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Edmundo, seu texto, seu silêncio

Edmundo, seu Texto, seu Silêncio

Candido Mendes de Almeida

Edmundo Campos Coelho ao ir para o hospital mal arrumou a escrivaninha, deixado na gaveta o original do primeiro livro de contos. Já testara a entrega deste secretíssimo imaginário, passando a Wanderley o seu "Ao Mestre, com Carinho"* * "Crônica da Sociologia Assassinada ou ao Mestre, com Carinho". Insight/Inteligência, ano III, nº 11, out./dez., 2000. ** A Oficina do Diabo: Crise e Conflitos no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo/IUPERJ, 1987. *** As Profissões Imperiais: Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de Janeiro, 1822-1930. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 1999. . Na fortaleza do silêncio e no agreste de sua vida escondida – maior reserva de intimidade que já deparei – completara toda uma trajetória da cabeça. Ascese, a sua, do ofício desbordado do scholar, que encontrara nas ciências sociais o casulo.

É impossível reconstituir-se o mosaico desta aventura interior deixada ao olho implacável do próprio perfeccionismo. Os contos rematariam o despontar final de uma escrita, no sentido mais exigente, e tão para além dos desencargos da comunicação científica. Na gaveta rematava-se a rota da proeza de Edmundo a se centrar, afinal, como um universo, na própria mesa de trabalho, orbitada por uma trajetória mais ambiciosa de conhecimento e descoberta, exaurido o profissionalismo da investigação sociológica.

Largava as grandes pistas do sucesso óbvio, que só dependesse da busca de dados, já suntuária; do excesso das certezas, bem pavimentadas; das hipóteses jubiladas de estudo, e do preciosismo dos distingos sem risco. Foi de início à temática da violência justamente no que tinha de assombração à sua análise bem comportada. A Oficina do Diabo** * "Crônica da Sociologia Assassinada ou ao Mestre, com Carinho". Insight/Inteligência, ano III, nº 11, out./dez., 2000. ** A Oficina do Diabo: Crise e Conflitos no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo/IUPERJ, 1987. *** As Profissões Imperiais: Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de Janeiro, 1822-1930. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 1999. não é apenas o estudo, na plenitude, do microcosmo carcerário. Engasta-se no mesmo horizonte da arquitetura das seclusões, de Foucault; dos exílios, em suas distâncias internas, da Sociedade Complexa.

Venceu os enfoques da violência como tema-limite da dita organização coletiva, e da marginalidade que secrete, suscetíveis, ainda da excelência monográfica, no bom trato com que a nossa geração deu como tranqüilas as premissas do desenvolvimento ou da modernização, como fatos sociais totais. Tal a senda, tal o tiro, o difícil, e o deu Edmundo. Devemos-lhe – para o benefício do nosso IUPERJ – a mirada mais rica para buscar os temas-nervo, que fogem à vulgata dos estudos sobre processos ou estruturas coletivas.

Este mineiro atávico, mais que duro, resistente da mesma caverna de São Jerônimo sempre renunciou às satisfações do dixit sobre as nossas ciências sociais – como a dos mistérios gozosos na meditação crist㠖 que permitiriam, a meio diagnóstico, a meia retórica de todos os florilégios, discussões como a da ideologia, a do comportamento partidário no Brasil, ou dos aliancismos eleitorais. Edmundo desenhou, na sua exaustiva implicação de estrutura, o país corporativo num traço dificilmente emulável à força da incisão histórica e da armadura teórica. Mostrou-o o seu estudo sobre os militares em momento crítico das deformações fáceis que permitia, à época, a maré cheia do autoritarismo das Forças Armadas.

Volúpia, a do nosso professor, como a dos santos nas suas grutas, ou por sobre a coluna da solidão majestática, desfrutada como a possessão de uma "segunda natureza" do pensador, tão só para desfrute-e-escarmento de quem o faz, quase sem romper a placenta da ruminação. Não dava a conhecer a obra em curso; furtava-se das resenhas do que publicava; fugia, sem os sintomas de uma contravaidade, das noites de autógrafos ou das tertúlias sobre o que sabia e não deixava para ninguém crítica mais contundente que a da própria e perene insatisfação.

