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Guerra fiscal e competição intermunicipal por novos investimentos no setor automotivo brasileiro

Guerre fiscale et concurrence intermunicipale en vue de nouveaux investissements dans le secteur automoteur brésilien

The fiscal war and intermunicipal competition for new investments in the Brazilian auto industry

Resumos

Dans cet article on discute quelques problèmes posés depuis la récente vague des IDEs au Brésil, surtout dans le secteur automoteur. La lutte pour l’obtention de ces investissements, connue comme guerre fiscale, prend son origine dans la réduction des investissements privés - dont la décision est prise aux sièges des sociétés multinationales - ainsi que dans l’accroissement des dépenses publiques. Encouragée par le gouvernement central, la concurrence entre les États de la Fédération, plutôt que de permettre de déboucher sur des projets de développement régional destinés à atténuer les inégalités, attise les conflits entre ces États. Un gaspillage des ressources publiques, un morcellement dévastateur et une incertitude quant au succès des investissements sont les signes les plus apparents de ce conflit. Cependant, des réactions à cette politique, basées sur l’émergence d’innovations institutionnelles, exercent déjà leur influence sur l’avenir des municipalités et des États.

Guerre fiscale; IDEs de l’industrie automoteur; développement régional


The article discusses some of the new issues raised by the recent surge of foreign direct investments in Brazil, especially in the auto industry. Known as the fiscal war, or bidding war, competition over these investments derives from a decrease in private investments (based on decisions made at multinational corporate headquarters) and from an increase in public spending. Stimulated by the central government, this competition exacerbates the federative conflict and hampers the generation of regional development projects aimed at decreasing inequalities. The most visible signs of this dispute are the wasting of public resources, predatory fragmentation, and uncertainty about return on investments. Based on the emergence of institutional innovations, reactions to these policies have nevertheless proven important to the future of municipalities and states.

fiscal war; foreign direct investment in the auto industry; regional development


Guerre fiscale; IDEs de l’industrie automoteur; développement régional

fiscal war; foreign direct investment in the auto industry; regional development

Guerra Fiscal e Competição Intermunicipal por Novos Investimentos no Setor Automotivo Brasileiro

Glauco Arbix

ARESENTAÇÃO

Os Investimentos Diretos Externos ¾ IDEs, tradicionalmente saudados no Brasil pelo seu potencial redutor de contrastes regionais, têm suscitado calorosas discussões, em especial diante da atuação de estados e municípios no sentido de atraí-los com pacotes crescentes de polpudos benefícios. No setor automotivo, dentre os incentivos que as grandes empresas vêm recebendo para alocar seus novos investimentos, destacam-se a renúncia fiscal, diferimento de impostos, crédito fácil e farto, obras de infra-estrutura e doações governamentais que, praticamente, estão financiando suas novas fábricas. Nada mais justo, portanto, que o retorno desse "investimento público" seja discutido, estimado, questionado e equacionado abertamente.

Os problemas começam quando se sabe que os processos públicos de prestação de contas – que possibilitariam eventuais reorientações e/ou penalizações dos projetos aprovados – só raramente encontram suporte no Estado e na sociedade civil, desaparelhados para essa tarefa eminentemente democrática. Esse desamparo, a um só tempo, diz respeito à: (i) inadequação das instituições existentes – velhos instrumentos centralizados e centralizadores – e (ii) desorientação estratégica sobre os rumos do desenvolvimento, que, além do país, vem fragilizando as políticas regionais, estaduais e locais.

Constrangidos por essa situação, com o deslocamento político e a corrosão da capacidade estruturante do Estado central, os mais diferenciados governos, dos democráticos aos autoritários, dos neoliberais aos socialistas, assumem a guerra fiscal tentando atrair IDEs, identificados como o mais rápido e eficaz caminho para o emprego abundante, a alta tecnologia e a modernidade.

Não foi por outra razão que as gigantescas corporações do setor automotivo se tornaram os mais cobiçados objetos de desejo de governadores e prefeitos brasileiros neste final de século. Para atraí-las, estados e municípios multiplicam seus lances na tentativa de interferir junto às suas diretorias nas decisões sobre a alocação de novos investimentos.

O dilema é que não há evidências empíricas de que a participação na disputa interterritorial trará os benefícios apresentados nos documentos e nas justificativas dos governos e políticos envolvidos nesse processo. Pelo contrário, tendo em vista as novas características de produção e de tecnologia é pouco provável que essas empresas irão gerar o dinamismo econômico esperado. Certamente trarão benefícios às novas regiões, mas em condições incertas sobre a dimensão e o timing do retorno, além do impacto negativo no emprego em áreas de industrialização mais antiga. Ou seja, o mecanismo primário da guerra fiscal possibilita que os benefícios eventuais de algumas regiões sejam constituídos à custa de outras.

Além de comprometer ainda mais as já combalidas finanças de estados e municípios, minando as tentativas de se alcançar qualquer equilíbrio fiscal, essa disputa distorce a competição no mercado e provoca a diminuição dos investimentos privados já decididos nas matrizes das multinacionais, diminuição esta que passa a ser compensada pela elevação dos gastos públicos.

Em outras palavras, a guerra fiscal, além de acirrar o conflito federativo, a partir da ação predatória de uma região contra outra, gera, no seu conjunto, um desperdício generalizado de recursos públicos. As negociações entre as partes que, em tese, poderiam contrabalançar esse desperdício, definindo claramente a contraparte das empresas, exibiram desequilíbrio na determinação de relações de reciprocidade. De fato, serviram para consolidar muitos direitos – e poucos deveres – das montadoras e as obrigações do setor público. Demonstraram, de um lado, que o corpo público negociador conta apenas com vagas idéias sobre as perspectivas de um desenvolvimento regional integrado e, de outro, que o jogo político nacional e estadual interfere diretamente na plasticidade e configuração do que é oferecido às empresas. Sem essa dimensão torna-se difícil entender a elasticidade financeira e orçamental que a guerra fiscal vem demonstrando. Nesse quadro, em que os poderes da economia e da política se fundem, é razoável supor que os municípios detêm um poder de fogo muito menor do que o governo federal e os estados1 1 . O instrumento-chave utilizado pelos estados nas disputas é o ICMS, imposto sobre valor agregado recolhido pelos estados, do qual os municípios recebem de volta apenas uma parcela. .

Isto não significa, porém, que as prefeituras não possam desempenhar um papel ativo. Pelo contrário. Muitas cidades vêm se organizando de modo a potencializar suas vantagens competitivas, servindo-se do Imposto Predial e Territorial Urbano ¾ IPTU, do Imposto sobre Serviços ¾ ISS, das taxas locais, de terrenos em distritos industriais, de equipamentos, do eventual controle sobre serviços de água, esgoto, transporte e comunicações, e até mesmo da cota-parte do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços ¾ ICMS, para: (i) interferir decisivamente na disputa com outros municípios de sua própria região ou estado; (ii) participar de disputas estaduais em parceria com o governo do estado; (iii) procurar definir um terreno próprio de negociação em contato direto com as matrizes das montadoras. Algumas dessas iniciativas se mostraram positivas, principalmente quando deflagraram processos de preparação para a disputa, que podem resultar na discussão ou mesmo no equacionamento das condições educacionais, de comunicação, de tecnologia, de infra-estrutura e outros desafios de longo prazo, que, em geral, não costumam freqüentar as agendas municipais.

O problema é que essas iniciativas, quando ocorrem, não encontram estruturas de apoio institucional, nem regionalmente nem por parte do estado e muito menos junto ao governo federal. Mais do que isso, se pensarmos em termos de arrecadação e de elevação do Produto Interno Bruto ¾ PIB, estados e municípios são potenciais ganhadores a médio e longo prazo, mas recebem esses benefícios de modo qualitativamente distinto, uma vez que as cidades são instadas a dar conta diretamente dos novos e agudos problemas que emergem com os investimentos e para os quais, em sua grande maioria, estão despreparadas para enfrentá-los.

Na história do Brasil, as distorções da industrialização, o esgotamento dos serviços que as cidades podem oferecer, a falência de sua infra-estrutura e as características agressivas do seu crescimento têm transformado muitos dos municípios, em especial aqueles que selaram seu futuro ao das montadoras, em conglomerados de não-cidades, onde a baixa qualidade de vida e a ocupação urbana caótica são marcas registradas. O triste mosaico da região do ABC (em São Paulo) pós-anos 50 e a situação de Betim (em Minas Gerais) depois de mais de vinte anos com a Fiat são exemplos vivos da realidade calcada na industrialização desorientada.

Dessa perspectiva, os processos de guerra fiscal nos anos 90 estão indicando que os governos, em seus diferentes níveis, e por razões diversas, têm dificuldades enormes para aprender com o próprio país e rejeitar o entulho do planejamento autoritário deixado pelo esgotamento da nossa state-oriented tradition.

Há, no entanto, sinais de reação nas esferas estadual, regional e municipal. Vários estados da Federação, como o Rio Grande do Sul, começaram a pensar as políticas de industrialização de um modo distinto, questionando abertamente a guerra fiscal. Por sua vez, inúmeros municípios procuram democraticamente estabelecer laços com seus vizinhos, explorar potencialidades regionais, construir malhas de apoio envolvendo as organizações da sociedade civil, de modo a ampliar a abrangência de suas políticas e, conseqüentemente, a capacidade de equacionar seus problemas de desenvolvimento.

Uma das concentrações industriais mais fustigadas pela guerra fiscal, o ABC paulista, construiu ao longo da década de 90 uma série de instituições regionais, de caráter cooperativo e democrático, que tem reunido a sociedade civil e o poder público em torno de projetos voltados para o seu reordenamento econômico, urbano e social. Os municípios do ABC constituem hoje um verdadeiro laboratório de inovações institucionais que estão indicando novos e viáveis caminhos para que cidades e regiões construam instrumentos de superação do seu despreparo e desamparo estratégico.

A discussão dessas questões aqui obedecerá a seguinte estrutura: (i) as bases da entrada recente de IDEs e a descentralização industrial; (ii) a guerra fiscal e o desperdício; (iii) a fragilidade dos governos subnacionais e a regionalização das políticas industriais; (iv) inovações institucionais e sugestões para uma nova política.

O NOVO FLUXO DE IDEs E SUA LOCALIZAÇÃO2 2 . O conceito é polêmico mas, em geral, indica o gerenciamento direto sobre a atividade receptora de investimento. Diferencia-se dos empréstimos internacionais e dos investimentos em portfólio que envolvem compra de ações e títulos sem que o investidor exerça esse controle. De modo simplificado, pode-se relacionar o IDE às atividades produtivas e não aos investimentos financeiros e especulativos.

