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Funções executivas em crianças fenilcetonúricas: variações em relação ao nível de fenilalanina

Executive functions in children with phenilketonuria: variations as a function of phenilalanine plasm level

Resumos

Este estudo investiga a hipótese de um déficit específico das funções executivas em crianças com fenilcetonúria (PKU) cujo nível de fenilalanina encontra-se entre 360 e 600 mmol/l. Participaram do estudo 21 crianças fenilcetonúricas de nove meses de idade, tratadas precoce e continuamente, e 18 crianças normais de mesma idade. As crianças com PKU foram divididas em dois grupos em função do nível médio de fenilalanina antes do estudo: o grupo de crianças cujo nível encontrava-se entre 120 e 360 mmol/l e o grupo de crianças cujo nível encontrava-se entre 360 e 600 mmol/l. Embora os três grupos de crianças tenham apresentado desempenho semelhante em um teste que avalia o desenvolvimento mental global, as crianças com alto nível de fenilalanina apresentaram desempenho significativamente pior do que as demais crianças em um teste que avalia as funções executivas.

fenilcetonúria; funções executivas; nível de fenilalanina


The present study investigates the hypothesis of a specific executive function deficit in children with Phenilketonuria (PKU) whose Phenilalanine level is between 360 and 600 mmol/l. Participants were 21 early and continuously treated 9-month-old children with PKU and 18 9-month-old controls. The children with PKU were divided into two groups on the basis of their mean phenilalanine level prior to the study: the group of children whose level was between 120 and 360 mmol/l, and the group of children whose level was between 360 and 600 mmol/l. Although the three groups did not differ with regard to performance on a test of global mental development, the PKU children with high phenilalanine performed significantly worse than both the low phenilalanine PKU children and the control children on a task that assesses executive functioning.

PKU; executive functionining; plasm phenilalanine level


Funções executivas em crianças fenilcetonúricas: variações em relação ao nível de fenilalanina

Executive functions in children with phenilketonuria: variations as a function of phenilalanine plasm level

Leandro Fernandes Malloy-DinizI; Cláudia Cardoso-MartinsII; Karina Cunha CarneiroIII; Márcia Maria Magrille CerqueiraIV; Ana Paula Almeida FerreiraV; Marcos José B. de AguiarVI; Ana Lúcia StarlingVI

IProfessor Assistente e Chefe do Núcleo de Neurociências e Análise Experimental do Comportamento do Curso de Psicologia da Faculdade Metropolitana, Belo Horizonte MG, Brasil

IIProfessor Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais

IIIMestranda do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Viçosa MG, Brasil

IVMestranda do Departamento de Psicologia da UFMG

V Mestre em Psicologia pela UFMG

VIProfessor Adjunto do Departamento de Pediatria da UFMG

RESUMO

Este estudo investiga a hipótese de um déficit específico das funções executivas em crianças com fenilcetonúria (PKU) cujo nível de fenilalanina encontra-se entre 360 e 600 mmol/l. Participaram do estudo 21 crianças fenilcetonúricas de nove meses de idade, tratadas precoce e continuamente, e 18 crianças normais de mesma idade. As crianças com PKU foram divididas em dois grupos em função do nível médio de fenilalanina antes do estudo: o grupo de crianças cujo nível encontrava-se entre 120 e 360 mmol/l e o grupo de crianças cujo nível encontrava-se entre 360 e 600 mmol/l. Embora os três grupos de crianças tenham apresentado desempenho semelhante em um teste que avalia o desenvolvimento mental global, as crianças com alto nível de fenilalanina apresentaram desempenho significativamente pior do que as demais crianças em um teste que avalia as funções executivas.

Palavras-chave: fenilcetonúria, funções executivas, nível de fenilalanina.

