Acessibilidade / Reportar erro

Esclerose múltipla: correlação clínico-laboratorial

Multiple sclerosis: clinical and laboratorial correlation

Resumos

Aspectos clínicos e demográficos de 86 pacientes com o diagnóstico de esclerose múltipla (EM) forma clinicamente definida foram comparados aos achados do líquido cefalorraqueano. Do grupo total 30% encontrava-se em surto, 41% em remissão e 29% na forma crônica progressiva. Os pacientes com a forma crônica progressiva apresentavam índice de IgG sugestivo de imunoliberação intratecal em 76% dos casos, enquanto que aumento deste parâmetro foi observado em apenas 46% e 49%, das formas em surto e remissão, respectivamente (p<0,005). Os dados obtidos no estudo quantitativo da síntese intratecal de IgG contribuem para a demonstração de diferenças imunológicas entre ambas as formas de EM, surto-remissão e crônica progressiva. O uso de corticóides reduz quantitativamente a síntese intratecal de IgG mas não a síntese de bandas oligoclonais.

esclerose múltipla; líquido cefalorraqueano; bandas oligoclonais; focalização isoelétrica


The clinical and demographic characteristics of 86 Brazilian patients with clinically definite multiple sclerosis (MS) were compared to the cerebrospinal fluid (CSF) findings. The disease course was relapsing-remitting in 71% and chronic progressive in 29% of the cases. The IgG index was increased in 76% in the chronic progressive status and 46% and 49% during the bout and remission, respectively (p < 0.005). Only 36% of the MS patients using corticosteroids had increased IgG index, in comparison to the 64% of the patients without immunosupressive treatment. Oligoclonal IgG bands were detected in the CSF of 77% and 88% of the MS corticosteroids users and non-users, respectively. The quantitative study of intrathecal synthesis of IgG contributes to demonstrate the immunological differences between the two forms of MS, the relapsing-remitting and the chronic progressive. The treatment with corticosteroids decreases quantitatively the intrathecal synthesis of IgG but not the presence of oligoclonal bands.

multiple sclerosis; cerebrospinal fluid; oligoclonal bands; isoelectric focusing


ESCLEROSE MÚLTIPLA

Correlação clínico-laboratorial

Marzia Puccioni-Sohler1 Laboratório Especializado de LCR (Neurolife), Rio de Janeiro; Projeto Atlântico-Sul, Rio de Janeiro, Brasil: 1Neurologistas; 2Estagiário; 3Coordenadora do Projeto Atlântico-Sul. , Fabiola Passeri Lavrado1 Laboratório Especializado de LCR (Neurolife), Rio de Janeiro; Projeto Atlântico-Sul, Rio de Janeiro, Brasil: 1Neurologistas; 2Estagiário; 3Coordenadora do Projeto Atlântico-Sul. , Reizer Reis Gonçalves Bastos2 Laboratório Especializado de LCR (Neurolife), Rio de Janeiro; Projeto Atlântico-Sul, Rio de Janeiro, Brasil: 1Neurologistas; 2Estagiário; 3Coordenadora do Projeto Atlântico-Sul. ,

Carlos Otávio Brandão1 Laboratório Especializado de LCR (Neurolife), Rio de Janeiro; Projeto Atlântico-Sul, Rio de Janeiro, Brasil: 1Neurologistas; 2Estagiário; 3Coordenadora do Projeto Atlântico-Sul. , Regina Papaiz-Alvarenga3 Laboratório Especializado de LCR (Neurolife), Rio de Janeiro; Projeto Atlântico-Sul, Rio de Janeiro, Brasil: 1Neurologistas; 2Estagiário; 3Coordenadora do Projeto Atlântico-Sul.

RESUMO - Aspectos clínicos e demográficos de 86 pacientes com o diagnóstico de esclerose múltipla (EM) forma clinicamente definida foram comparados aos achados do líquido cefalorraqueano. Do grupo total 30% encontrava-se em surto, 41% em remissão e 29% na forma crônica progressiva. Os pacientes com a forma crônica progressiva apresentavam índice de IgG sugestivo de imunoliberação intratecal em 76% dos casos, enquanto que aumento deste parâmetro foi observado em apenas 46% e 49%, das formas em surto e remissão, respectivamente (p<0,005). Os dados obtidos no estudo quantitativo da síntese intratecal de IgG contribuem para a demonstração de diferenças imunológicas entre ambas as formas de EM, surto-remissão e crônica progressiva. O uso de corticóides reduz quantitativamente a síntese intratecal de IgG mas não a síntese de bandas oligoclonais.

