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Celso Furtado: fundação e prospectiva do desenvolvimento

Celso Furtado: fondement et prospective du développement

Celso Furtado and development: foundation and foresight

Resumos

Dans cet article, on analyse la trajectoire politique et intellectuelle de Celso Furtado, économiste brésilien décédé en novembre 2004. On y fait ressortir le rôle décisif joué par Furtado dans la construction d’institutions nationales de grande importance ainsi que l’originalité de sa réflexion sur la pensée économique brésilienne et la question du sous-développement.

Celso Furtado; économie brésilienne; éveloppement; sous-développement


The article analyzes the political and intellectual career of Brazilian economist Celso Furtado, who passed away in November 2004. The author highlights Furtado’s decisive role in the construction of relevant public institutions for the country and his original reflections on Brazilian economic thinking and the issue of underdevelopment.

Celso Furtado; Brazilian economics; development; underdevelopment


Celso Furtado; économie brésilienne; éveloppement; sous-développement

Celso Furtado; Brazilian economics; development; underdevelopment

Celso Furtado: fundação e prospectiva do desenvolvimento

Celso Furtado and development: foundation and foresight

Celso Furtado: fondement et prospective du développement

Candido Mendes

ABSTRACT

The article analyzes the political and intellectual career of Brazilian economist Celso Furtado, who passed away in November 2004. The author highlights Furtado’s decisive role in the construction of relevant public institutions for the country and his original reflections on Brazilian economic thinking and the issue of underdevelopment.

Key words: Celso Furtado; Brazilian economics; development; underdevelopment

RÉSUMÉ

Dans cet article, on analyse la trajectoire politique et intellectuelle de Celso Furtado, économiste brésilien décédé en novembre 2004. On y fait ressortir le rôle décisif joué par Furtado dans la construction d’institutions nationales de grande importance ainsi que l’originalité de sa réflexion sur la pensée économique brésilienne et la question du sous-développement.

Mots-clé: Celso Furtado; économie brésilienne; développement; sous-développement

O PENSAMENTO FUNDADOR

A Reflexão Insatisfeita

Celso Furtado representou paradigma que, pela sua amplitude e variedade, logra se transformar em marco mesmo da maturação da consciência brasileira. Ou seja, do nível de reflexão atingido por intelectuais cujo pensamento passa à ação transformadora à sua volta. Nela, à verdadeira criação de instituições na passagem pela vida pública. No fecho da biografia, atingem a esta condição objetiva de árbitros de um momento histórico, interlocutores de presidentes e da busca dos grandes lances da decisão nacional, numa condição, já, de tutelares das nossas opções de destino. Significativamente, ainda, o pensamento, em Celso, afirmou-se de saída, em uma larga visão de mundo, que levou o moço da Força Expedicionária Brasileira – FEB, encerrado o segundo conflito mundial, a esparramar-se por toda Europa, da Irlanda aos Dardanelos.

Inquiridor insaciável, partiu de uma profunda impregnação, ao mesmo tempo, italiana, a partir da Florença mal saída da guerra, e francesa, quando chegar a Paris foi também varar as portas da Sorbonne. A vocação do economista, desabrochada dentro dessa ampla visão de mundo, coincidiu, no país, com a decantação do debate do desenvolvimento, que começaria a esboçar-se no governo Juscelino. O Celso, que a defronta, já fora um dos personagens críticos dos pródomos da economia política aplicada do Brasil, gerada na Fundação Getulio Vargas. A Revista Brasileira de Economia regeria toda a emergência dessa dimensão da nossa política pública, dentro da liderança de Eugenio Gudin, continuada na de Gouveia de Bulhões e no contraponto de Américo Barbosa de Oliveira.

