Acessibilidade / Reportar erro

Manifestação clínica familiar em pacientes com defeito neuromesoectodérmico

Familial clinical manifestation in patients with neuromesoectodermic defect

Resumos

Relatamos a associação de dois casos distintos de neuromesoectodermose ocorridos em uma mesma família, um manifestado através da neurofibromatose tipo 1 e outro através da esclerose tuberosa. O encontro de dois distúrbios entre primos de primeiro grau, ocasionados por diferentes mutações genéticas e transmitidos por herança autossômica dominante, sugere uma possível correlação entre eles. Também são descritas as manifestações clínicas, suas conseqüências e os critérios diagnósticos das duas doenças, visando ressaltar a importância do diagnóstico precoce.

neurofibromatose; esclerose tuberosa; facomatose; sistema nervoso central


We relate the association of two distinct cases of neuromesoectodermosis occurred in a family, one manifested as neurofibromatosis type 1 and the other as tuberous sclerosis. The two anomalies at cousins, caused by different genetic mutations and transmitted by autosomal dominant inheritance, suggest a possible relation between them. Also, clinical manifestations are described, their consequences and the diagnostic criteria of both illnesses, emphatizing the importance of the precocious diagnosis.

neurofibromatosis; tuberous sclerosis; phacomatosis; central nervous system


Manifestação clínica familiar em pacientes com defeito neuromesoectodérmico

Familial clinical manifestation in patients with neuromesoectodermic defect

Maria Lúcia Leal dos SantosI; Sandra Lopes Mattos e DinatoII; Juliana Messias MoraesIII; Carla Patrícia NakanishiIII; Marcelo Mattos e DinatoIII

Departamento de Clínica Médica, Centro Universitário Lusíada, Santos SP, Brasil (UNILUS):

INeurologista, Professora do Departamento de Clínica Médica, UNILUS

IIDoutora em Dermatologia pela FMUSP, Professora Chefe do Departamento de Clínica Médica, UNILUS

IIIMédico Residente de Dermatologia do Serviço do Prof. Dr. Ney Romiti - Hospital Guilherme Álvaro, Santos SP, Brasil

RESUMO

Relatamos a associação de dois casos distintos de neuromesoectodermose ocorridos em uma mesma família, um manifestado através da neurofibromatose tipo 1 e outro através da esclerose tuberosa. O encontro de dois distúrbios entre primos de primeiro grau, ocasionados por diferentes mutações genéticas e transmitidos por herança autossômica dominante, sugere uma possível correlação entre eles. Também são descritas as manifestações clínicas, suas conseqüências e os critérios diagnósticos das duas doenças, visando ressaltar a importância do diagnóstico precoce.

Palavras-chave: neurofibromatose, esclerose tuberosa, facomatose, sistema nervoso central.

ABSTRACT

We relate the association of two distinct cases of neuromesoectodermosis occurred in a family, one manifested as neurofibromatosis type 1 and the other as tuberous sclerosis. The two anomalies at cousins, caused by different genetic mutations and transmitted by autosomal dominant inheritance, suggest a possible relation between them. Also, clinical manifestations are described, their consequences and the diagnostic criteria of both illnesses, emphatizing the importance of the precocious diagnosis.

Key words: neurofibromatosis, tuberous sclerosis, phacomatosis, central nervous system.

A neurofibromatose tipo 1 (NF1) e a esclerose tuberosa (ET) pertencem ao grupo das neuromesoectodermoses ou facomatoses, representando dois distúrbios nos quais os indivíduos afetados desenvolvem neoplasias com alta freqüência. Os genes responsáveis por essas doenças apresentam características semelhantes e agem como supressores de tumor, embora levem a manifestações clínicas distintas1-5.

A neurofibromatose na sua forma clássica, denominada doença de von Recklinghausen (NF1), é caracterizada por manchas melanodérmicas e tumores cutâneos, eventualmente acompanhados de alterações mentais, endócrinas, neurológicas e ósseas. É genodermatose de herança autossômica dominante e afeta 1 em cada 3000 indivíduos3. Tal alteração é decorrente de defeito em gene localizado no cromossomo 17 - região q11,2 - produtor da proteína neurofibromina6-9. É considerada a segunda afecção genética mais freqüente na espécie humana, sendo 30 a 50% dos casos devidos a uma nova mutação4. A esclerose tuberosa é doença multissistêmica, caracterizada por tumores benignos que atingem encéfalo, rins, pulmões, pele e outros órgãos10-15. A expressão clínica é variável, com casos de deficiência mental severa e epilepsia de difícil controle. De herança autossômica dominante com alta penetrância, em 50 a 60% dos casos é também decorrente de uma nova mutação. A prevalência pode ser maior que 1 para cada 10000, devido à elevada freqüência de mutações8,10,11,16-18, tendo alteração gênica em locus diferentes: TSC-1 no braço longo do cromossomo 9 - região q33, responsável pela produção da proteína hamartina e TSC-2 no cromossomo 16 - região p13, pela proteína tuberina5,14,15. No entanto, não é possível determinar importantes diferenças na apresentação clínica entre os dois tipos.