ABSTRACT

The present study investigates the hypothesis of a specific executive function deficit in children with Phenilketonuria (PKU) whose Phenilalanine level is between 360 and 600 mmol/l. Participants were 21 early and continuously treated 9-month-old children with PKU and 18 9-month-old controls. The children with PKU were divided into two groups on the basis of their mean phenilalanine level prior to the study: the group of children whose level was between 120 and 360 mmol/l, and the group of children whose level was between 360 and 600 mmol/l. Although the three groups did not differ with regard to performance on a test of global mental development, the PKU children with high phenilalanine performed significantly worse than both the low phenilalanine PKU children and the control children on a task that assesses executive functioning.

Key words: PKU, executive functionining, plasm phenilalanine level.

Entre os transtornos bioquímicos, a fenilcetonúria (PKU) é considerada a causa mais frequente de retardamento mental1. Trata-se de patologia genética, decorrente de alteração em um gene do cromossomo 122. Essa alteração impede a síntese da enzima hepática fenilalanina-hidroxilase (PHA), responsável pela conversão do aminoácido fenilalanina (phe) em um outro aminoácido, a tirosina (tyr). Nos indivíduos fenilcetonúricos não tratados, os níveis de phe podem atingir concentrações 10 vezes superiores ao valor considerado normal, provocando comprometimento cerebral difuso1,3-5. O principal tratamento da fenilcetonúria consiste em uma dieta pobre em alimentos que contêm phe. Quando a dieta é iniciada nas primeiras semanas de vida e mantida continuamente, indivíduos com fenilcetonúria desenvolvem-se normalmente1. Déficits nas funções executivas têm, no entanto, sido observados mesmo em crianças cujo tratamento é iniciado precocemente e mantido continuamente3. As funções executivas compreendem habilidades necessárias para a solução de problemas como, por exemplo, o planejamento, a memória operacional e a inibição e auto-regulação do comportamento. Existe evidência de que essas habilidades estão associadas ao funcionamento das porções dorsolaterais do lobo pré-frontal3,6,7.

Segundo Diamond et al.3, o déficit nas funções executivas de crianças com PKU já é observado no primeiro ano de vida. No estudo de Diamond et al., 25 bebês fenilcetonúricos, entre 9 e 12 meses de idade, foram submetidos a uma tarefa que avalia a habilidade da criança de inibir uma ação habitual ou prepotente - a tarefa AB. A criança observa um objeto ser escondido debaixo de uma coberta A, por exemplo. A criança retira a coberta A e alcança o objeto. Em seguida, o mesmo objeto é escondido debaixo de uma coberta B, colocada ao lado da coberta A. Crianças entre 8 e 12 meses de idade freqüentemente cometem o erro AB, ou seja, continuam buscando o objeto em A, apesar de haverem observado o objeto ser escondido em B, sobretudo quando não podem buscar o objeto imediatamente após ele ter sido escondido. De acordo com Diamond et al., as crianças fenilcetonúricas que apresentavam níveis de phe entre 360 e 600 mmol/l cometeram o erro AB com intervalos de espera significativamente menores do que as crianças fenilcetonúricas com níveis de phe entre 120 e 360 mmol/l e as crianças do grupo de controle. O desempenho das crianças com nível relativamente baixo de phe foi semelhante ao desempenho das crianças do grupo controle. Ao contrário desses resultados, os três grupos de crianças não diferiram em relação ao desempenho em tarefas de discriminação espacial e visual, comumente relacionadas ao funcionamento do lobo temporal.

