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Avulsão medular torácica sem anormalidades radiológicas: relato de caso

Thoracic spinal cord avulsion without radiologic abnormalities: case report

Resumos

Lesão medular sem anormalidade radiológica é condição rara que acomete mais comumente crianças e contribui com altas taxas de morbidade nestes pacientes. Relatamos um caso de um lactente de cinco meses vítima de acidente automobilístico que se apresentava com nível sensitivo em T2 e paraplegia crural bilateral. Exames radiográficos e tomografia computadorizada de coluna vertebral não evidenciaram lesões ósseas ou ligamentares. A ressonância magnética mostrou transecção completa associada com avulsão medular em segmento compreendido entre T3 a T7. Discutimos esta patologia segundo sua epidemiologia, fisiopatologia, diagnóstico, tratamento e prognóstico.

medula espinhal; traumatismo da medula espinhal; mielopatia traumática; lesões; avulsão


Spinal cord injury without radiologic abnormalities is a rare condition that occurs more frequently in children and contributes to a high rate of morbidity among these patients. We report the case of a five-month-old infant, victim of automobile accident, who was brought to our service with a sensitive level in T2 and bilateral crural paraplegia. Radiographic exams and computed tomography of spine did not evidence of bone or ligaments injuries. Magnetic resonance image showed complete spinal cord transection and spine avulsion in the segment between T3 and T7. We discuss this pathology according to its epidemiology, pathophysiology, diagnosis, treatment and prognostic aspects.

spinal cord; spinal cord injury; traumatic myelopathy; injury, avulsion


Avulsão medular torácica sem anormalidades radiológicas: relato de caso

Thoracic spinal cord avulsion without radiologic abnormalities: case report

Asdrubal FalavignaI; Marcelo MattanaII; Alisson Roberto TelesIII; Karina Nunes PershIII

IProfessor da Disciplina de Neurologia da Universidade de Caxias do Sul, RS, Brasil. Doutor em Neurocirurgia pela Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina, São Paulo SP, Brasil (UNIFESP-EPM)

IINeurocirurgião

IIIAcadêmico(a) do Curso de Medicina da Universidade de Caxias do Sul, RS, Brasil

RESUMO

Lesão medular sem anormalidade radiológica é condição rara que acomete mais comumente crianças e contribui com altas taxas de morbidade nestes pacientes. Relatamos um caso de um lactente de cinco meses vítima de acidente automobilístico que se apresentava com nível sensitivo em T2 e paraplegia crural bilateral. Exames radiográficos e tomografia computadorizada de coluna vertebral não evidenciaram lesões ósseas ou ligamentares. A ressonância magnética mostrou transecção completa associada com avulsão medular em segmento compreendido entre T3 a T7. Discutimos esta patologia segundo sua epidemiologia, fisiopatologia, diagnóstico, tratamento e prognóstico.

Palavras-chave: medula espinhal, traumatismo da medula espinhal, mielopatia traumática, lesões, avulsão.

ABSTRACT

Spinal cord injury without radiologic abnormalities is a rare condition that occurs more frequently in children and contributes to a high rate of morbidity among these patients. We report the case of a five-month-old infant, victim of automobile accident, who was brought to our service with a sensitive level in T2 and bilateral crural paraplegia. Radiographic exams and computed tomography of spine did not evidence of bone or ligaments injuries. Magnetic resonance image showed complete spinal cord transection and spine avulsion in the segment between T3 and T7. We discuss this pathology according to its epidemiology, pathophysiology, diagnosis, treatment and prognostic aspects.

Key words: spinal cord, spinal cord injury, traumatic myelopathy, injury, avulsion.

O conceito de lesão medular sem anormalidade radiológica foi descrito em 1907 por Lloyd1, e seu acrônimo SCIWORA (spinal cord injury without radiographic abnormality) foi proposto por Pang e Wilberger em 19822. Os autores estudaram crianças vítimas de traumatismos que apresentavam mielopatia com resultados normais de radiografia, tomografia computadorizada (TC) e mielografia da coluna vertebral2. Acredita-se que ocorram cerca de 1000 novos casos de lesão medular em crianças por ano no Canadá3, sendo 1% a 10% de etiologia traumática4,5. A incidência de SCIWORA em pacientes pediátricos com mielopatia decorrente de traumatismos varia de 5% a 67%, a média dentre a maioria das séries relatadas sendo 34,8%4. Os pacientes pediátricos são responsáveis por 90% dos casos de SCIWORA6.

Relatamos um caso SCIWORA em uma criança.