O ambiente econômico brasileiro sofreu forte transformação a partir do início dos anos 90. A economia brasileira foi intensamente desregulada em termos de suas transações com o exterior, o que provocou forte crescimento tanto do volume de importações quanto do fluxo de IDE.

As condições gerais da economia, especialmente a estabilização da inflação em níveis baixos e a forte aliança política expressa no governo eleito em 1994, proporcionaram boas condições para a elevação da atratividade do país com relação ao capital estrangeiro tanto produtivo quanto especulativo.

A atração de IDE tornou-se peça-chave para a política econômica do governo brasileiro nos anos 90, uma espécie de passaporte capaz de permitir o ingresso no mundo produtivo de alta competitividade e de crescente capacidade exportadora. Gustavo Franco (1996:12), ex-presidente do Banco Central e figura de proa na condução do Plano Real, sempre deixou claro que a nova inserção da economia brasileira em um ambiente marcado pela globalização dependia da expansão dos IDEs, apresentados como a razão de ser da política de estabilização monetária, cujo objetivo central era impulsionar "o processo de reestruturação das operações das filiais estrangeiras aqui localizadas na direção de padrões internacionais". Com a política de abertura da economia, desregulamentação e os programas de privatização, o Brasil conseguiu aumentar substancialmente o ingresso de IDE.

Segundo dados do Censo de Capitais Estrangeiros do Banco Central do Brasil – período-base 1995 ¾ , nos anos de 1996 e 1997 o Brasil recebeu cerca de US$ 23 bilhões em investimentos diretos, ou seja, 54% do estoque em dezembro de 1995. O fluxo de IDE teria crescido, segundo dados da Comissão Econômica para América Latina e Caribe ¾ CEPAL (1998), de US$ 2,6 bilhões em 1994 para US$ 15 bilhões em 1997. Enquanto a taxa de crescimento anual de IDE em termos mundiais foi de 18%, a taxa brasileira foi de 65,5%. Nesse mesmo ano, o IDE representou 14% da formação bruta de capital fixo no país.

Se em 1995 o estoque de IDE na indústria era 26,9% maior do que o do setor de serviços, essa tendência seria revertida em 1997, quando o setor de serviços já detinha 36,4% mais capital estrangeiro do que o setor industrial. Esse desempenho do setor de serviços se deve principalmente à internacionalização do setor bancário brasileiro e, em um segundo momento, à do setor de comércio varejista. É de se notar também que grande parte do influxo total de IDE para o Brasil, na segunda metade dos anos 90, esteve vinculada à aquisição de empresas estatais privatizadas, especialmente nos setores siderúrgico, de telecomunicações, energia elétrica e petroquímico. Os dados posteriores a 1997 ainda não estão disponíveis, mas as estimativas indicam uma acentuação da internacionalização após a privatização do setor de telecomunicações3 3 . Estimativas do BBV, realizadas em 1999, indicam que os fluxos de IDE para o Brasil foram de US$ 24 bilhões em 1998 e US$ 19 bilhões em 1999 (Carta Semanal, nº 12, julho de 1999). .

Com relação ao período mais recente, dados do Banco Central do Brasil indicam um crescimento do IDE, apesar das oscilações da economia brasileira nos últimos dois anos. As estimativas sugerem que os IDEs cresceram 37,5% entre 1997 e 1998, mostrando volume ainda maior em 1999. Segundo o Fundo Monetário Internacional ¾ FMI, os IDEs de 1999 podem alcançar US$ 18 bilhões, equivalentes a 85% do atual déficit em conta corrente, apesar do atraso de algumas privatizações planejadas inicialmente para o final de 1999.

No Brasil, estudos da CEPAL vêm sugerindo que o novo fluxo de investimentos está ocorrendo: (i) em setores em que a presença de empresas multinacionais é dominante, como os setores automotivo e químico; (ii) por meio de compras e fusões em setores com forte implantação de empresas nacionais, como o setor de autopeças e de alimentação; (iii) em segmentos até recentemente controlados por empresas de capital nacional, como os setores financeiro, de turismo e varejo; (iv) em setores até então dominados por empresas estatais (petroquímico, energia e telecomunicações).

Sem dúvida, os componentes apontados acima nos fornecem um desenho geral dos investimentos, de suas características de forma e conteúdo. No entanto, vários desses fatores operam como condição necessária, porém não suficiente, para a atração dos IDEs e, conforme os traços de propriedade do capital, alguns podem pesar mais do que outros. No caso do Brasil, como veremos adiante, outras razões, nem sempre enfatizadas pela literatura, têm sido decisivas, como os incentivos econômicos e benefícios fiscais concedidos pelas diferentes esferas de governo, federal, estaduais e municipais.

Os Investimentos no Setor Automotivo

No setor industrial, os investimentos mais recentes concentraram-se em grande parte no segmento automotivo: a relativa estabilidade econômica e a liberalização dos fluxos de capital somadas à alta proteção governamental a esse setor atuaram como um imã poderoso para as inversões externas. Essa proteção se torna transparente com a edição do Novo Regime Automotivo em 1995, primeiro esboço de política industrial elaborado pelo Estado nos anos 90 sem a participação de integrantes do setor (Arbix, 1997:471-502)4 4 . A Câmara Setorial da Indústria Automotiva (organismo tripartite que atuou intensamente entre os anos de 1992 e 1994) esboçaria algumas referências de política industrial, que acabariam por ser descartadas pelo governo Fernando Henrique, juntamente com a própria Câmara. . A perspectiva de uma estrutura industrial integrada e protegida pelas asas do Estado, assim como os incentivos às empresas privadas nacionais deixariam, então, de freqüentar os documentos oficiais.

Em 1994, com o Plano Real, o governo Fernando Henrique Cardoso assentaria as premissas que aprofundariam a internacionalização da economia, ao mesmo tempo que privilegiava alguns setores produtivos, com destaque para a indústria de autoveículos. Foi assim que nasceu o Novo Regime Automotivo, instrumento para consolidar e atrair novos investimentos em um setor considerado altamente sensível na economia brasileira. Inspirando-se diretamente no Regime Automotriz da Argentina, o governo brasileiro localizava nas grandes empresas montadoras os principais instrumentos de financiamento da modernização industrial e de reestruturação tecnológica, capazes de permitir novos acessos ao mercado mundial. Desta vez, porém, diferentemente dos anos 50, a nova estratégia estaria marcada pelo abandono de qualquer veleidade de criar, fortalecer ou expandir as empresas de capital nacional.

Os principais objetivos fixados pelo Novo Regime foram: (i) atrair novas companhias e estimular a construção de novas plantas e marcas; (ii) manter em funcionamento as grandes montadoras e as grandes indústrias de autopeças já instaladas no país; (iii) abrir a via da reestruturação das empresas brasileiras do setor, facilitando os processos de fusão, associação e aquisição; (iv) consolidar o Mercado Comum do Sul ¾ Mercosul e reforçar a posição do Brasil como sua peça-chave.

O resultado foi rápido. A partir de 1996, dezesseis grandes montadoras, 150 empresas de autopeças e 29 firmas de outros setores produtivos aderiram ao Novo Regime Automotivo. Além dessas diretrizes, o Novo Regime permitiu uma concentração de poderes inédita nas montadoras, que tiveram ampliada sua capacidade de interferir nos rumos das políticas fiscal e tributária do governo, no perfil do setor de autopeças (inclusive de seus sobreviventes), nas relações de trabalho e, com a guerra fiscal, nas políticas de desenvolvimento regional e municipal.

A nova onda de investimentos exibiria grande densidade no setor automotivo. A diferença entre o investimento anunciado pelas montadoras e o investimento real torna difícil o cálculo exato do volume de IDE efetivamente aplicado. Entretanto, o Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo5 5 . Atual Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio ¾ MDIC. indicou um total de US$ 10,6 bilhões efetivamente alocado entre dezembro de 1995 e setembro de 1998, projetando a cifra de mais US$ 14 bilhões a ser investida até o final de 1999.

Tamanha expansão da indústria automotiva só encontrou paralelo na história econômica do Brasil no período de 1956 a 1968, que Shapiro (1994) chamou de primeira grande migração das montadoras. Naqueles anos, a Volkswagen, General Motors, Ford, Mercedes-Benz, Toyota e Scania se estabeleceram ao redor de São Paulo (na região do ABC), levando à formação do maior complexo da indústria automobilística da América Latina, contribuindo para o desenvolvimento de um enorme e capacitado contingente de força de trabalho e de uma densa rede de fornecedores de autopeças.

No entanto, há uma diferença significativa na distribuição das plantas automotivas entre a primeira onda de investimentos e esta dos anos 90. Enquanto na primeira difusão o investimento estrangeiro se concentrou fundamentalmente na Região Metropolitana de São Paulo, a expansão recente da indústria está se dando de modo espacialmente distinto. Embora alguns dos investimentos se tenham voltado para a reestruturação de plantas já existentes, o grosso dos IDEs distanciou-se do tradicional coração da indústria automotiva brasileira. Os maiores beneficiários têm sido os Estados do Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia e Rio de Janeiro (Tabela 1).

A distribuição desses IDEs pelo território nacional indica forte crescimento da participação de estados das regiões Sul e Sudeste, excluindo-se São Paulo. Os novos pólos industriais de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná certamente gravitam em torno dos novos horizontes dados pelo Mercosul. Atualmente com dois pólos regionais já consolidados (São Paulo e Minas Gerais) e quatro novos pólos em formação (Paraná, Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Sul6 6 . Diferentemente de outros estados, o Rio Grande do Sul, que já contava com mais de 200 empresas de autopeças e algumas montadoras especializadas (Marcopolo, Agrale, SLC e Randon), começa agora a completar sua cadeia produtiva com a chegada da GM e da Navistar. ) a indústria automotiva se reespacializa, ensejando o desenho de um novo mapa da indústria (Figura 1).


Na onda das montadoras, grandes empresas de autopeças aqui estabelecidas se reorganizam, ao mesmo tempo que novas corporações procuram se instalar rapidamente. Neste setor, os processos dominantes seriam os das fusões e aquisições comandadas agressivamente pelo capital estrangeiro. Dados do Sindicato Nacional de Autopeças ¾ Sindipeças (Tabela 2) refletem a forte tendência à concentração do capital no setor, que absorveu praticamente todas as grandes empresas de capital nacional construídas nos últimos quarenta anos.

Pelos dados, pode-se estabelecer uma nítida relação entre o aumento de IDE e o movimento de desnacionalização de áreas produtivas, que atinge diretamente os centros industriais mais antigos do setor automotivo, mas que deverá também marcar o perfil dos novos pólos em construção.