A explicação para a especificidade das disfunções executivas em indivíduos fenilcetonúricos com nível relativamente elevado de phe baseia-se na relação entre as concentrações de phe e tyr e a síntese de neurotransmissores, particularmente a síntese de dopamina8 Por causa da necessidade de proteína, a phe não pode ser completamente eliminada da dieta de crianças com fenilcetonúria. Como resultado, o nível de phe usualmente excede o nível de tyr até mesmo em indivíduos mantidos em uma dieta estrita. A essa desvantagem quantitativa da tyr em relação à phe, acrescenta-se o fato de que a phe apresenta maior afinidade com as proteínas carreadoras, responsáveis pela passagem dos aminoácidos pela barreira hemato-encefálica. A tyr apresenta papel importante na síntese das catecolaminas como, por exemplo, a norepinefrina e a dopamina. A enzima tirosina hidroxilase converte a tyr em L-dopa, que é a base para a produção da dopamina9 Segundo Diamond et al., o nível relativamente reduzido de tyr no sistema nervoso em indivíduos fenilcetonúricos com nível de phe entre 360 e 600 mmol/l é particularmente prejudicial às vias dopaminérgicas das regiões dorsolaterais do córtex pré-frontal6,8 Isso ocorre porque os neurônios dopaminérgicos associados às porções dorsolaterais do córtex pré-frontal apresentam um "turn over" dopaminérgico mais rápido do que os neurônios dopaminérgicos em outras regiões cerebrais10

O presente estudo investiga a generalização dos resultados de Diamond et al. para um grupo de crianças brasileiras. Assim como Diamond et al., avaliamos a hipótese de uma correlação entre o nível de phe e o desempenho na tarefa AB. Em particular, o estudo avalia a hipótese de que, ao contrário de crianças fenilcetonúricas com níveis de phe entre 120 e 360 mmol/l, crianças fenilcetonúricas com nível de phe entre 360 e 600 mmol/l devem apresentar o erro AB em intervalos de espera significativamente menores do que crianças normais.

Ao contrário do estudo de Diamond et al., o nosso estudo não incluiu tarefas que avaliam habilidades relacionadas a outros sistemas cerebrais. No entanto, a maioria das crianças foi submetida à escala mental do teste de Bayley. Isso nos permitiu avaliar a possibilidade de o déficit nas funções executivas decorrer de um atraso no desenvolvimento geral. Esse controle nos parece fundamental, tendo em vista a evidência de que o desenvolvimento mental global de crianças com fenilcetonúria varia em função do nível de phe, com crianças com nível de phe entre 360 e 600 mmol/l apresentando índices de desenvolvimento mental significativamente inferiores aos índices apresentados por crianças normais3,11,12 Uma vez que as tarefas que avaliam as funções executivas são em geral mais difíceis do que as tarefas que avaliam habilidades relacionadas a outras regiões cerebrais, não é possível descartar a hipótese de que o déficit nas funções executivas observado entre crianças com níveis de phe entre 360 e 600 mmol/l seja mediado por um atraso no desenvolvimento mental global.

MÉTODO

Sujeitos

Dois grupos de crianças participaram do estudo, sendo um grupo de crianças fenilcetonúricas e um grupo de crianças normais. Vinte e três crianças com fenilcetonúria (15 meninas e 8 meninos), nascidas entre julho de 1998 e abril de 2000, foram avaliadas, mas apenas 21 crianças foram incluídas no estudo: uma criança foi excluída por estar gripada no dia da avaliação e outra por ser prematura. Todas as crianças estavam sendo acompanhadas pelo Programa Estadual de Triagem Neonatal de Minas Gerais. Com exceção de três crianças, todas as crianças que participaram do estudo iniciaram a dieta no primeiro mês de vida (média = 27,5 dias de idade; dp = 15,4). A média do nível de phe antes do tratamento era de 1226,5 mmol/l (dp = 504,7). Em todos os casos, o diagnóstico foi confirmado por um teste de sobrecarga aos 6 meses de idade. Na data do exame, as crianças tinham, em média, 274 dias (dp = 8 dias).

Vinte e uma crianças (13 meninas e 8 meninos), sem fenilcetonúria ou qualquer outra patologia evidente, também foram avaliadas. No entanto, relatamos os resultados de apenas 18 crianças: duas crianças foram excluídas das análises por serem prematuras e uma foi excluída por ter ficado muito irritada durante a tarefa AB, não conseguindo completá-la. Na data do exame, as 18 crianças incluídas no estudo tinham, em média, 274 dias de idade (dp = 6 dias). Essas crianças foram recrutadas no serviço de Pediatria Geral do Hospital das Clínicas de Belo Horizonte, estando saudáveis no dia do exame.

