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Prevalência da epilepsia entre os índios Bakairi do estado do Mato Grosso, Brasil

Prevalence of epilepsy in Bakairi indians from Mato Grosso State, Brazil

Resumos

O objetivo deste estudo, tipo corte transversal, com base populacional foi determinar a prevalência da epilepsia, mediante delineamento em duas etapas, entre os índios Bakairi que residem às margens do rio Paranatinga, no planalto central no Estado do Mato Grosso/Brasil. O estudo foi feito de porta-a-porta em 103 casas, abrangendo 483 dos 546 indivíduos que aí vivem. A sensibilidade do instrumento foi de 88,8% (IC-95%, 84,9-93) a especificidade de 97,8% (IC-95%, 95-98), a prevalência de epilepsia ativa foi de 12,4‰ e a inativa, de 6,2‰. A prevalência de epilepsia foi considerada alta, provavelmente em consequência do fator de risco familial (p=0,04), uma vez que outros não foram relevantes.

epilepsia; prevalência; fator de risco; índios Bakairi


The purpose of this cross-sectional study was to evaluate the prevalence of epilepsy in a population based sample: the Bakairi indians, who live on the banks of Paranatinga river in the central plateau of Mato Grosso state, Brazil. This population is composed of 483 inhabitants. The study was outlined in two stages, and the investigation was door-to-door in a total of 103 houses. The results of the instrument showed a sensitivity of 88% (CI- 95%, 84.9-93), specificity of 97.8% (CI-95, 95-98). The prevalence of active epilepsy was 12.4‰, and inactive was 6.2‰. This prevalence of the epilepsy was considered high probably due to some familial risk factor (p=0.04) among those Indians, while other factors were not important.

epilepsy; prevalence; risk factor; Bakairi indian


PREVALÊNCIA DA EPILEPSIA ENTRE OS ÍNDIOS BAKAIRI DO ESTADO DO MATO GROSSO, BRASIL

Moacir Alves Borges1 1 Departamento de Ciências Neurológicas da Faculdade de Medicina Rio Preto (FAMERP), São José do Rio Preto SP, Brasil: Professor Assistente Mestre, responsável do Serviço de Neurofisiologia Clínica da FAMERP; 2 Antropóloga Professora Doutora Adjunta da Faculdade Federal do Mato Grosso (UFMT), Cuibá MT, Brasil; 3 Professora Doutora Chefe do Departamento de Epidemiologia e Saúde Coletiva da FAMERP; 4 Acadêmica da FAMERP. , Edir Pina de Barros2 1 Departamento de Ciências Neurológicas da Faculdade de Medicina Rio Preto (FAMERP), São José do Rio Preto SP, Brasil: Professor Assistente Mestre, responsável do Serviço de Neurofisiologia Clínica da FAMERP; 2 Antropóloga Professora Doutora Adjunta da Faculdade Federal do Mato Grosso (UFMT), Cuibá MT, Brasil; 3 Professora Doutora Chefe do Departamento de Epidemiologia e Saúde Coletiva da FAMERP; 4 Acadêmica da FAMERP. , Dirce Maria Trevisan Zanetta3 1 Departamento de Ciências Neurológicas da Faculdade de Medicina Rio Preto (FAMERP), São José do Rio Preto SP, Brasil: Professor Assistente Mestre, responsável do Serviço de Neurofisiologia Clínica da FAMERP; 2 Antropóloga Professora Doutora Adjunta da Faculdade Federal do Mato Grosso (UFMT), Cuibá MT, Brasil; 3 Professora Doutora Chefe do Departamento de Epidemiologia e Saúde Coletiva da FAMERP; 4 Acadêmica da FAMERP. , Ana Paula Pina Borges4 1 Departamento de Ciências Neurológicas da Faculdade de Medicina Rio Preto (FAMERP), São José do Rio Preto SP, Brasil: Professor Assistente Mestre, responsável do Serviço de Neurofisiologia Clínica da FAMERP; 2 Antropóloga Professora Doutora Adjunta da Faculdade Federal do Mato Grosso (UFMT), Cuibá MT, Brasil; 3 Professora Doutora Chefe do Departamento de Epidemiologia e Saúde Coletiva da FAMERP; 4 Acadêmica da FAMERP.