O objetivo do estudo é relatar a inusitada associação familiar de dois casos de neuromesoectodermose, ocorrida entre primos de primeiro grau.

CASOS

Caso 1 – Homem de cor branca com 28 anos, estudante, natural e procedente de Santos-SP. Aos 6 anos procurou dermatologista por queixa de discretas lesões papulosas da cor da pele Com diagnóstico clínico de NF1 foi realizada biópsia, cujo exame anátomo-patológico confirmou neurofibroma. Aos 13 anos apresentou cefaléia e vômitos matinais em jato. Realizada tomografia computadorizada (TC) de crânio (Fig 1), que evidenciou hidrocefalia supratentorial hipertensiva, tendo sido submetido a derivação ventrículo - peritoneal. Aos 15 anos, a ressonância magnética de crânio (Fig 2) mostrou processo expansivo localizado no teto do mesencéfalo, sugestivo de glioma do epitálamo, o qual obstruía o trânsito liquórico. Optou-se por tratamento conservador, com acompanhamento periódico, em função da localização da lesão. Aos 23 anos, apresentou crise epiléptica motora generalizada durante o sono. Nessa ocasião, o eletrencefalograma detectou atividade irritativa fronto-temporal esquerda, sendo medicado com fenitoína por via oral, não havendo mais reincidência dos sintomas.



O quadro dermatológico vem mostrando evolução lenta e progressiva no decorrer dos anos, desde a infância. Apresenta atualmente, aos 28 anos, mais de dez manchas "café au lait" esparsas no tegumento (Fig 3) e lesões efelidóides nas axilas, além de neurofibromas em nervos intercostais e mão direita, cifoescoliose torácica e aumento no número dos nódulos de Lisch. Com relação ao processo expansivo, encontra-se assintomático; e os exames de imagem, inclusive ressonância com espectroscopia protônica, mostram lesão não evolutiva.


Caso 2 – Mulher de cor branca com 25 anos, estudante, natural e procedente de Santos - SP. Aos 6 meses de idade apresentou crises epilépticas tipo espasmos em flexão em salvas, chegando até 60 episódios ao despertar. Nessa ocasião notou-se mancha hipomelanótica na região torácica, retardo do desenvolvimento neuropsicomotor caracterizado por hipotonia generalizada e prejuízo do comportamento adaptativo.

Foram realizados: radiografia de crânio (Fig 4), que mostrou múltiplas imagens com características de tubérculos; eletrencefalograma com fotoestimulação, que caracterizou traçado de hipsarritmia; e TC (Figs 5 e 6), pela qual foram visualizados múltiplos tubérculos corticais e nódulos gliais periventriculares.




Com o diagnóstico de síndrome de West (espasmos em flexão e hipsarritmia) foi submetida a tratamento com droga antiepiléptica, por via oral; todavia, sem melhora. Posteriormente medicada com ACTH, por via endovenosa, houve remissão dos episódios epiléticos. Aos 3 anos foram observadas múltiplas pápulas eritematosas na face, assintomáticas, predominantemente no dorso nasal (Fig 7), cujo exame histopatológico revelou angiofibroma. Aos 4 anos apresentou crise convulsiva clônica generalizada; mantendo-se, a partir daí, com droga antiepiléptica até os 12 anos de idade.


Atualmente, aos 25 anos, permanece sem medicação específica; porém, com retardo mental leve, o que permite atividade de vida independente e boa sociabilização. Em relação à pele, as lesões estão inalteradas.

Ambos os pacientes assinaram termo de consentimento livre e informado para a publicação. O estudo foi aprovado pela Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Guilherme Álvaro.

DISCUSSÃO

Como foi citado nos casos relatados, os pacientes são primos de primeiro grau (Gráfico - heredograma); o que salienta as características hereditárias das facomatoses, permitindo-nos pensar numa possível correlação entre a NF1 e a ET. Ressalta-se a ocorrência de alguns casos de braquidactilia nos familiares.


Indivíduos com neurofibromatose e/ou esclerose tuberosa possuem 50% de probabilidade de transmitir esses genes para seus descendentes11. Por outro lado, 50% dos pacientes com tais neuromesoectodermoses possuem história familiar positiva, enquanto os demais são resultados de mutação espontânea19. Assim, quando uma criança apresenta uma síndrome neurocutânea, os pais devem ser submetidos a exame físico rigoroso, inclusive com exame de fundo de olho, TC de crânio e ultra-sonografia renal. Deve-se ressaltar que, na ausência de hereditariedade, o risco de recorrência num próximo filho é de 1 para 30000.