Os dois grupos de crianças não diferiam em relação ao nível sócio-econômico. Em sua maioria, as crianças pertenciam a famílias de classe baixa inferior, baixa superior e média inferior, segundo critérios baseados no rendimento financeiro da família e na escolaridade e profissão dos pais13. Os pais e/ou responsáveis pelas crianças assinaram um termo de consentimento informado autorizando a sua participação no estudo.

Todos as crianças foram examinadas no Ambulatório São Vicente do Hospital das Clínicas da UFMG. A avaliação foi realizada por uma equipe composta por 4 examinadores, os quais desconheciam os níveis de phe das crianças fenilcetonúricas examinadas.

Medidas

Nível de phe - O nível de phe foi avaliado semanalmente até o sexto mês de vida e de 15 em 15 dias posteriormente. A análise dos níveis de phe foi realizada no Laboratório de Triagem Neonatal do NUPAD – Núcleo de Pesquisa em Apoio Diagnóstico da Faculdade de Medicina da UFMG – através do método ultra-microfluorimétrico14

Escala Bayley de Desenvolvimento Infantil - A Escala Bayley de Desenvolvimento Infantil15 foi utilizada para avaliar o desenvolvimento mental dos sujeitos. Todas as crianças foram submetidas à escala, mas devido a um erro metodológico na aplicação da escala, 8 crianças fenilcetonúricas e 3 crianças do grupo controle não completaram a administração do teste.

Uma vez que não existem normas brasileiras para a Escala Bayley, o índice de desenvolvimento mental (IDM) das crianças foi calculado com base nas normas da população norte-americana.

Tarefa AB - A tarefa AB16 foi utilizada com o objetivo de avaliar o desenvolvimento das funções executivas. Para a realização da tarefa, foi utilizada uma caixa retangular de madeira, com 90 cm de comprimento, 30 cm de largura e 20 cm de altura. Na caixa havia duas cavidades com 9 cm de raio e 20 cm de profundidade. Os centros de cada cavidade estavam separados por um espaço de 30 cm. Para ocultar os objetos dentro das cavidades, foram utilizados dois panos alaranjados em forma de um quadrado, com 20 cm em cada lado.

Inicialmente, a criança era colocada diante da caixa, sentada no colo da mãe (ou responsável). Um dos panos alaranjados era, então, colocado ao alcance da criança. Esse procedimento visava familiarizar a criança com os pedaços de pano que seriam usados posteriormente na tarefa. Em seguida, eram colocados alguns brinquedos pequenos sobre a caixa, com o intuito de observar o interesse da criança por eles. Durante o teste, foram utilizados apenas os brinquedos que haviam despertado o interesse da criança.

Tendo sido escolhido um brinquedo, esse era colocado ao alcance da criança. O examinador cobria parcialmente o objeto permitindo que a criança o buscasse. Caso a criança pegasse o objeto parcialmente escondido, esse procedimento era repetido com o objeto totalmente coberto. Apenas as crianças que conseguiam encontrar o objeto totalmente coberto eram submetidas à tarefa AB.

O examinador colocava o brinquedo dentro de uma das cavidades e, em seguida, cobria simultaneamente as 2 cavidades da caixa com os panos. A criança era então encorajada a procurar o brinquedo. Se ela obtivesse sucesso em alcançar o brinquedo na mesma cavidade em dois ensaios consecutivos, era então realizado um ensaio de inversão. Esse ensaio consistia em esconder o brinquedo na outra cavidade. Caso a criança errasse o ensaio de inversão, o mesmo procedimento era repetido, ou seja, o brinquedo era novamente escondido em uma das cavidades em duas tentativas consecutivas e, em seguida, na outra cavidade.