CASO

Paciente de cinco meses, do sexo masculino, estava sentado ao colo da mãe, no banco da frente do automóvel e sem cinto de segurança, quando ocorreu colisão frontal contra outro veículo sem capotagem. No momento do resgate pela unidade móvel, o que ocorreu aproximadamente 80 minutos após o acidente, a criança encontrava-se chorando, caída no banco da frente do automóvel.

Por ocasião da chegada ao hospital apresentava-se em regular estado geral, hipocorado, acianótico, anictérico e hipoativo ao manuseio. O exame apresentava nível sensitivo em T2 com paraplegia crural bilateral. A ultra-sonografia de abdome total realizada não mostrava sinais de anormalidades. A TC de crânio evidenciou hemorragia subaracnóidea, junto ao tentório e à foice cerebral e presença de material hemorrágico no corno posterior do ventrículo lateral esquerdo. Os raios X simples de coluna cervical e torácica (Fig 1) e pelve não mostraram fraturas ou luxações. A TC de coluna cervical não apresentou alterações. A ressonância magnética (RM) de coluna vertebral demonstrou transecção completa associada com avulsão medular em segmento compreendido entre T3 a T7 (Fig 2).



Houve concordância para publicação do caso com assinatura de consentimento informado.

DISCUSSÃO

Desde o início do uso do acrônimo SCIWORA, em 1982, vários estudos têm sido publicados sobre esta síndrome4-17. Em aproximadamente 35% dos pacientes pediátricos vítimas de traumatismos com lesão medular não se evidenciam alterações ósseas ou ligamentares4. As crianças mais novas (menores de 9 anos) são mais comumente acometidas, quando comparadas às de mais idade4. O dano neurológico é mais grave em crianças mais novas do que nas com mais de nove anos14, razão pela qual se deve ter alta suspeita clínica de lesão óssea ou ligamentosa quando ocorre lesão completa de medula em crianças mais velhas4. Quanto ao nível da lesão medular, as crianças com menos de oito anos apresentam mais comumente lesões cervicais mais altas, em comparação com crianças de mais idade4. Não há consenso no que se refere às lesões torácicas; alguns autores não demonstram relação entre a distribuição torácica e a idade da criança14, enquanto outros observaram leve predominância de lesões torácicas altas (T1-T6) em crianças com menos de 8 anos4. Lesões em medula torácica inferior ou lombar raramente se apresentam como SCIWORA12. Aproximadamente 13% das SCIWORA envolvem a medula torácica4. Igualmente ao caso relatado, a maioria dos eventos que ocorrem nessa região são causados por acidentes automobilísticos4,14.

As causas de lesão em pacientes com SCIWORA são variadas4,12. Em revisão feita por Launay e colaboradores6, os acidentes automobilísticos foram responsáveis por aproximadamente 45% dos casos, sendo os demais atribuídos a quedas (27%), traumas relacionados a atividades esportivas (13%), trauma ao nascimento (12%) e abuso de crianças (3%). Quatro mecanismos estão envolvidos na patogênese da SCIWORA em pacientes pediátricos, quais sejam: hiperextensão, flexão, distração e isquemia medular4,11.

A apresentação clínica dos pacientes corresponde a síndrome medular parcial em 55% dos casos, a síndrome medular completa em 27%, a síndrome medular central em 10%, a síndrome de Brown-Séquard em 5% e a síndrome medular anterior em 3% dos casos6. A paresia da SCIWORA pode iniciar imediatamente após o trauma ou ocorrer de alguns minutos até a quatro dias após o evento4,11,18. Uma vez iniciada, a paralisia evolui rapidamente2. Pang e Pollack observaram demora no início dos sintomas em 15 de 55 pacientes com SCIWORA11, em nove deles havendo sintomas transitórios antes da definição do quadro final. Launay e colaboradores6, em revisão sistemática, observaram que, em 27% dos pacientes, os sinais e sintomas de lesão medular começam a se manifestar um tempo depois de o evento ter ocorrido e, em 68% deles, há sintomas premonitórios da lesão (parestesias, entumecimento ou sintomas subjetivos de fraqueza). A razão para esse "período de latência" precedente ao dano neurológico pode ser secundária à isquemia medular ou instabilidade medular11. Outra causa decorreria da possibilidade de o exame neurológico ser dificultado pelo fato de freqüentemente as crianças não obedecerem a comandos ou estarem em quadro instável6.