Nesse seu dar-se à obra, no veio de estudo do estamento brasileiro, completou As Profissões Imperiais*** * "Crônica da Sociologia Assassinada ou ao Mestre, com Carinho". Insight/Inteligência, ano III, nº 11, out./dez., 2000. ** A Oficina do Diabo: Crise e Conflitos no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo/IUPERJ, 1987. *** As Profissões Imperiais: Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de Janeiro, 1822-1930. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 1999. . Não se dissocia, no resultado, o definitivo da exposição, do entalhe do texto. Vai à frente da frase a orquestração da partitura, talvez sem que o percebesse o autor. E quem pôde, como Edmundo, juntando a ciência ao melhor dizer, melhor urdir em cenarística grega o enlace da profissão com a ribalta do espaço público imperial? Pode ritmá-la, na dramática interna, do pródomo a catástase. E passa a pé enxuto, da margem do discurso científico ao literário, na mesma temeridade criadora de Gilberto Freyre ou Sérgio Buarque de Holanda.

Deixando a obra à reclusão feroz, rigor no sono e na vigília, dominou, em maitrise absoluta os próximos passos. Tal como um sonâmbulo seguro, que repete acordado, à menor, o que já demarcou como rota. Não se permitiu o desfrute de As Profissões Imperiais, como nunca fez praça de A Oficina do Diabo, nem da riqueza de toda obra intermédia, como que sempre prisioneira do claustro da própria meditação.

Deixava às aulas, do dar-se do melhor da inquirição, o sulco do relevo verrumando o dado, ou da atualização do repertório de um conhecer, da melhor angústia criadora. Perseguia a nossa realidade esquiva, sua faena, seu idiomático, suas assincronias por sobre as eficácias do diagnóstico, ou da receita das totalizações, a que se vê quase condenada a sociologia do excesso da pesquisa, para a pobreza da verdadeira hermenêutica de nosso tempo.

O trunfo que fica, para a Casa, é o deste Edmundo áspero, todo o contrário das alegres companhias ou dos informalismos de confessionário. Repta a nossa ciência menina e sua solenidade defensiva: a dos conhecidos álibis do apelo direto – a esconder o campo magro do que estudam – às indulgências plenárias das multidisciplinaridades, ou do socorro urgente do status epistemológico do que afirma, ou da sobredeterminação que imobilize os seus enunciados.

As Profissões Imperiais excedem a demasia da inteligência e disciplina, a colocar o seu resultado na estante régia das proezas da cabeça brasileira. Edmundo prescindiu dos vestígios da faina, do caminho do ensaio e erro prévio; do trancamento das hipóteses malogradas; dos recomeços, sem concessão. O texto flui, à grande ensaística das interpretações, no traço largo de um Azevedo Amaral ou de um José Maria dos Santos. E a maitrise não castra a inspiração e o vôo do praticante in camera, das belles lettres.

Não conheço na produção atual das ciências sociais brasileiras quem mais tenha trabalhado o pensar à marca do texto. O cumprimento da façanha dava-lhe o direito de virar a página e explorar o imaginário que já cumprira a estiva do real. A doença feria-o, então. Mas quem o acompanhou sabe do quanto a purga interior e a cogitação já à obra levavam-no adiante, quase imune, na aventura dos seus silêncios do quarto de hospital, a soltar-se por inteiro das servidões da doença.

Encontrava um aconchego entre a dor e a espera, a máquina latente do pensar impondo-se até a respiração como uma tarefa já adiante e em curso. O sofrer terminava ao lado, descartado por esta vida interior obstinada, suscetível de espantar as cobranças do corpo. Aberração e quase artifício o que impôs a morte no mais além passado à obra pela cabeça inflexível. "Vamos para casa", disse Edmundo a Magda, à véspera de falecer. Sem transigência abrigava-se no novo, deixado nas gavetas, como ganho desta vida subtraída aos jogos feitos, tal como o que pode a ascese, no seu artefato perene.

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    "Crônica da Sociologia Assassinada ou ao Mestre, com Carinho". Insight/Inteligência, ano III, nº 11, out./dez., 2000.
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    A Oficina do Diabo: Crise e Conflitos no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo/IUPERJ, 1987.
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    As Profissões Imperiais: Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de Janeiro, 1822-1930. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 1999.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jul 2001
    • Data do Fascículo
      2001
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