RESUMO - O objetivo deste estudo, tipo corte transversal, com base populacional foi determinar a prevalência da epilepsia, mediante delineamento em duas etapas, entre os índios Bakairi que residem às margens do rio Paranatinga, no planalto central no Estado do Mato Grosso/Brasil. O estudo foi feito de porta-a-porta em 103 casas, abrangendo 483 dos 546 indivíduos que aí vivem. A sensibilidade do instrumento foi de 88,8% (IC-95%, 84,9-93) a especificidade de 97,8% (IC-95%, 95-98), a prevalência de epilepsia ativa foi de 12,4‰ e a inativa, de 6,2‰. A prevalência de epilepsia foi considerada alta, provavelmente em consequência do fator de risco familial (p=0,04), uma vez que outros não foram relevantes.

PALAVRAS-CHAVE: epilepsia, prevalência, fator de risco, índios Bakairi.

Prevalence of epilepsy in Bakairi indians from Mato Grosso State, Brazil

ABSTRACT - The purpose of this cross-sectional study was to evaluate the prevalence of epilepsy in a population based sample: the Bakairi indians, who live on the banks of Paranatinga river in the central plateau of Mato Grosso state, Brazil. This population is composed of 483 inhabitants. The study was outlined in two stages, and the investigation was door-to-door in a total of 103 houses. The results of the instrument showed a sensitivity of 88% (CI- 95%, 84.9-93), specificity of 97.8% (CI-95, 95-98). The prevalence of active epilepsy was 12.4‰, and inactive was 6.2‰. This prevalence of the epilepsy was considered high probably due to some familial risk factor (p=0.04) among those Indians, while other factors were not important.

KEY WORDS: epilepsy, prevalence, risk factor, Bakairi indian.

A epilepsia é o terceiro dos distúrbios neurológicos mais comuns. O referido transtorno ocasiona problema de saúde pública na comunidade e como tal deve ser abordado1-3. A investigação epidemiológica para determinar a freqüência, a distribuição e os fatores de risco desta entidade se faz necessária e deve ser representativa entre as diversas populações de um país4. Os resultados dos estudos epidemiológicos sobre epilepsia têm apontado ampla faixa de variação como valores entre 0,9‰ habitantes5 e 57‰6 para a prevalência e 26/100000/ano7,8 para a incidência. As referidas variações podem representar diferenças entre as populações estudadas em consequência de fatores tais como o serviço inadequado de saúde pública (particularmente os cuidados perinatais), o programa de vacinação, a exposição a agentes infecciosos ou infestantes como cisticercose e o trauma crânio-encefálico, embora questões metodológicas possam contribuir ou ser a razão de resultados tão distintos4. O fato é que numerosos estudos têm mostrado que os países em desenvolvimento apresentam prevalência de epilepsia significantemente maior que os países desenvolvidos. Gracia et al.6, no final da década de oitenta, na República do Panamá, onde a prevalência populacional de epilepsia era de 22‰, analisaram uma comunidade indígena já em contato com a população branca de longa data, porém sem miscegenação. Encontraram alta prevalência de epilepsia (57‰), sendo o fator de risco mais importante a história com antecedentes familiares de epilepsia (RR = 14).

O Brasil, embora, com poucos estudos epidemiológicos, apresenta prevalência de epilepsia similar aos países em desenvolvimento. Mesmo nas áreas cosmopolitas onde há acesso à medicina com tecnologia de ponta, a prevalência é alta por não atingir o sistema de saúde pública a totalidade da população2,3, além dos contigentes migratórios das zonas rurais ou cidades pequenas que não dispunham de saneamento básico satisfatório. A respeito das comunidades indígenas brasileiras, atualmente não há estudos referentes aos aspectos epidemiológicos sobre epilepsia.

