Acessibilidade / Reportar erro

Investigação das causas de atraso no neurodesenvolvimento: recursos e desafios

Investigation of neurodevelopment delay etiology: resources and challenges

Resumos

Com o objetivo de verificar o alcance da investigação de causas do retardo no desenvolvimento neuromotor (RDNM), apresenta-se a experiência no atendimento em Pediatria, Neurologia Infantil e Genética Clínica, em nível terciário, de 73 crianças de 1 a 47 meses, do Programa de Estimulação da APAE de Batatais-SP, entre 1999 e 2001. Utilizando-se método transversal, prospectivo, inicialmente identificaram-se 6 grupos, segundo a semiologia clínica dominante - distúrbios motores, dismorfias, desnutrição, macrocefalia, microcefalia e unicamente atraso motor. Analisando-se a proporção com que os antecedentes e exames contribuíram para o diagnóstico, nos grupos "distúrbios motores" e "macrocefalia" destacaram-se os exames de imagem; nos demais grupos, o exame físico na criança e antecedentes maternos. As causas do RDNM foram detectadas em 48 crianças (66%), sendo de origem ambiental 38,4% e genética 24,6%. Ressalta-se a relevância da avaliação especializada e necessidade de fluxo adequado de informações na rede de saúde.

paralisia cerebral; atraso neuromotor; etiologia; genética; avaliação


To verify the reach of development delay investigation, we brought the experience in the pediatrics, infantile neurology and clinical genetics diagnoses, with resources of a tertiary health care, in 73 children, from 1 to 47 months age, between 1999 and 2001, attending a Stimulation Program of the Association of Parents and Friends of Exceptional Children of Batatais-SP. With a transversal and prospective method, six groups were identified: motor disturbances, dysmorphisms, malnutrition, macrocephaly, microcephaly and motor delay. In the analysis of the contribution of the antecedents, physical or laboratory exams to the diagnosis, it stands out the brain image in the groups "motor disturbances" and "macrocephaly"; and for the remaining groups, the physical examination and maternal data. The causes were detected in 48 (66%), being 38.4% of environmental and 24.6% genetics origin. It is emphasized the specialist evaluation, and the need of appropriate flow of information in the net of health.

cerebral palsy; neuromotor delay; aetiology; genetics; evaluation


Investigação das causas de atraso no neurodesenvolvimento: recursos e desafios

Investigation of neurodevelopment delay etiology: resources and challenges

Luiza Helena Acerbi CaramI,II; Carolina Araújo Rodrigues FunayamaI; Cleide Íris SpinaII; Liane de Rosso GiulianiI; João Monteiro de Pina NetoI

IFaculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Brasil

IIAssociação de Pais e Amigos dos Excepcionais da Cidade de Batatais - SP, Brasil

RESUMO

Com o objetivo de verificar o alcance da investigação de causas do retardo no desenvolvimento neuromotor (RDNM), apresenta-se a experiência no atendimento em Pediatria, Neurologia Infantil e Genética Clínica, em nível terciário, de 73 crianças de 1 a 47 meses, do Programa de Estimulação da APAE de Batatais-SP, entre 1999 e 2001. Utilizando-se método transversal, prospectivo, inicialmente identificaram-se 6 grupos, segundo a semiologia clínica dominante – distúrbios motores, dismorfias, desnutrição, macrocefalia, microcefalia e unicamente atraso motor. Analisando-se a proporção com que os antecedentes e exames contribuíram para o diagnóstico, nos grupos "distúrbios motores" e "macrocefalia" destacaram-se os exames de imagem; nos demais grupos, o exame físico na criança e antecedentes maternos. As causas do RDNM foram detectadas em 48 crianças (66%), sendo de origem ambiental 38,4% e genética 24,6%. Ressalta-se a relevância da avaliação especializada e necessidade de fluxo adequado de informações na rede de saúde.

Palavras-chave: paralisia cerebral, atraso neuromotor, etiologia, genética, avaliação.

