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Paralisia periódica hipocalêmica como primeiro sintoma de hipertireoidismo: relato de caso

Thyrotoxic periodic paralysis as first manifestation of hyperthyroidism: case report

Resumos

Relatamos caso de hipertireoidismo em um homem de 37 anos, no qual a paralisia periódica hipocalêmica apresentou-se como primeiro sintoma desta patologia. Abordamos aspectos do diagnóstico diferencial com outras formas de paralisia periódica e destacamos a necessidade de realizar um correto diagnóstico desta patologia, a fim de evitar complicações clínicas e degeneração muscular permanente.

paralisia periódica hipocalêmica; hipertireoidismo


We report a case of thyrotoxicosis in a 37 year old male, in whom hypocalemic periodic paralysis was the first manifestation of the disease. We comment about the differential diagnosis with other types of periodic paralysis, and the importance of a correct diagnosis to avoid permanent muscle damage.

hypocalemic periodic paralysis; thyrotoxicosis


PARALISIA PERIÓDICA HIPOCALÊMICA COMO PRIMEIRO SINTOMA DE HIPERTIREOIDISMO

Relato de caso

Anderson Kuntz Grzesiuk1 1 Hospital Santa Rosa, Cuiabá MT, Brasil: Neurologista, 2 Endocrinologista, 3 Neurocirurgião, 4 Cardiologista. , Marcelo Maia Pinheiro2 1 Hospital Santa Rosa, Cuiabá MT, Brasil: Neurologista, 2 Endocrinologista, 3 Neurocirurgião, 4 Cardiologista. , Nicandro Figueiredo Neto3 1 Hospital Santa Rosa, Cuiabá MT, Brasil: Neurologista, 2 Endocrinologista, 3 Neurocirurgião, 4 Cardiologista. , Ezilaine do Nascimento Rosa4 1 Hospital Santa Rosa, Cuiabá MT, Brasil: Neurologista, 2 Endocrinologista, 3 Neurocirurgião, 4 Cardiologista.

RESUMO - Relatamos caso de hipertireoidismo em um homem de 37 anos, no qual a paralisia periódica hipocalêmica apresentou-se como primeiro sintoma desta patologia. Abordamos aspectos do diagnóstico diferencial com outras formas de paralisia periódica e destacamos a necessidade de realizar um correto diagnóstico desta patologia, a fim de evitar complicações clínicas e degeneração muscular permanente.

PALAVRAS-CHAVE: paralisia periódica hipocalêmica, hipertireoidismo.

Thyrotoxic periodic paralysis as first manifestation of hyperthyroidism: case report

ABSTRACT - We report a case of thyrotoxicosis in a 37 year old male, in whom hypocalemic periodic paralysis was the first manifestation of the disease. We comment about the differential diagnosis with other types of periodic paralysis, and the importance of a correct diagnosis to avoid permanent muscle damage.

KEY WORDS: hypocalemic periodic paralysis, thyrotoxicosis.

As paralisias periódicas pertencem a um grupo de patologias denominadas doenças musculares dos canais iônicos1, tendo-se até o momento identificado três tipos de canais iônicos cujos distúrbios seriam responsáveis pelo aparecimento destas doenças: os canais de cálcio, sódio e potássio2. O canal de cálcio está relacionado a paralisias periódicas hipocalêmicas, doravante referidas como PPH, ataxia episódica tipo 2 (EA2) e enxaqueca hemiplégica familiar; o canal de sódio relaciona-se a paralisias periódicas hipercalêmicas, paramiotonia congênita e miotonia acetazolamida -responsiva, estando o canal de potássio associado a ataxia episódica tipo 1(EA1) e ataxia episódica com coreoatetose. Quanto à etiologia, as paralisias periódicas dividem-se em formas familiares e esporádicas, cuja apresentação fenotípica é indistinta: surtos de paresia muscular (para ou tetraparesia), mialgias e hiporreflexia, com arreflexia nos casos mais graves. As formas familiares são patologias genéticas, de penetrância autossômica dominante, a manifestação dos sintomas se dando por defeitos hereditários dos canais iônicos no sarcolema celular, estando as formas esporádicas relacionadas à disfunção dos canais iônicos causadas por distúrbios eletrolíticos1. Uma série de alterações clínicas pode estar relacionada a forma esporádicas, como o hiperaldosteronismo, uso de drogas que causem perda renal de potássio, diabetes mellitus, acidose tubular renal, doença de Addison, hipertireoidismo e patologias gastrointestinais que levem a depleção de potássio1,3.