O objetivo do presente estudo foi determinar a prevalência e os principais fatores de risco da epilepsia entre os índios Bakairi.

MÉTODO

Estudo populacional: Nação Bakairi

Os Bakairi, povo de língua Karíb, vivem em terras Indígenas denominadas Bakairi e Santana, situadas na região do cerrado norte mato-grossense, sudoeste do Alto Xingu. A Terra Indígena Bakairi localiza-se às margens do rio Paranatinga (municipío de Paranatinga) e Santana nas cabeceiras do rio Arinos (município de Nobres). Os rios Paranatinga ou Telles Pires e Arinos pertencem à Bacia Amazônica (Fig 1). Na Terra Indígena Bakairi (município de Paranatinga) somam-se 546 indivíduos distribuídos em sete aldeias. Em Santana (município de Nobres) vivem 166 Bakairi, em três aldeias. Além destes 712 Bakairi, existem alguns que residem em cidades, dentre elas Nobres, Paranatinga e Cuiabá.


Os Bakairi residem em casas de pau-a-pique barroteadas. Sobrevivem da agricultura (mandioca e arroz), da pesca, da criação de gado, assumindo a caça e a coleta, um papel secundário e complementar.

Concorrem, para a sua sobrevivência, os proventos oriundos das aposentadorias e salários por trabalhos prestados nas aldeias e às prefeituras dos municípios onde vivem (professores e merendeiras) e à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão governamental responsável pela tutela dos indígenas brasileiros, vinculado ao Ministério da Justiça. Cada aldeia tem o seu próprio líder e possui relativa autonomia econômica e política frente a outras unidades sociais da mesma ordem. Os interesses comuns são discutidos em reuniões de líderes ou caciques. Eles são alfabetizados na própria língua materna ¾ que todos praticam - tendo como segunda língua o português, que falam fluentemente.

O atendimento à saúde, inicialmente sob a responsabilidade da Fundação Nacional do Índio, hoje está a cargo da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), órgão do Ministério da Saúde que em novembro de 1999, através do Convênio 349/99, firmou parceria com o Instituto de Apoio ao Desenvolvimento Humano e do Meio Ambiente/Tropicus, organização não governamental voltada a atenção primária à saúde dos povos indígenas de uma parcela do Distrito Sanitário Especial Indígena de Cuiabá (DSEICUIABA), dentre os Baikiri. Essa entidade se encarrega do atendimento médico-odontológico ambulatorial, além de realizar e manter o arquivo das patologias encontradas. Além disso, atuam em cada uma das aldeias, os Agentes Indígenas de Saúde (AIS), egressos dos quadros da FUNAI e hoje da FUNASA, que prestam os primeiros atendimentos primários de saúde ¾ processo que envolve os xamãs ou curandeiros.

Pesquisa populacional

A primeira fase do estudo observacional populacional tipo corte transversal foi executado mediante questionário de rastreamento de epilepsia de Placencia et al.9, (sensibilidade de 79.3% e especificidade de 96,3%), modificado para 8 perguntas, já testado na cidade de São José do Rio Preto, cujo estudo piloto mostrou sensibilidade 95,8% (IC-95%;94,5-97) e especificidade de 97,8% (IC-95%;96,9-98,7). Foi aplicado na população da Terra Indígena Bakairi às margens do rio Paranatinga, constituída de 546 índios, tendo sido objeto deste estudo apenas 483 (88,46%) que na atualidade residem em 103 casas, com início em julho e término em dezembro de 2000.