Nos presentes relatos, caracterizam-se doenças com erros gênicos diferentes numa mesma família. Salienta-se que os dois pacientes em estudo apresentaram quadros clínicos iniciais bastante frustros, o que às vezes dificulta o diagnóstico, levando o indivíduo a ter sua prole sem saber dos riscos aos quais está exposto. Destaca-se que são afecções congênitas que podem ser agravadas tardiamente, fato ocorrido com os dois pacientes7,20-23.

Necessário se faz tecer alguns comentários sobre os critérios clínicos. Em relação a NF1, ficaram estabelecidos na "National Institute of Health Conference", realizada em Bethesda - EUA, em 198724-28. O paciente estudado (caso 1) apresenta mais de dois critérios, o que justifica o diagnóstico de NF1: manchas café com leite, lesões efelidóides e neurofibromas subcutâneos. A história familiar é positiva, porém não para NF1, mas para ET.

Já, os critérios diagnósticos da ET são sugeridos pela "National Tuberous Sclerosis Associations (NTSA)" para o Complexo Sintomatológico da ET14,15,29. A paciente (caso 2) possui critérios suficientes para o diagnóstico definitivo de ET: angiofibromas faciais múltiplos, tubérculos corticais e mácula hipomelanótica.

Importante ressaltar que, na maioria dos casos, a avaliação cuidadosa da pele em síndrome neurocutânea é o melhor e mais fácil método para estabelecer o diagnóstico10,14,15. Nessas duas doenças, como em geral nas doenças genéticas, tornam-se difíceis os comentários sobre a terapêutica, que deverá ser apenas sintomática, clínica ou cirúrgica, na dependência das manifestações presentes30.

Na NF1, os neurofibromas cutâneos somente devem ser excisados se causarem alterações funcionais ou problemas estéticos; o mesmo ocorrendo na ET, em relação aos fibromas subungueais e angiofibromas faciais.

Merece destaque, a obrigatoriedade do acompanhamento destes doentes durante toda a vida, particularmente para detecção precoce de um neurofibrossarcoma, o tumor mais freqüente na NF-1; e astrocitoma de células gigantes, presente em 6 a 14% dos pacientes com ET. Deve-se realçar também, a importância do suporte psicológico para os pacientes com quadros clínicos exuberantes e/ou desfigurantes.

Em conclusão, diante de doenças genéticas, com inúmeras manifestações clínicas, particularmente a NF1, o ideal é que houvesse equipe multidisciplinar encarregada do acompanhamento do controle clínico, cirúrgico, além de orientação psicológica para o paciente e seus familiares. Por outro lado, a realização do aconselhamento genético é de suma importância; e por tratar-se de doenças autossômicas dominantes, os portadores de NF1 e ET deverão ser alertados quanto ao alto risco de ocorrência (50%) para sua prole. O interesse maior desse estudo foi a associação familiar dessas duas síndromes neurocutâneas, fato aparentemente incomum, o qual não foi constatado na literatura. Alerta-se sobre a busca desse achado, que talvez não seja tão raro, e sim, não investigado.

Recebido 24 Janeiro 2006, recebido na forma final 19 Abril 2006. Aceito 7 Junho 2006.

Dr. Marcelo Mattos e Dinato - Rua Bento de Abreu 65 - 11045-140 Santos SP - Brasil. E-mail: marcelodinato@terra.com.br

