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Fístula arteriovenosa dural intracraniana com drenagem perimedular: relato de caso

Intracranial dural arteriovenous fistula draining into spinal cord veins: case report

Resumos

Apresentamos um caso típico de fístula arteriovenosa dural intracraniana com drenagem para o plexo venoso peribulbar e veias perimedulares. Discutimos seus aspectos etiológicos e fisiopatológicos, bem como os critérios de diagnóstico e tratamento deste tipo de lesão.

fístula arteriovenosa; fístula dural; tetraparesia


We present an usual case of intracranial dural arteriovenous fistula with perimedullary and spinal cord venous plexus drainage and discuss its ethiological, physiopathological, diagnostic and therapeutic aspects.

arteriovenous fistula; dural fistula; tetraparesis


FÍSTULA ARTERIOVENOSA DURAL INTRACRANIANA COM DRENAGEM PERIMEDULAR

Relato de caso

Lauro de Franco Seda Jr11Residente de Neurocirurgia; Serviços de Neurocirurgia e de Neurroradiologia do Hospital Heliópolis, São Paulo SP, Brasil: Residente de Neurocirurgia; 2Neurorradiologista; 3Chefe do Serviço de Neurorradiologia; 4Assistente-Preceptor de Neurocirurgia; 5Chefe do Serviço de Neurocirurgia. , Marco Antonio Pieruccetti21Residente de Neurocirurgia; Serviços de Neurocirurgia e de Neurroradiologia do Hospital Heliópolis, São Paulo SP, Brasil: Residente de Neurocirurgia; 2Neurorradiologista; 3Chefe do Serviço de Neurorradiologia; 4Assistente-Preceptor de Neurocirurgia; 5Chefe do Serviço de Neurocirurgia. , José Maria Modenesi de Freitas31Residente de Neurocirurgia; Serviços de Neurocirurgia e de Neurroradiologia do Hospital Heliópolis, São Paulo SP, Brasil: Residente de Neurocirurgia; 2Neurorradiologista; 3Chefe do Serviço de Neurorradiologia; 4Assistente-Preceptor de Neurocirurgia; 5Chefe do Serviço de Neurocirurgia. , Sérgio Listik41Residente de Neurocirurgia; Serviços de Neurocirurgia e de Neurroradiologia do Hospital Heliópolis, São Paulo SP, Brasil: Residente de Neurocirurgia; 2Neurorradiologista; 3Chefe do Serviço de Neurorradiologia; 4Assistente-Preceptor de Neurocirurgia; 5Chefe do Serviço de Neurocirurgia. , Clemente Augusto de Brito Pereira51Residente de Neurocirurgia; Serviços de Neurocirurgia e de Neurroradiologia do Hospital Heliópolis, São Paulo SP, Brasil: Residente de Neurocirurgia; 2Neurorradiologista; 3Chefe do Serviço de Neurorradiologia; 4Assistente-Preceptor de Neurocirurgia; 5Chefe do Serviço de Neurocirurgia.

RESUMO - Apresentamos um caso típico de fístula arteriovenosa dural intracraniana com drenagem para o plexo venoso peribulbar e veias perimedulares. Discutimos seus aspectos etiológicos e fisiopatológicos, bem como os critérios de diagnóstico e tratamento deste tipo de lesão.

PALAVRAS-CHAVE: fístula arteriovenosa, fístula dural, tetraparesia.

Intracranial dural arteriovenous fistula draining into spinal cord veins: case report

ABSTRACT - We present an usual case of intracranial dural arteriovenous fistula with perimedullary and spinal cord venous plexus drainage and discuss its ethiological, physiopathological, diagnostic and therapeutic aspects.

KEY WORDS: arteriovenous fistula, dural fistula, tetraparesis.