O instrumento foi aplicado de porta-em-porta por uma acadêmica do 3º ano da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, acompanhada e orientada pelo AIS e supervisionada por um antropólogo10,11. O objetivo, dessa etapa, foi identificar todos os casos referentes às crises epilépticas, às crises únicas, às sintomáticas agudas e febris. Foram considerados dois tipos de situações: o primeiro, cujo questionário aplicado revelou pelo menos uma questão com resposta afirmativa, tendo sido considerado teste POSITIVO e o segundo em que todas as respostas foram negativas, considerou-se teste NEGATIVO.

A partir dos resultados destes questionários, foi aplicado o padrão ouro: história clínica, exame neurológico12, eletrencefalograma (EEG)13. Aplicou-se o padrão ouro por um neurofisiologista com experiência em epilepsia em casos positivos com a finalidade de se determinar os casos verdadeiros e os falsos positivos. Em seguida, o protocolo padrão foi aplicado em 50 indivíduos, escolhidos ao acaso, dos indivíduos considerados negativos para se determinar os verdadeiros e falsos negativos.

Todos os resultados foram cruzados com os registros médicos do Instituto Trópicus, com auxílio do AIS. Também foram coletados os dados sobre idade, sexo, tempo de crise, frequência, história familial de epilepsia, tipos e síndromes epilépticas, terapia e controle de crises.

Classificação dos pacientes de acordo com o tipo e síndrome epiléptica

Foram adotados os critérios de classificação da "International League against Epilepsy" (ILAE)14,15, quanto às crises e síndromes epilépticas na elaboração do protocolo padrão. Além disso, incluíram-se apenas aquelas pessoas que tiveram, pelo menos, duas crises não provocadas e com intervalo superior a 24 h entre a primeira e a segunda crise. Foi adotado o critério de epilepsia ativa de Jacoby16, isto é, pelo menos uma crise nos dois últimos anos. Utilizou-se o critério de Palmine e Da Costa17 para diferenciar a epilepsia de crises epilépticas, segundo o qual, a primeira constitui manifestações de diferentes distúrbios cerebrais (algumas vezes sua principal manifestação), e a segunda é apenas uma das manifestações da entidade.

A etiologia da epilepsia foi classificada de acordo com as normas da "Commission Epidemiology and Prognosis" da ILAE18, conforme segue: idiopática refere-se à epilepsia que se enquadra em umas das síndromes epilépticas (presumidamente genética) e ocorre na ausência de quaisquer anormalidades neurológicas; sintomática refere-se à epilepsia que ocorre na presença de uma agressão remota ou a uma prévia desordem que seja reconhecidamente associada a fator de risco da epilepsia e, finalmente, o termo criptogênico que é usado para a ausência de causa identificável, e o paciente não reunir critério para a síndrome epiléptica idiopática. A Figura 2 mostra o diagrama do delineamento do estudo.


Avaliação do controle das crises

O controle das crises foi avaliado baseando-se nos critérios de Semah et al.19 em 4 grupos: fácil controle (pacientes sem crises usando monoterapia nas dosagens usuais diárias); crise de difícil controle (pacientes sem crises sob politerapia em altas doses diárias); sem controle de crises e controle não definido (por exemplo, por evolução inadequada ou falta de dados).

Foi fornecido a todos índios participantes uma fixa contendo o consentimento informado.

Os resultados foram armazenados em planilha do Excel para os cálculos estatísticos do c2 , e teste exato de Fisher para análise estatística de amostras pequenas. Usou-se o intervalo de confiança (IC, 95%) na estimação paramétrica dos atuais resultados comparado com os da literatura. Foi considerado resultado significante o que produzisse valor p< 0,05.

RESULTADOS

O número de pessoas estudadas foi 483, sendo que um casal, após fazer o EEG, se negou a assinar o consentimento informado, tendo sido excluído da presente pesquisa. Do restante, 234 (48,6%) eram do sexo masculino, o que não pode ser considerado diferente do feminino (p = 0,7). A mediana da idade foi de 21 (primeiro interquartil de 10 e terceiro de 37,5) conforme mostra a Figura 3.