Celso Furtado, primeiro presidente do Clube de Economistas do Brasil, marcaria a posição Cepaliana entre nós em Santiago, sob a inspiração de Raul Prebisch – a da hoje quase mitológica Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – CEPAL, da Organização das Nações Unidas – ONU – cujas teses teriam um primeiro confronto público, entre nós, na Conferência de 1953 em Quitandinha. Celso aí proporia o trabalho base da CEPAL em condições de deflagrar o debate do planejamento brasileiro, em pleno segundo governo Vargas. O contraditório das posições, nascido da tradição nacional, de resistência à racionalização da mudança, evidenciava-se, didaticamente, pela série de artigos de Gudin sobre a "A Mística do Planejamento", já mediatizadas por Otavio de Bulhões no texto "A Programação do Desenvolvimento Econômico".

Na urdidura de fundo, o grande progresso institucional, à época, nascia da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e do empenho de Roberto Campos, seu co-presidente. Tal esforço daria à luz, em dimensões fundadoras, ao intervencionismo de Estado no processo econômico, supunha a constituição de toda uma nova e alerta burocracia governamental no Banco do Brasil, no Departamento Administrativo de Serviço Público – DASP, no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, na Superintendência da Moeda e do Crédito – SUMOC, no Ministério da Fazenda, rematado no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – BNDE de então, instalado durante a vigência da Presidência Kubitschek.

A intelligentsia do Clube de Economistas, sob a liderança de Celso, integraria à época e dentro de um mesmo diapasão, dos pródomos de uma política de desenvolvimento, Américo Barbosa de Oliveira, Eduardo Sobral, Herculano Borges da Fonseca e Sidney Latini. As publicações quase simultâneas de Celso, nos textos da CEPAL, e na Econômica Brasileira, despertaram no formulador, que não se conformava mais com a ribalta do analista político, o determinado empenho de integrar o planejamento como atividade essencial do Estado brasileiro.

O Definidor de Políticas Públicas

Celso sabe, entretanto, dos obstáculos e prefere ataca-los por uma estratégia progressiva. Juntando o imperativo econômico ao político, concentra-se no problema do desenvolvimento regional propondo a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE e um primeiro consenso de prioridades de intervenção pública para contrapor-se à gravidade do desequilíbrio nacional que marcara, nos 50, o disparo do Centro-Leste brasileiro. Mas o decreto de institucionalização final da Sudene só acontece no governo Quadros. E o passo seguinte, o Ministério do Planejamento só vem a Celso no interregno entre o movimento abortivo militar quando da renúncia de Jânio, e o definitivo sucesso do 31 de março.

É já no quadro do começo da instabilidade democrática e institucional que Celso, ministro, afinal, da pasta da racionalização, da volta presidencialista de Goulart, propõe um primeiro e efetivo ordenamento entre objetivos, recursos e prioridades do erário, que o juscelinismo só articulara, hemiplegicamente, do ângulo das metas e das prioridades da ação de Estado, ainda decididas – mas de maneira absolutamente determinada – fora das lógicas intrínsecas da mudança.

Foi aliás perante essa premissa que despontou a primeira tensão entre Juscelino e Celso, ao perguntar este com que recursos contaria o presidente, movido pela criação orgiástica do capital símbolo da mudança – o da implantação da nova capital do Brasil – ex-nihilo do ponto de vista das disponibilidades para dela dar cabo. Na volta à democracia o talento fundador institucional de Celso lhe levaria a definir os supostos mesmos do Ministério da Cultura em área, ao mesmo tempo, tão diáfana como decisiva da presença pública na política identitária do país.

O Arcano e a Referência Nacional

A biografia de Furtado, chegada à plena maturidade, só se enriquece no vai-e-vem entre o país e o exterior, tanto pela requisição das agências internacionais a partir da CEPAL, como pelo convite à presença continuada do economista nos grandes centros universitários mundiais. É difícil encontrar-se a distribuição mais harmônica do scholar no exterior, entre a Sorbonne e a Cambridge, independentemente da série de visitas ao mundo acadêmico dos Estados Unidos e da América Latina.

