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Manifestações neurológicas de dengue: estudo de 41 casos

Neurological manifestations of dengue: study of 41 cases

Resumos

Pelo aumento de casos de encefalite e meningoencefalite em pacientes com dengue, diagnosticados em hospital público referência estadual em Neurologia, adotou-se levantamento sistemático. OBJETIVO: Apresentar 41 casos com manifestações neurológicas do dengue comparando-os à literatura. MÉTODO: Realizou-se estudo descritivo, retrospectivo, entre março e julho de 1997, e prospectivo, de fevereiro a maio de 2002. Foram analisados regiões acometidas e diagnósticos em 41 pacientes. RESULTADOS: As regiões acometidas foram: encefálica (5/7 casos de 1997 - 71,4% e 20/34 casos de 2002 - 58,8%), medular (2/34 de 2002 - 5,9%), de nervos periféricos (2/7 casos de 1997 - 28,6% e 12/34 de 2002 - 35,3%). Não houve acometimento meníngeo. Quanto à topografia, foram diagnosticados acometimentos encefálicos e de nervos periféricos em ambos os períodos, e, apenas em 2002, acometimento medular. Dos 14 diagnósticos, acidente vascular cerebral hemorrágico e encefalomielite aguda disseminada não constam da literatura consultada, além da acentuação de espasmo hemifacial como possível manifestação do dengue. CONCLUSÃO: Esta é a terceira casuística em dengue e sistema nervoso. Foram firmados três diagnósticos, ainda não relatados internacionalmente.

dengue; manifestações neurológicas


The increase of encephalitis and meningoencephalitis in patients with dengue, diagnosed at a public hospital, Neurology State reference, we adopted systematic data collection. OBJECTIVE: The objective was to present 41 cases of neurological manifestations of dengue and to compare data with literature. METHOD: This is a descriptive study, retrospective from March to July 1997 and, prospective, from February to May 2002, analyzing damaged neurological regions and diagnostic of 41 patients. RESULTS: Involved regions were brain (5/7 cases - 71.4%, in 1997, and 20/34 cases - 58.8%, in 2002), spinal cord (2/34 cases - 5.9% in 2002) and peripheral nerves (2/7 cases - 28.6% in 1997 and 12/34 cases - 35.3% in 2002). There was no meningeal involvement. According to topography, there was encephalic and peripheral nerves diagnosis in both periods and, exclusively in 2002, spinal cord damage. Cerebral hemorrhage and acute disseminated encephalomyelitis were diagnosed for the first time, as well as hemifacial spasm worsening as possible neurological manifestation of dengue. CONCLUSION: This is the third casuistics in dengue and nervous system. Three dengue complications were diagnosed, for the first time registered on the literature.

dengue; neurological manifestations


Manifestações neurológicas de dengue: estudo de 41 casos

Neurological manifestations of dengue: study of 41 cases

Maria Lúcia Brito FerreiraI; Cybele Gomes CavalcantiII; Candice Alvarenga CoelhoIII; Solange Dornelas MesquitaIV

INeurologista Chefe do Serviço de Neurologia do Hospital da Restauração, Recife PE, Brasil (SENEU/HR)

IINeurologista do Setor de Emergência do SENEU/HR

IIIResidente 3 do SENEU/HR

IVNeurologista e Liqüorologista do SENEU/HR

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dra. Maria Lúcia Brito Ferreira Rua Neto de Mendonça 230/802 52050-100 Recife PE - Brasil E-mail: lucabrito@uol.com.br

RESUMO

Pelo aumento de casos de encefalite e meningoencefalite em pacientes com dengue, diagnosticados em hospital público referência estadual em Neurologia, adotou-se levantamento sistemático.

OBJETIVO: Apresentar 41 casos com manifestações neurológicas do dengue comparando-os à literatura.