As fístulas arteriovenosas (FAV) durais intracranianas são lesões incomuns, constituindo 15% de todas as malformações cerebrovasculares1-3. Do ponto de vista anatomopatológico, as artérias nutridoras são de origem meníngea, o "shunt" se localiza na dura-máter intracraniana e a drenagem intracraniana se direciona para os seios venosos durais ou veias corticais. As FAV durais intracranianas que drenam especificamente para veias perimedulares são muito raras. Desde o primeiro caso relatado em 1982, outros, esporádicos, vêm sendo descritos na literatura. O diagnótico clínico desta entidade constitui um verdadeiro desafio, pois a sintomatologia que se caracteriza por uma mielopatia ascendente subaguda, bem como os exames subsidiários, não localizam facilmente a lesão. A ressonância magnética (RM) sugere edema medular, e a angiografia medular geralmente é normal, ao contrário da angiografia cerebral que irá demonstrar a fístula e suas artérias nutridoras3-6.

O objetivo deste relato é apresentar um caso típico de FAV dural intracraniana com drenagem perimedular, bem como fazer considerações baseadas em evidências disponíveis na literatura, a respeito da etiologia, fisiopatologia, classificação e terapia da doença.

CASO

Paciente com 54 anos de idade, do sexo masculino, apresentou quadro de déficit motor progressivo e ascendente nos quatro membros com evolução de 8 meses, associado a episódios esporádicos de disartria, disfagia e constipação intestinal. No exame físico havia tetraparesia (força grau IV nos membros superiores e III nos inferiores) espástica com sinais evidentes de liberação piramidal. Não houve alterações no exame da sensibilidade.

Iniciada a investigação por exames complementares com raio X simples cervical que não mostrou alterações morfológicas da coluna cervical e transição craniovertebral. O diâmetro anteroposterior do canal medular estava dentro dos limites normais e a lordose fisiológica da região cervical estava preservada. Prosseguiu-se com RM que evidenciou inchaço medular que se estendia da transição bulbomedular até o nível C4. Na sequência T1 o sinal era isointenso, mas em T2 havia hipersinal sugestivo de edema medular. Além disso, era possível observar sinal tipo "flow void" em T2 que indicava a presença de importante ectasia vascular na região (Fig 1).


O quadro clínico progressivo e os achados da RM, destacando-se a presença de ectasia vascular, levaram à hipótese de malformação arteriovenosa medular da região cervical. Assim, foi realizada angiografia medular com injeção de contraste através da artéria espinhal anterior que afastou a presença de um "nidus" de angioma medular, mas confirmou a existência de importante ectasia do sistema de drenagem venosa perimedular e peribulbar. Nesta mesma sequência foi realizada angiografia cerebral. O estudo mostrou oclusão dos seios transverso e sigmóide à esquerda e presença de fístula arteriovenosa relacionada a este seio, com drenagem para o plexo venoso perimedular e cervical profundo (Fig 2 e 3).



O paciente foi submetido a embolização da fístula intracraniana, havendo melhora progressiva da sintomatologia. O controle angiográfico realizado mostrou a exclusão completa da fístula (Fig 4).


DISCUSSÃO

As FAV durais espinhais cujo shunt encontra-se na dura-máter torácica ou lombar constituem causa bem definida de mielopatia vascular. Porém, quando o shunt é intracraniano, localizado na fossa posterior e a drenagem se faz para o plexo venoso peribulbar e perimedular, o diagnóstico torna-se menos evidente.

O primeiro caso descrito de FAV dural intracraniana com drenagem perimedular ocorreu em 1982, por Woimant et al.7. A partir daí, vários relatos foram registrados na literatura, tendo sido analisados 37 casos8-9. Em todos os casos descritos, o shunt localizava-se na fossa posterior9, assim sendo: tenda do cerebelo (11), forâmen magno (11), seio petroso superior e ápice petroso (7), seio transverso e sigmóide (3 casos), tórcula (2) e forâmen condilar anterior (2). Nos casos apresentados, Vasdev et al.10 observaram predominância no sexo masculino (29 de 37 casos relatados) e o grupo etário variou de 31 à 78 anos com média de 57 anos.

Não há consenso ainda sobre a etiologia dessas fístulas, mas parece estar relacionada com uma trombose de seio dural intracraniano, seguida de reestabelecimento vicariante da drenagem venosa através de neoformação vascular e recrutamento de veias adjacentes11-14. Baseado nos distúrbios de drenagem dos seios durais, Djindjian e Merland15 definiram cinco tipos de FAV durais intracranianas (Tabela 1). O tipo V constitui nosso objeto de estudo.