ABSTRACT

To verify the reach of development delay investigation, we brought the experience in the pediatrics, infantile neurology and clinical genetics diagnoses, with resources of a tertiary health care, in 73 children, from 1 to 47 months age, between 1999 and 2001, attending a Stimulation Program of the Association of Parents and Friends of Exceptional Children of Batatais-SP. With a transversal and prospective method, six groups were identified: motor disturbances, dysmorphisms, malnutrition, macrocephaly, microcephaly and motor delay. In the analysis of the contribution of the antecedents, physical or laboratory exams to the diagnosis, it stands out the brain image in the groups "motor disturbances" and "macrocephaly"; and for the remaining groups, the physical examination and maternal data. The causes were detected in 48 (66%), being 38.4% of environmental and 24.6% genetics origin. It is emphasized the specialist evaluation, and the need of appropriate flow of information in the net of health.

Key words: cerebral palsy, neuromotor delay, aetiology, genetics, evaluation.

A investigação etiológica do retardo no desenvolvimento neuromotor (RDNM) requer conhecimento dos fatores de risco ambientais, culturais, do manejo educacional familiar e de seus aspectos afetivos. Requer também conhecimento sobre o substrato biológico da maturação na sua normalidade e de suas modificações determinadas por fatores ambientais, genéticos, ou ambos, multifatoriais. Quanto mais se avança no conhecimento das causas, melhor se definem as condutas na prática clínica, evitam-se exames desnecessários e propõem-se melhores estratégias de prevenção.

No presente estudo apresenta-se a experiência de um grupo multidisciplinar no diagnóstico clínico e etiológico com alcance do atendimento em nível terciário. Ressalta-se ainda a importância da atuação multidisciplinar para a acuidade e presteza no procedimento diagnóstico.

Assim o objetivo foi verificar os recursos clínicos e laboratoriais utilizados na identificação das causas de RDNM, e proceder a uma análise crítica, a partir de dados de uma amostra de crianças com acesso a atendimento de nível terciário.

MÉTODO

Foram investigadas prospectivamente, no período de outubro de 1999 a junho de 2001, todas as 73 crianças com RDNM, de um a 47 meses de idade, seguidas em um programa de estimulação precoce da Associação de Pais e Amigos de Excepcionais (APAE) da cidade de Batatais-SP. Entre estas, 43 eram do gênero masculino, e 30 do feminino; 48 nasceram ao termo de 37 a 42 semanas, uma pós-termo, e 24 nascidos pré-termo.

As crianças foram avaliadas por uma equipe, envolvendo uma pediatra, uma neurologista infantil (autora deste trabalho) e equipe de genética clínica do Programa de Residência Médica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP).

O protocolo incluiu dados sobre antecedentes pessoais e familiares, com base em informações dos acompanhantes, em sua maioria mães, e ainda a partir de dados médicos e do Serviço Social da APAE. Os exames laboratoriais após avaliação foram realizados nos Laboratórios do Departamento de Genética da FMRP-USP e do HCFMRP-USP. Procedeu-se também à consulta aos prontuários médicos em outros serviços de saúde, após sua autorização, incluindo os hospitais onde as crianças nasceram. O estudo recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do HCFMRP-USP e a coleta de dados iniciou-se após assinatura do consentimento livre e esclarecido das mães ou responsáveis pela criança. Os critérios para a definição do diagnóstico causal serão apresentados à medida que se apresentam nos resultados.

RESULTADOS

Inicialmente, as 73 crianças foram divididas em 6 grupos segundo os achados predominantes ao exame clínico: grupo denominado "Distúrbios Motores", composto por 22 crianças (30%), entre as quais 18 com sinais de lesão piramidal ou mista, duas hipotônicas com coreoatetose e distonia, e duas com sinais cerebelares; grupo "Dismorfias ou Malformações" com 19 (26%) crianças; grupo "Desnutrição" com 11 (15%); grupo "Macrocefalia", 8 (11%); grupo "Microcefalia", 7 (10%); e o sexto grupo com retardo do desenvolvimento neuromotor sem outros sinais neurológicos - "RDNM a/e" incluiu 6 (8%) crianças.

Foi possível elucidar os fatores causais em 48 (66%) das 73 crianças (Fig 1 e Quadro 1).