MÉTODO: Realizou-se estudo descritivo, retrospectivo, entre março e julho de 1997, e prospectivo, de fevereiro a maio de 2002. Foram analisados regiões acometidas e diagnósticos em 41 pacientes.

RESULTADOS: As regiões acometidas foram: encefálica (5/7 casos de 1997 - 71,4% e 20/34 casos de 2002 - 58,8%), medular (2/34 de 2002 - 5,9%), de nervos periféricos (2/7 casos de 1997 - 28,6% e 12/34 de 2002 - 35,3%). Não houve acometimento meníngeo. Quanto à topografia, foram diagnosticados acometimentos encefálicos e de nervos periféricos em ambos os períodos, e, apenas em 2002, acometimento medular. Dos 14 diagnósticos, acidente vascular cerebral hemorrágico e encefalomielite aguda disseminada não constam da literatura consultada, além da acentuação de espasmo hemifacial como possível manifestação do dengue.

CONCLUSÃO: Esta é a terceira casuística em dengue e sistema nervoso. Foram firmados três diagnósticos, ainda não relatados internacionalmente.

Palavras-chave: dengue, manifestações neurológicas.

ABSTRACT

The increase of encephalitis and meningoencephalitis in patients with dengue, diagnosed at a public hospital, Neurology State reference, we adopted systematic data collection.

OBJECTIVE: The objective was to present 41 cases of neurological manifestations of dengue and to compare data with literature.

METHOD: This is a descriptive study, retrospective from March to July 1997 and, prospective, from February to May 2002, analyzing damaged neurological regions and diagnostic of 41 patients.

RESULTS: Involved regions were brain (5/7 cases - 71.4%, in 1997, and 20/34 cases - 58.8%, in 2002), spinal cord (2/34 cases - 5.9% in 2002) and peripheral nerves (2/7 cases - 28.6% in 1997 and 12/34 cases - 35.3% in 2002). There was no meningeal involvement. According to topography, there was encephalic and peripheral nerves diagnosis in both periods and, exclusively in 2002, spinal cord damage. Cerebral hemorrhage and acute disseminated encephalomyelitis were diagnosed for the first time, as well as hemifacial spasm worsening as possible neurological manifestation of dengue.

CONCLUSION: This is the third casuistics in dengue and nervous system. Three dengue complications were diagnosed, for the first time registered on the literature.

Key words: dengue, neurological manifestations.

Dengue é a infecção arboviral humana mais freqüente, com 50 milhões de casos por ano e 2,5 a 3 bilhões de pessoas em risco de contaminação, segundo estimativa da OMS1. A infecção se apresenta classicamente como febre do dengue (DC), uma doença autolimitada, mas severa, semelhante à influenza, ou como febre hemorrágica do dengue ou dengue hemorrágico (FHD). No sudeste da Ásia, é doença predominantemente pediátrica e caracterizada pelo aumento da permeabilidade vascular, perda de plasma, manifestações hemorrágicas e trombocitopenia2. A sintomatologia do dengue depende da forma clínica, podendo variar de cefaléia a ampla gama de manifestações neurológicas. No dengue clássico, o quadro febril, agudo, com duração de dois a sete dias, habitualmente associa-se a dois ou mais sinais ou sintomas, dentre: cefaléia grave, dor retrorbital, mialgia grave, artralgia, rash característico, manifestações hemorrágicas e leucopenia. A mialgia do dengue deve-se à presença de infiltrado mononuclear perivascular leve a moderado e acúmulo de lipídeos, acarretando o sintoma de fadiga, em ausência de fraqueza do músculo ou de outros envolvimentos neurológicos3.