No início da tarefa, a criança podia buscar o objeto imediatamente após os panos terem sido colocados sobre as cavidades. Caso a criança acertasse o primeiro ou o segundo ensaio de inversão, o procedimento era repetido com um intervalo de espera (isso é, o intervalo entre o momento em que o examinador escondia o objeto e o momento em que a criança era encorajada a buscá-lo) de 2 segundos. Esse intervalo era cronometrado pelo examinador. A cada acerto no primeiro ou segundo ensaio de inversão, o intervalo de espera no ensaio subseqüente era aumentado em 2 segundos. Durante o intervalo de espera, o examinador chamava a criança pelo nome ou contava em voz alta, com a finalidade de desviar sua atenção da cavidade em que o objeto havia sido escondido. A mãe (ou responsável) era instruída a segurar os braços da criança com firmeza, para que ela não buscasse o objeto antes do término do intervalo.

Nos ensaios em que a criança buscava o brinquedo na bandeja correta, ela podia brincar com ele por alguns segundos. Caso contrário, o examinador lhe mostrava onde o objeto estava escondido, mas não lhe era permitido brincar com ele. O teste era descontinuado quando a criança errava duas vezes em um ensaio de inversão com o mesmo intervalo, e o intervalo de espera utilizado durante esse ensaio era considerado o intervalo onde havia ocorrido o erro AB da criança.

Procedimentos para análise dos resultados

Nosso objetivo era comparar as crianças fenilcetonúricas com níveis de phe entre 120 e 360 mmol/l, as crianças fenilcetonúricas com níveis de phe entre 360 e 600 mmol/l e as crianças normais, quanto ao desempenho na tarefa AB e na sub-escala mental da Escala Bayley. Em vista disso, as crianças fenilcetonúricas foram classificadas em dois grupos em função do seu nível de phe. Duas medidas de phe foram utilizadas:

1) média de phe nas seis semanas que antecederam a administração da tarefa AB; e

2) média de phe em todo o período anterior à administração da tarefa AB.

Para cada uma dessas medidas, as crianças cuja média de phe estava entre 120 e 360 mmol/l foram designadas para o grupo "nível baixo de phe" e as crianças cuja média de phe estava entre 360 e 600 mmol/l foram designadas para o grupo "nível alto de phe".

De acordo com a primeira medida (média de phe nas 6 semanas que antecederam a tarefa AB), 11 crianças foram designadas para o grupo "nível baixo de phe" e 7 crianças foram designadas para o grupo "nível alto de phe". Três crianças apresentaram um nível médio de phe abaixo de 120 mmol/l. Uma vez que essa condição também pode prejudicar o desenvolvimento cognitivo de crianças fenilcetonúricas,3 essas crianças foram excluídas das análises envolvendo o nível médio de phe nas 6 semanas anteriores ao exame.

De acordo com a segunda medida (média de phe até a data de administração da tarefa AB), 11 crianças foram designadas para o grupo "nível baixo de phe" e 10 para o grupo "nível alto de phe".

Os dois grupos de crianças fenilcetonúricas não diferiram significativamente em relação à idade em que a dieta havia sido iniciada. As crianças designadas para o grupo com baixo nível de phe iniciaram a dieta com 25 dias de idade, em média, independentemente do critério utilizado, i.é., nível médio de phe nas 6 semanas anteriores ao teste ou nos 9 primeiros meses. As crianças designadas para o grupo com alto nível de phe com base no nível de phe nas 6 semanas anteriores ao teste tinham, em média, 27 dias de idade no início da dieta. Quando o critério foi o nível médio de phe nos 9 primeiros meses, a idade média no início da dieta das crianças designadas para o grupo com alto nível de phe era de 30 dias.