Entre as 22 crianças do grupo Distúrbios Motores, a causa da lesão cerebral foi definida em 14, sendo encefalopatia hipóxico-isquêmica (EHI) em 12, kernicterus em uma; e em outra, que sofreu hemorragia periventricular grau IV de Papile, o exame de imagem também evidenciou malformação de Chiari tipo IV. Entre as 12 crianças com EHI, o evento ocorreu no período intra-parto em duas nascidas a termo e em duas pré-termo; e em período incerto, se neonatal ou intra-útero em 4 crianças nascidas a termo e em 4 pré-termo.

Para crianças nascidas a termo, o diagnóstico retrospectivo de EHI foi considerado de acordo com os achados apresentados no Quadro 2, esquema proposto pela equipe a partir de conhecimentos sobre a classificação e características da EHI perinatal1-4. O diagnóstico sem exames de imagem encefálica, ou com os mesmos normais, foi considerado provável. Para EHI ou acidente vascular intra-uterino, e para as crianças nascidas pré-termo sem intercorrências maternas ou obstétricas, foram considerados apenas os achados de exames de imagem - ultrassonografia, tomografia computadorizada (TC) e imagem por ressonância magnética de crânio (IRM).


Para kernicterus, além da informação de que a criança foi submetida à exsanguíneo-transfusão, na presente casuística obteve-se comprovação do quadro neonatal que compreende período de apatia e hipertonia na fase aguda da impregnação bilirrubínica.

Para diagnóstico de malformação cerebral, não havendo evidências de dismorfias, foram considerados apenas os achados de TC ou IRM. Nessa condição foram encontradas 3 crianças, sendo em uma nascida pré-termo, Chiari tipo IV, anteriormente referida, e em duas nascidas de termo foi encontrado paquigiria em uma e displasia cortical focal em outra, sem identificação de fatores causais.

Ultrassonografia transfontanelar neonatal foi realizada em 4 das 22, sendo normal em uma. Até o terceiro ano, TC ou IRM foram realizadas nas 12 com EHI e na criança com malformação de Chiari IV, totalizando 13 das 22 crianças. Entre as 12 com EHI uma apresentou TC normal, sendo, portanto, EHI provável. Uma das 8 crianças do grupo "Distúrbios motores", que permaneceram sem diagnóstico definido apresentava ataxia cerebelar, e o exame genético clínico conduziu a investigação citogenética e molecular para a síndrome de Angelman, que não foi confirmada.

No grupo de 19 crianças com dismorfias, o diagnóstico foi estabelecido em 16. Destes, em um, malformação de Chiari IV e craniossinostose são considerados de causa multifatorial, e nos demais a causa foi definida como alteração cromossômica ou gênica (Quadro 2). Para as 3 crianças sem diagnóstico definido, a investigação foi ampla incluindo exames laboratoriais em citogenética e moleculares e erros inatos do metabolismo, que resultaram normais. Em uma delas encontrou-se também agenesia de corpo caloso e hidrocefalia de etiologia não esclarecida.

Os principais critérios para o diagnóstico de desnutrição proteico-calórica, definido em 11 crianças, foram os achados do exame físico. Todas as crianças desnutridas recuperaram-se, exceto uma, para a qual foi considerada a hipótese de desnutrição secundária, tendo se orientado a investigação para um possível erro inato de metabolismo, não concluído até o momento.

Macrocefalia e microcefalia absolutas foram definidas por valores do perímetro craniano acima e abaixo de dois desvios padrões da média esperada para a estatura, respectivamente. Entre as 8 crianças com macrocefalia, 6 tiveram o diagnóstico radiológico de efusão subdural benigna do lactente (ESBL); em duas destas crianças as mães também apresentavam macrocefalia, sugerindo a forma autossômica dominante de macrocefalia. Nas duas restantes constatou-se hidrocefalia comunicante, cuja causa não foi definida.

Das 7 crianças com microcefalia, 6 tiveram as causas definidas, sendo estas diversificadas (Quadro 1). A criança sem causa definida apresentava surdez neurossensorial, além da microcefalia, e o protocolo clínico exaustivo sem pistas para a etiologia.

No grupo RDNM a/e, composto por 6 crianças, as causas do atraso neuromotor não foram identificadas. Os antecedentes gestacionais e obstétricos foram dados relevantes, porém insuficientes para o diagnóstico em 4 crianças. Exames de imagem craniana foram realizados em 3 com alguns antecedentes maternos e gestacionais que apontavam para EHI, sendo em uma a TC sem alterações, e em outras duas ultra-sonografia neonatal, sendo uma com sinais de hemorragia subependimária e a outra normal.