Essa questão se reveste de grande importância. Segundo a CEPAL, a maior parte do fluxo de IDE para o Brasil concentrou-se na aquisição de ativos já existentes e não na criação de novos. Em valores aproximados, a CEPAL apresenta uma distribuição para o destino do IDE em 1997 (antes, portanto, da privatização do setor de telecomunicações), segundo a qual nem 20% dos recursos foram empregados na instalação de novos ativos (Tabela 3).

Distribuição semelhante de IDE seria reafirmada no setor automotivo, cujas inversões colocam algumas interrogações sobre a política desenvolvida por vários governos estaduais e municipais para a atração de novas empresas. Isto porque, a médio prazo, a aquisição de ativos privados já existentes é geradora de impactos menores sobre o desenvolvimento e a criação de empregos do que os novos empreendimentos. Não só as perspectivas sobre o emprego serão mais modestas a médio prazo, como as transformações aguardadas do tecido industrial só serão palpáveis muito lentamente.

As Razões da Descentralização

Por que as montadoras se afastaram das áreas que oferecem vantagens econômicas externas (com disponibilidade de trabalho qualificado e uma rede já existente de fornecedores) e começaram a construir suas novas plantas fora do centro industrial do país?

A literatura especializada sugere que o movimento de reespacialização de IDEs estaria obedecendo, em geral, a três ordens de razões:

i. Em primeiro lugar viria a questão dos custos trabalhistas em combinação com o que Wood (1994) considerou a principal força do comércio Norte-Sul: a capacitação. De acordo com a teoria do comércio de Heckscher-Ohlin, o aumento das transações comerciais levaria os países em desenvolvimento, que contam com uma grande oferta de mão-de-obra alfabetizada mas relativamente não-qualificada, a se especializar na produção de bens manufaturados e relativamente indiferenciados (Wood, 1994). O setor automobilístico encaixa-se nessa categoria e os salários mais baixos em países como o Brasil – somados aos incentivos dos mercados em expansão – atuariam como um atrativo para as montadoras. As diferenças salariais no interior do Brasil e a redução do gap educacional no país nos últimos anos teriam, assim, levado as montadoras a buscar as regiões com menores custos trabalhistas. Nesse sentido, o ABC, cujo custo da hora trabalhada nas montadoras é praticamente o dobro do que em outras regiões, não poderia mesmo disputar as novas fábricas7 7 . Cada hora trabalhada na Ford do ABC custa cerca de US$ 14. Na fábrica de motores da VW (interior de São Paulo) esse mesmo custo é de US$ 6,80. Na Fiat de Betim (Minas Gerais) o custo médio é de US$ 7,30 (Dados: Sindicato dos Metalúrgicos do ABC). .

ii. Uma segunda explicação estaria na disposição das montadoras de afastar-se das áreas industriais mais consolidadas em função do alto nível de organização sindical que, geralmente, acarreta custos maiores ao fator trabalho. Por essa segunda hipótese, o ABC também estaria fora dos novos planos das montadoras em função de seu alto nível de organização sindical e da sua história de conflitos trabalhistas.

iii. Um terceiro fator que ajudaria a explicar a descentralização seria a alteração de algumas das condições que facilitaram a concentração de investimentos automotivos no ABC nos anos 50 e 60. Naquele período, a frágil infra-estrutura rodoviária e ferroviária do país e a concentração do mercado e do trabalho qualificado na região Sudeste contribuíram para a escolha do ABC. Assim, diante da degradação da infra-estrutura da Região Metropolitana de São Paulo, as montadoras estariam agora procurando novas áreas, já que, com os avanços tecnológicos, ganharam flexibilidade para enfrentar a distância dos mercados e outros diferenciais geográficos. Combinando-se esses fatores ao menor custo do trabalho, poder-se-ia entender a atual descentralização. Nesse sentido, a crescente internacionalização da economia brasileira estaria obtendo sucesso ali onde outras políticas regionais falharam: na redução das desigualdades regionais no país. Se confirmada, essa tendência viria a apoiar a hipótese de Wood (1994) e de Williamson (1997) sobre os efeitos benéficos do comércio internacional e do movimento de capitais nos países em desenvolvimento.

Os fatores descritos anteriormente podem ajudar-nos a entender as dificuldades que a Região Metropolitana de São Paulo vem enfrentando para atrair novos investimentos, mas não são suficientes para explicar o processo de descentralização em curso. Isto porque, na verdade, a instalação de novas plantas em estados como Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia ou Paraná tem pouco a ver com a diferença dos custos trabalhistas entre São Paulo e outros estados8 8 . Os estados que estão atraindo a maior quantidade de investimentos são relativamente desenvolvidos e estão longe de exibirem os menores salários do país. , com o grau de organização sindical ou mesmo com uma infra-estrutura mais adequada. O principal fator capaz de explicar o processo relativo de descentralização da indústria automobilística no Brasil é a guerra fiscal e de ofertas deflagrada entre estados e municípios brasileiros à procura de IDE.

Como geralmente há várias regiões capazes de preencher os requisitos das montadoras, os benefícios econômicos adquirem um peso específico determinante, como pesquisa recente da Confederação Nacional da Indústria ¾ CNI entre grandes empresários do país começou a sugerir (Tabela 4).

A disseminação de políticas de incentivos econômicos está gerando processos de competição territorial que podem contrabalançar eventuais efeitos benéficos dos IDEs para o desenvolvimento regional.

IMAGENS DA GUERRA

Na argumentação oficial, a disputa entre estados e municípios é justificada de vários pontos de vista, mas, invariavelmente, os investimentos diretos são percebidos como panacéia para a dinamização das economias locais e a geração de empregos.

O nome do programa que regula os incentivos fiscais no Paraná é sintomático: "Paraná Mais Empregos". Seus objetivos estão concentrados na atração de IDEs que, supostamente, deveriam multiplicar seus efeitos, arrastando fornecedores, estimulando o progresso tecnológico e o desenvolvimento de novos produtos, atraindo, assim, novos investimentos9 9 . "Por Mais Empregos". Governo do Estado do Paraná, 1995. . O resultado final seria a criação direta e indireta de novos postos de trabalho e a viabilização do desenvolvimento do estado.

O Estado do Rio Grande do Sul ¾ RS também colocou o emprego no centro da competição. Em um documento encomendado pelo governo estadual sobre o impacto no mercado de trabalho da instalação da planta da GM, a Federação da Indústria do Estado do RS ¾ FIERGS destacou a criação de empregos diretos, assim como os possíveis efeitos de encadeamentos a montante e a jusante gerados pela planta, como as principais razões que justificariam os incentivos oferecidos à montadora (FIERGS, 1996). Em tom otimista, o documento afirma: "Nossa estimativa (conservadora) sobre a geração total de empregos no Estado e em toda a cadeia produtiva da produção de veículos será da seguinte ordem: 201.000 postos de trabalho" (idem:4). Registramos que essa previsão significaria cerca de 150 empregos indiretos por emprego direto criado.

Em outro documento, a Secretaria de Desenvolvimento afirma que o estado "não se pode alhear deste processo, sob pena de, criminosamente, desperdiçar o que é a melhor oportunidade ofertada à economia rio-grandense de otimizar seu enorme potencial com relação ao setor". Porém, como todo esse processo acontece "em um ambiente de acuradíssima disputa e concorrência entre as diferentes unidades da Federação", haveria necessidade de se oferecer ao "investidor potencial incentivos poderosos, capazes não apenas de superar as ofertas dos concorrentes, mas de compensar a desvantagem estrutural que a localização no extremo meridional do país traz ao Rio Grande do Sul nesta competição" (Governo do RS, 1997:2).

Desse ponto de vista, torna-se óbvio que nem municípios nem estados podem se dar o direito de evitar esse tipo de competição, já que isto poderia implicar a perda da batalha pelo desenvolvimento e o encolhimento irremediável de todo potencial de progresso.

Na verdade, a passividade do governo federal em relação ao balizamento das políticas industriais estaduais permitiu que a maioria dos governadores se envolvesse na guerra fiscal, defendida como recurso disponível para a atração de novas fábricas, e eficiente para a diminuição de desigualdades seculares. Mas entram na disputa sem definir a contraparte das empresas e tampouco os custos e o retorno para o setor público; sem estabelecer relações de reciprocidade; sem indicar os meios de controle sobre os planos apresentados; sem se preocupar com a prestação de contas à população; sem se perguntar pelos direitos do estado e das cidades.

De modo geral, pouco ou quase nada desses temas esteve presente nas declarações oficiais. Invariavelmente, a disputa tem servido como barreira para esconder a ausência de informações precisas e de negociações transparentes. De fato, ainda que pretextando modernidade, os governantes mais entusiasmados com a guerra fiscal continuam usando e abusando do velho estilo centralizador e autoritário que marcou a nossa state-led tradition: decidem com seu staff o certo e o errado para as comunidades e apontam os caminhos do desenvolvimento econômico e social.

Os governadores parecem travestidos de poder e soberania, desse modo, estão mais que enredados nas malhas das empresas, que estabelecem a competição de modo a conseguir a oferta mais adequada aos seus interesses. Definem, de fato, a pauta dos poderes públicos. Assim, só aparentemente os governadores detêm a iniciativa da disputa. Na verdade, além de pagarem mais pelos investimentos, acirram os conflitos com seus pares e perdem as prerrogativas de planejador, cujo poder real é deslocado para o setor privado.

É dessa forma que estados e municípios acabam colhendo, em grande parte, a desordem que plantaram, mesmo quando ganham em termos de crescimento econômico e arrecadação. A realidade dos "campos de batalha" pode ajudar-nos a explicar esse aparente paradoxo.

Tomarei como ponto de partida o município de Resende (no Rio de Janeiro), que assinou o primeiro contrato com uma montadora em meados dos anos 90. Depois, passarei por Indaiatuba e Sumaré (em São Paulo), onde as japonesas Toyota e Honda instalaram modestas montadoras, praticamente em processo CKD ¾ trata-se de um processo que se limita à montagem do veículo ¾ , ainda na fase inicial da disputa. Farei um pit stop em São José dos Pinhais (no Paraná), que inaugurou a fase madura e profissional da disputa, até chegar ao Rio Grande do Sul, na Gravataí da GM. Em todas essas cidades, as visões de prefeitos, secretários e assessores mostraram-se otimistas quanto ao futuro de suas economias. Revelaram, porém, acentuada desorientação quando o tema eram as relações com as montadoras, com o governo do estado, com os municípios vizinhos e com sua própria comunidade.