PALAVRAS-CHAVE: esclerose múltipla, líquido cefalorraqueano, bandas oligoclonais, focalização isoelétrica.

Multiple sclerosis: clinical and laboratorial correlation

ABSTRACT - The clinical and demographic characteristics of 86 Brazilian patients with clinically definite multiple sclerosis (MS) were compared to the cerebrospinal fluid (CSF) findings. The disease course was relapsing-remitting in 71% and chronic progressive in 29% of the cases. The IgG index was increased in 76% in the chronic progressive status and 46% and 49% during the bout and remission, respectively (p < 0.005). Only 36% of the MS patients using corticosteroids had increased IgG index, in comparison to the 64% of the patients without immunosupressive treatment. Oligoclonal IgG bands were detected in the CSF of 77% and 88% of the MS corticosteroids users and non-users, respectively. The quantitative study of intrathecal synthesis of IgG contributes to demonstrate the immunological differences between the two forms of MS, the relapsing-remitting and the chronic progressive. The treatment with corticosteroids decreases quantitatively the intrathecal synthesis of IgG but not the presence of oligoclonal bands.

KEY WORDS: multiple sclerosis, cerebrospinal fluid, oligoclonal bands, isoelectric focusing.

A esclerose múltipla (EM) é doença desmielinizante do sistema nervoso central (SNC) de evolução crônica. Ocorre um processo seletivo de inflamação local com desmielinização, envolvendo mecanismos imunes celular e humoral. Como consequência deste processo surgem as alterações no líquido cefalorraqueano (LCR) características da doença, tais como a presença de bandas IgG oligoclonais e aumento do índice de IgG, indicando a síntese intratecal de imunoglobulinas1,2.

A maioria dos pacientes (85%) inicia o seu quadro clínico com a forma surto-remissão e, em cerca de 10 anos, evoluem para forma clínica crônica progressiva secundária. A doença predomina na faixa etária de 18-50 anos, sendo uma das doenças neurológicas de maior incapacitação física no adulto jovem3.

O objetivo deste estudo consiste em avaliar se as características clínicas relacionadas a EM representam fatores determinantes no perfil do LCR.

MÉTODO

Foram coletadas amostras de LCR e soro de 86 pacientes (64 do gênero feminino) com diagnóstico de EM forma clinicamente definida4, atendidos no Hospital da Lagoa, Rio de Janeiro e cadastrados no Projeto Atlântico-Sul5.

O exame do LCR incluiu estudo da citologia, bioquímica, quociente de albumina, índice de IgG, IgG IF (intrathecal IgG fraction), diagrama de Reiber e Felgenhauer6 e banda IgG oligoclonal pelo método de focalização isoelétrica com coloração pela prata. Avaliação bacteriológica para germes comuns e bacilos álcool-ácido resistentes, micológica e virológica para HIV-1/2, HTLV-I/II, CMV e HSV foram também realizadas. Todas as amostras de LCR foram submetidas a pesquisa de anticorpos para cisticercose e sífilis.

Teste t de Student ou Mann-Whitney, X2 /teste de Fisher e análise de variância de Kruskal-Wallis foram utilizados para análise estatística. O nível de significância foi 5%.

RESULTADOS

A idade dos pacientes variou de 10-62 anos (mediana, 41 anos), o tempo de doença de 3 meses a 31anos (mediana, 7 anos) e o número de surtos de 2-15 surtos (mediana, 3 surtos). Os grupos étnicos corresponderam a 61 pacientes brancos e 26 não-brancos. Os pacientes classificados como não-brancos representavam os indivíduos de cor parda e negra. Do grupo total 30% (26/86) encontravam-se em surto, 41% (35/86) em remissão e 29% (25/86) na forma crônica progressiva. Trinta e nove por cento (25/64) dos pacientes usavam imunossupressor durante ou nos seis meses prévios à punção lombar. Os agentes imunossupressivos incluíram metilprednisolona (1g/dia IV por 3 dias consecutivos) ou prednisona (60-80 mg/dia via oral). Em 22 pacientes não foi possível obter história sobre o uso de medicamentos imunossupressivos.