A avaliação, que utilizou questionário padrão ouro12 nos 24 casos positivos (Fig 2) apontados no rastreamento, identificou 16 casos falsos positivos. Destes, 9 foram de eventos não epilépticos psicogênicos (ENEP), 5 com crise única, 2 com convulsão febril e 1 com distúrbio de ritmo cardíaco. Dos 457 casos negativos rastreados, apenas um revelou-se falso negativo. A validação do questionário aplicado nessa população de 481 índios Bakairi mostrou sensibilidade de 88,9% e especificidade de 97,8%.

Entre os 9 casos de epilepsia 5 (55%) apresentavam crises parciais (1 complexa, 1 experiêncial, 1 visual, 1 sensitiva e 1 indefinida) e 3 (33,3%) não classificadas e 1 (11,1%) generalizada atônica (Tabela 1).

Os EEGs foram normais em todos os índios epilépticos estudados, exceto o caso de uma criança, atualmente com 9 meses e que, aos 3 meses, iniciaram-se as crises do tipo espasmos em flexão, parada do desenvolvimento, epilepsia generalizada do tipo crises atônicas diárias. Seu EEG mostrou atividade elétrica cerebral alentecida, com predomínio de ondas theta/delta pontiagudas de voltagem até 200µV além de descargas de poliponta difusa.

Apenas três epilépticos faziam uso regular de drogas anti-epilépticas (DAE), sendo que dois casos tinham crises parciais com evolução para crise tônico-clônica mensais, com mais de 20 anos de duração, faziam uso de politerapia com fenobarbital (100 mg/dia) fenitoína (200 mg/dia) e um caso da síndrome de West que usava clonazepan (2 mg/dia).

Cinco epilépticos apresentavam antecedentes familiares de epilepsia, ausentes outros fatores de risco como traumatismo crânio-encefálico (perda da consciência por mais de 30 minutos), alcoolismo, cisticercose, vascular e tumores cerebrais (Tabela 2).

DISCUSSÃO

Este estudo mostra uma prevalência de epilepsia de 18,6‰ entre os índios Bakairi, em 12,4‰ trata-se de epilepsia ativa. Estudos, embora com metodologias diferentes, mas também com bases populacionais urbanas no Brasil, mostram resultados similares3,4. Gracia et al.6, usando metodologia semelhante, estudaram a prevalência de epilepsia na população dos índios Guaymis no Panamá. Encontraram a surpreendente prevalência de 57‰, sendo este fato relacionado ao fator de risco "antecedentes familiares"; em estudo na população urbana da cidade do Panamá, encontraram prevalência de epilepsia ativa de 22‰20.

A prevalência de epilepsia de 18,6‰ encontrada neste estudo aproxima-se mais das encontradas nos países em desenvolvimento10,21-26 que nos industrializados16,27-30.

Era de se esperar que a prevalência de epilepsia entre os Bakairi estivesse abaixo da encontrada nos países em desenvolvimento, portanto mais próxima à dos países desenvolvidos, mesmo levando-se em conta o viés metodológico inerente a amostragens pequenas31. Essa referida expectativa deve-se aos seguintes fatos: a população estudada tem assistência de saúde pública satisfatória, serviços de assistência de natalidade e puericultura; população jovem (idade média de 25,5 anos, com o primeiro quartil em 10 e o terceiro em 37,5 anos), reduzida população de idosos (menos de 2,5% pessoas acima de 70 anos); ausência de acidentes de trânsito e sem guerras tribais há mais de 40 anos como causa de traumatismos cranianos; pelo fato de não haver culturalmente o hábito de se criar porcos para alimentação entre esse povo, a neurocisticercose não constitui fator de risco para a epilepsia como acontece nos estados ao sul do Brasil, segundo Bittencourt et al.8. Porém, não se fez exames de imagem e/ou de líquor cefalorraqueano. O alcoolismo não constitui problema para a população em tela.