O septuagenário que volta para ficar no Brasil já se transformara na referência fundamental para as políticas de mudança; a crítica e contracrítica do desenvolvimentismo, a polarização nacional neste esforço e a defesa do Estado no seu advento, diante da emergência das teses da globalização; o suporte à proposição realista das teses de um governo Lula que, afinal, se elege e enfrenta a premissa da sua estabilidade na presente conjuntura internacional para atender aos reclamos de uma alternativa à estrita conservação do neoliberalismo.

Em originalidade marcante ainda, Celso pode nos dar, na sucessão de dois volumes, a trajetória da cabeça, nos dois tempos da "Fantasia Organizada" e na "Fantasia Desorganizada". Demarca a ascensão do pensamento da mudança, suas fontes, sua polêmica, suas retomadas, vincula o seu impasse à perda da inspiração totalizante do salto, alimentada no momento canônico de Juscelino; aos embates subseqüentes, da ruptura entre a democracia e os estamentos autoritários, seguido da contínua dilação à entrada em cena de um projeto social democrático, entre o nominalismo da intenção tucana, e as mediações impostas pela realpolitik do Partido dos Trabalhadores – PT à dura mantença do imperativo de transformação social.

A OBRA PARADIGMÁTICA

O Dom do Livro Só

A reflexão de Celso teve a marca antológica do pensamento praxístico, nascido do aprofundamento, sem cortes, da meditação fundadora que retoma, revê, compara. Faz-se à flor do fenômeno global que se lhe desvela, e ao qual empresta, também, a sua própria intervenção. É desses casos raríssimos, em que se põe em causa a própria maturação da cultura nacional pela capacidade de autores privilegiados, de escreverem o livro paradigmático, que pauta toda a sua obra posterior como projeção, em mosaico, do seu descortínio, ou "achamento" de uma interpretação-limite e abrangente do contexto da realidade sobre a qual se debruça.

A chegada à dobradura histórica, ao relevo último de uma estrutura social total, garantiria este referir-se fundamental. Mas, exatamente, para no ângulo de uma visão sem restos encontrar a mais ambiciosa das políticas públicas: a de uma efetiva transição entre estruturas sociais totais – a semicolonial e a do desenvolvimento – a fazer, diretamente, do seu acerto, ou do seu fracasso, a perda de um tempo, ou de um "eixo" histórico, como a entende Karl Jaspers. São essas as épocas privilegiadas, como os 50 e 60 no país, quando os multiplicadores de escala, e das interações sociopolíticas e econômicas mudam a dimensão de uma realidade coletiva como acontecer histórico.

O que já se encontra, seminalmente, em A Economia Brasileira se desdobrará no opus magnus que é a Formação Econômica do Brasil. O porte da ouverture permite que os momentos posteriores ganhem um verdadeiro registro de partitura toda, diante do rationale da mudança que traz ao desenvolvimento e já em todos os lances de sua vigência, assistida no corte áureo da biografia de Celso. Seus títulos declinam toda esta trajetória: Dialética do Desenvolvimento; Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina; Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico; Um Projeto para o Brasil; ou, já, no curso da emergência da hegemonia dos Estados Unidos da perda da expectativa da nossa mudança, Criatividade e Dependência; O Brasil pós-Milagre; A Nova Dependência.

O Compreender e o Explicar

É difícil se encontrar quem na América Latina desdobrasse, como fez Celso, a metodologia da compreensão de Dilthey, somando o entendimento da abrangência de uma estrutura social total, em todas as suas conexões históricas, ao descortínio de um dos protagonistas-chave que integraria uma mudança macro-histórica. Não se encontra talvez em nosso pensamento econômico continental – e Prebisch é o seu parceiro, ainda que sem o refino categorial do paraibano – uma contemplação mais exigente e larga de trajetória de desempenho englobante do país, nas décadas críticas do meio século passado. Chegou-se a fazer jus a um desfecho diverso ao que preveria – com leitura e vaticínio da crise – uma visão ortodoxo-marxista, na dinâmica das relações de produção, tal como manifestadas pelo complexo semicolonial brasileiro.

