientes com meningoencefalite criptocócica. Desenho do estudo: Estudo de prognóstico a partir de uma coorte retrospectiva. População: Pacientes admitidos no Hospital Couto Maia, na cidade de Salvador, nordeste do Brasil, no período de 1972 a 1996, com diagnóstico de meningoencefalite criptocócica. Resultados: A letalidade foi 42,7%. As alterações neurológicas mais encontradas foram: rigidez de nuca, diminuição do nível de consciência, alteração do comportamento, alterações visuais e de nervos cranianos. Tempo de doença maior que 30 dias, comprometimento do nível de consciência e celularidade liquórica < 40 cels/mm³ foram associados a maior letalidade. Conclusão: Tempo de doença superior a 30 dias, acometimento do nível de consciência e diminuição da celularidade foram os únicos preditores de letalidade na população estudada.

PALAVRAS-CHAVES: criptococose, Cryptococcus neoformans, meningite, meningoencefalite, prognóstico.

Prognostic factors in cryptococcal meningoencephalitis

ABSTRACT - Objective: To identify demographic, clinical and cerebrospinal fluid (CSF) variables associated to intrahospitalar lethality of patients with cryptococcal meningoencephalitis. Study design: Retrospective cohort to study prognosis. Setting: Hospital Couto Maia (HCMaia) reference for patients with infectious diseases in the State of Bahia Northeastern Brazil. Population: Patients admitted at HCMaia, from 1972 to 1996, with the diagnosis of cryptococcal meningoencephalitis. Results: Lethality rate was 42.7%. The most important neurological abnormalities were neck stiffness, decreased consciousness level, behavior changes, cranial nerve palsy and visual alterations. Disease time over 30 days, involvement of consciousness level and cerebrospinal fluid cells under 40/mm³ were associated to a higher lethality rate. Conclusion: Disease time over 30 days, involvement of consciousness level, and CSF decreased cellularity were the only predictors of lethality in the studied population.

KEY WORDS: cryptococcosis, Cryptococcus neoformans, meningitis, meningoencephalitis, prognosis.

Em 1905, Von Hansemann descreveu o primeiro caso de criptococose do sistema nervoso central (apud, Mitchell & Perfect)1. Até o advento da anfotericina B, em 1956, a doença tinha curso invariavelmente fatal2-4 e, mesmo com o surgimento de novas abordagens terapêuticas, as taxas de letalidade e recidiva ainda permanecem elevadas5.

Embora vários autores tenham identificado fatores de risco para letalidade5-13, nenhum estudo com esta finalidade foi realizado no Brasil até então. Assim, procuramos identificar variáveis que, presentes até o momento do diagnóstico, pudessem predizer o desfecho da meningoencefalite criptocócica, em um hospital de referência para doenças infecciosas na cidade de Salvador, nordeste do Brasil.

MÉTODO

Foram estudados, retrospectivamente, os prontuários de todos os pacientes com o diagnóstico de meningoencefalite criptocócica internados, no período de janeiro de 1972 a dezembro de 1996, no Hospital Couto Maia (HCMaia), centro de referência para o tratamento de doenças infecciosas no nordeste do Brasil.

Os pacientes incluídos no estudo preenchiam um dos seguintes critérios diagnósticos para meningoencefalite criptocócica: 1. cultura positiva para criptococos no líquido cefalorraquidiano (LCR); 2. coloração de criptococo pela tinta da China positiva no LCR; 3. isolamento de C. neoformans a partir de biópsia de tecido cerebral; 4. presença de antígeno criptocócico no LCR.

As informações referentes às variáveis demográficas, clínicas e liquóricas, presentes até o momento do diagnóstico, foram obtidas a partir dos prontuários, registradas em questionários específicos, armazenadas em banco de dados (Access, versão 7.0) e analisadas com a ajuda de programa estatístico (SPSS, versão 6.1). O ponto final da análise de prognóstico foi o desfecho do paciente durante a internação, sendo considerados alta ou óbito.

A análise estatística foi realizada utilizando o c2 e o teste exato de Fisher para comparar variáveis dicotômicas, e o t de Student para comparação de médias. Para o cálculo da taxa de letalidade consideramos os pacientes com desfecho conhecido, sendo excluídos os indivíduos transferidos do HCMaia antes do término do tratamento. Foram consideradas significantes associações com p < 0,05.