A fisiopatologia das complicações neurológicas do dengue, embora raras, pode ser explicada pelos seguintes eventos, isolados ou associados: edema cerebral, hemorragia cerebral, hiponatremia, falência hepática fulminante com encefalopatia porto-sistêmica, anóxia cerebral, hemorragia microcapilar e liberação de produtos tóxicos4. A infecção do sistema nervoso central (SNC) pelo dengue requer o conhecimento das três hipóteses de infecção viral sistêmica: a teoria da infecção seqüencial, desenvolvida por Halstead5; a teoria de hiperendemicidade de Rosen6 e a ocorrência de recombinação gênica, resultante de infecções simultâneas por sorotipos virais diferentes, tanto no hospedeiro humano como no vetor6. Na busca da etiopatogenia das manifestações neurológicas do dengue, houve dois momentos. No primeiro, admitiu-se que anticorpos antidengue seriam causa do comprometimento neurológico. No segundo momento, a partir da constatação da presença de antígenos virais no líqüido cefalorraquidiano (LCR), buscou-se identificar a forma pela qual o vírus alcança as estruturas de sistema nervoso. Os vírus DEN2 e DEN3 podem cruzar a barreira hematoencefálica e invadir o cérebro. Embora não tenham sido isolados em LCR, seu neurotropismo pode explicar meningite, encefalite, mononeuropatia e polineuropatia, por toxicidade direta4. Por esse motivo, é razoável considerar que as manifestações neurológicas que podem ocorrer durante o DC ou na fase aguda da FHD, especialmente associadas à trombocitopenia ou à coagulopatia disseminada, sejam conseqüência de reações imunológicas da infecção viral por dengue, com subseqüente inflamação perivascular7. Isto pode acarretar edema cerebral, congestão vascular, hemorragias focais e infiltrados linfocitários perivasculares, além de diversos focos de desmielinização perivenosa e formação de imunocomplexos, durante a infecção, ou como manifestação pós-infecciosa. Assim, as manifestações resultariam da deposição de imunocomplexos mais do que do envolvimento direto do sistema nervoso2.

A partir de 1997, alguns estudos deram subsídios para tais hipóteses. A detecção da presença de anticorpos da classe IgM no LCR sugeriu que a infecção viral poderia ocorrer pela hemorragia ou pelas trocas entre os vasos sanguíneos e as células nervosas, o que possibilitaria a passagem de anticorpos do soro para o LCR8, podendo ser mediada por citocinas9. Embora o isolamento viral em LCR seja raramente referido na literatura, aventou-se a possibilidade da passagem viral pela barreira hematoencefálica durante a fase virêmica8,9. Por meio de cultura de tecidos, utilizando células de neuroblastoma de ratos e de humanos, num modelo experimental, identificou-se, por imunofluorescência, a presença de antígenos virais no citoplasma e ao redor do núcleo, comprovando a existência de receptores virais do dengue envolvidos nos mecanismos de infecção do SNC10. Por meio de análise imuno-histoquímica de material de necrópsia foram demonstrados antígenos virais em células fagocitárias de fígado, pulmão e baço de cinco casos fatais por dengue, associados à encefalopatia, assim como em veias de pequeno e médio calibres do espaço de Virchow - Robin, infiltrando substância branca e cinzenta, e próximas a neurônios com morfologia anormal11. Como os vírus do dengue se reproduzem em macrófagos, é plausível admitir a infiltração dessas células infectadas no SNC nos casos de encefalite por dengue9.

Além dos exames de investigação clínica, que incluem hemograma, contagem de plaquetas, prova do laço e dosagens bioquímicas (uréia, creatinina, transferases e bilirrubina total e frações), o diagnóstico laboratorial de dengue requer determinação dos títulos de anticorpos contra antígenos DEN1, DEN2, DEN3 e DEN4, por inibição de hemaglutinação (HI) e titulação de IgM, por enzima-imunoensaio (EIA) com antígeno tetravalente de dengue. O teste de HI pode diferenciar a resposta primária, que é relativamente monoespecífica e se caracteriza por títulos menores que 1:1280, da resposta secundária, com títulos superiores a 1:2560, segundo os parâmetros da OMS1. A identificação viral pode ser feita também por meio de imunofluorescência indireta com anticorpos monoclonais antidengue tipo-específicos, utilizando soro ou LCR incubado com células de Aedes pseudoscutellaris (AP61), cultivadas em meio de Leibowitz. Outro método é a detecção do genoma viral, por transcrição reversa do seu RNA em DNA complementar, seguida de amplificação em cadeia, pela polimerase (RT-PCR), ou hibridização com sondas moleculares marcadas12,13.