A hiperfunção tireoidiana tem sido relacionada com o aparecimento de quadros de PPH, ocorrendo com maior incidência em adultos jovens, do sexo masculino, com predomínio nas populações de etnia oriental, sendo rara sua ocorrência em caucasianos. Sua incidência na população negra é extremamente baixa4-6.

Relatamos um caso de hipertireoidismo em paciente do sexo masculino, de ascendência negra, em que os sintomas iniciais desta patologia se manifestaram como paralisia periódica hipocalêmica variante esporádica.

CASO

Homem de 37 anos, de descendência negra (pardo), natural e procedente de Cuiabá-MT. Em abril de 2001, o paciente deu entrada no Hospital Santa Rosa com quadro de tetraparesia flácida, que havia iniciado progressivamente algumas horas antes da admissão hospitalar. Familiares relatavam que ele se queixou, durante todo o dia, de dores nos membros inferiores. Ao exame clínico, o paciente estava lúcido, orientado, ansioso, com dificuldades para pronunciar as palavras, queixando-se de diplopia e náuseas. Sinais vitais: PA= 150x90 mmhg; FC= 96 bpm; FR= 24 irpm. Ao exame neurológico, observou-se tetraparesia flácida com paresia grau I (contração muscular visível) nos membros superiores, grau 0 (não se observa contração muscular) nos membros inferiores e arreflexia difusa. Não foram observadas anormalidades respiratórias, faríngeas ou cardíacas ao exame clínico. O ECG foi normal. Durante a anamnese, familiares referiram que o paciente tinha apresentado previamente três episódios semelhantes, com intervalo de 20 dias aproximadamente, com melhora total dos sintomas em menos de 24 h, tendo inclusive, no primeiro episódio, sido acompanhado em UTI , para observação do ritmo respiratório. Na primeira internação, havia realizado ressonância magnética de crânio e coluna cervical, que foram normais. Não havia relato de outros casos na família.

Devido ao quadro clínico, suspeitou-se de processo metabólico, os exames laboratoriais mostrando: hematócrito: 40,9% (VN=40-50%); hemoglobina: 13,2 g/dl (VN=13,5-18 g/dl); leucócitos: 9,500/mm3 (VN= 4,000-11,000 p/mm3); VHS: 3mm (VN=até 15mm); sódio: 139 mmol/l (VN= 130-145 mm/l); glicemia: 170 mg/dl (paciente em uso de soro glicosado 10%); cálcio: 8,0mg/dl (VN= 8,4-10,8 mg/dl); magnésio: 1,60 mg/dl (VN= 1,9-2,5mg/dl); potássio: 1,5 mmol/l (VN= 3,5-5,1 mmol/l). Iniciada reposição parenteral de potássio, lentamente, na dose de 0,1 mEq de KCl/Kg. Houve melhora gradual do quadro, com recuperação total em 10 h após o início da terapêutica, sendo feito então o diagnóstico de paralisia periódica hipocalêmica, variante esporádica. A investigação das causas relacionadas à PPH esporádica demonstrou estar o caso relacionado ao hipertireoidismo, pois os valores de T4 livre e TSH foram respectivamente 3,24ng/dL (VN= 0,8-1,9ng/dL) e < 0,020 mIU/mL (VN= 0,490-4,670 mil/mL). A pesquisa dos anticorpos anti-peroxidase e anti-tireoglobulina foram respectivamente 636U/ml (VN<100U/ml) e 89 U/ml (VN<50 U/ml). As avaliações laboratoriais de aldosterona, proteinas C e S, FAN, anticorpo anticardiolipina, anticoagulante lúpico, VDRL, cortisol e glicemia foram normais. A cintilografia tireoidiana demonstrou uma área de hipercaptação difusa, caracterizando bócio difuso tóxico.

