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Sequela comportamental pós-traumatismo craniano: o homem que perdeu o charme

Post-traumatic brain injury behavioural sequelae: the man who lost his charm

Resumos

É apresentado caso de traumatismo craniencefálico com sintomas de síndrome disexecutiva ou do lobo frontal: apatia, apragmatismo e perda de habilidades prévias, mais evidentes na interação social - em especial com o sexo oposto - que resultou em prejuízo do charme que lhe era característico. São comentados os resultados do exame neuropsicológico, que evidenciou dismnésia de recuperação com reconhecimento normal, diminuição da destreza motora e da flexibilidade cognitiva, na presença de inteligência normal. Os sintomas cognitivo-comportamentais contrastavam com exame neurológico normal.

traumatismo craniencefálico; lobo frontal; síndrome do lobo frontal


We portray a case of traumatic brain injury followed by symptoms of disexecutive or frontal lobe syndrome: apathy, lack of pragmatism and loss of previous abilities, specially those concerning social interaction - in particular with opposite sex - resulting in impairment of his characteristic charm. The results of the neuropsychological examination included retrieval mnemic deficits with normal recognition, impaired motor dexterity and cognitive flexibility in the presence of normal intelligence. The cognitive-behavioural symptomatology contrasted with a normal neurologic examination.

traumatic brain injury; frontal lobe; frontal lobe syndrome


SEQUELA COMPORTAMENTAL PÓS-TRAUMATISMO CRANIANO

O homem que perdeu o charme

Paulo Mattos1 1 Professor Adjunto Doutor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Diretor do Centro de Neuropsicologia Aplicada, Rio de Janeiro RJ, Brasil; 2 Psicóloga, Doutoranda do Instituto de Psiquiatria UFRJ; 3 Psicóloga do Centro de Neuropsicologia Aplicada. , Eloisa Saboya2 1 Professor Adjunto Doutor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Diretor do Centro de Neuropsicologia Aplicada, Rio de Janeiro RJ, Brasil; 2 Psicóloga, Doutoranda do Instituto de Psiquiatria UFRJ; 3 Psicóloga do Centro de Neuropsicologia Aplicada. , Cátia Araújo3 1 Professor Adjunto Doutor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Diretor do Centro de Neuropsicologia Aplicada, Rio de Janeiro RJ, Brasil; 2 Psicóloga, Doutoranda do Instituto de Psiquiatria UFRJ; 3 Psicóloga do Centro de Neuropsicologia Aplicada.

RESUMO - É apresentado caso de traumatismo craniencefálico com sintomas de síndrome disexecutiva ou do lobo frontal: apatia, apragmatismo e perda de habilidades prévias, mais evidentes na interação social – em especial com o sexo oposto - que resultou em prejuízo do charme que lhe era característico. São comentados os resultados do exame neuropsicológico, que evidenciou dismnésia de recuperação com reconhecimento normal, diminuição da destreza motora e da flexibilidade cognitiva, na presença de inteligência normal. Os sintomas cognitivo-comportamentais contrastavam com exame neurológico normal.

PALAVRAS-CHAVE: traumatismo craniencefálico, lobo frontal, síndrome do lobo frontal.

Post-traumatic brain injury behavioural sequelae: the man who lost his charm

ABSTRACT - We portray a case of traumatic brain injury followed by symptoms of disexecutive or frontal lobe syndrome: apathy, lack of pragmatism and loss of previous abilities, specially those concerning social interaction - in particular with opposite sex - resulting in impairment of his characteristic charm. The results of the neuropsychological examination included retrieval mnemic deficits with normal recognition, impaired motor dexterity and cognitive flexibility in the presence of normal intelligence. The cognitive-behavioural symptomatology contrasted with a normal neurologic examination.

KEY WORDS: traumatic brain injury, frontal lobe, frontal lobe syndrome.