Em duas outras crianças com RDNM a/e os antecedentes apontavam para causas diversas, sendo em uma a mãe deficiente mental e auditiva, em investigação diagnóstica, 41 anos por ocasião do parto, 6 abortos (causa genética?); na outra, mãe analfabeta, 26 anos, e com hipertensão arterial na gestação (causa ambiental?); ambas não haviam realizado ainda exames de imagem cerebral.

A análise da proporção com que os antecedentes maternos, obstétricos, familiares, intercorrências neonatais e exames laboratoriais contribuíram para o diagnóstico etiológico (Fig 2), em cada um dos grupos estudados, destacou os exames de imagem encefálica nos grupos com distúrbios motores e macrocefalia, e a semiologia clínica nos grupos com dismorfias e no grupo de desnutridos (Fig 2).


DISCUSSÃO

As causas de RDNM foram identificadas em 66% da presente casuística, com predomínio de fatores ambientais, o que se deve provavelmente à queda na mortalidade neonatal de nascidos pré-termo, com aumento na ocorrência de seqüelas, e a outros fatores preveníveis, além da prematuridade, como problemas maternos, gestacionais e intra-parto, sócio-educacionais e baixa renda, entre outros. No presente estudo, destacam-se a EHI (25%) e a desnutrição (23%) entre as causas ambientais de RDNM.

Em relação à EHI, um desafio aqui observado, que se repete na prática clínica, é o do diagnóstico retrospectivo da EHI. No caso da ocorrência perinatal, considerou-se a inclusão de dados que podem vir à lembrança dos familiares, como o início da capacidade de sucção e o período de permanência no hospital. Estes, porém, não são suficientes para o diagnóstico, uma vez que podem estar presentes em outras condições, como nas doenças genéticas. Para se definir o diagnóstico de EHI perinatal devem ser identificados problemas maternos, obstétricos, ou do próprio neonato, e confirmar com exames por imagem1-6. Freqüentemente ocorre também dúvida na identificação do período da lesão cerebral na EHI, o que coloca em destaque a importância da ultrassonografia transfontanelar neonatal sistemática. Em 8 das 12 crianças com EHI, as imagens obtidas somente após dois anos não permitiram concluir se a lesão ocorreu no período pós-natal ou intra-útero.

Crianças nascidas pré-termo estão mais sujeitas a encefalopatias por hipofluxo e hipóxia, entre outras intercorrências7, como aqui observado em 1/4 dos casos, o que representou o dobro da proporção observada no grupo de termo. Para o diagnóstico da leucomalácia periventricular, apoiando-se nos achados neuropatológicos de Banker e Larroche8 e em estudos de imagem neonatal9, cistos identificados após a primeira quinzena, deixam dúvidas se ocorreram no período intrauterino ou pós-natal, sendo portanto necessário o registro de imagens nos primeiros dias perinatais.

Embora seja sugerida a relação entre o nascimento pré-termo com malformações10, na presente casuística isso não ocorreu, observando-se em dois nascidos a termo e um pré-termo. No grupo de dismórficos houve predomínio de nascidos a termo, em que pese a alta ocorrência de abortos nos seus antecedentes maternos, apresentados nesta casuística, em trabalho anterior11. Walstab et al.5 encontraram dados semelhantes na Austrália. Sobre diagnóstico diferencial por imagem, é importante ressaltar que sinais de defeitos de migração neuronal podem ser decorrentes de infecções congênitas, especialmente por citomegalovirus12.