Deparávamos um quadro específico de baixa produtividade, excesso de mão-de-obra-resposta aos desequilíbrios em termos perenes de reacomodação, não de ruptura à contração da demanda sem jamais implicar a reformulação do peso ou da inserção original dos componentes do sistema. A riqueza e originalidade de Celso residiram em ser o primeiro pensador da ausência de disrupção sistemática da economia colonial, reconhecida, justamente, na envergadura de um fato social total, pela sintomatologia deste escape continuado. A visão pioneira de Celso levou-o a dissecar o Convênio de Taubaté de 1906, no qual se evidencia claramente a articulação da primeira política da "República do café-com-leite". A análise inovadora derrotou o imperativo da política inflacionária para a manutenção dos ganhos do mercado, à margem de qualquer contingenciamento dos excessos de produção, ou dos desajustes atribuíveis ao comportamento ortodoxo para garantir as ditas economias produtivas, e suas vantagens, a sol e chuva.

A estabilidade geral do sistema se traduzia por essa capacidade de socializarem-se, pela inflação, os prejuízos do setor cafeeiro e se concentrar, ipso facto, o seu lucro. Foi dentro da mesma premissa que se produzia o dito "absurdo" da queima de café dos anos 20. Manifestava-se aí o último corolário do "fato social total", em que a economia brasileira evidenciava a simplicidade drástica dos seus mecanismos, e a absoluta articulação compensatória dos seus ganhos, com a reapropriação pelo capital, do confisco financeiro de outros fatores de produção.

O grande insight de A Economia Brasileira permitiu a Celso todo esforço de uma articulação histórica subseqüente. O importante do texto básico de Furtado foi a sua coincidência com a etapa da própria refundação da perspectiva brasileira, ao nervo da descoberta da sua dependência radical, então, da fragilidade dos ditos "produtos-rei" de exportação. O sucesso da obra coincidia com uma explicação abrangente para nossa afirmação como sujeito histórico. Soltava-se do passado, fugindo do escamoteio da crise como recorrência, à exaustão, do mesmo ciclo econômico fundamental. Seria irrelevante, neste quadro – e eliminada toda indução positiva da mudança pelo impasse – a ausência da poupança dos setores produtivos, ou o comportamento da população e da mão-de-obra, como engendradora de um mercado de consumo.

Pensamento e Práxis da Mudança

Diante deste vasto e monótono painel do passado brasileiro, Celso – na obra-chave – não cessaria de aperfeiçoar o entendimento dessa quase inexpugnabilidade de ruptura do regime que chega, praticamente, à II Guerra Mundial e se altera muito mais pela interveniência de políticas públicas deliberadas, do que por qualquer cumulação causal de bloqueios, como se se adicionasse qualquer complexidade maior do sistema de todo o sempre, ou qualquer ganho de funcionalidade intrínseca de seu comportamento.

O Celso que vai à CEPAL e faz-se parceiro da sua idéia de obra, acompanhando o rasgo de Prebisch, é contemporâneo do momento em que, por uma vez, os ganhos dos "termos de troca" da dinâmica internacional da América Latina permitiria uma cumulação estratégica, a médio prazo, para vencer a estrutura semicolonial.

Diante da cunha aberta, neste quadro de relações seculares de dependência, A Economia Brasileira e a Formação serviam de plataforma para um primeiro delineio do desenvolvimento, ponteado pela intervenção do Estado em setores nucleares da mudança de estruturas, de par com o redistributivismo da renda nacional. Este nasceu a partir do implante do salário mínimo, como promessa da busca de um mercado interno de bens de consumo geral, no qual o impulso da industrialização ganhava o seu arrimo e se engendrava uma nova densidade de relações sociais.

Análise Econômica e Estruturas Sociais Totais

Atente-se, ao mesmo tempo, o quanto o universo mental de Celso se afirma em toda essa dialética em que a compreensão exorbita dos supostos iniciais do mero conhecer. A análise econômica contemporânea devolve-se ao processo social que a emoldura e dentro dele, à definição de mudança, em toda a sua sinuosidade de verdadeira práxis.