Iniciou-se terapêutica com metimazol 15mg/dia e reposição oral de potássio, cessando os episódios de paralisia muscular por um período de três semanas. Após a terceira semana de uso do metimazol, o paciente apresentou elevação importante nas enzimas hepáticas, sendo necessária a redução e posterior suspensão da droga, havendo desta forma retorno dos episódios de PPH, com surtos ocorrendo a cada quatro dias em média. No último episódio o paciente apresentou importante alteração do ritmo cardíaco, com o ECG demonstrando extrassistolia supraventricular com condução aberrante, alteração difusa da repolarização ventricular, onda T apiculada em V2 e V3, associado a onda T negativa em D3, AVR e AVF, sendo necessária monitoração contínua em UTI por período de 36 h. Neste episódio o nível sérico de potássio foi indetectável pelo aparelho utilizado em nosso hospital (marca AVL 9180 Electrolyte Analyzer, com níveis de captação entre 1,5-15 mmol/l de potássio), apesar do uso prévio de potássio por via oral (Slow K). Optou-se então pelo uso de iodo radioativo e controle dos sintomas hipertireoidianos com propiltiuracil 300 mg/dia, associado a dexametasona 1,0 mg/dia e propranolol 160 mg/dia, com bom controle dos sintomas. Atualmente o paciente está em uso de propiltiuracil 30 0mg/dia e propranolol 80 mg/dia, sem novos episódios paréticos.

DISCUSSÃO

A PPH tireotóxica é entidade clínica descrita há muito tempo, sendo sua primeira referência na literatura, citada por Torres e cols7, feita por Shinosaki em 1926. No Brasil, as primeiras referências foram feitas nos anos de 1968 e 1970 por Pereira e cols8. Em 1970, estes autores descreveram um caso em que a PPH associada ao hipertireoidismo se manifestou vários meses antes do quadro clínico e laboratorial de hipertireoidismo8. A PPH tireotóxica ocorre em adultos, a partir da segunda década de vida, com maior incidência no sexo masculino, com uma proporção de até 20:14 . No Japão , estudos demonstram que 8,9% dos homens com hipertireoidismo evoluem com episódios de paralisia periódica, em comparação a 0,4% de casos no sexo feminino9. As raças orientais respondem por mais de 90% dos casos de PPH tireotóxica, sendo raras as descrições em caucasianos e principalmente em indivíduos da raça negra.

A apresentação clínica da PPH tireotóxica, ocorre indistinta da forma familiar, exceto pela idade de início, que na forma tireotóxica ocorre a partir da terceira década, enquanto os sintomas na forma familiar ocorrem usualmente antes da segunda década de vida. Os ataques podem ser de 1 até 48 horas, variando desde leves paresias e mialgias em membros inferiores até a completa paralisia dos músculos do tronco e membros, em raros casos sendo necessária assistência ventilatória. Os reflexos podem variar em relação ao grau de paresia, podendo chegar até a arreflexia. Não existe relação entre o grau de paresia e a severidade do hipertireoidismo9. A forma tireotóxica das PPH apresenta maior incidência de arritmia cardíaca6, sendo as alterações do ritmo cardíaco as maiores causas de óbito destes pacientes. Em nosso paciente houve, no último episódio, importante alteração do ritmo cardíaco, havendo necessidade de controle com monitoração eletrocardiográfica contínua.