No grupo com dismorfias destacam-se a história familiar e o exame clínico genético da criança, oferecendo alta suspeição diagnóstica e orientando para a indicação precisa do exame citogenético e exame de genética molecular. Em 5 dos 19 casos o diagnóstico foi estabelecido com base apenas no exame físico - aniridia, neurofibromatose tipo I, hipertelorismo de Teebi, síndromes de Weaver e de Cornélia de Lange. O estudo citogenético elucidou outros 5 casos, sendo 4 trissomias livres do cromossomo 21 e uma trissomia parcial dupla 14p ® 14q27; 3q22 ®3qter [47,XX, der(14) (14p-14q 27:: 3q22® 3qter). O estudo molecular detectou um caso de síndrome de Prader-Willi. Situação muito especial ocorre nas síndromes de Prader-Willi e de Angelman. Na síndrome de Prader-Willi o fenótipo se deve à falta de expressão do alelo 15 paterno e, na de Angelman, do alelo 15 materno13-15. Nestas, o risco de recorrência varia de 1 a 50%, dependendo do tipo de alteração detectada nos exames moleculares15-17. Estes exames são, portanto, imprescindíveis, e as pesquisas nessa área têm se ocupado da ampliação da abrangência e redução de custos16,17.

Para as crianças com macrocefalia, o exame de imagem foi decisivo para evidência da ESBL. Esta tem sido considerada entidade nosológica, o que coloca em evidência a necessidade de investigação etiológica, assim como se investiga sempre a causa de qualquer alteração observada em exame de imagem. Para Volpe7, ESBL e macrocefalia autossômica dominante são a mesma entidade, e considera que a causa da polêmica está na dificuldade em demonstrar que pacientes com macrocefalia autossômica dominante tiveram ESBL. Detectamos duas das 6 crianças com ESBL com macrocefalia autossômica dominante e nos demais casos não houve indicadores para a causa. Castro-Gago et al.18, em estudo de 39 crianças com ESBL na Espanha, encontraram 38,46% com história de macrocefalia em um dos genitores. Estes autores encontraram macrocefalia também em dois casos com encefalopatia mitocondrial, em quatro, respectivamente, macrocefalia associada a craniossinostose, microcrodeleção 22q11.2, deficiência de alfa-1-antitripsina e ptose palpebral bilateral congenita. Observa-se, nessa casuística, relação entre ESBL e macrocefalia AD, mas chama a atenção a necessidade de se ampliar o espectro de investigação para outras causas genéticas e metabólicas.

Quanto ao grupo com microcefalia, os diagnósticos causais foram diversificados, presuntivos em sua maioria, assinalando-se que não realizaram imagem cerebral. Destacam-se o papel do geneticista clínico na determinação do caráter autossômico dominante da microcefalia e do obstetra no diagnóstico de infecção congênita ainda durante a gravidez. Observa-se nesse grupo em especial o papel dos exames pré-natais para a prevenção e detecção das intercorrências deste período, além da assistência familiar com aconselhamento genético.

No grupo com RDNM a/e, com exceção de um caso, os fatores maternos e obstétricos foram indicativos de lesão hipóxico-isquêmica. Entretanto, a ausência de intercorrências neonatais, com alta do berçário após um ou dois dias do nascimento sugerem ausência de sinais de EHI perinatal4,5. Na literatura, há poucas informações sobre o RDNM isolado, na ausência de paralisia cerebral, como seqüela de lesões cerebrais19,20. Shevell et al.19, em Montreal, encontraram diagnóstico etiológico para 13 de 22 casos com RDNM, sendo EHI em sua maioria. Um estudo prospectivo em bebês de termo nascidos em Ribeirão Preto-SP, 20% dos casos com EHI grau II evoluíram com retardo no desenvolvimento sem sinais de paralisia cerebral4. Estes autores observaram que essas crianças evoluíram com atraso nos primeiros 6 meses de idade e atingiram a média normal de desempenho no segundo semestre.

No presente estudo, das 6 crianças com retardo no desenvolvimento neuromotor como única manifestação neurológica, 3 eram nascidos pré-termo, com história sugestiva de EHI. Mais uma vez ressalta-se a importância do auxílio de exames de imagem em crianças com RDNM. Nesses casos com RDNM como única manifestação, o exame de imagem é imprescindível para definição da condição estável ou progressiva da lesão, ou ainda, para a exclusão de lesões encefálicas. No caso de esclarecimento de doença degenerativa, dois exames sucessivos, com intervalo dependente da evolução clínica, ou mais, podem ser necessários.