Resende, no Rio de Janeiro, competiu com entusiasmo para a instalação em seu território da única fábrica de caminhões da Volkswagen no país e no mundo. Venceu a disputa, mas hoje se ressente dos modestos resultados alcançados. Durante as negociações, o governador do estado anunciou que a fábrica da VW permitiria um acréscimo de R$ 2 bilhões/ano no PIB estadual e criaria cerca de 20 mil postos de trabalho indiretos. A renúncia fiscal de R$ 370 milhões estimada na época pelo governo seria mais do que compensadora (Quadro 1).


Inaugurada em novembro de 1996, a fábrica da VW apresentaria um processo inovador de produção, chamado Consórcio Modular, baseado na montagem dos veículos diretamente pelos fornecedores no interior da montadora. Esse sistema de produção foi um dos pioneiros na tendência à modularização da produção de autoveículos que se vem consolidando internacionalmente. Suas características, entretanto, permitem o otimismo dos governantes no que se refere à geração de empregos e ao crescimento industrial. Isto porque: (i) sua estrutura faz a fábrica parecer-se mais com uma agregadora de peças e conjuntos do que uma unidade industrial de transformação; (ii) é econômica em mão-de-obra; (iii) seu padrão salarial acompanha o da região de Resende, mostrando-se em média cerca de 60% mais baixo do que o do ABC paulista; (iv) dos parceiros da VW, responsáveis pelos módulos, somente dois em sete são de capital nacional10 10 . Iochpe-Maxion (chassis) e Delga (estamparia e armação). ; (v) os fornecedores no interior da fábrica não recolhem os impostos municipais sobre os serviços que executam, pois estão classificados pela VW na rubrica "custo operacional"11 11 . O prefeito de Resende, Eduardo Mehoas (do Partido Socialista Brasileiro ¾ PSB), ameaça recorrer à Justiça para conseguir esse pagamento. ; (vi) a maior parte das peças utilizadas vem de fornecedores de fora do Rio de Janeiro12 12 . A "importação de peças" de outros estados diminui em muito o efeito multiplicador da fábrica na economia da região. Esta é uma questão presente na maioria das novas plantas já instaladas ou em processo de instalação no país. .

Resende é cidade vizinha de Porto Real, município recentemente emancipado que foi escolhido pela Peugeot (do grupo francês PSA) como o local de sua primeira fábrica no Brasil. Segundo o prefeito de Resende Sérgio Bernardelli, "os políticos exageraram para promover a vinda da Volks", e chegaram a "falar na criação de 30 mil empregos" (Entrevista com Sérgio Bernardelli, setembro de 1998). Na época da inauguração da fábrica, em 1996, a VW previa a criação de 1.500 empregos diretos; atualmente, dos 1.542 trabalhadores que trabalham na fábrica da VW de Resende, cerca de 400 são da VW.

Embora Bernardelli faça um balanço positivo da instalação da VW – já que "estariam aparecendo os primeiros sinais de modernização" –, lamenta o enorme aumento dos gastos públicos com problemas até então inexistentes como, por exemplo, as "invasões de terrenos por pessoas que migraram para cá pensando em conseguir um emprego" (idem).

Constata-se hoje que o poder público minimizou o previsível surgimento de novos problemas sociais. Do ponto de vista da economia, o quadro otimista desenhado também se oferece a decepções, embora diretores da montadora já emitissem na época opiniões diferentes dos anúncios oficiais. Hoje, o diretor da divisão de caminhões da VW, Roberto Barreti, reconhece que a empresa não trabalhava com um "volume de produção que justificasse grande deslocamento de fornecedores" para a região (Estado de S. Paulo, 27/9/1999, p. H3). Esse tipo de consideração, porém, está bem distante do conteúdo do acordo assinado em 1995 entre a empresa, o Estado do Rio de Janeiro e o município de Resende (Quadro 1), que gerou expectativas exageradas sobre a criação de empregos e as reais possibilidades de adensamento industrial.

A inexistência de garantias de retorno para esse tipo de investimento público é sinalizadora da superficialidade da negociação realizada, cuja responsabilidade maior recai sobre o staff técnico e político do governo do Estado do Rio de Janeiro.

Em Indaiatuba (SP), o atual prefeito, Reinaldo Nogueira, que assumiu em 1997, receberia como herança os compromissos já negociados com a Toyota. No entanto, por conter propostas "incompatíveis com as finanças da prefeitura", a Carta de Intenções foi rediscutida e readequada. Segundo o secretário de Fazenda, enfatizando a localização privilegiada do município, a história de Indaiatuba parecia se "dividir em antes e depois da Toyota", uma vez que haveria grande retorno financeiro com a ampliação da cota-parte do ICMS. No entanto, "esse movimento ainda não aconteceu". O mesmo pode-se dizer dos fornecedores, que "tendem a se aproximar da cidade", ainda que, até o momento, "nenhum novo fornecedor tenha se instalado a partir da Toyota". E quando o assunto foi o emprego, o secretário sugeriu que "o número esperado ainda não se realizou" (a Toyota conta hoje com apenas 268 funcionários) (Entrevista com Valfrido Carotti, secretário da Fazenda de Indaiatuba, 21/7/1999).

A Prefeitura de Indaiatuba doou o terreno para a instalação de equipamentos de recepção de energia e isentou a Toyota do IPTU e dos demais impostos e taxas municipais por dez anos. "Temos um relacionamento sem traumas com a Toyota", diz o secretário, "ainda que os benefícios esperados ainda não tenham chegado e a montadora esteja pedindo a doação de mais 250 mil m2 para sua área de logística". Outro assessor especial da prefeitura procura discutir o reordenamento produtivo da cidade de um modo mais explícito: "O que temos hoje não é bem uma fábrica, mas um laboratório. Isso pode mudar quando a Toyota produzir 200 mil carros populares" (Entrevista com Evandro Magnusson, assessor de Indústria e Comércio de Indaiatuba, 21/7/1999). Mas esse é um plano para o futuro, fora do alcance do município, que possui hoje um "bom mix de novas indústrias, como laboratórios e editoras, e nenhuma destas relacionada com a Toyota". E se a montadora decidisse transferir suas atividades para outra região, atraída por incentivos fiscais maiores? A resposta ilustra o ambiente de incerteza em que se movem as prefeituras e seus técnicos: "se hoje a Toyota fosse embora nós teríamos vivido a ilusão do que teria sido o desenvolvimento de Indaiatuba com ela" (idem). Apenas para registro, na companhia do otimismo, os verbos sempre caminham no condicional.

Sumaré (SP) também viveria uma alteração no comando político da prefeitura em 199713 13 . O atual prefeito, Antonio Dirceu Dalben, é do Partido Popular Socialista ¾ PPS. O vice-prefeito, José Antonio Bacchim, é do Partido dos Trabalhadores ¾ PT. . O protocolo assinado pela gestão anterior previa que o município "reembolsaria à Honda o valor atualizado de um terreno comprado em 1994. A montadora pediu alterações na lei municipal de incentivos, quando o presidente da República esteve no Japão. Muitas dessas alterações foram feitas. Mas o resultado hoje é que a lei só está voltada para as grandes empresas que, de fato, geram pouco emprego"14 14 . Todas as citações referentes a Sumaré foram extraídas das entrevistas de José Antonio Bacchim (vice-prefeito) e Álvaro Silveira (coordenador do Serviço de Apoio à Indústria e Comércio ¾ SAIC). . Apesar de a fábrica ter entrado em operação há quase dois anos, a prefeitura não ressarciu a Honda15 15 . "72 alqueires às margens da Rodovia Anhanguera a, pelo menos, R$ 30,00 o m2, daria algo em torno de R$ 50 milhões", segundo estimativas dos entrevistados. Levantamento informal realizado entre corretores da região indicou um valor diferente, em torno de R$ 10 milhões. como prescrevia o protocolo, e também não doou o terreno de 800 mil/1 milhão de m2 para a construção do campo de provas. "A Honda não gostou", disse o vice-prefeito, mas "os recursos do estado não vieram".

Enfatizando os riscos que a guerra fiscal estaria colocando para os municípios, o vice-prefeito comentou: "quando a empresa vai começar a pagar mesmo os impostos, ela muda de lugar. Dá até para olhar a IBM, antes em Sumaré, hoje em Hortolândia16 16 . Hortolândia nasceu de uma divisão administrativa de Sumaré. . Na época ela ganhou terreno e incentivos". Segundo ele, um estudo da Universidade de Campinas ¾ Unicamp mostrou que "as indústrias de Sumaré pegam a mão-de-obra especializada fora da cidade, na região. E os nossos jovens vão servir de mão-de-obra barata para o comércio em outras cidades".

Passado mais de um ano do acordo de Resende, um novo contrato, muito mais generoso para a indústria automotiva, seria assinado agora no Estado do Paraná, onde a cidade de São José dos Pinhais receberia a Renault, a Chrysler e a Audi/Volkswagen (Quadro 2).


Os primeiros resultados animam as autoridades, pois a cidade praticamente já dobrou sua participação no PIB do estado depois que as montadoras começaram a operar. Ainda é muito cedo, porém, para uma avaliação consistente dos impactos locais, ainda que os primeiros sinais estejam sugerindo que o Paraná tende a se constituir efetivamente em um novo pólo automotivo.

Nesse percurso, entretanto, interessa-me registrar a inédita dimensão do acordo assinado. As negociações com a Renault marcaram um ponto de inflexão na guerra fiscal, resultando em uma elevação substantiva do volume de recursos disponibilizados pelo setor público. Com suas ofertas, o governo do Paraná derrotou vários estados concorrentes, inovando, do ponto de vista da disputa, com a decisão de associar-se à montadora, responsabilizando-se por 40% do total dos investimentos. Desde os acordos com a Fiat, nos anos 70, nenhum governo estadual havia assumido a responsabilidade por uma parte substantiva de um empreendimento na indústria automotiva como o Paraná agora faz.

A Prefeitura de São José dos Pinhais concedeu isenção do IPTU, ISS e outras taxas municipais por dez anos, além da doação do terreno onde se instalou a Renault. O secretário de Indústria, Comércio e Turismo, Edilberto Valaski enfatiza que "as isenções são modestas, considerando-se o retorno". Para dar sustentação ao seu ponto de vista, apresenta o aumento do número de empresas cadastradas no município, que passou de 555 (1996) para 866 (1998). O PIB municipal, que estava em R$ 1 bilhão em 1997, teve um acréscimo de 30% em 1998 e poderá chegar a R$ 3 bilhões no ano 2000, segundo cálculos da prefeitura. Mesmo com os gastos sociais, sobretudo com saúde, educação e habitação, crescendo na mesma proporção do PIB, as autoridades locais mantêm uma visão extremamente positiva do investimento.

