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Bradicardia como manifestação epiléptica em epilepsia temporal: relato de caso

Bradycardia during temporal lobe seizure: case report

Resumos

Descrevemos um caso de arritmia cardíaca como manifestação epiléptica. A monitorização video-eletrencefalográfica de uma paciente com 34 anos de idade que apresentava episódios de perda de consciência permitiu a detecção de períodos de assistolia como principal manifestação clínica, exigindo a implantação de marca-passo. O registro eletrencefalográfico concomitante mostrou atividade rítmica a 6-7 Hz de projeção na região temporal esquerda. A ressonância magnética mostrou lesão expansiva no giro para-hipocampal esquerdo. Alterações do ritmo cardíaco como taquicardia sinusal são frequentes em crises epilépticas. A descrição de bradicardia e/ou assistolia é rara. As conexões das estruturas mesiais temporais com estruturas profundas como o hipotálamo devem ser responsáveis pelas manifestações vegetativas durante crises epilépticas temporais.

epilepsia do lobo temporal; bradicardia


We describe a patient who had cardiac arrhythmia as epileptic manifestation. In a 34-year-old woman who had many episodes of loss of consciousness, the simultaneous ECG and video-EEG monitoring recorded bradycardia with a short episode of asystolia (4 seconds) and left temporal rhythmic teta activity on EEG. MRI showed a small mass lesion in the left parahippocampal gyrus. Alterations in cardiac rhythm have been reported in epileptic seizures and taquycardia is the most common finding associated with them; bradyarrhythmia during seizures was uncommon. Many interconnections among insular cortex, limbic system and hypothalamus, may be responsible for vegetative manifestations in temporal lobe epilepsy.

temporal lobe epilepsy; bradycardia


BRADICARDIA COMO MANIFESTAÇÃO EPILÉPTICA EM EPILEPSIA TEMPORAL

RELATO DE CASO

CARMEN L.JORGE* * Grupo de Epilepsia do Departamento de Neurologia, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), São Paulo, Brasil. Aceite: 1-junho-2000. , ROSA M. F. VALÉRIO* * Grupo de Epilepsia do Departamento de Neurologia, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), São Paulo, Brasil. Aceite: 1-junho-2000. , ELZA M. T. YACUBIAN* * Grupo de Epilepsia do Departamento de Neurologia, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), São Paulo, Brasil. Aceite: 1-junho-2000.

RESUMO - Descrevemos um caso de arritmia cardíaca como manifestação epiléptica. A monitorização video-eletrencefalográfica de uma paciente com 34 anos de idade que apresentava episódios de perda de consciência permitiu a detecção de períodos de assistolia como principal manifestação clínica, exigindo a implantação de marca-passo. O registro eletrencefalográfico concomitante mostrou atividade rítmica a 6-7 Hz de projeção na região temporal esquerda. A ressonância magnética mostrou lesão expansiva no giro para-hipocampal esquerdo. Alterações do ritmo cardíaco como taquicardia sinusal são frequentes em crises epilépticas. A descrição de bradicardia e/ou assistolia é rara. As conexões das estruturas mesiais temporais com estruturas profundas como o hipotálamo devem ser responsáveis pelas manifestações vegetativas durante crises epilépticas temporais.

PALAVRAS-CHAVE: epilepsia do lobo temporal, bradicardia.

Bradycardia during temporal lobe seizure: case report

ABSTRACT - We describe a patient who had cardiac arrhythmia as epileptic manifestation. In a 34-year-old woman who had many episodes of loss of consciousness, the simultaneous ECG and video-EEG monitoring recorded bradycardia with a short episode of asystolia (4 seconds) and left temporal rhythmic teta activity on EEG. MRI showed a small mass lesion in the left parahippocampal gyrus. Alterations in cardiac rhythm have been reported in epileptic seizures and taquycardia is the most common finding associated with them; bradyarrhythmia during seizures was uncommon. Many interconnections among insular cortex, limbic system and hypothalamus, may be responsible for vegetative manifestations in temporal lobe epilepsy.

KEY WORDS: temporal lobe epilepsy, bradycardia.

Sintomas autonômicos frequentemente acompanham crises parciais. Entre estes, alterações da frequência e do ritmo cardíaco podem ser encontradas. Estudos têm demonstrado alterações cardiovasculares durante ou imediatamente após crises epilépticas, experimentalmente e em pacientes com várias formas de epilepsia1-6.

