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Aspectos clínico-epidemiológicos da neurocisticercose no Brasil: análise crítica

Clinical and epidemiological aspects of neurocysticercosis in Brazil: a critical approach

Resumos

Com o objetivo de mostrar as características da neurocisticercose (NCC) no Brasil, realizou-se análise critica da literatura nacional que mostrou incidência de 1,5% nas necropsias e de 3,0% nos estudos clínicos, correspondendo a 0,3% das admissões em hospitais gerais. Em estudos soroepidemiológicos, a positividade para cisticercose foi de 2,3%. O paciente brasileiro com NCC pode apresentar um perfil clínico-epidemiológico geral (homem, 31-50 anos, procedência rural, manifestações epilépticas parciais complexas, LCR normal ou hiperproteinorraquia, calcificações ao exame de TC, constituindo a expressão da forma inativa da NCC) e outro de gravidade (mulher, 21-40 anos, procedência urbana, manifestações de cefaléia vascular e HIC, típica síndrome do LCR ou alteração de dois ou mais parâmetros, vesículas associadas ou não a calcificações ao exame de TC, constituindo a expressão da forma ativa da NCC). Os coeficientes de prevalência nacionais são muito subestimados, embora em duas cidades do interior de São Paulo tenham sido verificados os valores de 72:100.000 e 96:100.000/habitantes. Discutem-se aspectos relacionados à subestimação da prevalência desta neuroparasitose no Brasil.

neurocisticercose; epidemiologia; cisticercose; prevalência; Brasil


With the objective to show the characteristics of neurocysticercosis (NCC) in Brazil, was performed a critical analysis of national literature which showed a frequency of 1.5% in autopsies and 3.0% in clinical studies, corresponding to 0.3% of all admissions in general hospitals. In seroepidemiological studies the positivity of specific reactions was 2.3%. Brazilian patient with NCC presents a general clinical-epidemilogical profile (31-50 years old man, rural origin, complex partial epileptic crisis, increased protein levels or normal CSF, CT showing calcifications, constituting the inactive form of NCC), and a profile of severity (21-40 years old woman, urban origin, vascular headache and intracranial hypertension, typical CSF syndrome of NCC or alteration of two or more CSF parameters, CT showing vesicles and/or calcifications, constituting the active form of NCC). Although two localities from the state of São Paulo have 72:100000 and 96:100000/habitants as prevalence coefficients, regional and national prevalences are very underestimated. Some aspects related to underestimation of NCC prevalence in Brazil are discussed.

neurocysticercosis; epidemiology; cysticercosis; prevalence; Brazil


Aspectos clínico-epidemiológicos da neurocisticercose no Brasil: análise crítica

Clinical and epidemiological aspects of neurocysticercosis in Brazil: a critical approach

Svetlana Agapejev

Professora Adjunta do Departamento de Neurologia e Psiquiatria, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), Botucatu, Brasil

RESUMO

Com o objetivo de mostrar as características da neurocisticercose (NCC) no Brasil, realizou-se análise critica da literatura nacional que mostrou incidência de 1,5% nas necropsias e de 3,0% nos estudos clínicos, correspondendo a 0,3% das admissões em hospitais gerais. Em estudos soroepidemiológicos, a positividade para cisticercose foi de 2,3%. O paciente brasileiro com NCC pode apresentar um perfil clínico-epidemiológico geral (homem, 31-50 anos, procedência rural, manifestações epilépticas parciais complexas, LCR normal ou hiperproteinorraquia, calcificações ao exame de TC, constituindo a expressão da forma inativa da NCC) e outro de gravidade (mulher, 21-40 anos, procedência urbana, manifestações de cefaléia vascular e HIC, típica síndrome do LCR ou alteração de dois ou mais parâmetros, vesículas associadas ou não a calcificações ao exame de TC, constituindo a expressão da forma ativa da NCC). Os coeficientes de prevalência nacionais são muito subestimados, embora em duas cidades do interior de São Paulo tenham sido verificados os valores de 72:100.000 e 96:100.000/habitantes. Discutem-se aspectos relacionados à subestimação da prevalência desta neuroparasitose no Brasil.

Palavras-chave: neurocisticercose, epidemiologia, cisticercose, prevalência, Brasil.