Na construção da sua perspectiva, Celso pode remontar a 1928, no elenco dos aportes seminais ao que seria, finalmente, o breakthrough da sua visão do desenvolvimento. Localiza a idéia de "economias externas", necessária à ruptura da inércia de um regime social em Young. Sobreleva o contributo de Paul Rosenstain Rodan na sua reflexão de 43, na explicação do que seja um surto industrial e já, exatamente, no impacto de sua causação exponencial.

O roteiro do economista brasileiro, de logo se apega à fieira dessas desinências de mudança, como uma inter-relação, e não um fatorial sistêmico, pela qual a compreensão do desenvolvimento exorbitaria, de vez, a das equações da análise econômica. Reporta-se a Dussemberry, no seu famoso "efeito de demonstração", para definir a geração de poupança, ou não, diante da posição do indivíduo na escala social de distribuição de renda, já colhendo, ao mesmo tempo, a intuição de Prebisch, de que o citado fenômeno também se manifesta no padrão imitativo global, em que o mundo subdesenvolvido se compagina ao das nações mais adiantadas.

Sistema e Pregnância Histórica

No Brasil, exaurida a experiência cepalina, Celso irá confrontar-se – na seqüência das visitas ao país, promovidas pela Revista Econômica – com as grandes cabeças, formuladoras da perspectiva de alteração radical do nosso comportamento econômico, no seu impacto sobre a poupança e aplicação produtiva. E é no córtex das estruturas globais de comportamento coletivo que Furtado revidará a Nurkse, que fica a meio caminho, nessa visão ampla dos ciclos e dos padrões de sua reprodução, muitas vezes sem se dar conta do novo engaste aberto por um momento histórico, como o do nosso intervencionismo econômico nos 50-60, só definível pelas remissões causais globais e não, ainda que ambiciosamente pensadas, pelas interações meramente sistêmicas.

Celso pode revidar a Nurkse no seu último veredicto, de condenação dos subdesenvolvidos à perenidade do ciclo vicioso da miséria, atentando, justamente, ao impacto nesses complexos, por uma nova dimensão do princípio internacional de organização do trabalho, e a plena consideração do que vê como os agentes sociais da mudança. É a disputa, aliás, com Nurkse que vai – até por instigação de Gudin à época – configurar o artigo seminal publicado na Revista Econômica Brasileira, e reproduzido no International Economic Papers, e que veio, subseqüentemente, a constituir-se na Economia Brasileira.

É difícil se encontrar trajetória do pensamento nacional dotado de espinha dorsal tão nítida, e da força de uma reflexão que sabe se infletir à certeza de uma práxis, dobrar-se ao seu momento, e o modificar inclusive pela capacidade de projeção do conceito à política pública. Celso dessa remissão única de um pensar fundador do desenvolvimento irá, durante o segundo governo Vargas, à nova meditação internacional deixando a CEPAL e o que via como a exaustão desse pensamento fundador da mudança, vencida a hegemonia tradicional da análise econômica. Vai a Cambridge, nessa vitalização dos seus enfoques, encontrando todo o novo horizonte da visão global da sua ciência. Encontra Joan Robinson, por demais concentrada nas seqüências da sua teoria sobre a Acumulação do Capital, e vê o seu trabalho como um exemplo ineludível de confinamento, pela especialização do esforço criativo, a rendimentos decrescentes.

A teórica britânica pareceria a Celso preso a visão cada vez mais economicista, diante da demanda e da interrogação do brasileiro, para quem o subdesenvolvimento se inseria na mais ampla e, por isso mesmo, não menos rigorosa visão de um processo social. Cambridge é também o momento em que Celso depara, em alvíssaras, o modelo de crescimento econômico de Nicholas Kaldor, na valoração da tecnologia como fator final determinante da mudança e tornava a distribuição de renda – fator exógeno dessa dinâmica. Não entrava, entretanto, na formulação compreensiva que sugeria o passar-se ao mais alto das constituições abstratas em que permaneceria, por mais que elegante nas suas proposições, a fidelidade à análise econômica preservando-a – como observara Celso – da "mutabilidade" do mundo real.