O possível fator de risco que explicaria a alta prevalência encontrada entre os índios Bakairi fica por conta do antecedente familial, conforme os números da Tabela 2 (p = 0,04). Tal fato decorre da grande consanguinidade existente entre os índios Bakairi. Três fatos reforçam essa hipótese: 1) a população, há 60 anos, girava em torno de 140 indivíduos10,32 e, atualmente, é composta por aproximadamente 546 indivíduos; 2) não houve miscigenação significante com outros povos32, portanto essa significante expansão populacional se deve, sobretudo, aos casamentos entre membros dessa comunidade. Corroboram esta verificação, ainda, os dois casos registrados, entre os casos falsos positivos, de crise convulsiva febril que também tem ocorrência com tendência familiar.

Os índios Bakairi têm pleno conhecimento do que é uma crise convulsiva, mas não das crises epilépticas não convulsivas. As convulsões são tratadas, segundo os rituais de sua cultura. Acreditam que durante o período da concepção até o primeiro ano de vida, os pais não podem matar e nem se alimentar de determinados animais como o tatu, a paca, o veado, porque que as mioclonias pré-morte (convulsão) passariam para a criança por vingança dos espíritos tutores de cada espécie dos animais abatidos10,11. Mas, também são encaminhadas para tratamento médico convencional presente na própria aldeia. Estes aspectos, acrescidos do fato de eles falarem fluentemente o português, serem dóceis e colaborantes foram relevantes na realização e conclusão dos resultados deste trabalho.

A principal limitação deste estudo foi o pequeno número de indivíduos na população, o que ocasionou uma reduzida amostra de indivíduos com epilepsia. Estudos em comunidade indígena, por outro lado, abrem a possibilidade de se abordar pessoas epilépticas virgens de tratamento medicamentoso, o que não acontece nas demais comunidades tidas como civilizadas, propiciando o conhecimento sobre evolução natural dessa doença conforme Sander tem alertado31. De qualquer forma, o estudo apresentou benefício imediato à população estudada, uma vez que dois índios sem diagnóstico de epilepsia foram diagnosticados e medicados, e o medicamento foi prontamente disponibilizado pelo Instituto Trópicus.

A presente pesquisa alerta sobre a alta prevalência de epilepsia nos índios Bakairi e este fato, provavelmente, seja devido ao fator de risco familial, uma vez que os outros fatores de riscos de epilepsia estão ausentes. Espera-se que estudos futuros com outras Nações indígenas brasileiras possibilitem a comparação dos atuais resultados para que estes achados sejam abordados de forma científica, minimizando o sofrimento causado pela epilepsia nessa minoria étnica brasileira, sem entretanto interferir e mesmo obstruir seus costumes quanto às abordagens xamânicas.

Agradecimentos ¾ Agradecemos ao laboratório LUCOR Eletromedicina Ltda. que forneceu o eletrencefalógrafo digital e o engenheiro técnico para realização dos 50 exames na aldeia.

Recebido 11 Junho 2001, recebido na forma final 3 Setembro 2001. Aceito 21 Setembro 2001.

Dr. Moacir Alves Borges - Av. Faria Lima 5622 - 15090-000 São José do Rio Preto SP - Brasil. E-mail: moacirb@wn.com.br

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  • 1
    Departamento de Ciências Neurológicas da Faculdade de Medicina Rio Preto (FAMERP), São José do Rio Preto SP, Brasil:
    Professor Assistente Mestre, responsável do Serviço de Neurofisiologia Clínica da FAMERP;
    2
    Antropóloga Professora Doutora Adjunta da Faculdade Federal do Mato Grosso (UFMT), Cuibá MT, Brasil;
    3
    Professora Doutora Chefe do Departamento de Epidemiologia e Saúde Coletiva da FAMERP;
    4
    Acadêmica da FAMERP.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Abr 2002
    • Data do Fascículo
      Mar 2002

    Histórico

    • Aceito
      21 Set 2001
    • Recebido
      03 Set 2001
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