O exame do LCR revelou pleocitose (>4 células p/ mm3) em 15% (13/86), hiperproteinorraquia (proteína >40mg/dl) em 20% (17/86), índice de IgG > ou = 0,7 em 56% (48/86), IgG IF > ou = 10 em 47% (40/86), Q de Albumina > ou = 8x10-3 em 14% (12/86), presença de banda oligoclonal no LCR em 85% (46/54). Os resultados da correlação são mostrados nas Tabela 1 e Figura1.


DISCUSSÃO

O exame do LCR tem sido utilizado como apoio ao diagnóstico de EM, conforme critério de Poser et al.4. A sociedade européia de EM estabeleceu, em 1994, um conjunto de testes considerados necessários para a avaliação do LCR, demonstrando a origem inflamatória do processo7. Parâmetros de inflamação incluem pleocitose e síntese intratecal de IgG total ou especifica. No presente estudo pleocitose ocorreu em 15% dos casos e síntese intratecal de IgG em 56% utilizando o índice de IgG, em 49% de acordo com o IgG IF6 e em 85% pelo estudo de banda IgG oligoclonal8.

A análise da correlação entre variáveis clínicas e laboratoriais demonstra que os pacientes com a forma crônica progressiva apresentam com mais frequência síntese intratecal de IgG quantitativamente detectável (76%) em comparação às formas de surto-remissão (48%). Diferenças são também observadas através de estudos clínicos, patológicos e de neuroimagem. Na forma crônica progressiva ocorre constante piora do quadro clínico. A demonstração de processo auto-imune parece ser menos comum na forma crônica progressiva. Maior número e carga das lesões na ressonância magnética têm sido encontrados nos pacientes com evolução recidivante em comparação às formas de EM progressivas primárias9-11. Tratamento com imunomoduladores tais como interferon beta1b, beta 1a ou copolímero resulta em diferentes respostas de acordo com a forma clínica. A eficácia do uso dos interferons já é bem documentada na literatura em pacientes com surto-remissão. Atualmente discute-se sua eficácia nas formas crônicas progressivas secundárias3.

No presente estudo, foi demonstrada correlação entre o uso de corticosteróides e a menor frequência de síntese intratecal de IgG, avaliada pelo índice de IgG, independente da forma clínica, tempo de doença e estado clínico. Redução quantitativa na síntese intratecal de IgG pelo uso de agentes imunoterapêuticos tais como corticosteróides tem sido previamente documentada12. A concentração de IgG permanece reduzida no LCR por período de pelo menos 3 meses, enquanto no soro os valores são restabelecidos mais rapidamente. Nenhuma correlação foi observada entre o desaparecimento das bandas IgG oligoclonais e o uso de imunossupressores. Existem alguns estudos que demostram o efeito a curto e longo prazo do uso de metilprednisolona na diminuição do número de bandas no LCR de alguns pacientes12. Entretanto, estes resultados não são uniformemente observados. Em relação a imunossupressores do grupo da azatioprina, ciclofosfamida e imunomoduladores como interferon-beta, nenhum efeito foi demonstrado na IgG oligoclonal11.

No que concerne à celularidade, nenhuma influência do uso de corticosteróides pôde ser evidenciada neste estudo. Entretanto, redução da contagem de células tem sido documentada na literatura, com decréscimos de até 50% após o uso de metilprednisolona e ciclofosfamida e duração de até 2 anos12. Este efeito parece ser mais significativo nas formas surto-remissão do que crônica progressiva e não relacionado ao grau de incapacidade clínica. Repercussão na contagem de células não tem sido observada com o uso do interferon-beta12. O uso de corticosteróides não influenciou a função da barreira hemato-LCR, avaliada pelo quociente de albumina. Uma significativa diferença neste parâmetro foi encontrada entre os pacientes brancos e não-brancos.