Resende celebrou seu acordo na primeira "infância" da guerra fiscal. Na sua esteira, os lances do leilão amadureceram, diversificaram-se e se tornaram mais robustos. O contrato da Renault elevaria qualitativamente o padrão das ofertas, deixando claro que a guerra fiscal atingira a maioridade. Consultores especializados e equipes executivas com dedicação integral passaram a fazer parte do arsenal dos estados, que agora se desdobravam para avançar ofertas mais diferenciadas.

As ofertas inovadoras que o Paraná fez à Renault, consideradas na época como insuperáveis17 17 . Dois ex-secretários de estados concorrentes afirmaram que a proposta do Paraná à Renault era imbatível. , seriam batidas pouco tempo depois pelas do Rio Grande do Sul, que atrairia a GM repassando R$ 253 milhões à montadora, a título de empréstimo, a serem pagos em dez anos, com cinco de carência e 6% de juros/ano, sem correção monetária18 18 . A profissionalização da guerra fiscal abriria espaço na competição para os estados mais ricos, da região Sudeste. O Nordeste, Norte e Centro-Oeste só conseguiriam se recolocar na disputa com a ajuda do governo federal, através do Regime Automotivo Especial, aprovado pelo Congresso Nacional sob forte pressão da bancada regional, em 1996. Foi com uma nova edição desse Regime que a Bahia tiraria a Ford do Rio Grande do Sul, em abril deste ano, oferecendo, além dos incentivos estaduais e municipais, cerca de R$ 180 milhões/ano (durante dez anos) em isenções federais. . Esse empréstimo foi liberado em março de 1997, na assinatura do contrato de financiamento da fábrica, que até hoje não iniciou suas operações19 19 . As condições e o volume do empréstimo geraram forte polêmica no Estado do Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo que definiria a vitória do estado na atração da GM, membros do governo anterior sugerem que essa operação foi um dos principais motivos da derrota que o governador Antonio Britto sofreu na sua tentativa de reeleição, no final de 1998. . O affaire Ford deu início a uma verdadeira campanha do novo governo do Rio Grande do Sul (eleito no final de 1998) contra a guerra fiscal, que dificultou – mas não impediu – a rediscussão dos contratos anteriormente assinados com a GM20 20 . O governador eleito, Olívio Dutra, é do PT. .

A Prefeitura de Gravataí, que receberia a GM na fase adulta da guerra fiscal, esteve à margem das negociações entabuladas entre o governo do estado e a montadora. O prefeito da cidade, Daniel Bordignon21 21 . Filiado ao PT. , falou sobre a disputa entre os municípios: "após a escolha do estado, sabíamos que três municípios da Grande Porto Alegre competiam entre si: Gravataí, Guaíba e Eldorado. E nós seríamos escolhidos pela GM"22 22 . As citações a seguir foram extraídas da entrevista de Daniel Bordignon (PT), prefeito de Gravataí. . A montadora fez uma "espécie de leilão entre as cidades" e nós ganhamos, oferecendo "30 anos de isenção do IPTU"23 23 . Os lances começaram em quinze anos, atingiram 27 anos com o lance de Guaíba e depois trinta, com Gravataí. . O prefeito realçou a localização da cidade procurando minimizar as isenções, deixando claro que apesar do "mau negócio financeiro, a GM vai ajudar a economia do estado. Aqui em Gravataí, a nossa cota-parte deve aumentar em R$ 10 milhões/ano, ou seja, cerca de 50% do ICMS atual. Todos os recursos para investimentos públicos em 1998 não chegaram a R$ 4 milhões". O prefeito enfatizou que vai precisar desses recursos para enfrentar as novas demandas da cidade. O problema, diz ele, é que "não há instituições novas. A discussão com a GM e com os sistemistas é feita por pessoas, sem câmaras ou mecanismos formais. E como não estávamos preparados para dar conta dessa nova situação, vamos precisar construí-las". Apesar das experiências inovadoras desenvolvidas pelos governos do PT em Porto Alegre, ainda não há sinais de uma articulação metropolitana voltada para o equacionamento dos problemas comuns que afetam a região.

Essa questão institucional é chave. Mas para o seu equacionamento é preciso deixar de lado as mistificações do discurso político pois, de fato, não há evidências práticas de que a participação na guerra fiscal trará os benefícios apresentados nos documentos, nas justificativas e nas expectativas dos governos envolvidos no processo. Pelo contrário, há indicações nos acordos que contradizem as previsões sobre os efeitos multiplicadores das novas plantas automotivas.

Em primeiro lugar, é certo que haverá impacto sobre a geração de empregos diretos, e provavelmente as novas plantas tenderão a elevar a baixa produtividade da indústria automobilística brasileira. Mas esses processos, normalmente, implicam redução e não-ampliação do emprego direto, pois o aumento de produtividade é muito mais resultante da utilização de novas tecnologias e de estruturas organizacionais mais avançadas do que da expansão do emprego, tendência particularmente visível no setor automotivo, cujas novas plantas são muito econômicas em força de trabalho.

Também é frágil o argumento disseminado sobre a geração de tecnologias e avanços técnicos a serem possibilitados pelas novas fábricas. A maioria delas foi concebida para operar como montadora, exatamente de modo a evitar os altos custos de P&D. Certamente, o desenvolvimento de novas tecnologias ocorrerá em outras regiões do mundo para, então, serem aplicadas ao Brasil. Restaria alguma esperança na adaptação e desenvolvimento de novos modelos. No entanto, a maioria dos protocolos inclui apenas referências genéricas ao desenvolvimento de instalações de P&D e considerações vagas sobre a cooperação entre as montadoras e os centros brasileiros de pesquisa.

Menos provável ainda é o impacto das novas plantas sobre a geração de empregos indiretos. Em contraste com as análises claramente otimistas utilizadas pelos governos estaduais, várias das cláusulas incluídas nos acordos atuam na direção oposta, não apenas deixando de criar grande quantidade de empregos indiretos, mas também destruindo alguns existentes. A construção de acessos rodoviários e ferroviários às plantas, assim como de canais e terminais portuários privados (como no caso do RS), busca facilitar o transporte de veículos para outras regiões, para a América do Sul e para o mundo. Porém, ao facilitar as exportações simplifica também a importação de peças e autos, já beneficiados por isenções tarifárias. A tendência é que essas estruturas atuem contra a emergência de fornecedores locais, aumentando as dificuldades da já agonizante indústria brasileira de autopeça. (Nessa hipótese, o impacto significativo deverá se dar nas regiões industriais mais densas, como a Grande São Paulo, por exemplo.)

Considerando-se esses fatores, levando-se em conta que os incentivos públicos estão financiando a maior parte dos investimentos supostamente privados, em uma situação em que o Brasil já havia sido escolhido como o local mais adequado para os novos empreendimentos, é possível trabalhar com a hipótese que caracteriza a guerra fiscal, pelo seu conteúdo, como um enorme desperdício para todo o país, mais que uma disputa de soma zero entre estados e municípios.

CONTRATOS DESEQUILIBRADOS

Embora as negociações entre as montadoras e os estados tenham assumido formas distintas, os acordos analisados24 24 . Para este trabalho foram utilizados os seguintes protocolos de intenção assinados entre: o Paraná e a Renault; o Paraná e a Chrysler; entre Minas Gerais e a Mercedes-Benz; Rio Grande do Sul e GM; Rio Grande do Sul e Ford; Rio de Janeiro e VW. apresentam-se como variações em torno de um mesmo tema. Em contrapartida ao estabelecimento de uma nova planta automotiva em seu território, os estados e os municípios oferecem uma série de incentivos que incluem, invariavelmente, os seguintes pontos:

• doação de terrenos para a instalação da planta ou, no mínimo, de grande parte dela;

• fornecimento da infra-estrutura necessária para a preparação da área. Isso inclui, em geral, a infra-estrutura viária e logística, mas abrange também, em vários casos, ligações ferroviárias e o desenvolvimento de terminais portuários;

• isenção de impostos estaduais e locais por períodos não inferiores a dez anos. O mesmo vale para as taxas locais. Em alguns casos, o acordo inclui a isenção de impostos na importação de peças;

• concessão de empréstimos pelo estado (através de órgãos ou bancos estatais) a taxas muito inferiores às do mercado25 25 . Na maioria dos acordos, o crédito fornecido às empresas é pago em moeda local, enquanto o débito do estado tende a ser garantido em dólar. ;

• criação de uma série de cauções e garantias estatais, financeiras e legais;

• concessão de uma série de benefícios adicionais, que variam de acordo para acordo, envolvendo de fornecimento de transporte público aos trabalhadores e creches para seus filhos a diversas medidas ambientais (Rodríguez-Pose e Arbix, 1999).

Para complicar, a sofisticação dos instrumentos utilizados nos contratos faz do seu estudo uma espécie de maratona conceitual, tamanha a quantidade de leis, regras, decretos, instituições, fundos e agências ligados às operações. Abaixo os principais instrumentos utilizados:

• gastos diretos ¾ são os benefícios que envolvem dispêndio direto de recursos públicos estaduais e/ou municipais (obras, serviços de infra-estrutura, instalações produtivas, assim como terrenos doados). Em alguns casos, as obras são de interesse social; em outros, de interesse exclusivo da empresa (p. ex., um terreno doado); em outros ainda, os gastos realizam-se em função da empresa, embora sejam também de interesse social. Essas situações intermediárias dificultam a avaliação específica do custo do benefício. Neste item estão incluídos também os auxílios financeiros, como os repasses de capital (i) a título de crédito subsidiado para capital fixo e de giro, ou (ii) a título de participação acionária;

• operações de diferimento do ICMS ¾ viabilizam a devolução total ou parcial do ICMS gerado pela empresa. Envolvem fundos fiscais existentes ou especialmente criados para uma dada situação. É também uma ajuda financeira, só que não exige disponibilidade fiscal, pois mediante uma triangulação, o imposto recolhido retorna à empresa, sem comprometer recursos públicos. Dessas operações financeiras derivam os principais atrativos da guerra fiscal sustentada pelos estados;

• renúncia fiscal ¾ toda a isenção explícita de impostos, em geral referentes aos municípios, como o IPTU e o ISS;

• garantias ¾ aqui se incluem as cauções e fianças bancárias e demais garantias dos benefícios contratados. São exigidas como prevenção diante de alterações políticas ou de legislação.

Esses instrumentos indicam que as principais operações (como o diferimento do ICMS) não lidam com isenções fiscais, mas comprometem parte da receita futura a partir de um jogo contábil e financeiro.