RESULTADOS

Características gerais

No período estudado foram admitidos no HCMaia 104 pacientes que preenchiam os critérios de inclusão. Destes, os dados clínicos e laboratoriais completos estavam disponíveis em 96, incompletos em 4 e irrecuperáveis nos 4 restantes. Dos 96 pacientes com dados completos, 8 foram transferidos para outros hospitais.

Sessenta e quatro pacientes (61,5%) eram do sexo masculino e 40 (38,5%) do sexo feminino. A faixa etária variou de 8 meses a 79 anos, com a maior frequência dos casos de 10 a 29 anos. Vinte e sete pacientes (26%) eram procedentes da capital e 77 (74%) do interior do estado.

O intervalo entre o início do primeiro sintoma e o diagnóstico foi inferior a 8 dias em 15,6% dos pacientes e maior que 30 dias em 21,9%. Os sinais e sintomas clínicos mais frequentes foram cefaléia (92,7%), febre (84,4%) e rigidez de nuca (83,2%). As alterações neurológicas mais encontradas foram diminuição do nível de consciência (43,8%) e mudança do comportamento (28,1%), seguidas de alterações visuais (24%), comprometimento de nervos cranianos (20%) e crises epilépticas (9,4%). Entre os fatores de risco identificados, 12 pacientes tinham AIDS, um era diabético, um era portador de hepatite crônica ativa e outro tinha doença de Hodgkin. Os dois últimos usavam corticóide.

Prognóstico

Dos 96 pacientes que permaneceram no HCMaia até o desfecho, 55 (57,3%) receberam alta e a letalidade foi 42,7%. O tempo médio de ocorrência de óbito foi 44 dias (desvio padrão de 16,4 dias) e 72,5% dos indivíduos faleceram nos primeiros 30 dias após o diagnóstico. A média de celularidade liquórica foi menor naqueles que evoluíram para o óbito (Tabela 1). Na análise estatística, diminuição do nível de consciência e tempo de doença superior a 30 dias estavam associados a maior frequência de óbito (Tabela 2). Entre os parâmetros liquóricos estudados, apenas a contagem de leucócitos abaixo de 40 cels/mm³ se mostrou preditora de letalidade (Tabela 3).

DISCUSSÃO

No nosso estudo, observamos que a meningoencefalite criptocócica é enfermidade com letalidade elevada, como tinha sido descrito por outros autores5,6,10,12,14. Assim, determinar os fatores prognósticos da meningoencefalite criptocócica na nossa população tem considerável importância clínica, uma vez que poderá identificar os pacientes com maior risco de desfecho desfavorável, possibilitando a racionalização da abordagem terapêutica.

A letalidade por meningoencefalite criptocócica tem sido variável de acordo com os diferentes estudos e a presença de imunossupressão6,12. Em 1974, Diamond & Bennett relataram taxa de letalidade de 55% em indivíduos imunodeficientes, em oposição a 20% nos pacientes aparentemente imunocompetentes6. Após o advento da AIDS, houve aumento da letalidade da meningoencefalite criptocócica, sendo descritas taxas de até 72%10. Em estudo realizado no HCMaia, em Salvador15, encontramos testes positivos para HIV-1 em 11,5% dos enfermos. Esta baixa percentagem reflete, provavelmente, a não realização sistemática de sorologia para HIV em pacientes com meningoencefalite criptocócica no período estudado.

A celularidade liquórica baixa tem sido referida na literatura como preditora de letalidade6,8, o que foi também verificado em nossos pacientes. Embora nos indivíduos com AIDS a celularidade no LCR seja comumente baixa8,16,17, é provável que este dado não explique a associação entre contagem de células e frequência de óbitos, uma vez que em nossa casuística a taxa de letalidade não diferiu entre pacientes com AIDS e os demais.

A diminuição do nível de consciência tem sido descrita como preditora de letalidade em diversas encefalites infecciosas10,13,18,19. Acreditamos que este dado traduza maior agressão encefálica que muitas vezes está associada a hipertensão intracraniana, vasculite e alterações eletrolíticas. A letalidade, maior entre os pacientes com tempo de doença mais prolongado, pode ser decorrente da demora na procura de assistência médica, com consequente retardo no diagnóstico e na instituição de terapêutica adequada.

Finalizando, enfatizamos a importância da identificação de fatores relacionados ao prognóstico, na admissão de pacientes com meningoencefalite criptocócica, afim de determinarmos as estratégias terapêuticas necessárias para esse grupo de enfermos.