ABSTRACT

With the objective to show the characteristics of neurocysticercosis (NCC) in Brazil, was performed a critical analysis of national literature which showed a frequency of 1.5% in autopsies and 3.0% in clinical studies, corresponding to 0.3% of all admissions in general hospitals. In seroepidemiological studies the positivity of specific reactions was 2.3%. Brazilian patient with NCC presents a general clinical-epidemilogical profile (31-50 years old man, rural origin, complex partial epileptic crisis, increased protein levels or normal CSF, CT showing calcifications, constituting the inactive form of NCC), and a profile of severity (21-40 years old woman, urban origin, vascular headache and intracranial hypertension, typical CSF syndrome of NCC or alteration of two or more CSF parameters, CT showing vesicles and/or calcifications, constituting the active form of NCC). Although two localities from the state of São Paulo have 72:100000 and 96:100000/habitants as prevalence coefficients, regional and national prevalences are very underestimated. Some aspects related to underestimation of NCC prevalence in Brazil are discussed.

Key words: neurocysticercosis, epidemiology, cysticercosis, prevalence, Brazil.

Cisticercose, infecção pela forma larvária metacestóide do parasita Taenia solium, desencadeando reações inflamatórias tanto ao redor do parasita como à distância do mesmo, é um grave e negligenciado problema de Saúde Pública. Os embriões podem alcançar qualquer tecido, porém mostram um grande tropismo (79-96%; mediana= Md= 89%) pelo sistema nervoso central (SNC)1,2. A manifestação, ou não, de sintomas é resultante da interação parasita-hospedeiro e depende da intensidade na resposta inflamatória do hospedeiro. Os fatores que contribuem para a natureza endêmica do complexo teníase/cisticercose são muitos e complexos, mostrando estreita relação de dependência com os hábitos de higiene pessoal, familiar e ambiental. Antecedente de teníase familiar é verificado em 22-34% dos pacientes com NCC, embora a positividade do exame coproparasitológico para Taenia sp. seja detectada em apenas 0-1,7% (Md= 1,3%) dos pacientes e em 4,3-5,4 % de seus familiares1,3-5. A prevalência desta neuroparasitose, no Brasil, não está definida.

Na literatura brasileira, as informações sobre NCC constituem coleção de trabalhos regionais que descrevem os aspectos polimórficos desta patologia. Os estudos clínicos e necroscópicos, associados aos relatos de casos e às avaliações soroepidemiológicas, ao serem analisados em conjunto, mesmo expressando variabilidade considerável de aspectos, permitem vislumbrar algumas características clínico-epidemiológicas comuns entre os pacientes portadores de NCC no Brasil.

O objetivo deste trabalho foi o de aglutinar o que há disponível na literatura nacional sobre NCC humana e, com isso, delinear um perfil clínico-epidemiológico do paciente com essa neuroparasitose.

MÉTODO

Este artigo baseou-se em 136 trabalhos selecionados de uma extensa revisão da literatura nacional abrangendo o período de 1915-2002. Como critérios para essa seleção, levaram-se em consideração a característica epidemiológica de estudos necroscópicos e clínicos, a referência de indivíduos com manifestações clínicas de NCC (algumas vezes, através de informações pessoais) nos estudos soroepidemiológicos e a referência de dados, nos relatos de casos, que contribuíssem para a estimativa das incidências estudada tais como idade, sexo, procedência e quadro clínico.

Para apresentar a condensação das informações existentes, optou-se pelo valor da mediana estatística (Md) das frequências relatadas, por orientação do estatístico e em consequência de algumas médias estatísticas apresentarem grandes desvios-padrão que prejudicavam a uniformização na expressão dos resultados.

Além da tentativa de estimar as possíveis prevalências estaduais e regionais, a frequência da NCC foi analisada quanto à incidência geral (NCC e cisticercose), hospitalização (permanência e reinternações), procedência (rural e urbana), raça (caucasóide, negróide, mongolóide), faixa etária, sexo (masculino e feminino), mortalidade, forma assintomática, forma de apresentação dos parasitas (número, tamanho e localização), manifestações clínicas (frequentes, raras e associadas a outras patologias) e laboratoriais (líquido cefalorraqueano e tomografia computadorizada de crânio). Analisou-se, também, a presença de cisticercose em outros órgãos que não o SNC.

RESULTADOS

Os resultados que se seguem baseiam-se em 22 (16,2%) estudos clínicos e/ou necroscópicos, 105 (77,2%) estudos apenas clínicos e em 9 (6,6%) estudos soroepidemiológicos.