  • 1. Gutmann DH. Parallels between tuberous sclerosis complex and neurofibromatosis 1: common threads in the same tapestry. Semin Pediatr Neurol 1998;5:276-286.
  • 2. Korf BR. Neurocutaneous syndromes: neurofibromatosis 1, neurofibromatosis 2, and tuberous sclerosis. Curr Opin Neurol 1997;10:131-136.
  • 3. North KN. Neurofibromatosis 1 in childhood. Semin Pediatr Neurol 1998;5:231-242.
  • 4. Mustacchi Z, Peres S. Genética baseada em evidências: síndromes e heranças. São Paulo: CID, 2000:370-373.
  • 5. Vicente FJ, Gil P, Vasquez-Doval FJ. Principales mecanismos etiopatogênicos de las enfermidades neurocutaneas. Rev Neurol 1997;25:214-221.
  • 6. Davis RE. Diagnosis neurofibromatosis type I in children. Nurse Pract 1997;22:73-76,79-81.
  • 7. Hasle H, Nir M, Tommerup N. Prolonged extreme thrombocytosis associated with neurofibromatosis type 1. J Pediatr 1997;130:317-319.
  • 8. Kandt RS. Tuberous sclerosis complex and neurofibromatosis type 1: the two most common neurocutaneous diseases. Neurol Clin 2002;20: 941-964.
  • 9. Sampaio SAP, Rivitti EA. Dermatologia. 2.Ed. São Paulo: Artes Médicas, 2001:761-763.
  • 10. Jóswiak S, Schwartz RA, Janniger CK, et al. Skin lesions in children with tuberous sclerosis complex: their prevalence, natural course, and diagnostic significance. Int J Dermatol 1998;37:911-917.
  • 11. MacDonald IM, Bech-Hansen NT, Britton WA Jr, et al.The phakomatoses: recent advances in genetics. Cn J Ophthalmol 1997;32:4-11.
  • 12. Pitché P, Agbèrè AD, Gbadoé AJ, et al. Sclérose tubéreuse de Bourneville et épilepsie de l'enfant: a propos de quatre observations togolaises. Bull Soc Pathol ExoT 1998;91:235-237.
  • 13. Yagci C, Sahin-Akyar G, Akyar S. Multiple organ involvement in tuberous sclerosis. Eur J Radiol 1997;25:52-54.
  • 14. Roach ES, Gomez MR, Northrup H. Tuberous sclerosis complex: consensus conference: revised clinical diagnostic criteria. J Child Neurol 1998;13:624-628.
  • 15. Roach ES, Gomez MR, Northrup H. Tuberous sclerosis consensus conference: recommendations for diagnostic evaluation. J Child Neurol 1999;14:401-407.
  • 16. Kotagal P, Rothner AD. Epilepsy in setting of neurocutaneous syndromes. Epilepsia 1993;34:71-78.
  • 17. Kwiatkwski DJ, Short MP. Tuberous sclerosis. Arch Dermatol 1994; 130:348-354.
  • 18. Short MP, Richardson EP Jr, Haines JL, Kwiatkwski DJ. Clinical, neuropathological and genetic aspects of the tuberous sclerosis complex. Brain Pathol 1995;5:173-179.
  • 19. Gonzaga HFS, Sabatini LSG, Consolaro A. Manifestações bucais da neurofibromatose múltipla: doença de von Reckinghausen. An Bras Dermatol 1991;66:77-80.
  • 20. Raininko R, Thelin L, Eeg-Olofsson O. Non-neoplastic brain on MRI in children and adolescents with neurofibromatosis type 1. Neuropediatrics 2001;32:225-230.
  • 21. Riccardi VM. Type 1 neurofibromatosis and the pediatric patient. Current Problems in Pediatrics 1992;66-106.
  • 22. Van Ess, North KN, McHugh K, et al. MRI findings in children with neurofibromatosis type 1: a prospective study. Pediatr Radiol 1996; 26:478-487.
  • 23. Steen RG, Taylor JS, Langston JW. Prospective evaluation of the brain in asymptomatic children with neurofibromatosis type 1; relationship of macrocephaly to T1 relaxation changes and structural brain abnormalities. Am J Neuroradiol 2001;22:810-817.
  • 24. Cnossen MH, Stam EN, Cooiman LC, et al. Endocrinologic disorders and optic pathway gliomas in children with neurofibromatosis type 1. Pediatrics 1997;100:667-670.
  • 25. Goloni-Bertollo EM, Antonio JR, Varella GM. Avaliação genético-clínica em neurofibromatose. An Bras Dermatol 1994;69:311-320.
  • 26. Skuse GR, Cappione AJ. RNA processing and clinical variability in neurofibromatosis type 1 (NF1). Hum Molec Genet 1997;6:1707-1712.
  • 27. Tung TC, Chen YR, Chen KT, Chen CT, Bendor_Samuel R. Massive intratumor hemorrhage in facial plexiform neurofibroma. Head Neck 1997;19:158-162.
  • 28. Zim HW, Weinstein SL. Spine update. The management of scoliosis in neurofibromatosis. Spine 1997;22:2770-2776.
  • 29. Ferreira VEJA, Diament A. Síndromes neurocutâneas ou facomatosas. Diament A, Cypel S (eds). Neurologia infantil. 4.Ed. São Paulo: Editora Atheneu, 2005;1:641-654.
  • 30. Arbuckle HA, Morelli JG. Pigmentary disorders: update on neurofibromatosis-1 and tuberous sclerosis. Curr Opin Pediat 2000;12:354-358.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2006
  • Data do Fascículo
    Set 2006

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2006
  • Aceito
    07 Jul 2006
Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.arquivos@abneuro.org