Arritmia cardíaca e/ou apnéia podem ser causa de morte súbita em pacientes com epilepsia7-10. Estruturas mesiais do lobo temporal, especialmente a amígdala e o hipocampo, estão relacionadas com o controle respiratório e autonômico. Estudos com estimulação e registro eletrencefalográfico sugerem que a amígdala participa no controle da frequência cardíaca (FC), pressão arterial (PA) e respiração9,11.

Apresentamos o registro de uma paciente com episódios de perda de consciência concomitante a períodos de assistolia, relacionados a manifestações clínica e eletrencefalográfica de tipo epiléptico.

CASO

Paciente de 34 anos, feminina, sem antecedentes prévios, em julho de 1994 passou a apresentar sensação inespecífica de "cabeça pesada", fraqueza generalizada, sensação de mal estar epigástrico; alguns episódios eram acompanhados de dificuldade na compreensão de palavras. Tinham duração de 1 a 2 minutos e algumas vezes evoluíam com perda de consciência. Procurou atendimento hospitalar tendo sido feitos tomografia de crânio (TC), e eletrencefalograma (EEG), que foram considerados normais, sendo então medicada com benzodiazepínico, com discreta melhora das manifestações. Em janeiro de 1995 estes episódios tornaram-se mais frequentes; eletrocardiograma, ecocardiograma e Holter de 24 horas foram normais. Apresentou quatro episódios de perda de consciência em um mês, sendo então instituída terapêutica com carbamazepina (CBZ) até 1200 mg por dia, com desaparecimento das manifestações por três meses. Em maio de 1995, mesmo em uso de CBZ, apresentou cerca de nove episódios de perda de consciência. Assim nova investigação cardiológica foi realizada, e durante estudo com Holter foi registrado período de assistolia por 18 segundos associado a perda de consciência. A paciente foi internada e instalado marca-passo cardíaco temporário. Durante a internação, após reavaliação dos exames anteriores, constatou-se na TC a presença de lesão cística na porção mesial do lobo temporal esquerdo (Fig 1). A paciente foi submetida a um exame de ressonância magnética (RM) de encéfalo que mostrou pequena lesão com componente cístico e sólido na região para-hipocampal esquerda sugestiva de processo expansivo de crescimento lento (Fig 2). O registro vídeo-eletrencefalográfico prolongado com diminuição da medicação antiepiléptica e privação de sono, mantendo-se o marca-passo cardíaco temporário com a frequência baixa, mostrou, no período intercrítico, atividade epileptiforme focal rara de projeção na região temporal esquerda (eletrodos F7 e zigomático esquerdo) tendo sido registradas três crises eletrográficas, que se iniciaram com ondas ritmadas em torno de 7Hz localizadas na região temporal esquerda, precedendo as alterações da FC. Em duas ocorreu somente aumento da FC sem manifestações clínicas, e na terceira (Fig 3) ocorreu inicialmente taquicardia, e ulteriormente bradicardia chegando a assistolia por quatro segundos. Durante esta crise a paciente apresentou mal estar inespecífico sem perda de consciência, a paciente encontrava-se em decúbito dorsal horizontal.




A paciente não concordou com tratamento cirúrgico da lesão cerebral, e devido a gravidade da alteração do ritmo cardíaco foi instalado marca-passo definitivo e à CBZ foi associado clonazepam. Foi realizado Holter de controle, o qual mostrou frequência cardíaca estável. A paciente apresenta ainda alguns episódios compatíveis com crises parciais simples, caracterizadas por sintomas vegetativos e afásicos, mas sem perda de consciência; o estudo por TC seriadas não mostrou alterações na lesão.

DISCUSSÃO

Trata-se de paciente que foi investigada devido a quadro de natureza sincopal ou epiléptica, pois seus sintomas não eram bem definidos. Durante a investigação ocorreram períodos de assistolia associados aos episódios de perda de consciência, além de lesão na região temporal esquerda. A correlação entre as anormalidades eletrencefalográficas e a mudança da FC evidencia que a atividade epileptiforme foi a causa da arritmia cardíaca.