Incidência de cisticercose: em estudos soroepidemiológicos (Tabela 1) a incidência de cisticercose, não considerando as comunidades indígenas, variou de 0,68–6,2% (Md= 2,3%), sendo mais frequente em hospitais psiquiátricos (3,8–5%) que na população geral estudada (0,8% em crianças e 2,3% em adultos)1,3,6-8. Em comunidades indígenas, a incidência de cisticercose foi 29,4–64% (Md= 42,9%)6.

Incidência de NCC: não considerando as diferenças regionais e dependendo do tipo de estudo realizado (Tabela 1), a incidência de NCC nos diversos serviços de Neurologia e Neurocirurgia, incluindo os hospitais gerais, variou de 0,03 a 13,4% (Md= 2,4%) nos estudos clínicos, e de 0,12 a 9% (Md= 1,5%) em necrópsias1,2,9,10. Exclusivamente nos hospitais gerais, a frequência observada de NCC foi 1,94 ± 2,03% (Md= 1,13%), mostrando o menor valor (0,19%) no estado de SP e o maior (4,8%) no estado do PR. Em hospital psiquiátrico do estado de MG, a frequência de NCC correspondeu a 12,2%.

Período de hospitalização: em hospitais universitários do Estado de São Paulo, a frequência das admissões por NCC oscilou de 0,1 a 2,5% (Md= 0,3%), mostrando incidência média aproximadamente 10 vezes maior no interior do estado que na capital. O período de hospitalização variou de 1 a 254 dias (Md= 18 dias), com 30-35% dos pacientes necessitando permanência de 7-10 dias. As re-internações, na frequência de 1,7 ± 1,4 (Md= 2) por paciente, até o máximo de 9 readmissões/paciente, foram verificadas em 33-50% (Md= 47%) dos pacientes1.

Procedência: a procedência rural ocorreu em 30-79% (Md= 56%) dos pacientes. Porém, entre aqueles que apresentaram as formas graves da NCC, a procedência urbana foi mais frequente (53-83%; Md= 70%)1,11,12.

Raça: as frequências de NCC nos diversos grupos raciais foram relatadas como "proporcionais à população estudada"1,13.

Idade: a faixa etária mais envolvida foi de 11-60 anos (64-100%; Md= 80%), predominantemente entre 21-40 anos (22-67%; Md= 54%). Nas crianças, a NCC foi considerada pouco frequente (1,5- 10%; Md= 5%), comprometendo mais a faixa entre 6-9 anos de idade1,12,14,15.

Sexo: no geral, a NCC comprometeu mais o sexo masculino (51-80%; Md= 63%)1,9-11,13,16. Entretanto, houve envolvimento mais frequente do sexo feminino (53-75%; Md= 73%) naqueles pacientes que apresentaram manifestações graves1,17-20. Nas crianças, não houve diferença significativa entre meninos e meninas1,12,15.

Mortalidade: a taxa de mortalidade pela NCC, frente às patologias em hospitais gerais, foi 0,3% e atingiu mais os homens com 31-60 anos de idade. Entre as patologias neurológicas em enfermarias de Neurologia, essa taxa foi 0,6-3,6% (Md= 2,2%). A letalidade da NCC oscilou de 4,8-25,9% (Md= 14,7%). Esta neuroparasitose foi considerada a causa primária do óbito em 16-34% (Md= 27%) dos estudos de necrópsias, sendo a hipertensão intracraniana (47-69%) resultante do edema cerebral e/ou hidrocefalia hipertensiva fator determinante da morte1,9,10.

NCC assintomática: a NCC foi considerada como forma assintomática, ou "silenciosa", em necropsias (48-55%; Md= 50%) e em estudos clínicos (1,9-6%; Md= 3,3%) independentemente da forma de apresentação do parasita, fase do desenvolvimento e número no SNC1,9,10,21.