A fisiopatologia da mielopatia não está totalmente compreendida, mas sugere-se que o aumento da pressão no plexo venoso perimedular é secundário à fístula arteriovenosa dural e a insuficiência da drenagem venosa da medula espinhal11-15. Hassler et al.16demonstraram no intra-operatório de uma FAV dural que a pressão nas veias de drenagem chegava a 60 a 87% da pressão arterial média. Além disso, devido a ausência de válvulas, as veias intramedulares são diretamente afetadas pelo aumento da pressão no plexo venoso perimedular. Desta forma, o gradiente arteriovenoso de perfusão medular diminui, levando ao desenvolvimento de edema extracelular e mielopatia congestiva.

A instalação dos sintomas geralmente é progressiva17. Paraplegia ou paraparesia crural está sempre presente. Os membros superiores estão afetados em cerca de metade dos casos. Distúrbios esfincterianos, disfunção de nervos cranianos bulbares e hipotensão arterial também são observados com frequência17. Todos os sintomas acima estavam presentes em nosso paciente. Não houve correlação, nos trabalhos revisados, entre os sintomas apresentados e o prognóstico da doença.

O diagnóstico radiológico é definido por RM da região cervical que irá evidenciar em suas sequências sinais consistentes com edema medular. Além disso, as sequências contrastadas podem revelar em alguns casos a existência de imagens "flow void" serpentiformes em cortes sagitais sugestivas de ectasias vasculares6,9,13,14,17. A presença desses achados, associada a um quadro de mielopatia cervical ascendente, determina a realização de uma angiografia cerebral com estudo dos quatro vasos, incluindo circulação extracraniana. Este exame é fundamental para localizar a fístula, identificar as artérias nutridoras e veias de drenagem e programar a estratégia de tratamento.

O objetivo do tratamento consiste em ocluir a veia de drenagem o mais próximo possível do shunt arteriovenoso18. As modalidades de tratamento incluem embolização endovascular, cirurgia ou ambas. Estes métodos, quando analisados isoladamente, mostraram resultados semelhantes, apesar dos estudos comparativos disponíveis na literatura apresentarem séries não padronizadas e com pequeno número de casos18.

Considerando a oclusão da veia de drenagem na angiografia de controle, Ricolfi et al.9 analisaram 13 casos submetidos a embolização e 16 casos operados. Nove casos (70%) e 11 casos (68%) respectivamente atingiram o objetivo final do tratamento.

Nossa opinião é que a embolização deve ser indicada como tratamento inicial sempre que possível, em razão de ser um método menos invasivo. O tratamento cirúrgico ficaria como segunda opção, principalmente nos casos de falha do tratamento endovascular.

A visão geral da literatura sobre os resultados obtidos reflete a elevada morbidade e mortalidade da doença. Trinta por cento dos pacientes morrem ou permanecem inalterados a despeito do tratamento; 18% apresentam pequena melhora, permanecendo incapacitados; e 52% apresentam melhora substancial evoluindo sem déficit ou com déficit mínimo8-9-19-20.

Este relato visa chamar a atenção para uma patologia rara, de etiologia e fisiopatologia complexas, que deve fazer parte do diagnóstico diferencial em todo caso de mielopatia cervical progressiva ascendente, com RM evidenciando edema medular. Nestas situações torna-se necessária a realização de angiografia cerebral e medular.

Recebido 30 Novembro 2001, recebido na forma final 1 Maio 2002. Aceito 11 Maio 2002.

Dr. Lauro de Franco Seda Jr - Rua Professora Carolina Ribeiro 20/62 – 04116-020 São Paulo SP - Brasil. E-mail: lseda@ig.com.br

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  • 1Residente de Neurocirurgia;
    Serviços de Neurocirurgia e de Neurroradiologia do Hospital Heliópolis, São Paulo SP, Brasil: Residente de Neurocirurgia; 2Neurorradiologista; 3Chefe do Serviço de Neurorradiologia; 4Assistente-Preceptor de Neurocirurgia; 5Chefe do Serviço de Neurocirurgia.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Set 2002
    • Data do Fascículo
      Set 2002

    Histórico

    • Aceito
      11 Maio 2002
    • Revisado
      01 Maio 2002
    • Recebido
      30 Nov 2001
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