Tendo em vista o tamanho reduzido da amostra, optamos pela utilização de dois testes não-paramétricos. O teste Kruskal-Wallis foi utilizado para comparar os três grupos estudados, em relação a cada uma das variáveis de interesse. Quando os resultados foram significativos ou marginalmente significativos, o teste Mann-Whitney foi utilizado para avaliar quais grupos diferiam significativamente entre si.

RESULTADOS

Avaliação das funções executivas em função do nível médio de phe nas 6 semanas anteriores ao exame

As crianças fenilcetonúricas designadas para o grupo com alto nível de phe apresentaram o erro AB quando o intervalo de espera era, em média, apenas 2 segundos (dp = 1,15). Já as crianças com nível baixo de phe e as crianças do grupo controle apresentaram o erro AB quando o intervalo de espera era, em média, 3,82 (dp = 2,09) e 4,00 (dp = 2,06) segundos, respectivamente.

O teste de Kruskall-Wallis revelou que os três grupos diferiram significativamente entre si (p < 0,05). A comparação entre pares de grupos através do teste Mann-Whitney indicou que o grupo de crianças fenilcetonúricas com phe entre 360 e 600 mmol/l apresentou o erro AB em intervalos de espera significativamente menores que as crianças do grupo controle (p< 0,05, teste bilateral). Elas também tenderam a apresentar o erro AB em intervalos significativamente menores que as crianças fenilcetonúricas com nível de phe entre 120 e 360 mmol/l (p < 0,08, teste bilateral). Por outro lado, não foi observada uma diferença significativa entre o grupo de crianças fenilcetonúricas com nível de phe entre 120 e 360 mmol/l e o grupo de crianças normais (p = 0,71, teste bilateral).

Conforme já mencionado, 3 crianças fenilcetonúricas foram excluídas da análise, em virtude de haverem apresentado nível médio de phe abaixo de 120 mmol/l. Essas crianças apresentaram o erro AB com intervalo de espera de 1,33 segundos, em média. Ou seja, seu desempenho foi inferior ao desempenho das crianças normais e das crianças fenilcetonúricas com nível médio de phe entre 120 e 360 mmol/l, tendo sido entretanto semelhante ao desempenho das crianças fenilcetonúricas com nível médio de phe entre 360 e 600 mmol/l.

Avaliação das funções executivas em função do nível médio de phe nos 9 primeiros meses

Resultados semelhantes foram obtidos quando as crianças fenilcetonúricas foram designadas para os grupos com alto ou baixo nível de phe em função do nível médio de phe até a data do exame. Em média, as crianças com alto nível de phe apresentaram o erro AB com intervalo de espera de 2,6 segundos (dp=2,12), enquanto as crianças com baixo nível de phe apresentaram o erro AB com intervalo de espera de 3,09 segundos (dp= 1,87). Conforme observamos anteriormente, as crianças do grupo controle apresentaram o erro AB com um intervalo médio de 4 segundos (dp = 2,06).

O teste Kruskall-Wallis revelou que a diferença entre os três grupos tendia a ser significativa (p = 0,07). Comparações pareadas através do teste Mann-Whitney indicaram que o grupo de crianças fenilcetonúricas com phe entre 360 e 600 mmol/l apresentou o erro AB com intervalos de espera significativamente menores que as crianças do grupo controle (p< 0,05, teste bilateral). Entretanto, aquelas crianças não diferiram significativamente das crianças com nível de phe entre 120 e 360 mmol/l (p = 0,43, teste bilateral). Tampouco foi observada uma diferença significativa entre o grupo de crianças fenilcetonúricas com nível de phe entre 120 e 360 mmol/l e o grupo de crianças normais (p = 0,26, teste bilateral).

