Acessibilidade / Reportar erro

Miopatia por corpos esferóides: relato de caso

Spheroid body myopathy: case report

Resumos

A miopatia por corpos esferóides é doença rara, classificada no grupo das miopatias congênitas relacionadas aos distúrbios da desmina; apresenta, em geral, origem autossômica dominante e com início dos sintomas na fase adulta. Relatamos o caso de menina de sete anos, com diparesia facial, hipotrofia e hipotonia muscular generalizadas, arreflexia profunda generalizada, força muscular proximal nos membros superiores e inferiores e distal dos membros superiores grau 3 e distal nos membros inferiores grau 1. A eletromiografia de agulha evidenciou recrutamento aumentado e potenciais de unidade motora de curta duração e baixa amplitude, caracterizando um padrão miopático. A biópsia muscular revelou padrão misto para miopatia e desinervação e presença de corpos esferóides intracitoplasmáticos compatíveis com a miopatia por corpos esferóides. No presente caso, a paciente apresentou precocemente o início dos sintomas e não há relatos de casos semelhantes na família.

corpos esferóides; corpos intracitoplasmáticos; miopatia


Spheroid body myopathy is a rare illness classified in the group of the congenital myopathies as a desmin-related neuromuscular disorder, presenting dominant autosomical origin with the beginning of the symptoms in the adult phase. We report on a seven years old girl with facial paresia, generalized muscular hypotrophy and hypotony, generalized deep areflexia, proximal upper and lower limbs muscular strengh and distal upper limbs grade 3 and distal lower limbs grade 1. Needle electromyography evidenced increased conscription and potentials of motor unit of short duration and low amplitude, characterizing a myopathic standard. The muscle biopsy disclosed mixed standard to myopathy, denervation and inclusion bodies that are consistent to spheroid body myopathy. In this case, the patient presented, in advance, early beginning of the symptoms and there are no similar cases in the family.

spheroid bodies; intracytoplasmic bodies; myopathy


Miopatia por corpos esferóides: relato de caso

Spheroid body myopathy: case report

Rosana Hermínia ScolaI; Alcides Trentin JrII; Rodrigo VaezII; Vinicius de Faria GignonII; Thaís Gurgel CostaII; Lineu Cesar WerneckIII

Setor de Doenças Neuromusculares, Serviço de Neurologia e Disciplina de Propedêutica Médica do Departamento de Clínica Médica do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (HC-UFPR), Curitiba PR, Brasil

IProfessora Adjunta

IIAcadêmico de Medicina

IIIProfessor Titular

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dra. Rosana H. Scola Divisão de Doenças Neuromusculares, Hospital de Clinicas UFPR Rua General Carneiro 181 80069-900 Curitiba PR - Brasil E-mail: scola@hc.ufpr.br

RESUMO

A miopatia por corpos esferóides é doença rara, classificada no grupo das miopatias congênitas relacionadas aos distúrbios da desmina; apresenta, em geral, origem autossômica dominante e com início dos sintomas na fase adulta. Relatamos o caso de menina de sete anos, com diparesia facial, hipotrofia e hipotonia muscular generalizadas, arreflexia profunda generalizada, força muscular proximal nos membros superiores e inferiores e distal dos membros superiores grau 3 e distal nos membros inferiores grau 1. A eletromiografia de agulha evidenciou recrutamento aumentado e potenciais de unidade motora de curta duração e baixa amplitude, caracterizando um padrão miopático. A biópsia muscular revelou padrão misto para miopatia e desinervação e presença de corpos esferóides intracitoplasmáticos compatíveis com a miopatia por corpos esferóides. No presente caso, a paciente apresentou precocemente o início dos sintomas e não há relatos de casos semelhantes na família.

Palavras-chave: corpos esferóides, corpos intracitoplasmáticos, miopatia.

ABSTRACT

Spheroid body myopathy is a rare illness classified in the group of the congenital myopathies as a desmin-related neuromuscular disorder, presenting dominant autosomical origin with the beginning of the symptoms in the adult phase. We report on a seven years old girl with facial paresia, generalized muscular hypotrophy and hypotony, generalized deep areflexia, proximal upper and lower limbs muscular strengh and distal upper limbs grade 3 and distal lower limbs grade 1. Needle electromyography evidenced increased conscription and potentials of motor unit of short duration and low amplitude, characterizing a myopathic standard. The muscle biopsy disclosed mixed standard to myopathy, denervation and inclusion bodies that are consistent to spheroid body myopathy. In this case, the patient presented, in advance, early beginning of the symptoms and there are no similar cases in the family.

Key words: spheroid bodies, intracytoplasmic bodies, myopathy.