Localização, número, forma e tamanho dos parasitas: emestudos anatomopatológicos, a localização mais frequente dos parasitas foi verificada nos hemisférios cerebrais (47-79%; Md= 63%), em lobos parietais e frontais, predominantemente à direita (55-60%; Md= 59%)1,2,10,14. O número de cisticercos variou de um (33-71%; Md= 61%) a dois ou mais (23-67%; Md= 46%)1,9,10. A forma racemosa (conjunto de vesículas sem escólex) foi única em 4-25% (Md= 12%) dos casos e esteve associada à forma vesicular pura em 7-22% (Md= 9%) que, por sua vez, ocorreu de forma exclusiva em 53-93% (Md= 76%) dos pacientes1,10. O tamanho dos cistos variou de 2-20 mm (Md= 7,5 mm) para a forma vesicular e de 10-77 mm (Md= 43 mm) para a forma racemosa1.

Manifestações clínicas: a Tabela 2 mostra a frequência das principais manifestações clínicas da NCC em pacientes brasileiros. Dentre os sintomas predominantes, as crises epilépticas foram mais frequentes no sexo masculino e, a cefaléia, no feminino. O exame neurológico foi normal em 25-83% (Md= 52%) dos pacientes1,12,13. Epilepsia e hipertensão intracraniana (HIC), isoladas ou associadas, comprometeram 82–86% dos pacientes1,11,12. A epilepsia foi amanifestação mais comum da NCC em pacientes ambulatoriais (22-92%; Md= 59%), principalmente em crianças (62-87%; Md= 72%). Por outro lado, em pacientes ambulatoriais com epilepsia, a etiologia cisticercótica correspondeu a 20-34% (Md= 24%) das causas de epilepsia1,11,22. A presença de crises de difícil controle e de mais de um tipo de crise, com predomínio das parciais simples e complexas (44-87%; Md= 75%), com ou sem generalização secundária, caracterizou a epilepsia por NCC1,15,16,23. A HIC foi a manifestação mais frequente da NCC em pacientes internados (4-89%; Md= 36%), geralmente às custas de hidrocefalia (18-90%; Md= 44%), sem diferenças significativas entre adultos e crianças, mas predominando no sexo masculino (71%)1,24,25. Em 81% dos pacientes, a hidrocefalia resultou de quadros de meningoencefalite e teve nos distúrbios psiquiátricos (73%) e na epilepsia (50%) suas manifestações mais comuns25. Os distúrbios psíquicos constituíram o primeiro sintoma em 8% dos pacientes17 com quadros psiquiátricos bem estabelecidos como depressão (53-59% dos pacientes), demência e esquizofrenia, ou manifestações vagas e mal definidas, frequentemente associadas a alterações sensoriais e de percepção1,17,26,27. Nas crianças, perturbações mentais (1-39%; Md= 16%) e dificuldade de aprendizagem (24%) foram as mais frequentes1,12. Os distúrbios vasculares ocorreram como infartos cerebrais isquêmicos de proporções variáveis e consequentes à vasculite cisticercótica, ou como cefaléia tipo tensional ou cefaléia vascular tipo enxaqueca, principalmente em crianças (2,3-60%; Md= 32%)1,5,12,18,26. A associação de cefaléia e epilepsia não foi considerada incomum5. O comprometimento medular acometeu, preferencialmente, as mulheres e, na maioria das vezes, às custas de aracnoidite. Na presença rara de cistos medulares, a localização mais comum foi extramedular, cervical e torácica1,20,24. Foram descritas algumas manifestações raras, em que a cisticercose foi considerada como etiologia responsável por quadros clínicos de miopatias, síndrome de Parkinson, polirradiculoneurite, neuropatia óptica, síndrome de West, síndrome de Lennox-Gastaut, síndrome ângulo-ponto-cerebelar e de cisto em tronco cerebral1,9,28. Foram relatadas associações de NCC com outras patologias como neoplasias, cisto de aracnóide, trauma craneoencefálico, cerebrite, hipoparatireoidismo, síndrome do seio cavernoso e algumas doenças infecto-parasitárias como AIDS, tuberculose pulmonar, paracoccidioidomicose e doença de Chagas1,9,18,28. Em necrópsias, a NCC foi considerada diagnóstico secundário em 26% dos casos9.

Cisticercose em outros órgãos: o envolvimento, simultâneo ou não, de outros orgãos variou de 0,4-27% (Md= 13%), dependendo do estudo analisado1,2,9. O comprometimento cardíaco ocorreu em 8-26% (Md= 23%) dos casos. A cisticercose musculocutânea foi observada em 8-11% (Md= 10%) dos pacientes, prevalecendo (70%) entre homens de 21–60 anos de idade e, em 65% deles, associando-se à NCC na forma de epilepsia (38%), cefaléia vascular (31%) e HIC (15%). Em outros orgãos (pulmão, pâncreas, língua), a cisticercose apresentou frequência de 4-6%.