Enquanto a PPH familiar tem penetrância autossômica dominante, relacionada a mutações no locus 1q31-q32, alteração que ocasionaria transtornos na sub-unidade alfa-1 do canal de cálcio, a forma tireotóxica da PPH não tem ainda uma etiologia definida1. Especula-se uma possível influência genética devido a maior incidência de casos em orientais; contudo, como referem Tengan e col.10, estudos com antígenos HLA foram inconsistentes. Sabe-se que os hormônios tireoidianos exercem estímulo direto sobre a Na-K-ATPase da membrana celular, ocorrendo, nestes casos, inexcitabilidade muscular devida a hiperatividade da bomba de Na-K11,12. Tengan e col. especulam que em um estado eutireoidiano, apesar de um defeito genético, o indivíduo teria sua membrana celular funcionando perfeitamente, o que deixaria o paciente assintomático10. Este equilíbrio somente seria rompido em um estado de hiperatividade tireoidiana. Há especulações ainda sobre o papel dos canais de cálcio nos episódios de PPH tireotóxica, pois há dados que demonstram decréscimo da atividade na bomba de cálcio, além de redução no transporte de cálcio no retículo sarcoplasmático6.

As biópsias musculares de tecidos obtidos de pacientes com PPH familiar e tireotóxica demonstram que o dano muscular é indistinto, observando-se a presença de agregados tubulares e vacúolos10. Estas alterações auxiliam no diagnóstico de paralisias periódicas, pois a sazonabilidade das crises de paresia muscular nem sempre permite a avaliação dos pacientes no momento de uma crise de PPH. Em nosso paciente, a eletroneuromiografia foi normal, provavelmente por tratar-se de quadro inicial desta patologia.

Com relação ao tratamento preventivo dos episódios de PPH, existem diferenças entre os casos de etiologia familiar e tireotóxica. Na forma familiar, utiliza-se a acetazolamida (Diamox), em dosagens que variam entre 250 mg/dia até 1,0 g/dia. A acetazolamida agiria estabilizando os canais iônicos anormais, através de mudança no pH extracelular. Há relatos ainda de uso de triamterene, espironolactona e diclorfenamida3. Na forma tireotóxica o controle clínico dos sintomas faz-se com a reversão do quadro de hipertireoidismo, o que previne a recorrência dos sintomas, e o consequente aparecimento de danos musculares na forma de miopatia permanente6. Os episódios agudos de ambas as formas de PPH têm excelente reversibilidade com o uso parenteral de cloreto de potássio na dose de 0,1 mEq/Kg, podendo associar-se o uso de manitol 5%, pois este medicamento auxilia na elevação sérica do potássio1. Em nosso paciente, apenas o uso do cloreto de potássio EV foi suficiente para a reversão dos sintomas.

No caso descrito neste artigo, merece destaque a presença de PPH como sintoma inicial de hipertireoidismo, fato incomum na literatura mundial, porém em consonância a dados obtidos na literatura brasileira8,13. O fato de se tratar de um paciente de descendência negra (pardo), que na literatura mundial é descrita como etnia de pequeno acometimento de PPH tireotóxica, deve servir de alerta para uma maior atenção para esta entidade em pacientes no Brasil, pois devido a ampla diversidade étnica de nossa população, se deve sempre investigar o hipertireoidismo em pacientes com sintomas de PPH esporádica, independentemente de sua raça ou de presença de sinais e sintomas clínicos de hipertireoidismo.

Recebido 22 Agosto 2001, recebido na forma final 30 Novembro 2001. Aceito 11 Dezembro 2001.

Dr. Anderson Kuntz Grzesiuk ¾ Rua Custódio de Mello 630/103 - 78030-340 Cuiabá MT ¾ Brasil. E-mail: neuroakg@zaz.com.br

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  • 1
    Hospital Santa Rosa, Cuiabá MT, Brasil:
    Neurologista,
    2
    Endocrinologista,
    3
    Neurocirurgião,
    4
    Cardiologista.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jul 2002
    • Data do Fascículo
      Jun 2002

    Histórico

    • Aceito
      11 Dez 2001
    • Revisado
      30 Nov 2001
    • Recebido
      22 Ago 2001
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