Alterações cardíacas são descritas em pacientes epilépticos, sendo as mais frequentes as alterações do ritmo cardíaco principalmente o aumento da FC3,10,12-14. Li e col.3 estudaram alterações eletrocardiográficas em 61 crises parciais complexas originadas no lobo temporal de 20 pacientes e observaram taquicardia em 39% e bradicardia em 5%. Existem poucos registros de arritmia cardíaca grave associada a epilepsia6. Pritchett e col.15 descreveram dois casos de arritmia grave, possivelmente relacionados com epilepsia e Constantin e col.16 descreveram cinco pacientes que apresentavam bradicardia como manifestação epiléptica, chamando a atenção que esta causa incomum de arritmia cardíaca deve ser considerada no diagnóstico diferencial de síncope. Keilson e col.2 estudaram o eletrocardiograma durante o registro eletrencefalográfico de 338 pacientes com epilepsia, e não encontraram diferença na incidência de arritmia cardíaca grave entre esses pacientes e a população normal.

Não é surpreendente encontrar alterações do ritmo cardíaco como bradicardia acompanhando crises epilépticas originadas em porções mesiais do lobo temporal, pois estas estruturas fazem parte do córtex límbico, e estando interconectadas a várias estruturas responsáveis pelo controle autonômico, como hipotálamo, locus coeruleus e núcleos do tronco encefálico (núcleo mesiodorsal do vago, núcleo ventrolateral da ponte e núcleos da rafe, entre outros)17. Frysinger e Harper18, estudando atividade celular do lobo temporal epiléptico humano através de registro com eletrodos profundos, implicaram a amígdala na gênese desta disfunção e sugeriram que um conjunto de fatores provocaria alteração do ciclo cardíaco, tais como perda celular, perda seletiva de algumas fibras aferentes e possível reorganização sináptica da amígdala. Drake e col.19 estudando a resposta autonômica de pacientes epilépticos através da avaliação da resposta simpática pela pele e parassimpática pela medida do intervalo R-R no ECG, sugeriram que a função autonômica de pacientes epilépticos pode diferir da verificada na população geral.

Em outro estudo, também com eletrodos intracranianos em pacientes epilépticos, Epstein e col.12 descreveram que a amígdala teria papel limitado no controle da FC e que a difusão das descargas envolvendo outras estruturas do sistema límbico é que influenciaria a FC. Atividade epileptiforme restrita a amígdala não foi suficiente para alterar a FC que poderia ser influenciada por atividade crítica originada em qualquer porção do lobo temporal.

Healy e col.11 descreveram estudo experimental em ratos mostrando o efeito do kindling amigdaliano na função cardíaca. Este estudo indicou que crises iniciadas no sistema límbico podiam afetar as eferências vagais e cursar com bradicardia sinusal.

Outro fator que pode influenciar a FC, em pacientes epilépticos, é o uso das drogas antiepilépticas. Existem relatos de efeito depressor do sistema de condução cardíaca em pacientes utilizando CBZ por via oral20,21 e a retirada abrupta dessa e de outras drogas antiepilépticas também tem sido relacionada a alterações do ritmo cardíaco20,22. Nesta paciente os sintomas iniciaram antes do uso de drogas antiepilépticas e ela permaneceu assintomática por três meses quando foi então iniciado o uso de CBZ.

A frequência de arritmia cardíaca como manifestação epiléptica não é bem determinada. A monitorização vídeo- ECG/EEG é o melhor método para a diferenciação entre epilepsia e quadros sincopais23. A identificação de crise epiléptica causando arritmia cardíaca é necessária, pois implica em terapêutica específica. A identificação de anormalidades cardiovasculares relacionadas a crises epilépticas, levando a distúrbios do ritmo cardíaco e função pulmonar, é importante pois estas podem ser causa de morte súbita em pacientes epilépticos5-8,24.

BIBLIOGRAFIA

Dra. Carmen Lisa Jorge - Clínica Neurológica, Hospital das Clínicas, FMUSP - Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar - 05403-000 São Paulo SP - Brasil. Fax 3069 7149. E-mail: carmenlj@uol.com.br

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  • *
    Grupo de Epilepsia do Departamento de Neurologia, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), São Paulo, Brasil. Aceite: 1-junho-2000.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Dez 2000
    • Data do Fascículo
      Set 2000

    Histórico

    • Aceito
      01 Jun 2000
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