É comum que médicos façam inferências erradas quando há sintomas cognitivo-comportamentais em casos nos quais os traumatismos craniencefálicos (TCE) – em especial os fechados - não resultaram em déficits neurológicos motores ou sensoriais. Há exemplos marcantes de TCE com graves sequelas neuropsiquiátricas, consideradas equivocadamente como "psicológicas" no nosso meio1. Conclusões equivocadas têm elevado preço para o paciente, pois os resultados negativos são interpretados como evidência de simulação ou de "neurose". Também freqüente é o fato da equipe médica que cuidou do paciente por ocasião do acidente não programar visitas de acompanhamento, não encaminhar para investigação especializada e sequer advertir familiares quanto à possibilidade de sequelas cognitivo-comportamentais. Muitos médicos emitem seu parecer respaldado por exames de imagem, em especial a tomografia computadorizada, ou então pelo exame neurológico, que podem ser normais mesmo na presença de grave disfunção cognitiva pós-traumática. Cerca de 50 a 75% dos indivíduos que sofreram TCE apresentam sintomas cognitivos e comportamentais que estão presentes em seguimentos de até 15 anos2; apesar disto, há grande desconhecimento das sequelas dos TCE - inclusive entre peritos, conforme a literatura3. Um exame pericial visando documentar a capacidade de indivíduo traumatizado de crânio (em especial aquele com lesão frontal) pode exigir a aplicação de testes neuropsicológicos4. Um esquema simplificado de sintomas (cognitivos, comportamentais, somáticos, etc.) já foi proposto por Crespo e Mattos com base naquele inicialmente idealizado por Lishman em 19885.

O presente caso ilustra as principais características da síndrome pré-frontal dorso-lateral, considerada uma síndrome disexecutiva (ou síndrome do lobo frontal) com o exame clínico e neuropsicológico de um paciente vítima de TCE. Lesões circunscritas às áreas pré-frontais não produzem sequelas motoras ou sensoriais, nem alterações evidentes da fala, acarretando entretanto comprometimento funcional sócio-ocupacional. As funções executivas consistem de processos responsáveis por direcionar e gerenciar habilidades cognitivas, emocionais e comportamentais. Dentre elas, encontram-se a capacidade de tomar iniciativa, selecionar alvos relevantes à tarefa e inibir ações ou estímulos distratores competitivos, planejar e prever meios de solucionar problemas complexos ou fora da rotina, alterar de modo flexível as estratégias de solução de problemas e, quando necessário, monitorar o comportamento passo a passo e verificar continuamente o próprio desempenho6-8. Conexões do córtex pré-frontal com as áreas motoras, o sistema límbico, o sistema reticular ativador e o córtex de associação posterior explicam o aspecto regulador das funções motivacionais, emocionais, atentivas, perceptivas, cognitivas e comportamentais6.

Sob o aspecto clínico, a síndrome do lobo frontal engloba dois grupos básicos de sintomas: 1) os que resultam de lesões dos giros orbitais mediais e dos tratos que atravessam a região, e 2) os resultantes de lesões dorso-laterais, sendo bastante comum a sobreposição de sintomas órbito-frontais e dorso-laterais no mesmo indivíduo. O primeiro caracteriza-se por diminuição do senso ético e da autocrítica, falta de preocupação com o futuro, indiferença afetiva, irritabilidade e euforia (outrora denominada mória). Os pacientes deste grupo são geralmente descritos como rudes, irritáveis, jocosos, hipercinéticos, impulsivos e desprovidos de boa parte das restrições sociais do mundo adulto9,10. Revelam desinibição excessiva e, nos casos mais graves, julgamento moral comprometido. A síndrome órbito-frontal pode simular quadro maníaco ou mostra-se análoga às sociopatias, o que levou muitos estudiosos a investigar a função pré-frontal em indivíduos com características anti-sociais8. O perfil cognitivo do paciente órbito-frontal caracteriza-se basicamente por comprometimento da supressão de interferências de estímulos externos irrelevantes ou tendências internas distratoras. Os sintomas relacionados à falta de controle sobre a interferência incluem perseverações, impulsividade e comportamento de imitação e utilização8.

As lesões dorso-laterais caracterizam-se por tendência geral à indiferença e à apatia. Perda de iniciativa do ato motor, lentidão e automatismo nas respostas figuram como características desta síndrome. O paciente revela-se deficitário não apenas para iniciar ações de modo espontâneo e deliberado, como também para levar a cabo ações que fora capaz de iniciar. Conforme descrito na literatura11, lesões maciças dessas áreas acarretam distúrbios importantes da organização de movimentos e ações, desintegração de programas motores e falha no ato de comparar o comportamento motor com seu plano original. Ocorrem perseverações, inércia patológica de estereótipos motores pré-existentes, baixa flexibilidade conceitual e excessiva rigidez comportamental12. Os aspectos cognitivos da síndrome dorso-lateral envolvem déficits de atenção, memória operacional, planejamento e linguagem (especialmente fluência verbal diminuída e déficits no âmbito das habilidades pragmáticas ou dialógicas8). Podem ocorrer ainda disfasia e disprosódia12.