Os dados obtidos sugerem que as características clínicas não parecem ter influência na contagem de células e na presença de bandas IgG oligoclonais. Entretanto, o estudo quantitativo da síntese intratecal de IgG contribui para determinar diferenças imunológicas nas formas surto-remissão e crônica progressiva. O uso de corticóides reduz quantitativamente a síntese intratecal de IgG mas não a síntese de bandas IgG oligoclonais. A integridade da barreira hemato-LCR observada em todos os indivíduos de cor parda ou negra pode representar uma característica populacional que deverá ser melhor avaliada.

Recebido 1 Setembro 2000, recebido na forma final 9 outubro 2000. Aceito 11 outubro 2000.

Dra. Marzia Puccioni-Sohler - Rua Dezenove de Fevereiro 185/705 - 22280 030 Rio de Janeiro RJ - Brasil - Fax: 5521 295 1903. E-mail: sohler@netyet.com.br.

  • 1. Reiber H, Ungefehr S, Jacobi C. The intrathecal, polyspecific and oligoclonal immune response in multiple sclerosis. Multiple Sclerosis 1998;4:11-117.
  • 2. Puccioni-Sohler M, Passeri F, Oliveira C, Brandão CO, Papaiz-Alvarenga R. Multiple sclerosis in Brazil: analysis of cerebrospinal fluid by standard methods. Arq Neuropsiquiatr 1999;57:927-931.
  • 3. Jongen PJH, Lamers KJ, Doesburg WH, Lemmens WAJG, Hommes OR. Cerebrospinal fluid analysis differentiates between relapsing-remitting and secondary progressive multiple sclerosis. J Neurol Neurosurg Psychiatry 1997;63:446-451.
  • 4. Poser C, Paty DW, Scheinberg L, et al. New diagnostic criteria for multiple sclerosis: guidelines for research protocols. Ann Neurol 1983;13:227-231.
  • 5. Papais-Alvarenga R, Leon AS, Miranda C, et al. Characteristics of multiple sclerosis in Brazil: a multicentric study in a prevalence cohort -South Atlantic Project Phase I (abstract). J Neurol Sci 1997;150(Suppl): S229.
  • 6. Reiber H, Felgenhauer K. Protein transfer at the blood cerebrospinal fluid barrier and the quantification of the humoral immune response within the central nervous system. Clin Chim Acta 1987;163:319-328.
  • 7. Anderson M, Alvarez-Cermeno J, Bernardini G, et al. Cerebrospinal fluid in the diagnosis of multiple sclerosis: a consensus report. J Neurol Neurosurg Psychiatry 1994;57:897-902.
  • 8. Puccioni-Sohler M. Esclerose múltipla: novas aquisições tecnológicas para a analise do líquido cefalorraquiano. Rev Bras Neurol 1996;32: 95-99.
  • 9. Fellay B, Gougeon ML, Juilard C, Paunier AM, Landis T, Chofflon M. An immunological marker distinguishes CPMS from RRMS in multiple sclerosis (Abstr). 15th Congress of the European Committee for Treatment and Research in Multiple Sclerosis. Basel, Switzerland, 1999:239.
  • 10. Sinnige LG, Teeuwissen E, Hew JM, Minderhound JM. Correlation between magnetic resonance imaging and clinical parameters in multiple sclerosis. Acta Neurol Scand 1995;91:188-191.
  • 11. Barnes D, Munro PM, Youl BD, Prineas JW, McDonald WI. The longstanding MS lesion: a quantitative MRI and electron microscopic study. Brain 1991;114:1271-1280.
  • 12. Lamers KJB, Frequin STFM, Hommes OR. Effects of immunotherapeutic strategies on cerebrospinal fluid parameters in multiple sclerosis. In: Thompson EJ, Trojano M, Livrea P. Cerebrospinal fluid analysis in multiple sclerosis. Milano: Springer- Verlag, 1996:113-122.
  • Laboratório Especializado de LCR (Neurolife), Rio de Janeiro; Projeto Atlântico-Sul, Rio de Janeiro, Brasil:
    1Neurologistas;
    2Estagiário;
    3Coordenadora do Projeto Atlântico-Sul.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Abr 2001
    • Data do Fascículo
      Mar 2001

    Histórico

    • Aceito
      11 Out 2000
    • Revisado
      09 Out 2000
    • Recebido
      01 Set 2000
    Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista.arquivos@abneuro.org