Freqüentemente, observa-se um período prolongado entre a detecção do atraso na criança e a realização de exames por imagem. Este fato pode ser decorrente da alta demanda de exames nos poucos serviços públicos de radiodiagnóstico. Esta realidade contrasta com aquela do esperado avanço, que vem se concretizando no investimento em serviços para detecção precoce das deficiências.

Questiona-se por que em um serviço terciário, com os melhores recursos ao alcance, não se consegue estabelecer a causa das deficiências em 34% dos casos. Considere-se ainda que essa porcentagem somente não foi maior, em função da busca ativa de dados pregressos, tentando se reescrever a história da doença dessas crianças, e do esforço de uma equipe de especialistas na identificação caso a caso. Demonstrou-se no presente trabalho a importância do diagnóstico genético clínico baseado em evidências, como também da maior acuidade na condução da investigação laboratorial, hoje cada vez mais complexa e onerosa. Uma das possibilidades para a dificuldade no diagnóstico causal é a não simultaneidade dos sinais das doenças desde o seu início. Em várias doenças, como a neurofibromatose tipo I, as manifestações clínicas vão aparecendo com o avançar da idade21, tornando difícil o diagnóstico em idade precoce.

Quanto às causas de natureza hipóxica ou isquêmica, é da maior importância o registro de ocorrências gestacionais, obstétricas e do neonato, cuja história precisa ser escrita no tempo presente, quando o investimento no diagnóstico laboratorial das doenças na gestante e no concepto podem identificar com precisão o período da lesão cerebral. Quanto ao uso de bebida alcoólica pela gestante, certamente há subdiagnóstico na prática clínica, frente às dificuldades de confirmação em entrevista com as mães. Embora existam algumas propostas de questionários para esse fim22, à medida que houver participação constante do Serviço Social na equipe de atendimento, auxiliado por equipes de agentes comunitários, como no Programa de Saúde da Família, em expansão no Brasil, conhecendo-se hábitos e comportamentos dessas famílias, esse problema de informação será sanado.

Para as causas de natureza infecciosa, em especial as infecções congênitas, também se presume que haja subdiagnóstico. Houve nas últimas décadas importante avanço, com a possibilidade do diagnóstico por PCR e também da certeza sobre o período da infecção, com a introdução dos testes de avidez de IgG23, ainda fora do alcance da rede pública de saúde.

Por fim, a infeliz constatação de que, nesta região do Brasil, privilegiada economicamente, ainda ocorra desnutrição infantil com freqüência considerável (23%), a qual depende em última instância de melhor distribuição de renda e de oportunidades educacionais24,25.

Recebido 26 Agosto 2005, recebido na forma final 16 Janeiro 2006. Aceito 22 Fevereiro 2006.

Dra. Carolina A R Funayama - Departamento de Neurologia Psiquiatria e Psicologia Médica / Hospital das Clínicas / Campus - 14048-900 Ribeirão Preto - SP, Brasil.