As doenças neuromusculares congênitas constituem um grupo de alterações atualmente classificadas de acordo com critérios clínicos e morfológicos1,2. Muitas dessas entidades apresentam-se segundo um padrão familiar autossômico dominante; outras são observadas de forma esporádica. Algumas delas apresentam achados ultraestruturais distintos tais como: bastões nemalínicos, core central ou lise de miofibrilas3. Em 1978, Goebel e col. observaram uma desordem neuromuscular congênita com que se diferenciava por seus aspectos morfológicos e para qual foi proposto o termo miopatia por corpos esferóides, baseado em achados ultraestruturais e histoquímicos4. Atualmente as miopatias congênitas relacionadas a anormalidades da Banda Z são classificadas em miopatia nemalínica e em um crescente grupo de miopatias relacionadas a distúrbios da desmina, no qual se inclui a miopatia por corpos esferóides5. Esta doença é caracterizada por atrofia muscular e fraqueza lentamente progressiva de início na adolescência, podendo se estender por mais de 50 anos, com associação ocasional de tremor, disfagia e mialgia6. À histologia muscular, observam-se coleções de massas esféricas de 2 a 15 micrômetros, maiores e mais numerosos que os corpos citoplasmáticos, com coloração verde no tricrômio e desprovidas de atividade oxidativa, usualmente ocorrendo em fibras tipo I, que são constituídas ultraestruturalmente de filamentos finos enovelados de 12 a 15 nanômetros de diâmetro misturados a manchas e linhas com densidade de disco Z. A periferia pode ser positiva para desmina e também estar ocupada por mitocôndrias, glicogênio, filamentos desorganizados e disco Z com estiramento7,8.

O objetivo deste estudo é relatar o caso de paciente com miopatia por corpos esferóides.

CASO

Menina de 7 anos, com história de hipotonia cervical observada aos 5 meses de idade, evoluindo com atraso do desenvolvimento motor: sustentação cefálica com 1 ano, sentou com 1 ano e 6 meses, andou após os 2 anos e evoluiu com dificuldade de deambulação; falou com 1 ano. História familiar negativa para doença semelhante e pais não consangüíneos. Ao exame físico, na inspeção, a única particularidade era a presença de "pés cavos". Ao exame neurológico, marcha escarvante, diparesia facial, hipotrofia e hipotonia muscular generalizada, força muscular proximal em membros superiores e inferiores e distal de membros superiores grau 3 e distal em membros inferiores grau 1 (Medical Research Council - MRC) e arreflexia profunda generalizada. Os exames laboratoriais mostraram hemograma normal, creatinoquinase sérica (CK) normal, transaminases glutâmica pirúvica (TGP) e glutâmica oxalacética (TGO) normais.

A eletroneuromiografia mostrou condução nervosa motora e sensitiva normais e o exame de agulha evidenciou recrutamento aumentado e potenciais de ação da unidade motora de curta duração e amplitudes reduzidas, compatível com padrão miopático.

A biópsia muscular com histoquímica do músculo quadriceps revelou inclusões citoplasmáticas de cor vermelho-púrpura, arredondadas nos cortes transversais e alongadas nos longitudinais, compatíveis com corpos esferóides (Fig 1).


DISCUSSÃO

As miopatias congênitas podem ser classificadas em: (1) anormalidades enzimáticas sem alteração estrutural - desproporção congênita do tipo de fibra; (2) alteração na localização do núcleo - miopatia miotubular e contronuclear; (3) desarranjo das estruturas intrínsecas, sarcômeros alargados - núcleo central e minicore; (4) inclusões anormais nas fibras musculares. Várias dessas inclusões são derivadas de estruturas pré-existentes, principalmente bastões ou corpos nemalínicos. Outras inclusões são derivadas de material da Banda Z, sendo esses corpos citoplamáticos possivelmente relacionados com inclusões tais como: corpos esferóides, corpos sarcoplamáticos e inclusões de corpos tipo Mallory. Essas inclusões compartilham o acúmulo de desmina e outras proteínas9,10.

A desmina pode ser melhor conceituada como uma proteína miofibrilar ou um filamento intermediário específico das fibras musculares que, em situações patológicas, acumula-se no interior de corpos citoplasmáticos, corpos sarcoplasmáticos, corpos esferóides ou materiais granulofilamentosos. As miopatias relacionadas à desmina constituem um grupo tanto clinica quanto geneticamente heterogênio, podendo ser hereditárias ou esporádicas, caracterizando-se por fraqueza muscular proximal e distal muitas vezes associadas a cardiomiopatia11. Vários estudos foram realizados na tentativa de relacionar as mutações do gene da desmina ao desenvolvimento de diversas doenças e suas complicações, porém os resultados ainda são inconclusivos12. Dentre as doenças relacionadas à desmina, também chamadas de miopatias miofibrilares11, Este artigo destaca a miopatia por corpos esferóides.