É comum que déficits atentivos se manifestem clinicamente como dismnésia13,14. Além do déficit atentivo mencionado, pacientes com disfunção frontal costumam apresentar dificuldade de recuperar livremente material inicialmente apresentado, embora tenham desempenho normal nos testes de reconhecimento (múltiplas-escolhas, onde a resposta tem uma característica passiva). O déficit, portanto, não é de consolidação, mas sim de recuperação ativa do material. Cumpre observar, entretanto, que o desinteresse pela tarefa (especialmente se longa ou monótona) e a incapacidade de lançar mão de estratégias mais eficazes frente a tarefas com estímulos complexos pode comprometer a aquisição per se. As lesões unilaterais cursam com sintomas característicos de comprometimento verbal ou não-verbal dependendo do hemisfério acometido8,15.

CASO

Paciente (MC), 39 anos, solteiro, médico, foi encaminhado para avaliação neuropsicológica por seu médico para investigação de seqüelas cognitivas de TCE sofrido há nove anos em acidente automobilístico, quando dirigia alcoolizado. Submeteu-se a neurocirurgia naquela ocasião, em estado comatoso, para correção de fratura de crânio e retirada de tecido necrosado e hematoma, tendo permanecido no CTI por cerca de 20 dias. As únicas seqüelas referidas foram perda de olfato e pequena diminuição do campo visual esquerdo. O paciente, com histórico de abuso de álcool, após o acidente não voltou a beber, mas fazia uso eventual de cannabis e, muito esporadicamente, de cocaína (algo que já ocorria anteriormente). Seus familiares relataram mudanças marcantes de comportamento no que se refere às relações interpessoais, ao desempenho profissional e à auto-regulação do afeto, das emoções e da motivação. Anteriormente tido como extrovertido, inteligente e "interessado em leituras sobre os assuntos mais diversos", após o evento "sua conversa perdeu a graça, ficou mais chata", e demonstrava alguma dificuldade em "perceber que não estava agradando" ao interlocutor. MC tornou-se também menos fluente nas conversações. Por vezes comportava-se de modo pueril, implicando e brigando com os sobrinhos pequenos, por motivos banais. Passou a causar pequenas batidas com o carro (dirigindo ou manobrando) por imperícia e descuido. Apresentava aumento da irritabilidade e temperamento eventualmente explosivo, ambos inéditos. MC interrompeu suas atividades profissionais aos poucos (ao longo dos primeiros anos após o TCE) e perdeu a iniciativa para atividades sociais, tendo também se tornado menos participativo nas ocasiões em que aceitava convites que lhe eram feitos. Seu pai relatava que sua motivação para a atividade sexual havia diminuído de modo significativo (era considerada intensa até o acidente), comentando que o paciente deixou de ser "charmoso" e "interessante para as mulheres" (sic), uma de suas características mais marcantes. Ainda segundo o relato do pai, a capacidade de tomar a iniciativa e abordar mulheres e de conduzir a conversa de modo hábil e sedutor no ambiente social praticamente desapareceram. Segundo o relato de familiares, MC era considerado como um "Dom Juan", face à sua enorme habilidade em seduzir o sexo oposto desde a adolescência, o que era descrito como um incrível "charme". Também se tornou descuidado com a própria aparência (antes impecável), ganhou peso, passando a andar mal vestido e de chinelas, embora com os hábitos de higiene preservados. Passou a masturbar-se com grande frequência (privadamente) e a colecionar revistas pornográficas, que constituíam comportamentos inéditos na vida do paciente. O próprio paciente referia não se importar com a aparência (que julgava adequada quando questionado) ou com a falta de atividade laborativa ou social. Quando o pai referia, na sua presença, a perda de habilidades, limitava-se a sorrir e dizer que "estavam inventando coisas".

Não havia relato espontâneo de sintomas cognitivos importantes. Num questionário para queixas cognitivas e comportamentais, o paciente referiu apenas dificuldades para manter-se por muito tempo numa atividade sem perder a concentração, além de estar algo mais repetitivo que o habitual e apresentar dificuldades na tomada de decisões. Este resultado contrastava de modo significativo com o grau de comprometimento funcional apresentado, indicando perda de insight. Referiu ter se submetido a psicoterapia após o TCE, sem resultados.

