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Waldemiro Bazzanella: relembrando um amigo

Waldemiro Bazzanella. Relembrando um amigo

L. A. Costa Pinto

Faleceu no Rio de Janeiro, onde vivia com a família, o professor Waldemiro Bazzanella. Não tenho nenhuma dúvida de que, para a maioria das pessoas, este nome não significa nada. Era "a face in the crowd" Acontece que, para outros – e entre estes eu me incluo –, Bazzanella é alguém difícil de não ser lembrado, pela pessoa que era e pelo trabalho que realizou. Bazzanella morreu nos primeiros dias de fevereiro de 2002.

Ele advinha de uma família de imigrantes italianos que se radicou no Brasil em fins do século XIX, em Santa Catarina. Seu avô foi um dos fundadores da cidade de Rio do Sul, onde seus familiares exerceram cargos de prefeito, tabelião, e quase tudo o mais Sua irmã, Eda, uma bela ragazza, tem uma filha tão bela quanto a mãe e que hoje é tabeliã na cidade. Na Itália, a família era originária do Passo do Brener na fronteira com a Áustria, norte da Itália. A gente dessa área não tem os característicos físicos "mediterrâneos" que se costuma associar ao italiano típico. Eles tendem a ser louros, de olhos azuis ou verdes, de aparência mais saxônica do que latina. E assim era o Bazzanella. Como acontece com a maioria das pessoas a quem quero bem, ou com quem não quero nada, a não ser distância e ausência do meu caminho, eu conheci o Baza – como nós o chamávamos – numa sala de aula, como meu aluno, na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, instituição que depois teve seu nome mudado para Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A turma dele era de poucos alunos e, segundo me lembro, ele era o único do sexo masculino. Desse encontro numa sala de aula resultou, por muitas afinidades que se foram revelando no correr do tempo, a amizade que durou o resto da vida, forjada e consolidada no calor das lutas que juntos travamos e juntos vencemos. Além de licenciado em ciências sociais, ele também fez o curso de economia e, por concurso, era funcionário categorizado do Banco do Brasil. A maior parte do tempo, depois que nos associamos, ele trabalhava à noite no Banco e comigo durante o dia.

Quando a Secretaria de Agricultura da Prefeitura do Distrito Federal, que era então o Rio de Janeiro, criou um Serviço de Pesquisa e convidou-me para ser seu assessor técnico, eu convidei o Bazzanella e o Thomaz Pompeu Accioly Borges para trabalharem comigo. O Pompeu era engenheiro e economista, trabalhava na Fundação Getulio Vargas e na revista Conjuntura Econômica. Nossa principal atividade consistiu em realizar uma pesquisa sobre a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Os resultados foram publicados em volume assinado por mim e pelo Pompeu, pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – SENAC, e num artigo por mim assinado na revista Educação e Ciências Sociais do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais – CBPE. O objetivo do estudo era determinar as áreas de influência e de dependência do Rio de Janeiro na região Centro-Sul do Brasil. Utilizamos para isso quatro índices: 1) chamadas telefônicas interurbanas; 2) venda de passagens de ônibus interurbanas; 3) circulação de um jornal diário (Diário de Notícias); e 4) abastecimento de produtos alimentares perecíveis (carne, leite, pão, frutas, aves etc.). Sem a menor dúvida, foi um estudo pioneiro de sociologia urbana e muito útil ao governo municipal na implantação de suas linhas administrativa e política.

O Baza, com a eficiência de sempre, encarregou-se da coleta de dados e eu da interpretação deles e da redação do relatório final.

Antes de nós, Pierre Mombeig e Pierre Deffontaine, geógrafos franceses, fizeram trabalho de natureza geográfica em São Paulo; Milton Santos, geógrafo baiano treinado na Université de Strasbourg, França, fez o mesmo em Salvador, Bahia, mais ou menos na mesma época. Com escopo nitidamente sociológico, o nosso foi o primeiro. Jamais me esquecerei que o Baza, ao ler o relatório final, disse-me: "pela primeira vez eu acredito que pesquisa científica em sociologia existe mesmo".

Mais tarde, a convite de Anísio Teixeira, tornei-me o primeiro coordenador da Divisão de Pesquisas Sociais do CBPE. Redigi o programa e, quando ele foi aprovado por J. Roberto Moreira, diretor do CBPE, e por Anísio Teixeira, diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP, convidei colegas para realizarem os projetos. Os principais, ao que me recorde, foram Djacir Menezes, Clovis Caldeira e Manuel Diegues Junior. O Baza aceitou meu convite e encarregou-se de fazer um levantamento bibliográfico e crítico do material existente sobre estratificação e mobilidade social no Brasil. Do seu trabalho resultou um volume, por ele assinado, que foi publicado pelo CBPE. Ele completou a tarefa em alguns meses, usando uma sala, que dividia com Josildete Gomes Consorte, contígua à minha, no edifício da Rua México, onde o CBPE tinha sede. Depois, o Centro mudou-se para o casarão da Rua Voluntários da Pátria e lá nos juntamos os três numa sala só.