  • 1. Sarnat HB, Sarnat MS. Neonatal encephalopathy following fetal distress: a clinical and eletrencephalographic study. Arch Neurol 1976;33:696-705
  • 2. Leviton A, Nelson KB. Problems with definitions and classifications of newborn encephalopathy. Pediatr Neurol 1992;8:85-90.
  • 3. Funayama CAR, Moura-Ribeiro MVL, Cunha S. Fatores materno-obstétricos, anóxia neonatal e seqüelas. Rev Bras Ginecol Obst 1996;18:715-726.
  • 4. Funayama CAR, Moura-Ribeiro MVL, Gonçalves AL. Encefalopatia hipóxico-isquêmica no RN a termo: aspectos prognósticos. Arq Neuropsiquiat 1997;55:771-779.
  • 5. Walstab JE, Bell RJ, Reddihough DS, Brenecke SP, Bessell CK, Beischer NA. Factors identified during the neonatal period associated with risk of cerebral palsy. Aust N Z J Obstet Gynaecol 2004;44:342-346.
  • 6. Mercuri E, Guzzetta A, Haatja L, et al. Neonatal neurological examination in infants with hypoxic ischaemic encephalopathy: correlation with MRI findings.Neuropediatrics 1999;30:83-89.
  • 7. Volpe JJ. Neurology of the newborn, 3rd edition. Philadelphia: WB Saunders, 1995.
  • 8. Banker BQ, Larroche JC. Periventricular leukomalacia of infancy: a form of neonatal anoxic encephalopathy. Arch Neurol 1962;7:386-410.
  • 9. Debillon T, N´Guyen S, Muet A, Quere MP, Moussaly F, Rose JC. Limitations of ultrasonography for diagnosing white matter damage in preterm infants. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2003;88:275-279.
  • 10. Lumley J. Defining the problem: the epidemiology of preterm birth. BJOG 2003;110 (Suppl 20):S3-S7.
  • 11. Caram LHA. Sobre o diagnóstico de crianças seguidas em um projeto de estimulação precoce: enfoque nos fatores de risco e prevenção. Dissertação. Ribeirão Preto, 2002.
  • 12. Marques-Dias MJ, Harmant-van Rijckevorsel G, Landrieu P, Lyon G. Prenatal cytomegalovirus disease and cerebral microgyria: evidence for perfusion failure, not disturbance of histogenesis, as the major cause of fetal cytomegalovirus encephalopathy. Neuropediatrics 1984;15:18-24.
  • 13. Pina Neto JM, Ferraz VE, Molfetta GA, Buxton J, Richards S. Clinical-neurologic, cytogenetic and molecular aspects of the Prader-Willi and Angelman syndromes. Arq Neuropsiquiatr. 1997;55:199-208.
  • 14. Molfetta GA, Felix TM, Riegel M, Ferraz VE, de Pina JM Neto. A further case of a Prader-Willi syndrome phenotype in a patient with Angelman syndrome molecular defect. Arq Neuropsiquiatr. 2002;60:1011-1014.
  • 15. Molfetta GA. Estudo clínico, citogenético e molecular na síndrome de Angelman. Dissertação. Ribeirão Preto, 2002.
  • 16. Girardet A, Moncla A, Hamamah S, Claustres M. Strategies for preimplantation genetic diagnosis of Angelman syndrome caused by mutations in the UBE3A gene. Reprod Biomed Online. 2005;10:519-526.
  • 17. Raca G, Buiting K, Das S. Deletion analysis of the imprinting center region in patients with Angelman syndrome and Prader-Willi syndrome by real-time quantitative PCR. Genet Test 2004;8:387-394.
  • 18. Castro-Gago M, Perez Gomez C, Novo-Rodrigues MI, Blanco-Barba O, Alonso-Martin A, Eiris-Punal J. Benign idiopathic external hydrocephalus (benign subdural collection) in 39 children: its natural history and relation to familial macrocephaly. Rev Neurol 2005;40:513-517.
  • 19. Shevell MI, Majnemer A, Rosenbaum P, Abrahamowicz M. Etiologic determination of childhood developmental delay. Brain Dev 2001;23:228-235.
  • 20. Chen IC, Chen CL, Wong Mk, et al. Clinical analysis of 1048 children with developmental delay. Chang Gung Med J 2002;25:743-750.
  • 21. Drappier JC, Khosrotehrani K, Zeller J, Revuz J, Wolkenstein P. Medical management of neurofibromatosis 1: a cross-sectional study of 383 patients. J Am Acad Dermatol 2003;49:440-444.
  • 22. Moraes CL, Viellas EF, Reichenheim ME. Assessing alcohol misuse during pregnancy: evaluating psychometric properties of the CAGE, T-ACE and TWEAK in a Brazilian setting. J Stud Alcohol 2005;66:165-173.
  • 23. Andrews JI. Diagnosis of fetal infections. Curr Opin Obstet Gynecol 2004;16:163-166.
  • 24. Carvalhaes MA, D´Aquino Benicio MH, Barros AJ. Social support and infant malnutrition: a case-control study in an urban area of Southeastern Brazil. Br J Nutr. 2005;94:383-389.
  • 25. Falbo AR, Alves JG. Severe malnutrition: epidemiological and clinical characteristics of children hospitalized in the Instituto Materno Infantil de Pernambuco (IMIP), Brazil. Cad Saúde Pública 2002;18:1473-1477

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Ago 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2006

Histórico

  • Aceito
    22 Fev 2006
  • Recebido
    26 Ago 2005
  • Revisado
    16 Jan 2006
Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.arquivos@abneuro.org