Líquido cefalorraqueano (LCR): As frequências das alterações no LCR de pacientes com NCC, estão mostradas na Tabela 3 1,12,24. Os níveis de cloreto estiveram diminuídos em 14% dos pacientes com a forma grave da NCC 1.

Tomografia computadorizada (TC) de crânio: os exames por TC revelaram que 79-93% dos pacientes apresentaram a forma inativa e 5-40% a ativa11,18, 24, 29. As calcificações estiveram relacionadas a manifestações clínicas em 13-89% dos casos e, em 3,3%, constituíram achado de exame. As frequências das lesões sugestivas de NCC estão apresentadas na Tabela 31,11,12,14,18,24,29,30.

DISCUSSÃO

Embora o Ministério da Saúde recomende (Portaria 1100, de 24/05/1996) a implantação da notificação compulsória do complexo teníase/cisticercose, apenas os Estados de Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, e a localidade de Ribeirão Preto (SP) implantaram programas de combate e controle da teníase/cisticercose. O descaso quanto a essa recomendação constitui elemento importante para que os dados sobre incidência e prevalência da NCC mantenham-se subestimados, tornando as informações apenas aparentes e provavelmente distantes da realidade. Essa situação pode ser exemplificada pelas prevalências obtidas em duas cidades do interior do Estado de SP – Botucatu e Ribeirão Preto, quando comparadas à "prevalência" do Estado de SP. Na primeira, até 1990, foram atendidos 87 casos novos de NCC em moradores do município que, na época, estava constituído pelo população de 90.761 habitantes, correspondendo à prevalência aproximada de 96:100.000 habitantes. Em Ribeirão Preto, a notificação compulsória revelou prevalência de 72:100.000 habitantes4. Em contrapartida, no Estado de SP, utilizando dados da literatura paulista, a prevalência calculada foi, aproximadamente, de 11:100.000 habitantes, revelando-se 6 a 9 vezes menor do que a encontrada nas duas cidades paulistas.

Dificuldades na aquisição de tecnologia, como a TC, por exemplo, que aumentou de 3,6% para 50-63% o diagnóstico em vida de NCC1,14, provavelmente impedem que os Estados de Acre, Rondônia, Amazonas, Roraima, Amapá, Mato Grosso, Tocantins e Sergipe, apresentem qualquer referência sobre estudos em cisticercose humana ou animal, constituindo mais um fator contribuinte para o desconhecimento da prevalência real de NCC. Entretanto, quando essa tecnologia está disponível, a diferença na metodologia utilizada, em qualquer tipo de estudo, dificulta a análise dos resultados. Isso está bem claro nos estudos necroscópicos, onde a falta de padronização na execução dos exames, principalmente no que diz respeito à espessura dos cortes cerebrais, normalmente muito acima de 1cm, conduz à subestimação da real presença e número de parasitas, tendo em vista que o tamanho dos cistos varia de 0,2 a 2 cm de diâmetro.

Além do descaso e do desnivelamento tecnológico, ocorrem diferenças regionais que já são perceptíveis como, por exemplo, o fato de ser raro o encontro de pacientes com HIC ou cisticercose racemosa no Nordeste, muito mais frequente no Sul-Sudeste, onde a maioria dos estudos sobre NCC tem sua origem, e mostram, além do polimorfismo clínico, incidência mais alta de pacientes com HIC e cisticercose racemosa. Talvez fatores culturais, nutricionais e genéticos, tanto do hospedeiro, do parasita como de sua interrelação, possam justificar essas observações. Ou seja, diferenças existem, é necessário reconhecê-las e quantificá-las.

A forma de avaliar-se a importância que se dá a determinada patologia pode ser mensurada através da proporcionalidade de publicações sobre o assunto frente à população existente. Assim, ao comparar-se a porcentagem de publicações sobre NCC, em cada Estado brasileiro, com a porcentagem de participação que a população desses estados apresenta em relação à população nacional segundo o Censo de 2000 (Tabela 4), verifica-se que a prevalência de NCC, ainda que subestimada, está melhor representada, em ordem decrescente, no DF e nos Estados de SP, PR, MS e MG. A pior representação, em ordem decrescente, encontra-se nos estados de RJ, CE, PA, MA, SC, RS, BA, PE, PB e ES. De qualquer forma, o que a literatura nacional oferece, não permite afirmar que a NCC prevalece mais em um ou outro Estado ou região do Brasil.