Exames: a) Imagem de ressonância magnética (à época da avaliação neuropsicológica): craniotomia: áreas confluentes de encefalomalácia em lobos frontais; dilatação ex-vácuo dos cornos frontais de modo mais acentuado à esquerda; áreas de hipersinal em T2 difusas e área no lobo parietal direito com isosinal em T1 na substância profunda adjacente aos vértices posteriores (gliose por isquemia) b) SPECT (à época da avaliação neuropsicológica): normal.

Exame Neurológico (à época da avaliação neuropsicológica): normal, exceto pela anosmia.

Exame Neuropsicológico: O paciente foi submetido a bateria de testes destinados a mensurar funções neuropsicológicas, dentre as quais: percepção viso-espacial, destreza viso-motora, atenção, linguagem, memórias verbal e visual (recente e remota), inteligência e funções executivas. Não havia exames anteriores. Foram administrados os seguintes testes: a) Grooved Pegboard (prancha de pinos) b) Trail Making (Trilhas) A e B c) Stroop d) Bateria WAIS-R e) Bateria MAS (Memory Assessment Scale) f) Figura Complexa Rey-Osterrieth g) Fluência Verbal (semântica e fonética) h) Seleção de Cartões de Wisconsin (WCST), forma computadorizada i) Labirintos. Os resultados apurados revelaram preservação da capacidade cognitiva global, com significativa superioridade do QI verbal sobre o QI não-verbal. A avaliação da memória evidenciou déficit quanto à aquisição de material novo (curva de aprendizado achatada), com preservação relativa da retenção de longo-prazo. A recuperação livre do material revelou-se nitidamente inferior ao reconhecimento (por múltipla-escolha), este por sua vez normal. Desempenho abaixo do esperado foi observado em relação à memória de reconhecimento visual. Os índices fornecidos pela bateria de memória indicaram desempenho da memória global incompatível com o esperado frente ao QI. No que tange às funções executivas, o paciente revelou atenção comprometida em mais de uma ocasião, tanto na avaliação formal quanto na informal, sendo o déficit bastante acentuado quando a tarefa exigia esforço ativo mantido por período de tempo mais prolongado (teste Stroop). Além disso, o paciente apresentou dificuldade significativa em tarefas que envolviam destreza visomotora e velocidade (Grooved Pegboard e Trilhas). A capacidade de formular hipóteses e modificá-las de acordo com ensaio e erro revelou-se levemente comprometida, indicando pouca flexibilidade conceitual, conforme demonstrado através dos escores obtidos no WCST, rebaixados para a idade e escolaridade do paciente. A escolha pela versão computadorizada recaiu na preferência atual por testes que permitam aplicação e registro de respostas padronizadas sem vieses de administração16. A fluência verbal revelou-se normal. Os resultados dos testes empregados na avaliação das demais funções não revelaram quaisquer outros déficits dignos de nota.

DISCUSSÃO

O perfil neuropsicológico do paciente e sua história clínica são compatíveis com comprometimento de funções frontais, o que é corroborado pelos exames de neuroimagem. A presença de QI normal atesta a ausência de síndrome demencial e indica enorme discrepância entre o potencial intelectual do paciente e o funcionamento social e laborativo gravemente comprometidos. Pacientes com lesões frontais têm desempenho normal em tarefas cognitivas mais globais (levando a um QI normal), apresentan do apenas dificuldades em tarefas específicas17. A presença de capacidade global preservada também poderia levar à conclusão equivocada de "preservação" das funções cognitivas num exame informal; um desdobramento deste erro seria a atribuição (aparentemente frequente em nosso meio) dos sintomas a causas "psicológicas".