Desenvolvimento das funções executivas vs. desenvolvimento mental global

Os resultados que acabamos de descrever replicaram os resultados de Diamond e seus colaboradores de que crianças fenilcetonúricas cujo nível de phe é superior a 360 mmol/l e inferior a 600 mmol/l apresentam desempenho inferior ao de crianças normais na tarefa AB. As análises descritas a seguir foram realizadas com o objetivo de avaliar se o déficit nas funções executivas de crianças fenilcetonúricas cujo nível de phe é superior a 360 mmol/l e inferior a 600 mmol/l pode ser explicado em função de um atraso no desenvolvimento mental em geral.

As Tabelas 1 e 2 apresentam os resultados médios na tarefa AB e na escala mental do teste de Bayley para as crianças que completaram o teste de Bayley. Conforme procedemos anteriormente, as crianças fenilcetonúricas que completaram a escala mental do teste de Bayley foram divididas em dois grupos em função do nível médio de phe. A Tabela 1 apresenta os resultados para as análises envolvendo o nível médio de phe nas seis semanas anteriores ao exame. Nessa tabela não constam os resultados de duas das crianças fenilcetonúricas cujo nível sérico de phe esteve abaixo de 120 mmol/l. Os resultados para as análises envolvendo o nível médio de phe em todo o período anterior ao exame são apresentados na Tabela 2.

Conforme pode ser visto nessas tabelas, essencialmente os mesmos resultados obtidos para a amostra total foram obtidos para as crianças que completaram a escala mental do teste de Bayley. Ou seja, as crianças fenilcetonúricas cujo nível de phe era superior a 360 e inferior a 600 mmol/l apresentaram desempenho inferior ao desempenho das crianças do grupo controle. Isso ocorreu independentemente de as crianças fenilcetonúricas terem sido classificadas em função do nível médio de phe nas 6 semanas anteriores ou em todo o período anterior ao exame (em ambas as condições, p<0,05, testes bilaterais). Por outro lado, não foram observadas diferenças entre as crianças do grupo controle e as crianças fenilcetonúricas cujo nível de phe estava entre 120 e 360 mmol/l, independentemente do critério de classificação das crianças fenilcetonúricas. Finalmente, as crianças fenilcetonúricas com alto nível de phe nas 6 semanas anteriores ao exame tenderam a apresentar desempenho pior do que as crianças com baixo nível de phe no teste AB.

Conforme pode ser observado nas Tabelas 1 e 2, é pouco provável que essas diferenças possam ser explicadas em função de diferenças no nível de desenvolvimento mental global. Com efeito, a escala mental do teste de Bayley não revelou diferença significativa entre os três grupos de crianças, independentemente das crianças com fenilcetonúria terem sido classificadas como tendo alto ou baixo nível de phe em função do nível de phe nas últimas seis semanas ou em todo o período anterior ao exame (ambos os p>.10).

DISCUSSÃO

No presente estudo o desenvolvimento das funções executivas foi avaliado através da tarefa AB. As crianças fenilcetonúricas com nível de phe entre 360 e 600 mmol/l apresentaram desempenho significativamente inferior ao das crianças do grupo controle nessa tarefa. Por outro lado, as crianças fenilcetonúricas cujo nível de phe estava entre 120 e 360 mmol/l não diferiram significativamente das crianças do grupo controle na tarefa AB. Isso ocorreu para as duas medidas de phe utilizadas, isto é, a média de phe nas seis semanas que antecederam a aplicação da tarefa AB e a média de phe até a data do exame.

Como os resultados obtidos por Diamond et al.,3, os nossos resultados sugerem a existência de um déficit nas funções executivas de crianças fenilcetonúricas cujo nível de phe encontra-se entre 360 e 600 mmol/l. Conforme descrevemos anteriormente, os bebês que participaram do estudo de Diamond et al.3 foram submetidos a uma tarefa de discriminação espacial e a uma tarefa de comparação visual, além da tarefa AB. Ao contrário do desempenho deficitário na tarefa AB, as crianças fenilcetonúricas com nível médio de phe entre 360 e 600 mmol/l não diferiram das crianças do grupo controle nas tarefas de discriminação espacial e comparação visual. Diamond baseou-se nesses resultados para argumentar que o déficit nas funções executivas de crianças fenilcetonúricas com nível de phe entre 360 e 600 mmol/l é específico. Segundo Diamond, essa especificidade resulta do fato de que o nível reduzido de tyr no sistema nervoso presente naquela condição é particularmente prejudicial para as vias dopaminérgicas das regiões dorsolaterais do córtex pré-frontal.

