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Extensa falha cutânea e craniana em paciente com aplasia cutis congenita

Large scalp and skull defect in patient with aplasia cutis congenita

Resumos

Aplasia cutis congenita (ACC) é doença rara, caracterizada pela ausência de formação completa da pele. Geralmente ocorre no couro cabeludo, na linha mediana, e apresenta-se ao nascimento como uma ferida ulcerada que pode atingir diferentes profundidades e envolver o periósteo, crânio e dura-máter. Descrevemos o caso de menina recem-nascida que apresentava fácies dismórfica com defeito no couro cabeludo que abrangia a quase totalidade da abóbada craniana e apresentava falha óssea desde a base dos ossos frontais até os occipitais e mastóides. A dura-máter estava em sua maior parte exposta, sem sinais de fissuras. Devido à raridade da ACC e ao pequeno número de pacientes nas séries publicadas na literatura a padronização do tratamento ainda é incipiente. O que existem são recomendações. Ainda são necessários estudos que abordem desde a etiologia da doença até a avaliação dos métodos de tratamento e evolução de grupos maiores de pacientes.

aplasia cutis congenita; tratamento; acrania


Aplasia cutis congenita is a rare condition characterized by the absence of skin layers. It is most common on the scalp, middle line, and it can be seen as a congenital ulcer involving periosteum, skull and dura. We present the case of a female newborn infant with a dysmorphic facies, a large scalp and skull defect exposing the dura. There was no cerebrospinal fluid leakage. The rarity of cases with large defects and small series reported make difficult to determinate the ideal treatment for aplasia cutis congenita. More studies are necessary to define the etiology and best management of this patients.

aplasia cutis congenita; treatment; acrania


Extensa falha cutânea e craniana em paciente com aplasia cutis congenita

Large scalp and skull defect in patient with aplasia cutis congenita

José Gilberto de Brito HenriquesI; Geraldo Pianetti FilhoII; Alexandre Varella GiannettiIII; Karina Santos Wandeck HenriquesIV

IMédico Residente de Neurocirurgia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte MG, Brasil (UFMG)

IIProfessor do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da UFMG, Coordenador da Neurocirurgia Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG

IIIPreceptor da Residência de Neurocirurgia do Hospital das Clínicas da UFMG

IVMédica Residente de Pediatria do Hospital das Clínicas da UFMG

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dr. José Gilberto de Brito Henriques Avenida Augusto de Lima 196/902 30190-001 Belo Horizonte MG - Brasil E-mail: henriques_jgb@hotmail.com

RESUMO

Aplasia cutis congenita (ACC) é doença rara, caracterizada pela ausência de formação completa da pele. Geralmente ocorre no couro cabeludo, na linha mediana, e apresenta-se ao nascimento como uma ferida ulcerada que pode atingir diferentes profundidades e envolver o periósteo, crânio e dura-máter. Descrevemos o caso de menina recem-nascida que apresentava fácies dismórfica com defeito no couro cabeludo que abrangia a quase totalidade da abóbada craniana e apresentava falha óssea desde a base dos ossos frontais até os occipitais e mastóides. A dura-máter estava em sua maior parte exposta, sem sinais de fissuras. Devido à raridade da ACC e ao pequeno número de pacientes nas séries publicadas na literatura a padronização do tratamento ainda é incipiente. O que existem são recomendações. Ainda são necessários estudos que abordem desde a etiologia da doença até a avaliação dos métodos de tratamento e evolução de grupos maiores de pacientes.

Palavras-chave: aplasia cutis congenita, tratamento, acrania.

ABSTRACT

Aplasia cutis congenita is a rare condition characterized by the absence of skin layers. It is most common on the scalp, middle line, and it can be seen as a congenital ulcer involving periosteum, skull and dura. We present the case of a female newborn infant with a dysmorphic facies, a large scalp and skull defect exposing the dura. There was no cerebrospinal fluid leakage. The rarity of cases with large defects and small series reported make difficult to determinate the ideal treatment for aplasia cutis congenita. More studies are necessary to define the etiology and best management of this patients.

Key words: aplasia cutis congenita, treatment, acrania.