Análise dos contratos revela que, dependendo do poder de barganha de cada empresa e dos recursos de cada estado, as condições finais podem variar, mas os termos dos protocolos favorecem inevitavelmente as montadoras.

Mesmo sem contar com dados efetivos do impacto sobre o desenvolvimento local e estadual, uma vez que, em sua grande maioria, as novas plantas ainda não começaram a operar, é possível constatar lacunas enormes nos protocolos e contratos assinados, principalmente nas cláusulas de defesa do interesse público. Tudo se passa como se os empreendimentos, em si mesmos, concentrassem todos os objetivos e fizessem cessar as responsabilidades do poder público.

Na verdade, a instalação de empreendimentos do porte das montadoras não encerra o processo de desenvolvimento, mas abre um ciclo que requer a intervenção intensa do poder público, seja para acompanhar o cumprimento dos objetivos, seja para otimizar o investimento e fazê-lo reverter, da melhor maneira possível, em capacitação tecnológica, estímulo às exportações, qualificação de fornecedores e trabalhadores, em aprendizado organizacional e melhoria da qualidade de vida. O despreparo do setor público nessas negociações foi responsável pela atitude, quase sempre passiva no processo posterior à escolha, de aceitação dos projetos e propostas das empresas26 26 . É assim que podemos entender o poder de barganha de algumas companhias, como a Detroit Diesel (DDMB, então vinculada à Chrysler), por exemplo, que conseguiria extrair condições extremamente vantajosas do Estado do Paraná, ainda que o investimento anunciado fosse modesto e estivesse em torno de US$ 25 milhões. .

NOVA (E AINDA INDEFINIDA) ATUAÇÃO DOS GOVERNOS SUBNACIONAIS

A dificuldade de estados e prefeituras para estabelecer relações de reciprocidade com o setor privado, demonstrando recorrente incapacidade de definir direitos e deveres de modo equilibrado, recoloca com força o debate sobre a profunda disfunção dos processos político e institucional brasileiros.

A guerra fiscal apenas amplifica essa disfunção, pois se alimenta da indefinição dos novos papéis atribuídos aos governos subnacionais na elaboração e implementação de políticas de desenvolvimento, que estiveram concentradas no governo federal desde os anos 30. A corrosão do aparato de intervenção do Estado nacional-desenvolvimentista provocou o distanciamento do governo federal das políticas industriais sistemáticas, informalmente transferidas aos governos subnacionais.

O problema de fundo é que a contrapartida atual dos estados à desmontagem da rede institucional erguida a partir do pós-guerra, que articulava interesses de grupos regionais, setores econômicos e agentes econômicos nacionais e estrangeiros (através de ministérios, fundos públicos de desenvolvimento, superintendências e empresas estatais), é extremamente incipiente, quando não inexistente. Sem o provimento de instituições capazes de irrigar o diálogo com a sociedade civil e os distintos grupos de interesse privados, a guerra fiscal assume, preponderantemente, um caráter predatório.

Para além das fricções políticas e econômicas entre os estados, uma outra resultante desse processo aponta para a perda da capacidade de planejamento e de controle efetivo dos poderes públicos sobre as estratégias de desenvolvimento. Em lugar do Estado central, que investia e produzia diretamente por intermédio de suas empresas e autarquias – o que realçava o papel dos staffs públicos de elaboração e implementação de políticas –, surgem agora governos estaduais e municipais que, orientados por essa disputa, acabam por subordinar suas políticas de desenvolvimento às estratégias privadas, comportando-se muitas vezes como avalistas e porta-vozes desses interesses, a priori identificados ao interesse público. Como corolário, nos governos subnacionais que mais se comprometeram com essa guerra, as negociações entre o setor público e os grupos privados são realizadas a portas fechadas e anunciadas – quando o são – somente quando os acordos já foram, de fato, celebrados.

É com esse espírito que se deu nos anos 90 uma intensa disseminação de políticas de atração de novas empresas, que têm envolvido os municípios de modo avassalador. Praticamente todo e qualquer município que tem a pretensão de desenvolver sua indústria possui uma legislação especial27 27 . Todos os 47 pólos industriais do Estado de São Paulo contam com regras e leis especiais para atrair investimentos. Isto em um estado que, teoricamente, não pratica a guerra fiscal. que permite aos seus governantes a multiplicação de atrativos, para além da sua localização geopolítica, como isenção do IPTU, de ISS e redução do Imposto sobre Transmissão Intervivos de Bens Imóveis ¾ ITBI, doação de terrenos e realização de obras de infra-estrutura.

Embora correntes, essas práticas vêm sendo questionadas até pelo empresariado, supostamente seus maiores beneficiários. Como destacam Mendonça e Pinho (1997:28), empresários e administradores públicos entrevistados expressaram forte preocupação com essas políticas, de modo que "as combalidas receitas da Prefeitura não sejam direcionadas para setores ou empresas específicas, mas que sejam canalizadas para a solução dos graves problemas sociais (segurança, saúde, habitação, educação e saneamento básico), melhorando inclusive a competitividade sistêmica do município frente aos demais locais".

De modo geral, o interesse e a participação das empresas na definição de critérios para a gestão de políticas são muito incipientes. Quando ocorrem, se dão de forma não sistemática e voltados para interesses mais imediatos. Evidentemente, as prefeituras não primam pela agilidade na articulação de associações de empresários e de empresas. Além do despreparo técnico, há uma burocracia excessiva e escassez de recursos para investimentos. Essas características têm pesado no distanciamento que as grandes empresas do setor automotivo mantêm das iniciativas locais e regionais. Habituadas ao convívio fácil nos ministérios e governos estaduais, geralmente entendem as formas associativas locais como desprovidas de poder.

São muitas as iniciativas, porém, que procuram enfrentar as diferenças e se expor à discussão democrática tanto nos municípios quanto em regiões metropolitanas e centros industriais. Mendonça e Pinho (idem:31) identificaram "um grande espaço potencial para a participação das empresas privadas e lideranças empresariais no processo de definição de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento urbano e econômico de Campinas".

Participação mais intensa do que na região de Campinas vem se desenvolvendo no ABC, onde as discussões se têm voltado para a consolidação de uma estrutura produtiva mais ágil, preocupada com a definição de estímulos à demanda para aumento de escala, com a redução do custo de insumos, com a melhoria da logística, com a oferta de infra-estrutura adequada e com a melhoria da qualificação da mão-de-obra, envolvendo educação básica e treinamento. Dadas as características do ABC, os principais esforços foram direcionados para a preservação das empresas já instaladas na região.

Tendo em vista o desenho de longo prazo reservado pelo governo federal para essa nova atuação dos governos subnacionais – de fato, substitutos precários do Estado central – ganham destaque as estratégias de envolvimento democrático da sociedade civil realizadas pelos sete municípios do ABC paulista. A construção de uma identidade regional como condição para o reequacionamento e redefinição de políticas públicas coloca em um novo patamar o debate sobre os novos caminhos do desenvolvimento.

As oscilações do governo federal, no entanto, continuam a dificultar o balizamento público desse debate. Apenas a título de exemplo, se tomarmos como referência as declarações do presidente Fernando Henrique sobre uma eventual entrada de São Paulo na guerra fiscal, veremos que as ambigüidades do discurso expressam, de fato, a eleição da fragmentação das decisões como política oficial. Em janeiro deste ano, o presidente declarou que "não é possível assistir à pilhagem de setores industriais sem reação" (Folha de S. Paulo, 12/1/2000, p. 7). A crítica torna-se de difícil compreensão quando se sabe que a atual legislação tributária vem sendo sistematicamente rasgada a cada lance da guerra fiscal, pois, em geral, os governadores jogam com a redução das alíquotas ao arrepio da lei, à revelia do Conselho Nacional de Política Fazendária ¾ Confaz e acobertados pelo silêncio, até o momento, da Justiça Federal. Se introduzidas na discussão eventuais perdas de recursos públicos, a discussão assume nitidamente contornos extraordinários. A guerra fiscal "só tem causado uma competição em benefício de empresários, não em benefício do Fisco, do Tesouro ou da população" (idem:8) disse o presidente, enquanto tomava decisões para garantir a transferência da Ford do Rio Grande do Sul para a Bahia, ao custo de R$ 180 milhões por ano só de incentivos federais.

Assim, na mesma medida em que a Federação brasileira é cada vez mais vista como incapaz de redistribuir renda, emprego, de promover o desenvolvimento e o bem-estar, o governo central formula um jogo oral ambivalente, insinuando a naturalização das fortes tensões interestaduais. Na verdade, a ação desencontrada do governo federal toca nos alicerces de nossa sociedade, na medida em que dificulta a busca de equilíbrio entre cooperação e conflito na Federação brasileira. Esta, hoje, além de alimentar relações tais quais a de um caçador com sua presa, se sustenta em uma miragem institucional, pois nossa suposta autonomia federativa escancara seu caráter bastardo toda vez que os estados, inadimplentes, pedem que a União pague suas contas. Essa vem sendo a história resumida da guerra fiscal. Pode ser que a Federação sobreviva a essa ausência de política e de estratégia nacional. Mas não é certo que os resultados da atual pulverização e disputa predatória produzam um país menos desigual. Esta é, paradoxalmente, a grande justificativa da guerra fiscal.

ABC: ALTA DENSIDADE INSTITUCIONAL

A nova configuração da capacidade produtiva instalada na região do ABC vem colocando em questão os padrões de comportamento do setor público e da sociedade civil estabelecidos há décadas. Procurando se defender do declínio industrial, uma série de experiências de cooperação entre o setor público e o privado está fazendo do ABC um dos mais importantes laboratórios produtores de novas institucionalidades nos últimos vinte anos.

Contando com uma sociedade relativamente educada e organizada, a região sempre exibiu espírito de participação nos rumos das políticas nacional e regional. Temas gerais como a redemocratização do país freqüentam pronunciamentos de autoridades locais e de lideranças de trabalhadores e empresariais desde os anos 70. A disseminação de novos estilos de ação sindical e política esteve na raiz da experiência inovadora das câmaras setoriais da indústria no início dos anos 90. As coordenações e instâncias atuais, muito provavelmente, têm nessas experiências de cooperação e conflito uma fonte de inspiração.

Nascidos ao longo dos anos 90 para dar conta de problemas estruturais da região, esses arranjos públicos vêm envolvendo (diferenciadamente) governos locais, associações empresariais, segmentos industriais, imprensa regional, sindicatos de trabalhadores e grupos comunitários na busca da retomada do crescimento econômico, com qualidade de vida e geração de empregos.