A discrepância entre o QI verbal e o não-verbal é encontrada com relativa freqüência nos casos de TCE; uma das explicações consiste no fato das tarefas verbais (que compõem o QI verbal) utilizarem material superaprendido, menos vulnerável a lesões cerebrais de qualquer natureza, enquanto que as tarefas não-verbais (que compõem o QI não-verbal) utilizam material em geral inédito para o examinando, o que exige a formulação de estratégias para a resposta adequada. A discrepância pode, ao menos em parte ser atribuída a alentecimento cognitivo pois apenas os testes não-verbais da Bateria WAIS-R são cronometrados, o que poderia penalizar estes escores. No caso de MC, a aquisição revelou-se comprometida apenas quando: a) os estímulos eram complexos (Figura Complexa de Rey-Osterrieth, Memória Visual-MAS e Lista de Palavras-MAS) o que habitualmente exige algum esforço e emprego de estratégias mais eficazes ou b) a tarefa era mais longa (Lista de Palavras-MAS, Memória Visual-MAS), o que exigia manutenção do esforço inicial ao longo do tempo. A discrepância observada entre o QI e o Quociente de Memória é indicativo da presença de quadro mórbido. A destreza motora encontra-se habitualmente comprometida em casos de lesão cerebral de qualquer natureza e numa grande variedade de localizações diferentes7. Este dado sugere que ocorreu comprometimento em diferentes localizações, o que vai ao encontro de dados da literatura. Num teste em que o paciente deveria associar letras e números de modo alternado sob pressão de tempo (Trail Making) - o que envolve também flexibilidade cognitiva – e noutro em que deveria preencher uma prancha com pinos apresentando entalhes num dos lados (Grooved Pegboard) obtiveram-se escores rebaixados. O desempenho no WCST, considerado como uma tarefa altamente dependente de funções executivas, revelou-se apenas algo abaixo do esperado. Efetivamente, este teste pode apresentar baixa sensibilidade quando aplicado em pacientes com maior escolaridade ou nível cognitivo global7.

Os sintomas clínicos coletados com familiares que foram considerados pelos autores como característicos de síndrome disexecutiva foram: apatia, hipopragmatismo, descuido pessoal, modificação da atividade sexual e perda de habilidades interpessoais, em especial aquilo que os familiares descreviam como "charme com as mulheres", uma característica de MC. Um aspecto que também merece atenção é a modificação das habilidades comunicacionais ("a conversa ficou mais chata"). Quando indagados posteriormente a respeito deste aspecto, familiares referiam que não apenas a diversidade de temas, como também a habilidade em explorá-los e expandi-los haviam diminuído. Considerando-se também o comprometimento da capacidade de percepção (verbal e não-verbal) das emoções do interlocutor ("não perceber que não estava agradando"), explica-se porque as relações dialógicas perderam a qualidade anterior. A capacidade de um indivíduo inferir o que outra pessoa pensa ou prever como ela deverá agir frente à determinada situação é considerada uma função executiva18. Provavelmente, estes aspectos são cruciais para o contexto da iniciação e manutenção bem-sucedidas de relações dialógicas em geral e também aquelas sedutoras ou erotizadas com o sexo oposto (o que contribuiria para a perda do "charme"). As habilidades de inferência de emoções e previsão de comportamentos compõem o que se denominou "Teoria da Mente". Os lobos frontais são críticos para a organização coerente dos conteúdos mentais dos quais dependem o pensamento criativo e a linguagem19 e também o são para a regulação e verificação da atividade em curso, por ações alvo-dirigidas e voltadas à realização de metas. O descuido pessoal (vestimentas, ganho de peso) provavelmente acrescentou maior comprometimento deste mesmo "charme".

Em conclusão, o caso ilustra como as sequelas de traumatismo craniencefálico podem ser marcantes em indivíduos sem sequelas motoras ou senso-perceptivas importantes e que também não apresentam diminuição da capacidade cognitiva global. A presença de Síndrome Disexecutiva se associa a comprometimento significativo do funcionamento socio-laborativo do indivíduo e é mais adequadamente avaliado com uma investigação de sintomas específicos na anamnese e o emprego de exames de imagem e neuropsicológico.

Recebido 18 Julho 2001, recebido na forma final 27 Setembro 2001. Aceito 19 Outubro 2001.

Dr. Paulo Mattos - Rua Paulo Barreto 91 - 22280-010 Rio de Janeiro RJ - Brasil. E-mail: centro@attglobal.net

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  • 1
    Professor Adjunto Doutor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Diretor do Centro de Neuropsicologia Aplicada, Rio de Janeiro RJ, Brasil;
    2
    Psicóloga, Doutoranda do Instituto de Psiquiatria UFRJ;
    3
    Psicóloga do Centro de Neuropsicologia Aplicada.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jul 2002
    • Data do Fascículo
      Jun 2002

    Histórico

    • Aceito
      19 Out 2001
    • Recebido
      18 Jul 2001
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