É muito difícil, mas não é impossível, despertar a consciência dos órgãos governamentais para investir em Programas de Saúde Pública e revestir a Educação Sanitária com a importância que lhe cabe no controle do complexo teníase/cisticercose, considerando as sérias consequências que essa neuroparasitose causa à saúde de uma população economicamente produtiva. Falta conhecer, divulgar e comparar a prevalência da NCC com outras patologias na população. Isso seria possível através de estudos soroepidemiológicos multidisciplinares que, obrigatoriamente, envolvessem a participação de neurologistas, além da formação de grupos de estudo sobre neurocisticercose direcionados para a epidemiologia desta neuroparasitose como, por exemplo, o GENC (Grupo de Estudo sobre Neurocisticercose) de Natal (RN).

São, portanto, vários os fatores que tornam e mantêm subestimada a prevalência da NCC no Brasil. Todos são de fácil planejamento e execução teórica, mas de complicada e difícil aplicação prática. Por tudo isso, o complexo teníase/cisticercose permanecerá endêmico e a neurocisticercose continuará sendo patologia negligenciada.

CONCLUSÃO

Os dados da literatura nacional, direta ou indiretamente, permitem concluir que: 1. A positividade do exame coproparasitológico é, em média, 4 vezes mais frequente nos familiares dos pacientes com NCC que neles próprios; 2. A população psiquiátrica mostra incidência de NCC, em geral, 5 vezes mais elevada que a população geral; 3. Embora haja necessidade de mais estudos para confirmar, verifica-se que a população indígena mostra incidência soroepidemiológica de cisticercose em torno de 18 vezes maior que em outras raças e, portanto, as frequências de NCC nos diversos grupos raciais não devem ser "proporcionais à população estudada" como foram relatadas na literatura; 4. O paciente com NCC necessita de 1-3 internações por período de 1-2 semanas; 5. A letalidade da NCC gira em torno de 15%; 6. A forma assintomática é detectada em aproximadamente 50% dos casos com o diagnóstico necroscópico de NCC, incluindo a forma racemosa e a de localização ventricular; 7. Na maioria das vezes, os cisticercos são únicos, apresentam diâmetro de 7,5 cm e localizam-se, preferencialmente, nos lobos frontal e parietal à direita; 8. O exame neurológico pode ser normal em 50% dos pacientes com NCC e, o LCR, em 20%; 9. Epilepsia e HIC, associadas ou não, são as manifestações clínicas encontradas em mais de 80% dos pacientes com NCC; 10. As calcificações, associadas ou não a vesículas, estão presentes em mais de 75% dos exames de TC de pacientes com NCC; 11. No Brasil, a NCC deve ser considerada como diagnóstico diferencial obrigatório; 12. É possível delinear um perfil geral e um perfil de gravidade no paciente brasileiro com NCC: perfil geral - homem, 31 a 50 anos, procedência rural, com manifestações epilépticas parciais complexas, associadas ou não à depressão e/ou à cisticercose cutânea, apresentando LCR normal ou com hiperproteinorraquia, calcificações ao exame de TC e constituindo a expressão da forma inativa da NCC; perfil de gravidade - mulher, 21 – 40 anos, procedência urbana, com cefaléia vascular como principal queixa e HIC como quadro clínico, associados ou não à aracnoidite medular, apresentando a típica síndrome do LCR na NCC ou alteração de dois ou mais parâmetros do LCR, vesículas associadas ou não a calcificações ao exame de TC e constituindo a expressão da forma ativa da NCC.

Agradecimento - Ao bioestatístico Professor Titular Paulo R. Curi, pelas orientações e sugestões no campo da Estatística.

Recebido 13 Maio 2002

Recebido na forma final 27 Março 2003

Aceito 11 Abril 2003

Dra. Svetlana Agapejev - Departamento de Neurologia e Psiquiatria, Faculdade de Medicina, UNESP - 18618-000 Botucatu SP - Brasil. E-mail: agapejev@fmb.unesp.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Nov 2003
  • Data do Fascículo
    Set 2003

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2002
  • Aceito
    11 Abr 2003
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