Patey et al.2 referem que a determinação das concentrações de complemento deve ser solicitada, uma vez que níveis reduzidos de C3, C4 e C5 se correlacionam com a gravidade da doença neurológica. Esses dados são confirmados por Janssen et al.14, ao identificarem perda de integridade do endotélio vascular cerebral e ativação do complemento em um caso de edema cerebral progressivo por síndrome do choque por dengue. Ramos et al.15, utilizando-se de análise imuno-histoquímica de cérebro de um caso fatal por FHD, identificam DEN4 no núcleo olivar do tronco encefálico e na camada granular cerebelar. Detalham ter havido imunorreatividade em neurônios, astrócitos, micróglia e células endoteliais, dados que enfatizam a teoria dos imunocomplexos como forma de explicar o acometimento de SNC pelo dengue. Na presença de complicações neurológicas do dengue, devem ser solicitados: exame de LCR, exames de imagem e eletrencefalograma (EEG). Lum et al.4 referem que, no LCR, podem estar presentes: pleocitose predominantemente linfocitária, com glicorraquia e proteinorraquia normais, compatíveis com infecção viral. Na tomografia computorizada (TC) e na ressonância magnética (RM), os achados mais comuns são edema cerebral generalizado ou focal. No EEG, observa-se a presença de ondas lentas com distribuição difusa ou localizada.

O Hospital da Restauração (HR) é público, estadual e referência para diagnóstico e tratamento de doenças neurológicas. Assim sendo, recebe grande parte dos casos provenientes do Estado de Pernambuco e de outros Estados da Região Nordeste.

O presente estudo objetiva apresentar as manifestações neurológicas de dengue diagnosticadas em serviço de referência estadual, no período de março a julho de 1997 e de fevereiro a maio de 2002, comparando-as àquelas referidas nas literaturas nacional e internacional. Para a discussão dos resultados, são revistos os conceitos de dengue, suas manifestações clínicas, os tipos virais envolvidos, os procedimentos diagnósticos, para dar subsídio à confirmação do diagnóstico das manifestações neurológicas de dengue.

MÉTODO

De março a julho de 1997, retrospectivamente, foram coletados os dados de identificação, exames complementares e diagnóstico de sete pacientes com manifestações neurológicas de dengue, a partir dos quais foi criado protocolo de sistematização de levantamento de dados sobre tais manifestações, que passou a ser adotado como rotina no Serviço de Neurologia do HR. De fevereiro a maio de 2002, os dados foram coletados prospectivamente, à medida que os pacientes eram atendidos no Setor de Emergência do Serviço de Neurologia.

Para firmar diagnóstico de manifestações neurológicas de dengue, todos os pacientes foram submetidos ao exame do LCR, enquanto que a solicitação de EEG ficou restrita aos casos com acometimento encefálico e a RM ou a TC àqueles com acometimento encefálico e medular. As manifestações neurológicas foram classificadas como encefálicas, meníngeas, medulares e de nervos periféricos.

RESULTADOS

Dentre os 41 casos de dengue com manifestação neurológica, 17,1% foram atendidos em 1997 e 82,9% em 2002, todos referindo história prévia de dengue clássica ou hemorrágica. Houve predomínio de acometimento encefálico, compreendendo cinco (71,4%) casos de 1997 e 20 (58,8%) de 2002. Não se detectaram casos de acometimento meníngeo; no entanto, em 2002, houve diagnóstico de dois (5,9%) casos de acometimento medular. Os nervos periféricos estiveram comprometidos em dois (28,6%) casos na epidemia de 1997 e 12 (35,3%) casos na de 2002.