Aplasia cutis congenita (ACC) é doença rara, caracterizada pela ausência de formação completa da pele. Geralmente ocorre no couro cabeludo, na linha mediana, e apresenta-se ao nascimento como uma ferida ulcerada que pode atingir diferentes profundidades e envolver o periósteo, crânio e dura-máter. A primeira descrição da ACC foi feita por Cordon em 1767 que relatou lesão no membro superior do paciente1. Em 1826 Campbell publicou o primeiro relato da lesão em couro cabeludo2. Em 75% dos paciente a ACC ocorre como lesão única3. O couro cabeludo é o local de ocorrência em 84% dos pacientes e o crânio é acometido de 15% a 30% das vezes3-5. Existem diversas teorias sobre a etiopatogenia da ACC, porém nenhuma delas foi devidamente confirmada. A incidência relatada é de 1 a cada 10000 nascimentos6. Lesões extensas são ainda mais raras.

É descrito caso de paciente com ACC que acometia o couro cabeludo e a calota craniana em toda a sua extensão.

CASO

Paciente do sexo feminino, nascida de parto vaginal com 33 semanas e peso adequado para idade gestacional. A mãe tinha 28 anos e esta era sua quarta gestação. Houve dois abortos prévios de causa desconhecida e sua filha mais velha, fruto de relação com outro parceiro, era saudável. Durante a gestação a ultra-sonografia evidenciou imagem sugestiva de microcefalia e encefalocele. Ao nascimento (Fig 1) a paciente estava estável, ventilando espontaneamente, movendo os quatro membros. Apresentava facies dismórfica com defeito no couro cabeludo que abrangia a quase totalidade da abóbada craniana e apresentava falha óssea desde a base dos ossos frontais, envolvendo a maior pate dos parietais, até os occipitais e mastóides. A dura-máter estava em sua maior parte exposta, sem sinais de fissuras, e havia sítios de tecido de granulação muito friáveis que a recobriam. Devido à ausência da calota craniana o tecido cerebral e a dura-máter se projetavam pela falha óssea causando impressão de uma encefalocele gigante, bilobulada. Na região parietal direita, recoberta por pele integra, havia lesão sugestiva de encefalocele. Não foram percebidos sinais de fístula liquórica apesar de toda a ferida apresentar-se constantemente umidificada.


O exame do cariótipo da paciente foi normal - 46XX. A tomografia computadorizada do crânio (Figs 2 e 3) confirmou a falha óssea e a encefalocele parieto-occipital direita. Havia imagem sugestiva de esquizencefalia frontal de lábio aberto e irregularidade do parênquima encefálico devido a aparente ausência da fissura inter-hemisférica. A anatomia ventricular era bastante distorcida. Não havia outras alterações percebidas ao exame físico ou à propedêutica complementar.



Com 20 horas de vida a paciente iniciou quadro febril e queda da freqüência cardíaca. Foi diagnosticada sepse neonatal e iniciada terapia antibiótica. Devido ao quadro séptico e instabilidade da paciente o tratamento conservador foi iniciado: curativos embebidos em solução de cloreto de sódio a 0,9% e sulfadiazina de prata a 1%.

A paciente evoluiu bem com regressão do quadro febril e estabilidade hemodinâmica até o 15o dia de vida quando apresentou ictus tônico-clônico generalizado e episódios de apnéia. Medicação anti-convulsivante foi iniciada com boa resposta. No 22o dia de vida (Figs 4 e 5), apesar da formação progressiva de tecido de granulação e aparecimento de pele íntegra no couro cabeludo, apresentou secreção purulenta, com odor fétido na ferida. A cultura do material mostrou Klebsiella pneumoniae, Klebsiella oxytoca, Staphylococcus aureus e Corinebacterium sp. Novo ciclo de antibióticos foi iniciado e houve importante melhora da ferida. Houve pequeno sangramento no vértex no 29o dia de vida que foi controlado com compressão local. O quadro geral da paciente mantendo-se satisfatório, com boa evolução até o 67o dia de vida, quando teve episódio de vômito seguido de cianose e bradicardia que foi refratária ao tratamento instituído com evolução para o óbito.



DISCUSSÃO

Diversas teorias tentam explicar a etiopatogenia da ACC: defeitos no fechamento do tubo neural; necrose por pressão localizada na pele do embrião e mesênquima adjacente; sífilis congênita (que foi descartada); adesões amnióticas; anomalias vasculares5-9. As heranças autossômicas dominante e recessiva também já foram descritas4,6,7,9,10. A concomitância da ACC com outras malformações originou alguns sistemas de classificação baseados na morfologia da lesão, na localização e nas outras malformações presentes11-13. Segundo Glasson e Duncan7, a ACC geralmente ocorre no primeiro filho do casal e no sexo feminino. A maioria das lesões da ACC é única3, acomete somente a epiderme7,9,10, tem forma oval ou estrelada com menos de dois centímetros e ocorre principalmente no vértex, seguido de outros locais no couro cabeludo, antebraços, joelhos, tronco e pescoço5.