A Josildete, hoje professora de antropologia na PUC de São Paulo, estudou no Brasil e na Columbia University, EUA. No capítulo que escreveu para o livro Ideais de Modernidade e Sociologia no Brasil – Ensaios sobre Luiz de Aguiar Costa Pinto (Porto Alegre, Editora da Universidade, 1999), relembra fatos dessa época em que ela e Baza trabalhavam juntos.

Estávamos, então, Baza e eu, trabalhando no CBPE.

Em 1936, foi aposentado o professor Luiz Dodsworth Martins da Cátedra de sociologia da Faculdade Nacional de Ciências Econômicas da Universidade do Brasil, de quem eu era assistente. Depois de onze anos como assistente, fui nomeado catedrático interino até 1959, quando fui aprovado em concurso e efetivado neste cargo. Convidei o Bazzanella para ser meu assistente e ele o foi até minha aposentadoria. Posteriormente, juntaram-se a ele como meus assistentes Acácio Ferreira, Luciano Martins e Maurício Vinhas de Queiroz. Uma resolução do Conselho Universitário determinou que os assistentes deveriam passar por um exame para conservar o emprego. O Baza fez a prova e passou com brilhantismo. Essa decisão foi depois revogada e, ao que eu saiba, pelo menos na nossa Faculdade, o Baza foi o único assistente que fez exame para se manter no emprego, coisa que muitos catedráticos nunca fizeram e foram aposentados como interinos

Quando a UNESCO promoveu no Brasil o Seminário Latino-Americano de Ciências Sociais, este se reuniu no Rio de Janeiro, no Palácio da Reitoria, na sala do Conselho Universitário. Do seminário participaram cientistas sociais de todos os países latino-americanos, nomeados por seus respectivos governos. Recordo-me que da Argentina veio Gino Germani; do Chile, Eduardo Hamuy e Gustavo Lagos Matus, que depois viria a ser ministro da Justiça do presidente Eduardo Frey; da Venezuela, Salcedo Bastardo, que, depois de ser embaixador de seu país no Brasil, veio a ser ministro de Ciência e Tecnologia, além de reitor da Universidade Santa Maria; da Colômbia veio o padre Robledo, professor da Universidad Javeriana de Bogotá; da Costa Rica, Oscar Chavez Esquivel, que já estivera no Brasil como estudante na Fundação Getulio Vargas; do Uruguai, Isaac Ganon, professor de sociologia na Universidad de la República em Montevidéu; do México, Pablo Gonzales Casanova, da UNAM.

No CBPE, o Baza foi o que se poderia chamar de vice-diretor, embora esta função não existisse. Eu tinha absoluta confiança nele, por sua honestidade, inteligência e eficiência. Quando eu viajava, o que era freqüente, a vida do Centro ficava inteiramente por conta dele. Minha secretária, Isa Maria de Araújo Guimarães, era excelente, e os dois se entrosavam muito bem. Desde o começo, juntou-se a nós Helena Souza Costa. O bom gosto da Helena e o bom senso do Baza conjugaram-se e resultaram na escolha da sede, bem como dos móveis e da decoração do número 231 da Avenida Pasteur. Ali funcionou o Centro nos quatro anos de minha gestão. Manuel Diegues Junior, meu sucessor, transferiu posteriormente a sede do Centro. Mais tarde, Diegues foi nomeado diretor do Departamento Nacional de Cultura pela ditadura militar.

A minha indicação do Baza para secretário-geral encontrou resistência. Achavam que deveria ser alguém de outro país latino-americano. Eu defendi a minha escolha de que deveria ser um brasileiro, pelo menos, o primeiro a ocupar o posto.

A equipe técnica do Centro não podia ser melhor: experiente, competente, madura. De tudo isso resultou o quanto fizemos nos quatro anos que nos coube dirigir a instituição. Para tanto, como certa feita foi dito numa reunião em Paris, nós trabalhávamos 48 horas por dia. Não poucas vezes eu dormi no Centro, num rápido pernoite, recomeçando a trabalhar de madrugada.

Além de se encarregar da rotina administrativa, pela qual era responsável, o Bazzanella me ajudou muito a manter alto o nível das atividades científicas do Centro. Como representante deste, participou de uma reunião de cientistas sociais latino-americanos que teve lugar em San Jose, Costa Rica, no final dos anos 50. E foi de extraordinária eficiência sua colaboração ao "Seminário Internacional sobre Resistências à Mudança – Fatores que Dificultam ou Impedem o Desenvolvimento Econômico", organizado pelo Centro, do qual participaram, entre outros, C. Wright Mills e Jacques Lambert. Bazzanella, Thomas Pompeu Accioly Borges e J. Roberto Moreira encarregaram-se de fazer um resumo das teses apresentadas que não puderam ser publicadas na íntegra no volume que resultou dos trabalhos e que tem o mesmo título do seminário, sendo editado pelo Centro Latino-Americano de Pesquisa em Ciências Sociais (publicação nº 10) e distribuído pela Livraria Civilização Brasileira.