Quanto à topografia, foram diagnosticados acometimentos: encefálico, sendo três em 1997 e sete em 2002; de nervos periféricos, sendo dois em 1997 e cinco em 2002. Nesse ano, detectou-se um acometimento medular (Tabela 1).

DISCUSSÃO

Durante a epidemia de dengue, ocorrida em 1997, com base nas estatísticas do Serviço de Neurologia, identificou-se o aumento dos casos de encefalite e meningoencefalite. A partir da constatação de que os pacientes tinham história clínica compatível com dengue, foram solicitadas as tipagens virais no soro e no LCR, cujos resultados confirmaram a hipótese diagnóstica. Nos anos subseqüentes, manteve-se a conduta de solicitar tipagem viral para os pacientes com suspeita de dengue como agente causal de quadro neurológico. Em 2002, ao constatar o recrudescência do surto epidêmico do dengue, tomou-se por base a experiência adquirida em 1997 e foi instituído programa de educação continuada para reforçar a investigação de complicações neurológicas em pacientes com quadro clínico compatível com dengue.

Os 41 casos, analisados neste trabalho, foram encaminhados ao Setor de Neurologia devido à presença de alterações do SNC ou periférico, com diagnóstico de certeza de dengue, obedecidos aos critérios clínicos de definição de caso. Os sinais e sintomas apresentados pelos pacientes foram valorizados como componentes de entidades mórbidas neurológicas. As evidências epidemiológicas sugerem que a FHD é mais comum quando uma infecção por um sorotipo do dengue é seguida de infecção secundária por um sorotipo diferente16. Os anticorpos obtidos durante uma infecção por um sorotipo também protegem da infecção por outros tipos virais durante poucos meses ou anos12. Infecções por dengue, em indivíduos que já tiveram contato com outros sorotipos do vírus ou mesmo com outros Flavivírus (como os vacinados contra a febre amarela), podem alterar o perfil da resposta imune, que passa a ser do tipo anamnésico ou de infecção secundária (reinfecção), com baixa produção de IgM e resposta aumentada precoce de IgG. Alguns pacientes com FHD podem desenvolver síndrome de choque do dengue (SCD), que pode ter êxito letal17.

A constatação de que todos os pacientes da presente casuística referiam história prévia de dengue, em qualquer de suas formas clínicas, permite aventar a possibilidade dessa exacerbação de resposta imune ter ocorrido. No entanto, diferente do que refere a literatura, não houve caso de SCD ou de êxito letal.

Os sinais e sintomas neurológicos clássicos associados à fase aguda do dengue são: cefaléia, convulsão, delírio, insônia, inquietação, irritabilidade e depressão18. A estes podem estar associados meningismo discreto sem alteração da consciência ou deficiência neurológica focal, depressão sensorial, convulsões e desordens comportamentais4, além de sinais de comprometimento piramidal e meníngeo19. Na atual casuística, os sinais e sintomas neurológicos diagnosticados na primeira epidemia diferiram da literatura consultada, pois estiveram ausentes meningismo e delírio.

Dentre os distúrbios pós-dengue, são relatados epilepsia, tremores, amnésia, demência, psicose maníaca, paralisia de Bell, envolvimento de laringe, paralisia de extremidades inferiores, de palato, de nervo ulnar, de nervo torácico longo, de nervo peroneal, síndrome de Reye, síndrome de Guillain-Barré, meningoencefalomielite e mononeuropatias2,18.

Comparando os dados do presente trabalho àqueles publicados no período de 1987 a 2002 (Tabela 2), observa-se que esta é a terceira casuística de manifestações neurológicas de dengue, diferindo das demais pela ocorrência de acidente vascular cerebral hemorrágico e encéfalo mielite disseminada (ADEM). O agravamento de espasmo hemifacial, não referido na literatura consultada, pareceu tratar-se de manifestação do dengue posto que a exacerbação do quadro ocorreu concomitantemente com a infecção, tendo sido antecedida por um longo período de acalmia.