A histologia das lesões superficiais mostra ausência da epiderme, de seus anexos e atrofia da derme. As lesões profundas à microscopia mostram tecido de granulação e cicatricial em diferentes fases evolutivas.

As lesões extensas e as que acometem a dura-máter são extremamente raras e têm mortalidade elevada, sendo as infecções e hemorragias as principais causas de morte nestes pacientes, com taxa de mortalidade de 20% e 55% respectivamente3,6,10. As outras causas de morte descritas são trombose de seio venoso, hiponatremia (por perda direta de sódio pela ferida), hipercalemia (devido ao uso de sulfadiazina de prata nos curativos)6,7. Desta maneira, a mortalidade é dependente da extensão e da profundidade das lesões, além dos casos de associação com outras malformações. A concomitância com encefalocele, mielomeningocele e outros disrafismos também pode ocorrer8. Ribuffo et al. publicaram o relato de caso de um paciente que, com o tratamento conservador, desenvolveu por duas vezes encefalocele no local da ACC10. Higginbottom et al. descreveram cinco pacientes com ACC em região lombo-sacra, destes; quatro apresentavam medula presa à exploração cirúrgica14. O diagnóstico diferencial da ACC deve ser feito com os disrafismos crânio-espinhais, abscessos do couro cabeludo, tocotraumatismos e tecido cerebral heterotópico5,9.

A história natural da ACC é de cicatrização de lesões pequenas e hemorragias e infecções nas lesões grandes. Devido à evolução favorável das lesões pequenas e sem acometimento da dura-máter o tratamento recomendado é o conservador, a base de curativos e cuidados com a lesão. O maior desafio terapêutico encontra-se nas lesões de grande extensão e com envolvimento da dura-máter. Alguns autores advogam o tratamento conservador mesmo nas lesões extensas devido à grande dificuldade técnica e aos relatos de boa evolução de alguns pacientes5. Outros autores3,5 sugerem o tratamento conservador inicialmente com cirurgia precoce no caso de pequenos sangramentos pois é bem difundida a idéia de que os pequenos sangramentos precedem grandes hemorragias3,6,7. Estes sangramentos, ocorrem devido a pequenas fissuras secundárias ao ressecamento da superfície das lesões após os curativos. Cirurgias de urgência devido a lesões do seio sagital superior ou de lagos venosos são extremamente difíceis, dadas as condições do tecido a ser suturado e a anatomia anômala das estruturas vasculares7.

É consenso na literatura que as lesões extensas devem ser tratadas cirurgicamente. As grandes dificuldades técnicas para o tratamento cirúrgico são: a escassez de tecido cutâneo íntegro para planejamento de retalho; a má adaptação dos retalhos cutâneos sobre o leito da ferida devido à vascularização anômala e ao tecido de granulação já formado sobre a ferida6; a absorção dos enxertos ósseos que pode ocorrer quando estes são colocados sobre enxertos de dura-máter. Além destas, os diversos procedimentos cirúrgicos de grande porte nas crianças tornam a decisão pela cirurgia ainda mais difícil. No entanto há relatos de bons resultados de reconstituição do couro cabeludo com retalhos autólogos e expansores de tecidos3-6. As cranioplastias autólogas ou heterólogas foram realizadas em abordagens precoces e mais tardias devido ao pouco crescimento dos ossos do crânio após a cicatrização da pele5.

A opção pelo tratamento conservador da paciente aqui relatada foi feita devido à pouca quantidade de tecido íntegro para o retalho cutâneo e ao quadro séptico precoce.

Devido à raridade da ACC e ao pequeno número de pacientes nas séries publicadas na literatura, a padronização do tratamento ainda é muito inicial. O que existem são recomendações. Ainda são necessários estudos que abordem desde a etiologia da doença até a avaliação dos métodos de tratamento e evolução de grupos maiores de pacientes.

Recebido 9 Fevereiro 2004, recebido na forma final 4 Maio 2004. Aceito 5 Julho 2004.

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  • Endereço para correspondência

    Dr. José Gilberto de Brito Henriques
    Avenida Augusto de Lima 196/902
    30190-001
    Belo Horizonte MG - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Abr 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Aceito
      05 Jul 2004
    • Revisado
      04 Maio 2004
    • Recebido
      09 Fev 2004
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