Na maioria das vezes, a miopatia por corpos esferóides manifesta-se na vida adulta, embora sintomas menores possam ocorrer na infância9. Há atrofia proximal com pseudo-hipertrofia do quadriceps e panturrilha, fraqueza muscular predominantemente distal, cãimbras e fatigabilidade. Em vários casos, a doença resulta em importante perda de peso e insuficiência respiratória. Aqueles que se iniciam na infância ou adolescência, comumente cursam com anormalidades esqueléticas e insuficiência respiratória, sendo o curso da doença mais severo7.

Não existe um padrão típico de herança para a miopatia por corpos esferóides. Goebel e col. observaram um padrão autossômico dominante em quatro gerações sucessivas4, embora já tenham sido relatados casos esporádicos e de herança autossômica recessiva em caso de pais consangüíneos7,13.

No presente caso, observa-se uma miopatia com início precoce, a paciente apresentando o início dos sintomas aos 5 meses de idade, evoluindo progressivamente até o momento. Os achados clínicos de hipotrofia e fraqueza muscular condizem com os da literatura, que prevê maior variabilidade de anormalidades esqueléticas para casos que se iniciam na infância, justificando a existência dos "pés cavos". As enzimas séricas musculares auxiliam no diagnóstico; geralmente estão moderadamente elevadas. Esta paciente apresentava uma CK normal.

A eletromiografia demonstra um padrão miopático, a biópsia muscular com histoquímica, mostra a presença de corpos esferóides, principalmente nas fibras tipo I. A periferia da fibra muscular pode ter positividade para desmina, glicogênio, ou ocupada por mitocôndrias8. Neste caso, o exame anátomo-patológico e histoquímico revelou a presença de corpos esferóides e a periferia das fibras musculares ocupada por mitocôndrias.

A particularidade deste caso consiste no início precoce desta doença, que se apresenta sem padrão hereditário autossômico dominante e tornando-se, portanto, extremamente rara.

Recebido 14 Julho 2004, recebido na forma final 25 Outubro 2004. Aceito 26 Outubro 2004.

  • 1. Munsat TL. Congenital myopathies. In Pearson CM, Mostofi FK (eds). The striated muscle. Baltimore: Williams and Wilkins, 1973:442-452.
  • 2. Walton JN. Some rare congenital and metabolic myophaties. In Bergsma D (ed). Birth defects: Original Article Series, Vol 7. Baltimore: Williams and Wilkins, 1971:2-14.
  • 3. Cancilla PA, Kalyanaraman K, Verity MA, Munsat T, Pearson CM. Familial myopathy with probable lysis of myifibrils in type I fibers. Neurology 1971;21:579-585.
  • 4. Goebel HH, Muller J, Gillen HW, Merritt AD. Autosomal dominant "spheroid body myopathy". Muscle Nerve 1978;1:14-26.
  • 5. Azevedo HCA, Carvalho MS, Nagahashi-Marie SK, et al. Miopatia nemalínica com corpos intracitoplasmáticos esferóides. Arq. Neuropsiquiatr 1996;54:114-119.
  • 6. Halbig L., Goebell HH, Hopf HC, Moll R. Spheroid-cytoplasmatic complexes in a congenital myopathy. Rev Neurol (Paris) 1991;147:300-307.
  • 7. Engel AG, Banker BQ. Ultrastructural changes in diseased muscle. In Engel AG, Franzini-Armstrong C (eds). Myology. New York: McGraw-Hill, 1994:889-1017.
  • 8. Goebel HH, Lenard HG. Congenital myopathies. In Vinken PJ, Bruyn GW, Klawans HL (eds). Handbook of clinical neurology, Vol 62: Myopathies. Amsterdam: Elsevier 1992:331-368.
  • 9. Goebel HH. Congenital myopathies with inclusion bodies: a brief review. Neuromusc Dis 1998;8:162-168.
  • 10. Suwa K, Mizuguchi M, Momoi MY, et al. Co-existence of nemaline and cytoplasmic bodies in muscle of an infant with nemaline myopathy. Neuropathology 2002;22:294-298.
  • 11. Olivé M, Goldfarb L, Moreno D, et al. Desmin related myopathy: clinical, electrophysiological, radiological, neuropathological and genetic studies. J Neurol Sci 2004;219:125-137.
  • 12. Marinos CD, et al. Desmin myopathy: a skeletal myopathy with cardiomyopathy caused by mutations in the desmin gene. N Engl J Med 2000;342:770-780.
  • 13. Goebel HH. Congenital myopathies at their molecular dawning. Muscle Nerve 2003;27:527-548.
  • Endereço para correspondência
    Dra. Rosana H. Scola
    Divisão de Doenças Neuromusculares, Hospital de Clinicas UFPR
    Rua General Carneiro 181
    80069-900 Curitiba PR - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jul 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Aceito
      26 Out 2004
    • Recebido
      14 Jul 2004
    Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista.arquivos@abneuro.org