Diamond et al. não avaliaram o nível de desenvolvimento mental global das crianças que participaram do seu estudo. Uma vez que as tarefas que avaliam o funcionamento executivo são, em geral, mais difíceis do que as tarefas que avaliam a habilidade de discriminação visual e espacial, não é possível descartar a hipótese de que o desempenho deficitário na tarefa AB das crianças com níveis de phe entre 360 e 600 mmol/l tenha sido ocasionado por atraso no seu desenvolvimento mental global. Alguns estudos têm encontrado correlação significativa entre o nível de phe e o QI de indivíduos fenilcetonúricos12. Com efeito, embora as crianças fenilcetonúricas com nível de phe entre 360 e 600 mmol/l apresentem QI dentro dos limites da normalidade, elas tendem a apresentar resultados significativamente inferiores aos de crianças normais17,18.

Em nosso estudo, o desenvolvimento mental global foi avaliado na mesma ocasião em que as crianças foram submetidos à tarefa AB. Não foi verificada diferença significativa quanto ao desenvolvimento mental global entre as crianças normais, as crianças fenilcetonúricas com nível de fenilalanina entre 120 e 360 mmol/l e as crianças fenilcetonúricas com nível de phe entre 360 e 600 mmol/l. Esses resultados sugerem, portanto, que o déficit nas funções executivas entre as crianças com alto nível de phe não pode ser explicado em função de dificuldades no desenvolvimento mental global.

Os resultados do nosso estudo são importantes não apenas do ponto de vista teórico, mas também apresentam relevância do ponto de vista clínico. Na medida em que fica mais uma vez evidenciada a existência de um déficit nas funções executivas quando os níveis plasmáticos de phe estão entre 360 e 600 mmol/l, os esforços no sentido de manter as crianças fenilcetonúricas dentro de uma dieta pobre em phe devem ser redobrados.

Uma questão importante para a pesquisa futura consiste em determinar até que ponto as funções executivas permanecem independentes da inteligência geral na fenilcetonúria. Faz sentido pensar que as funções executivas – em particular, a atenção seletiva e a memória operacional – desempenhem um papel importante na aquisição de conhecimentos. É possível, portanto, que, com o desenvolvimento, os dois fatores tornem-se mais interligados. Isso explicaria porque as crianças fenilcetonúricas mais velhas, com nível de phe entre 360 e 600 mmol/l, apresentam resultados significativamente inferiores aos de crianças normais em testes de inteligência geral.

Este estudo baseia-se nos resultados de Dissertação de Mestrado submetida pelo primeiro autor ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG. A pesquisa foi possível graças a um financiamento concedido à segunda autora pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Agradecemos também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (CAPES) e ao Núcleo de Pesquisa em Apoio Diagnóstico da Faculdade de Medicina da UFMG, pelo seu apoio. Finalmente, somos gratos às crianças e às suas famílias, pela sua participação. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais.

Recebido 22 Julho 2003, recebido na forma final 14 Dezembro 2003. Aceito 21 Janeiro 2004.

Dra. Cláudia Cardoso-Martins - Departamento de Psicologia UFMG - Avenida Antonio Carlos 6627 - 31270-901 Belo Horizonte MG Brasil. E-mail: cacau@fafich.ufmg.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jul 2004
  • Data do Fascículo
    Jun 2004

Histórico

  • Aceito
    21 Jan 2003
  • Recebido
    22 Jul 2003
  • Revisado
    14 Dez 2003
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