Quando foi criado o Instituto de Ciências Sociais na Universidade do Brasil, fui eleito vice-presidente. Os presidentes, nessa época, foram Evaristo de Morais Filho, Marina S. Paulo de Vasconcellos e, por poucos meses, Luiz de Castro Faria e o representante da Faculdade Nacional de Direito, professor de direito internacional, Linneu de Albuquerque Mello.

Promovi um curso sobre estratificação e mobilidade social, no qual Bazzanella fez uma conferência sobre classes sociais na sociedade rural. E organizei, com ele e Maurício Vinhas de Queiroz, um volume sobre o enfoque multidisciplinar nas ciências sociais. Fiz a seleção dos que contribuíram e o Baza e o Maurício Vinhas fizeram as traduções. Juntos assinamos o prefácio.

Quando terminei o meu mandato de diretor do Centro, não fui reeleito. Eleito foi Manuel Diegues Junior, membro de minha equipe. Durante sua gestão o Centro morreu, fechou, acabou e o Diegues foi nomeado pela ditadura militar diretor do Departamento Nacional de Cultura. O Baza renunciou ao posto de secretário-geral. Mais tarde publicou na revista América Latina um excelente artigo sobre o processo de urbanização no Brasil.

Continuamos amigos, depois de ultrapassada a fase do Centro. Por decisão do Comitê Diretor, o Centro encomendou-me a preparação de um trabalho sobre sociologia do desenvolvimento. Eu disse que só aceitaria a incumbência se o contrato fosse comigo e com o Bazzanella. Minha exigência foi aceita e juntos organizamos dois volumes, pagos pelo Centro e publicados pela Zahar Editores. O primeiro tinha como título Teoria do Desenvolvimento e o segundo, Processos e Implicações do Desenvolvimento. Meu livro Estrutura de Classes y Cambio Social, publicado pela Editorial Paidos, de Buenos Aires, já na 3ª edição, eu dediquei ao Bazzanella como prova de minha estima e gratidão.

No momento em que escrevo estas linhas, não tenho as indicações das publicações do Bazzanella, que circularam há mais de meio século atrás; daí não ser possível fazer uma apreciação completa de sua contribuição para a sociologia entre os anos 50 e 70. Dependendo apenas da memória, arrolo no final deste texto algumas de suas publicações. Limito-me às lembranças do amigo e colega, sobretudo aquelas que resultaram de nossa colaboração intelectual e de nosso trabalho conjunto: dando aulas, fazendo pesquisas, organizando reuniões internacionais, publicando livros, artigos (em revistas estrangeiras e nacionais) e criando instituições de pesquisa – tarefas de que nos ocupamos por mais de quarenta anos.

Bazzanella foi meu procurador quando deixei o Brasil e passei a trabalhar e a viver no exterior. Encarregava-se de tudo e tinha todos os poderes para fazê-lo. Esse serviço, difícil de avaliar, ele me prestou, como favor pessoal, até que foi brutalmente ferido num acidente automobilístico. À noite, voltava ele para casa, quando um caminhão do Exército, desrespeitando a luz vermelha, chocou-se contra o seu carro, destroçando-o. O Baza foi gravemente ferido. Teve que ser operado de emergência, recebeu duzentos pontos na cabeça e foi forçado a viver, meio paralítico, o resto da vida, numa cadeira de rodas. A paralisia afetou-lhe também os braços, as mãos e os dedos. Disse-me uma vez que tinha dificuldade em segurar os talheres para comer e um lápis para escrever. De quando em vez, falávamos ao telefone, e eu o visitava, sempre que vinha ao Brasil, em sua casa no Recreio dos Bandeirantes, onde vivia.

A esposa Norita, a filha Ângela, os filhos Bruno, André e Marcos, suas respectivas esposas e os netos e netas prestavam-lhe toda a assistência possível, tentando amenizar-lhe o sofrimento. Finalmente, um derrame cerebral fortíssimo levou-o repentinamente ao estado de coma e o matou em poucos dias.

Bazzanella era um homem pacato, tranqüilo. Era o contrário dessas personalidades que chamam a atenção porque falam alto, têm gestos largos, e adoram "se fait remarquer". Como chefe de família foi exemplar e também como colega e companheiro. Fez o que devia, na hora certa e com precisão. Era uma pessoa que é de se lamentar não sejam todas como ele. Erros, certamente terá cometido alguns para quebrar a monotonia de sua retidão.

Aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-lo jamais o esquecerão.

(Recebido para publicação em abril de 2002)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Mar 2003
  • Data do Fascículo
    2002
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