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Edmundo Campos Coelho (1939-2001)

Edmundo Campos Coelho

(1939-2001)

Renan Springer de Freitas

Edmundo costumava dizer que não é necessário brilhar; que podemos nos contentar em evitar o vexame. Receio ter de desapontar o meu querido amigo. Digo isto em razão de algo que li no jornal por ocasião do falecimento de Orson Welles, há mais de dez anos. Na ocasião, o prof. Giannotti foi convidado a se pronunciar, e limitou-se a dizer: "o mundo perdeu um grande cineasta. Poupem-me do vexame de falar trivialidades". Não me vejo, neste momento, capaz de poupar a mim mesmo de tal vexame. Não me vejo capaz de poupar o leitor de uma dose razoável de lugares-comuns. Talvez, entretanto, o leitor possa relevar, se souber que estes serão ditos, se assim posso me expressar, do fundo do coração.

Edmundo foi, sobretudo, um pioneiro. Um desbravador. Um bandeirante intelectual, por assim dizer. Por onde transitou, sempre abriu caminhos e deixou sua marca. Nos anos 60 organizou uma coletânea sobre Sociologia da Burocracia. Quem, naquela época, dava atenção a isto no Brasil? Foi o primeiro a chamar a atenção para a importância da teoria organizacional e, em conexão com isto, o primeiro a estudar o Exército como uma organização com dinâmica própria. Seu Em Busca de Identidade: O Exército e a Política na Sociedade Brasileira, que tive a alegria de ver reeditado em 2000, 24 anos após a primeira publicação, tornou-se uma referência por essa razão. Da mesma forma, seus escritos sobre criminalidade nos anos 70 e, nos anos 80, sobre populações prisionais, são seminais. Edmundo foi o primeiro a chamar a atenção para o caráter indigente da sociologia que explica a criminalidade como uma decorrência de fatores como pobreza e desemprego, e o primeiro a pôr em questão ¾ em seu A Oficina do Diabo: Crise e Conflito no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, de 1987 ¾ o mito de que é possível evitar a eclosão de rebeliões em prisões mediante políticas ditas humanitárias. Posteriormente, dedicou-se ao exame das relações entre ensino e pesquisa nas universidades brasileiras. O resultado: seu controvertido A Sinecura Acadêmica: A Ética Universitária em Questão, de 1988. Quanta discussão acalorada este livro suscitou! Sua última investida foi na Sociologia das Profissões. Seu As Profissões Imperiais: Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de Janeiro 1822-1930, de 1999, traz, mais uma vez, a marca do caráter pioneiro de sua produção intelectual. Trata-se do primeiro livro no país, explica Maria da Gloria Bonelli na orelha do livro, a enfrentar a discussão sobre as relações entre profissões e Estado, tema central na bibliografia internacional da Sociologia das Profissões.

Gostaria de dizer uma palavra sobre algo a que Edmundo parecia estar disposto a se dedicar. Em uma mensagem eletrônica que me foi enviada pouco antes de adoecer, ele disse gostar de "experimentar com analogias" e mencionou o fato de que "o desenvolvimento de cânones literários (o do Ocidente, por exemplo) sugere semelhanças com o desenvolvimento de corpos de conhecimento científico; pelo menos geram problemas semelhantes". Edmundo parecia estar disposto a puxar esta corda para ver em que poderia resultar. Fica a sugestão. Aliás, uma tentadora sugestão...

Edmundo tinha a virtude de levar sua admirável inquietação intelectual para a sala de aula. Foi o primeiro a ensinar interacionismo simbólico e etnometodologia no Brasil. Autores como Harold Garfinkel, Herbert Blumer, Aaron Cicourel, Randal Collins, Anselm Strauss e, fora da sociologia, Richard Rorty são hoje bem conhecidos em nosso país. Alguns deles, eu arriscaria a dizer, já cumpriram sua missão. Mas, no início dos anos 80, quem, além de Edmundo, sabia da existência desses autores, cuja importância (ou, quem sabe, não-importância) só tem sido discutida recentemente? Há poucos dias me deparei, casualmente, com o livro Espelhos e Máscaras, de Anselm Strauss. Uma edição deste ano, ou do ano passado, não me lembro mais. Lembrei-me, imediatamente, de Edmundo, há quase vinte anos, ávido do então inteiramente desconhecido no Brasil, e de dificílimo acesso, Mirrors and Masks.

Edmundo era um Orientador extraordinário. Conseguia deixar que os estudantes seguissem seu próprio caminho sem ao mesmo tempo deixar que se perdessem em suas pretensões descabidas. Guardo bem na memória seus comentários escritos, em 1982, a uma versão preliminar de minha dissertação de mestrado. Lembro-me bem de seu empenho em fazer com que minha dissertação tivesse uma caráter dialógico. Não se atreva a falar sobre algum assunto, ele ensinou, sem antes inventariar o que outros disseram sobre o mesmo, e sem dizer o que você considerou insatisfatório naquilo que os outros disseram. Não ousaria dizer que aprendi tão difícil lição, mas aprendi que há monólogos e diálogos, que os últimos são preferíveis aos primeiros, e que devemos ser capazes de distinguir um do outro e, se possível, seguir a trilha correta. Quando me deparo com dissertações de mestrado, ou mesmo teses de doutorado, cujo caráter monológico salta à vista e/ou com trabalhos que soterram a paciência do leitor com informações e detalhes absolutamente irrelevantes, algo que ocorre com exagerada e incômoda freqüência nos dias de hoje, eu penso sobre minha fortuna de ter tido, por duas vezes, nosso bom Edmundo como Orientador. Não sei quantos sociólogos, além de mim mesmo, Edmundo formou ao longo dos 31 anos que lecionou no IUPERJ. Certamente foram muitos. Quantos quer que tenhamos sido, espero estarmos todos em condições de nos gabar por trazer sua marca.

Edmundo, poucos sabem, era de uma generosidade incomum. Dona Margarida, copeira do IUPERJ, sabe bem do que estou falando. E eu também. Pelos idos de 1983, ele se deu ao trabalho de elaborar um projeto de pesquisa sobre cursinhos pré-vestibulares, e submetê-lo a um órgão do Ministério da Educação, apenas para que eu pudesse trabalhar e ganhar algum dinheiro durante um ano. Ele próprio jamais ganhou um centavo com isso, nem qualquer crédito acadêmico. Assim era o professor Edmundo Campos Coelho!

Edmundo se foi. Seu exemplo, permanece. Alvíssaras!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jul 2001
  • Data do Fascículo
    2001
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