As experiências pelas quais a região passou, proporcionaram a criação, em dezembro de 1990, do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC. Congregando os sete municípios da região, o Consórcio nasceu com o objetivo de encontrar saídas conjuntas para os problemas da região. Tinha como metas: i) repensar o conjunto dos municípios que o integram em matéria de interesse comum, perante quaisquer outras entidades de direito público e privado, nacional e internacional; ii) planejar, adotar e executar projetos, obras e outras ações destinados a promover a melhoria da infra-estrutura da região; iii) promover formas articuladas de planejamento do desenvolvimento regional. Todas essas ações tinham como base o desafio de transformar o modo tradicional de fazer política no plano local, bem como de desenvolver uma interlocução responsável com as demais esferas de governo e agentes sociais.

Em dezembro de 1991 é criado o Fórum de Desenvolvimento Econômico, com base municipal (Santo André), que, em conjunto com o Consórcio, viabilizaria a realização no final de 1992 de um seminário intitulado "Fórum ABC ano 2000", que enfatizou a necessidade de somar os mais diferentes esforços para revitalizar a economia da região.

Em 1993, os dois principais sindicatos de metalúrgicos unificar-se-iam em uma mesma entidade, agora chamada Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, reunindo a base trabalhadora de seis dos sete municípios da região28 28 . Apenas o Sindicato dos Metalúrgicos de São Caetano ficaria de fora dessa fusão. .

Em 1994, o movimento "Vote no Grande ABC", que procurou constituir e fortalecer uma bancada de deputados ligados à região, teria seu nome mudado para Fórum da Cidadania do Grande ABC, que nos dias de hoje reúne mais de cem entidades da sociedade civil, coordenadas por um representante do Sindicato dos Químicos do ABC.

Em 1995, o governo do Estado de São Paulo, através da Secretaria de Ciência e Tecnologia, avançou proposta de criação de uma Câmara do Grande ABC. A eleição de sete novos prefeitos (1996) comprometidos com a ação regional contribuiria de modo decisivo para a efetivação da nova Câmara. Uma ação conjunta da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado, do Fórum da Cidadania e dos sete novos prefeitos da região resultaria na constituição da Câmara Regional do Grande ABC, cujo lançamento em São Bernardo, em março de 1997, contou com a presença do governador do estado e das mais expressivas lideranças locais.

Presidida pelo governador do Estado de São Paulo, a coordenação regional da Câmara é constituída a partir de um revezamento anual entre os prefeitos. Além dessas autoridades públicas, têm assento na coordenação secretários de estado, deputados estaduais e federais da região, os sete presidentes das Câmaras de Vereadores, cinco representantes empresariais, cinco sindicais e cinco do Fórum da Cidadania.

No final de 1998 é criada a Agência de Desenvolvimento Econômico ¾ ADE, entidade com vida legal, voltada para o planejamento estratégico regional. Fazem parte dela as empresas do pólo petroquímico, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas ¾ Sebrae, centro regional de indústrias, sete associações comerciais e sindicatos da Central Única dos Trabalhadores ¾ CUT. O atual diretor-geral da Agência é o prefeito Celso Daniel (Santo André) que coordena a elaboração de um plano de ação regional.

Dessas entidades, quem comanda as discussões, a elaboração de políticas e a implementação de decisões é a Câmara Regional. Sem dúvida, é o mecanismo agregador de interesses e definidor de linhas estratégicas mais importante da região. Sua orientação primeira:

"[...] consiste em considerar que diferentes agentes, sem abrir mão de seus interesses ou, mais propriamente, partindo destes e de suas visões específicas sobre a realidade, sensibilizados por uma situação que pode afetá-los negativamente, sejam capazes de discutir, elaborar e colocar em prática ações coletivas baseadas na cooperação mútua" (Daniel e Somekh, s/d:7-8).

Dessa perspectiva, a Câmara Regional recolocou a questão da construção de um espaço público capaz de operar diferentes interesses. Seu funcionamento, assim, se dá a partir de padrões democráticos de convivência, a começar pelo caráter inclusivo dos sindicatos de trabalhadores. Como afirmam os autores citados,

"[...] o modelo de gestão da Câmara do Grande ABC supera o planejamento metropolitano elaborado de forma centralizada e nos gabinetes porque envolve os agentes locais num processo de democracia participativa, contando com um arranjo flexível, com forte articulação horizontal-vertical, que prevê o desenvolvimento sustentável com inclusão social" (idem:10).

Essa estrutura pública de tratamento de interesses diferenciados assume características que contrastam fortemente com a política desenvolvida pelo Estado de São Paulo e pelos próprios municípios do ABC nos últimos quarenta anos.

Desde que se tornou o estado industrial hegemônico, os esforços de São Paulo para atrair investimentos ou promover o desenvolvimento foram pouco mais que os inerciais, focalizados, em geral, nas dificuldades do trânsito e nos altos custos da força de trabalho. As políticas industriais e de desenvolvimento sempre carregou a marca da dilapidação promovida pela disputa política no estado economicamente mais poderoso do país. Não é à toa que desde meados dos anos 90, São Paulo não consegue elaborar nenhuma reação consistente à depreciação de seu parque produtivo e desconstrução de parte de seu patrimônio industrial consumadas pela guerra fiscal. Institucionalmente, o estado conta apenas com mecanismos subdesenvolvidos, incapazes de estabelecer discussões duradouras baseadas na confiança mútua entre os diversos agentes.

Por sua vez, a Câmara do ABC está desenhando um novo modo de elaborar e implantar políticas de desenvolvimento, "que pode servir de parâmetro institucional para se pensar uma política para toda a metrópole, na medida em que evolui do nível municipal para atingir um nível mais amplo" (Entrevista com Nadia Somekh, 11/9/1999, coordenadora da ADE). Um dos princípios da Câmara é que nenhuma política metropolitana pode provocar a "perda das identidades locais ou mesmo regionais". Por essa concepção, quanto maior for a percepção de isolamento de cada município ou setor produtivo, menor será o impacto das propostas de alcance regional. Inversamente, quanto mais a Câmara pautar seu desempenho pela integração dos diferentes agentes do desenvolvimento, quanto mais as prefeituras, os vários corpos legislativos, o governo estadual, as grandes, médias e pequenas empresas, as várias correntes do movimento sindical, ONGs e entidades da sociedade civil se reunirem para formular coletivamente suas propostas, maior será sua força e capacidade real de interferência na região e em cada cidade.

Essa combinação possível das várias dimensões da competição econômica, das diferentes lógicas que governam o mundo da política regional é que pode abrir caminho para o que Storper (1998:14-15) chama de "learning economy". Ou seja, as novas condições para a definição de políticas de desenvolvimento – em que os ajustes macroeconômicos precisam necessariamente ser completados – exigem uma articulação dos planos micro, meso e macro.

Os processos que facilitam o trânsito de conhecimento e o fluxo permanente entre velhos e novos sistemas produtivos constituem-se em catalisadores e emuladores do aprendizado. As empresas, comandadas exclusivamente por sua lógica interna, somente se dispõem a essa interação quando a relação custo-benefício se revela inequívoca para seus objetivos. No entanto, em situação de incerteza, podem se engajar em processos de ensino-aprendizagem, desde que encontrem ambientes institucionais favoráveis.

A "learning economy" começa precisamente a tomar forma quando uma rede de novas relações consegue se estabelecer, possibilitando a geração de novas competências e, ao mesmo tempo, o aperfeiçoamento das velhas. Sem essa interação organizada e regular, as alterações de qualidade na capacitação produtiva serão apenas homeopáticas. Ou, como sugere Storper:

"Learning requires coordination among a complex array of economic actors (firms, governments, labor markets, innovators) over time. Therefore, learning is a long process that can be achieved only through a distinct form of intervention, one that creates new informal rules, routines, and conventions between economic agents" (idem:5).

Essa abordagem está assentada em três pressupostos: (i) o processo de aprendizagem regional presume dimensões coletivas; (ii) o principal objetivo das políticas públicas é reunir os atores para o intercâmbio de conhecimentos; (iii) esse processo possui uma dinâmica temporal capaz de amadurecer as relações de confiança e o próprio aprendizado.

A Câmara do ABC começou a reunir os primeiros elementos desse novo processo. Se conseguir completá-lo, mais do que um mecanismo de governance regional, terá possibilitado um intercâmbio criador de novas competências, com impacto mais do que regional. É exatamente por essa dimensão que as experiências que se desenvolvem hoje no ABC podem descortinar novas possibilidades de se estruturar políticas de desenvolvimento sem o desperdício e o autoritarismo que marcam as disputas da guerra fiscal.

APROXIMAÇÕES E CONCLUSÕES

• Nossa hipótese é que o Estado brasileiro se encontra estratégica e institucionalmente despreparado para enfrentar os desafios do desenvolvimento industrial. Estrategicamente desorientado significa que as tênues políticas setoriais existentes obedecem mais à lógica da pressão de interesses do que à implementação de políticas capazes de garantir processos de aprendizado, de educação e de recapacitação tecnológica para a indústria do país. Institucionalmente despreparado quer dizer que os instrumentos de promoção e coordenação desse desenvolvimento ou foram fragilizados, com gradativa perda de capacidade de intervenção nos últimos anos, ou esvaziados, como no caso das Câmaras Setoriais da Indústria. Esse despreparo se espraia por todas as instâncias do governo, do âmbito federal ao municipal.

• O país não somente se encontra desprovido de estratégias globais de desenvolvimento como também não conta com instituições apropriadas para viabilizar esse trânsito para a sociedade e os setores produtivos. Essa articulação é tanto mais necessária quanto mais se aprofunda a crise do poder estruturante do Estado, que incide diretamente na sua capacidade de ouvir, elaborar e se organizar com a sociedade civil. Essa estratégia de concertação é condição hoje para a emergência de redes cooperativas, capazes de forjar novas políticas baseadas no aprendizado mútuo entre os seus participantes.

• O abandono apenas parcial da tradição nacional-desenvolvimentista é fonte geradora de políticas governamentais híbridas, que ora decidem centralizadamente os novos rumos do desenvolvimento, agora baseados na desregulamentação econômica, ora transferem diretamente para as grandes empresas, em especial as multinacionais, essa responsabilidade.

• Nesse quadro, a guerra fiscal apresenta-se como um complicador para as regiões e municípios. A disputa inter-regional por IDEs já direcionados para o Brasil provoca uma redução dos investimentos privados que passam a ser complementados com recursos públicos que, paradoxalmente, perdem prerrogativas sobre o seu planejamento.