Dr. Ailton Melo - Av. Magalhães Neto, 735 / 802 ¾ 41820-020 Salvador BA - Brasil. E-mail: nnb@cpunet.com.br

  • 1. Mitchell TG, Perfect JR. Cryptococcosis in the era of AIDS-100 years after the discovery of Cryptococcus neoformans Clin Microbiol Rev 1995;8:515-548.
  • 2. Spickard A, Butler WT, Andriole V, Utz JP. The improved prognosis of cryptococcal meningitis with amphotericin B therapy. Ann Intern Med 1963;58:66-83.
  • 3. Butler WT, Alling DW, Spickard A, Utz JP. Diagnostic and prognostic value of clinical and laboratory findings in cryptococcal meningitis: a follow-up study of forty patients. N Engl J Med 1964;270:59-67.
  • 4. Lewis JL, Rabinovich S. The wide spectrum of cryptococcal infections. Am J Med 1972;53:315-322.
  • 5. Darras-Joly C, Chevret S, Wolff M, et al. Cryptococcus neoformans infection in France: epidemiologic features of and early prognostic parameters for 76 patients who were infected with human immunodeficiency virus. Clin Infect Dis 1996;23:369-376.
  • 6. Diamond RD, Bennett JE. Prognostic factors in cryptococcal meningitis: a study in 111 cases. Ann Intern Med 1974;80:176-181.
  • 7. Zuger A, Louie E, Holzman RS, Simberkoff MS, Rahal JJ. Cryptococcal disease in patients with the acquired immunodeficiency syndrome: diagnostic features and outcome of treatment. Ann Intern Med 1986;104:234-240.
  • 8. Dismukes WE. Cryptococcal meningitis in patients with AIDS. J Infect Dis 1988;157:624-628.
  • 9. Chuck SL, Sande MA. Infections with Cryptococcus neoformans in the acquired immunodeficiency syndrome. N Engl J Med 1989;321:794-799.
  • 10. Clark RA, Greer D, Atkinson W, Valainis GT, Hyslop N. Spectrum of Cryptococcus neoformans infection in 68 patients infected with human immunodeficiency virus. Rev Infect Dis 1990;12:768-777.
  • 11. Saag MS, Powderly WG, Cloud GA et al. Comparison of amphotericin B with fluconazole in the treatment of acute AIDS-associated cryptococcal meningitis. N Engl J Med 1992;326:83-89.
  • 12. White M, Cirrincione C, Blevins A, Armstrong D. Cryptococcal meningitis: outcome in patients with AIDS and patients with neoplastic disease. J Infect Dis 1992;165: 960-963.
  • 13. Mitchell DH, Sorrell TC, Allworth, AM et al. Cryptococcal disease of the CNS in immunocompetent hosts: influence of cryptococcal variety on clinical manifestations and outcome. Clin Infect Dis 1995;20:611-616.
  • 14. Calvo B, Fischman O, Castelo Filho A, et al. Deteccion de antigeno del polisacarido capsular de Cryptococcus neoformans en pacientes con SIDA y neurocriptococosis en Săo Paulo, Brasil. Rev Inst Med Trop Săo Paulo 1991;33:485-490.
  • 15. Darzé C, Lucena R, Gomes I, Melo A. Características clínicas e laboratoriais de 104 casos de meningoencefalite criptocócica. Rev Soc Bras Med Trop (no prelo).
  • 16. Kovacs JA, Kovacs AA, Polis M, et al. Cryptococcosis in the acquired immunodeficiency syndrome. Ann Intern Med 1985;103:533-588.
  • 17. Reis-Filho JB, Matas SLA, Fischman O, Morales BC, Juliano Y. Estudo comparativo do LCR de pacientes com neurocriptococose sem AIDS e com AIDS. Rev Inst Med Trop Săo Paulo 1994;36:225-230.
  • 18. Dismukes WE, Cloud G, Gallis HA, et al. Treatment of cryptococcal meningitis with combination amphotericin B and flucytosine for four as compared with six weeks. N Engl J Med 1987;317:334-341.
  • 19. Nunes C, Gomes I, Tavares A, Melo A. Características clínicas e laboratoriais de 62 casos de meningoencefalite tuberculosa. Arq Neuropsiquiatr 1996;54:222-226.
  • *
    Divisão de Neuroinfectologia e Neuroepidemiologia Universidade Federal da Bahia (UFBA):
    Pós-graduando:
    **
    Livre-Docente, Chefe do Serviço de Neurologia do Hospital Universitário Professor Edgard Santos / UFBA. Aceite: 14-abril-1999.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Dez 2000
    • Data do Fascículo
      Set 1999

    Histórico

    • Aceito
      14 Abr 1999
    Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista.arquivos@abneuro.org