A base da biomecânica da SCIWORA consiste na maleabilidade da coluna vertebral infantil4. Esta característica fisiológica permite que os segmentos vertebrais se torçam, deslizem e se separem uns dos outros em alguma extensão sem, no entanto, acarretar dano ósseo ou ligamentoso. Segundo Pang4, muitos fatores contribuem para essa hipermotilidade inerente da coluna medular pediátrica. Os ligamentos e as cápsulas articulares são elásticos, suportando movimentos além de sua amplitude normal sem rasgar. Devido ao elevado conteúdo líquido, o disco intervertebral e o anel fibroso nas crianças são excessivamente expandidos horizontalmente, permitindo que a coluna óssea dos neonatos se alongue quando distraída. As facetas articulares são rasas e orientadas mais ou menos horizontalmente, o que permite fácil deslizamento nos movimentos de flexão e extensão. Os corpos vertebrais são cunhados anteriormente, possibilitando o resvalamento entre as estruturas. O processo uncinado, importante em restringir movimentos laterais e rotacionais em adultos, está ausente em crianças abaixo de 10 anos de idade. E ainda, a atividade biológica e a zona de crescimento vascular representam um potencial sítio de deslocamento radiologicamente oculto.

A RM é a única técnica a examinar o espaço intramedular. Dependendo da violência do impacto às meninges e à medula, podem ocorrer contusão, transecção ou laceração das meninges. O método de quantificação do dano raquimedular em imagens de RM baseia-se na premissa de que o significado clínico da lesão depende de sua morfologia, extensão e localização17.

Anormalidades à RM podem ser classificadas como extraneurais (envolvendo principalmente ligamentos, músculos e disco intervertebral) e neurais (envolvendo medula espinhal)4. O segmento da medula espinhal lesado pode apresentar três aspectos nas imagens da RM, sendo a seqüência ponderada em T2 a mais usada, por sua sensibilidade à alteração de sinal4. (a) Tipo I: hipointensidade de sinal no interior da medula, representando hematomielia extensa e transecção funcional, tendo o pior prognóstico; (b) Tipo II: hiperintensidade de sinal no espaço intramedular, representando edema medular agudo. Edema sem hemorragia associada ao trauma representa uma lesão mais branda, preservando grande parte dos neurônios. Este tipo posssui melhor prognóstico; (c) Tipo III: hiposinal na região central, representando hematomielia, circundado por sinal elevado na periferia na margem subpial da medula,indicando edema. É um tipo intermediário de lesão, com prognóstico intermediário entre os tipos I e II. Achados na RM em crianças com SCIWORA podem ser úteis para avaliar aspectos importantes, como confirmação de lesão ligamentar ou de outros tecidos moles não-neurais e sua correlação com o mecanismo de lesão, além de características da lesão medular e prognóstico da doença19.

No caso relatado, nenhum sinal de ferimento externo foi observado. As radiografias simples em perfil (Fig 1A) e ortostática (Fig 1B) da coluna cervical e da coluna torácica não evidenciaram qualquer lesão traumática óssea. As imagens ponderadas em T2 (Fig 2) mostraram hiperintensidade de sinal no segmento T3 aT7 da medula, compatível com edema, bem como ruptura completa e avulsão da medula espinhal.

Launay e colaboradores6 relataram que cerca de 17% dos pacientes imobilizados por oito semanas apresentam recorrência de SCIWORA, definida como um novo episódio após dias ou semanas do primeiro evento, em contraste com nenhum caso de recorrência entre os pacientes imobilizados por 12 semanas, sendo esta diferença estatisticamente significativa. Apesar da imobilização por cerca de 12 semanas, aproximadamente 44% dos pacientes não demonstram melhora com o tratamento6. A recorrência da SCIWORA é secundária à mobilização da medula espinhal dentro de curto período de tempo após tratamento inadequado ou ausente e freqüentemente resulta em déficits neurológicos mais severos que os da síndrome inicial9,13.

O tratamento recomendado é essencialmente clínico, incluindo a administração de corticosteróides8,12 e imobilização externa permanente por 12 semanas6. Cirurgia deve ser realizada somente em pacientes com compressão medular ou instabilidade vertebral severa6,12.

Todas as crianças vítimas de trauma que se apresentam com exame neurológico anormal ou com história de sintomas neurológicos transitórios devem ser tratadas e imobilizadas imediatamente. Se a radiografia de coluna vertebral e a TC não evidenciarem lesões vertebrais, deve ser realizada RM de medula para descartar SCIWORA. Entretanto, se a criança estiver inconsciente após o trauma, imobilização rígida deve ser aplicada e exames de imagem devem ser solicitados.

Recebido 16 Janeiro 2006, recebido na forma final 20 Abril 2006. Aceito 12 Junho 2006.

Dr. Asdrubal Falavigna - Rua Coronel Arcy da Rocha Nóbrega 401 / 602 - 95040-290 Caxias do Sul RS - Brasil. E-mail: asdrubal@ doctor.com

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2006
  • Data do Fascículo
    Set 2006

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2006
  • Aceito
    12 Jun 2006
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