• Contraditoriamente, a guerra fiscal acaba por provocar reações defensivas dos poderes públicos e de entidades da sociedade civil em várias regiões do país. Foi com essa compreensão que apresentei as experiências do ABC paulista e indiquei o questionamento da guerra fiscal que começou a se desenvolver no Rio Grande do Sul após a posse do novo governador no início deste ano. Em face da alternativa de "mais guerra fiscal", o ABC reagiu abrindo a discussão sobre a reconversão produtiva através de arranjos institucionais inclusivos. Diferentemente, na gestão anterior, o então governador do Rio Grande do Sul, Antonio Britto, reagiu à guerra fiscal com mais guerra fiscal. São exemplos de políticas diferenciadas, que permeiam a realidade brasileira e que acabam produzindo impactos distintos na capacidade industrial e na organização da sociedade.

• Como os municípios vêm participando desse jogo de ofertas? Podem ganhar investimentos e, pragmaticamente, sentir-se bem-sucedidos em sua política. Na maior parte das vezes, ganham também novos problemas, em especial os sociais, que, em geral, acabam se arrastando por anos a fio, disseminando uma idéia distorcida de progresso, como nas centenas de não-cidades que atrelaram seu futuro à industrialização desordenada. As cidades podem também ver enfraquecido seu poder de decisão sobre si mesmas e sobre as políticas regionais. Como as empresas trabalham sempre para ampliar os benefícios alcançáveis, as disputas quase sempre terminam em situações de custo fiscal máximo para o "vencedor". Ou seja, ainda que a competição se dê no terreno público, é controlada, em seus fundamentos, pelo setor privado.

• Os sinais emitidos por regiões e municípios em busca de uma nova política esbarram na baixa densidade institucional existente e na pequena participação do setor empresarial (das montadoras e autopeças), dos sindicatos de trabalhadores e de associações diversas da sociedade civil. Essa articulação horizontal solicita ao mesmo tempo uma articulação vertical, isto é, a participação dos governos do estado e do governo federal na recomposição regional precisa aumentar significativamente.

• Os esforços para promover um desenvolvimento endógeno chocam-se tanto com a precariedade da articulação institucional brasileira – expressão da fragilidade endêmica da democracia brasileira – quanto com os limites dados pela baixa capacidade de financiamento e instabilidade política da economia. Sem construir articulações com os governos do estado e com o governo federal, assim como entre os capitais existentes localmente, as regiões e os municípios exibirão um desempenho anêmico em se tratando de políticas de industrialização e desenvolvimento.

(Recebido para publicação em novembro de 1999)

(Versão definitiva em abril de 2000)

NOTAS

ABSTRACT

The Fiscal War and Intermunicipal Competition for New Investments in the Brazilian Auto Industry

The article discusses some of the new issues raised by the recent surge of foreign direct investments in Brazil, especially in the auto industry. Known as the fiscal war, or bidding war, competition over these investments derives from a decrease in private investments (based on decisions made at multinational corporate headquarters) and from an increase in public spending. Stimulated by the central government, this competition exacerbates the federative conflict and hampers the generation of regional development projects aimed at decreasing inequalities. The most visible signs of this dispute are the wasting of public resources, predatory fragmentation, and uncertainty about return on investments. Based on the emergence of institutional innovations, reactions to these policies have nevertheless proven important to the future of municipalities and states.

Keywords: fiscal war; foreign direct investment in the auto industry; regional development

RÉSUMÉ

Guerre Fiscale et Concurrence Intermunicipale en vue de Nouveaux Investissements dans le Secteur Automoteur Brésilien

Dans cet article on discute quelques problèmes posés depuis la récente vague des IDEs au Brésil, surtout dans le secteur automoteur. La lutte pour l’obtention de ces investissements, connue comme guerre fiscale, prend son origine dans la réduction des investissements privés – dont la décision est prise aux sièges des sociétés multinationales – ainsi que dans l’accroissement des dépenses publiques. Encouragée par le gouvernement central, la concurrence entre les États de la Fédération, plutôt que de permettre de déboucher sur des projets de développement régional destinés à atténuer les inégalités, attise les conflits entre ces États. Un gaspillage des ressources publiques, un morcellement dévastateur et une incertitude quant au succès des investissements sont les signes les plus apparents de ce conflit. Cependant, des réactions à cette politique, basées sur l’émergence d’innovations institutionnelles, exercent déjà leur influence sur l’avenir des municipalités et des États.

Mots-clé: Guerre fiscale; IDEs de l’industrie automoteur; développement régional

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  • WOOD, A. (1994), North-South Trade, Employment and Inequality: Changing Fortunes in a Skill Driven World Oxford, Clarendon Press.
  • 1
    . O instrumento-chave utilizado pelos estados nas disputas é o ICMS, imposto sobre valor agregado recolhido pelos estados, do qual os municípios recebem de volta apenas uma parcela.
  • 2
    . O conceito é polêmico mas, em geral, indica o gerenciamento direto sobre a atividade receptora de investimento. Diferencia-se dos empréstimos internacionais e dos investimentos em portfólio que envolvem compra de ações e títulos sem que o investidor exerça esse controle. De modo simplificado, pode-se relacionar o IDE às atividades produtivas e não aos investimentos financeiros e especulativos.
  • 3
    . Estimativas do BBV, realizadas em 1999, indicam que os fluxos de IDE para o Brasil foram de US$ 24 bilhões em 1998 e US$ 19 bilhões em 1999 (Carta Semanal, nº 12, julho de 1999).
  • 4
    . A Câmara Setorial da Indústria Automotiva (organismo tripartite que atuou intensamente entre os anos de 1992 e 1994) esboçaria algumas referências de política industrial, que acabariam por ser descartadas pelo governo Fernando Henrique, juntamente com a própria Câmara.
  • 5
    . Atual Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio ¾ MDIC.
  • 6
    . Diferentemente de outros estados, o Rio Grande do Sul, que já contava com mais de 200 empresas de autopeças e algumas montadoras especializadas (Marcopolo, Agrale, SLC e Randon), começa agora a completar sua cadeia produtiva com a chegada da GM e da Navistar.
  • 7
    . Cada hora trabalhada na Ford do ABC custa cerca de US$ 14. Na fábrica de motores da VW (interior de São Paulo) esse mesmo custo é de US$ 6,80. Na Fiat de Betim (Minas Gerais) o custo médio é de US$ 7,30 (Dados: Sindicato dos Metalúrgicos do ABC).
  • 8
    . Os estados que estão atraindo a maior quantidade de investimentos são relativamente desenvolvidos e estão longe de exibirem os menores salários do país.
  • 9
    . "Por Mais Empregos". Governo do Estado do Paraná, 1995.
  • 10
    . Iochpe-Maxion (chassis) e Delga (estamparia e armação).
  • 11
    . O prefeito de Resende, Eduardo Mehoas (do Partido Socialista Brasileiro ¾ PSB), ameaça recorrer à Justiça para conseguir esse pagamento.
  • 12
    . A "importação de peças" de outros estados diminui em muito o efeito multiplicador da fábrica na economia da região. Esta é uma questão presente na maioria das novas plantas já instaladas ou em processo de instalação no país.
  • 13
    . O atual prefeito, Antonio Dirceu Dalben, é do Partido Popular Socialista ¾ PPS. O vice-prefeito, José Antonio Bacchim, é do Partido dos Trabalhadores ¾ PT.
  • 14
    . Todas as citações referentes a Sumaré foram extraídas das entrevistas de José Antonio Bacchim (vice-prefeito) e Álvaro Silveira (coordenador do Serviço de Apoio à Indústria e Comércio ¾ SAIC).
  • 15
    . "72 alqueires às margens da Rodovia Anhanguera a, pelo menos, R$ 30,00 o m2, daria algo em torno de R$ 50 milhões", segundo estimativas dos entrevistados. Levantamento informal realizado entre corretores da região indicou um valor diferente, em torno de R$ 10 milhões.
  • 16
    . Hortolândia nasceu de uma divisão administrativa de Sumaré.
  • 17
    . Dois ex-secretários de estados concorrentes afirmaram que a proposta do Paraná à Renault era imbatível.
  • 18
    . A profissionalização da guerra fiscal abriria espaço na competição para os estados mais ricos, da região Sudeste. O Nordeste, Norte e Centro-Oeste só conseguiriam se recolocar na disputa com a ajuda do governo federal, através do Regime Automotivo Especial, aprovado pelo Congresso Nacional sob forte pressão da bancada regional, em 1996. Foi com uma nova edição desse Regime que a Bahia tiraria a Ford do Rio Grande do Sul, em abril deste ano, oferecendo, além dos incentivos estaduais e municipais, cerca de R$ 180 milhões/ano (durante dez anos) em isenções federais.
  • 19
    . As condições e o volume do empréstimo geraram forte polêmica no Estado do Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo que definiria a vitória do estado na atração da GM, membros do governo anterior sugerem que essa operação foi um dos principais motivos da derrota que o governador Antonio Britto sofreu na sua tentativa de reeleição, no final de 1998.
  • 20
    . O governador eleito, Olívio Dutra, é do PT.
  • 21
    . Filiado ao PT.
  • 22
    . As citações a seguir foram extraídas da entrevista de Daniel Bordignon (PT), prefeito de Gravataí.
  • 23
    . Os lances começaram em quinze anos, atingiram 27 anos com o lance de Guaíba e depois trinta, com Gravataí.
  • 24
    . Para este trabalho foram utilizados os seguintes protocolos de intenção assinados entre: o Paraná e a Renault; o Paraná e a Chrysler; entre Minas Gerais e a Mercedes-Benz; Rio Grande do Sul e GM; Rio Grande do Sul e Ford; Rio de Janeiro e VW.
  • 25
    . Na maioria dos acordos, o crédito fornecido às empresas é pago em moeda local, enquanto o débito do estado tende a ser garantido em dólar.
  • 26
    . É assim que podemos entender o poder de barganha de algumas companhias, como a Detroit Diesel (DDMB, então vinculada à Chrysler), por exemplo, que conseguiria extrair condições extremamente vantajosas do Estado do Paraná, ainda que o investimento anunciado fosse modesto e estivesse em torno de US$ 25 milhões.
  • 27
    . Todos os 47 pólos industriais do Estado de São Paulo contam com regras e leis especiais para atrair investimentos. Isto em um estado que, teoricamente, não pratica a guerra fiscal.
  • 28
    . Apenas o Sindicato dos Metalúrgicos de São Caetano ficaria de fora dessa fusão.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Ago 2000
    • Data do Fascículo
      2000

    Histórico

    • Aceito
      Abr 2000
    • Recebido
      Nov 1999
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