As manifestações de encefalite, síndrome de Guillain-Barré, convulsão, meningoencefalite, encefalopatia e alteração do nível de consciência foram comuns a quase todos os trabalhos citados e ao presente. Considerados os diagnósticos menos freqüentes referidos na casuística do HR, Patey et al.2 citam um caso de hemorragia subaracnóidea e um de paralisia facial periférica, contra dois de cada diagnóstico do presente trabalho; Hendarto e Hadinegoro20 citam 10 casos de atrofia de nervo óptico, enquanto que se diagnosticou um caso de neurite óptica. Comprometimento medular foi referido por Hendarto e Hadinegoro20 em 10 pacientes e por Solomon et al.16, em dois casos, tal como na presente casuística.

Dentre os diagnósticos referidos na literatura e não encontrados na casuística do HR, estão: síndrome de Reye ou Reye-like21, edema cerebral21, tremor22 e meningite16.

A informação de que o presente trabalho foi desenvolvido em hospital público permite tecer uma consideração de ordem prática e de grande utilidade clínica. Pode parecer contra-senso descartar as recomendações para diagnóstico de manifestações neurológicas de dengue contidas na literatura pois, no presente estudo, esses diagnósticos foram firmados com base na identificação dos anticorpos antidengue em soro e LCR, descartadas outras patologias que poderiam justificar o quadro clínico do paciente. A explicação parece ser que a valorização da fase epidêmica do dengue em seu local de procedência, a história da doença, o exame clínico cuidadoso do paciente dispensam muitos exames complementares.

A prevalência de complicações neurológicas diagnosticadas no HR em 1997 foi 17,4:100000 casos notificados de dengue, enquanto que a dos primeiros seis meses de 2002 foi 44,8:100000 casos notificados de dengue, representando um aumento de diagnóstico de complicações neurológicas de 385,7%. Esses números permitem conjecturar se a causa do aumento da prevalência, calculada com base nos casos diagnosticados no HR, foi o agravamento da epidemia ou o aumento da eficácia de diagnóstico do Serviço de Neurologia. Indubitavelmente houve aumento de eficácia diagnóstica, como resultado da educação continuada, que atua aguçando o senso clínico do profissional. Essa é a explicação para a maior gama de diagnósticos firmados em 2002, em relação àqueles de 1997. Foi a experiência acumulada que permitiu esse evento.

Do ponto de vista epidemiológico, é preciso que se considere que os dados oficiais de 1997 são anuais, ao passo que os de 2002 são do semestre. Tomando os casos de 1997 como base, houve aumento de 88,6% em 2002 (75962/40277)1. Todavia se for utilizada, nesse cálculo, a metade do número de casos de 1997, o aumento será estimado em 277,2%. Qualquer que seja o percentual tomado como referência do aumento do número de casos de dengue no Estado, a variação do número de complicações diagnosticadas no HR, hospital de grande porte e de alta complexidade, foi maior. Esse aumento comprova a importância do aprimoramento em diagnosticar complicações neurológicas do dengue e deve servir como estímulo para que outros serviços passem a analisar as estatísticas dos diagnósticos firmados, identificando alterações de ordem epidemiológica, o que permitirá prestar serviços de melhor qualidade aos pacientes.

Recebido 21 Junho 2004, recebido na forma final 11 Janeiro 2005. Aceito 28 Janeiro 2005.

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  • Endereço para correspondência

    Dra. Maria Lúcia Brito Ferreira
    Rua Neto de Mendonça 230/802
    52050-100 Recife PE - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jul 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Aceito
      28 Jan 2005
    • Recebido
      21 Jun 2004
    • Revisado
      11 Jan 2005
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