É no confronto, pois, com as cabeças mais exigentes da época, que Furtado parte para o seu próprio opus magnus, avançando da Economia Brasileira para a Formação Econômica do Brasil. Refinava-se a atitude do pensador, de elencar questões básicas, extraídas ainda da doutrina econômica, para testá-las à vigência da realidade, ou seja, à da história mesma. Dispunha Celso, à época – como começo da vertente que escolhera – de um primeiro repertório factual, qual o do levantamento portentoso da História Econômica do Brasil de Roberto Simonsen. Poderia entregar-se à instauração pioneira do quadro da exploração do açúcar no país, em todo a exigência de sua dinâmica como estrutura social global.

Subdesenvolvimento e Processo Social

Em uma só dimensão crítica se encompassavam – a bem da integridade do sistema – a sua extraordinária rentabilidade inicial e a baixa de preços da segunda metade do século XVII. Mas exatamente tal para mostrar a especificidade do quadro brasileiro, no qual essas flutuações perderiam qualquer impacto diante do trabalho escravo e, pois, de um ínfimo pagamento a fatores de produção que guardavam o segredo do regime semicolonial, e de sua inexpugnabilidade, apoiado na oferta permanentemente inelástica.

As conclusões do quadro da economia açucareira, toda vinculada à variação da produtividade média do conjunto econômico, como insuscetível de gerar tensões significativas ou impacto sobre o sistema, continuariam na da extração do ouro, ou do cultivo do algodão, ou do arroz maranhense, chegando à do café, não obstante já neste caso, perante o novo impacto da absorção de mão-de-obra assalariada. Mantinham-se os regimes indenes à variação de temperatura econômica, até a criação de uma primeira variável exógena ao sistema, com o começo da industrialização, para atender à criação de um mercado interno, e ao aumento da renda per capita concentrada na região Centro-Sul do país. E é no terceiro quartel do século XX que Celso vai encontrar o embasamento histórico para a sua defesa da economia nacional autocentrada, de nítida interferência fundadora do Estado, já aliás prenunciada no velho regime, pelos controles cambiais, ou pela destruição dos estoques excessivos de café.

Manifesta-se nessa etapa a contraposição nítida entre a dinâmica do comércio exterior e a da industrialização, assentada no crescimento do mercado interno. É quando, continua Celso, e de vez divisando o rumo final dessa expansão, uma redução brusca da procura externa já não afetava, necessariamente, o nível de emprego no país, mas seu efeito na taxa de crescimento.

UM CANON PARA A CULTURA BRASILEIRA

O Fiador de Vigências

Significativamente o Celso que volta ao Brasil para a etapa de fundação de políticas públicas não vê todo o seu enfoque confirmado na demonstração de que a formação histórica do país predomina sobre qualquer meta-sistêmica do acontecer econômico, na última conformação que lhes dá a sociedade à sua volta.

O Celso da Sudene e do Ministério do Planejamento vai ao ataque direto da "mutabilidade" do mundo real, para além do rigor das equações de Kaldor assentando-o no próprio núcleo da mudança, representado pela industrialização, ou na ação de racionalidade global, no empenho da correção dos desequilíbrios, que são a contrapartida desse todo social, tomado de vez por um novo dinamismo. A decisão seria por corrigir o divórcio da área nordestina, diante das novas taxas de crescimento no país que, de fato, se orientava para seu mercado interno. O Celso de retorno é o do definitivo comprometimento com as políticas do desenvolvimento regional, engendradoras da SUDENE como da definitiva vinculação do pensador com as políticas públicas transformadoras do seu tempo.

A consagração do órgão, no decreto sancionado por Jânio Quadros, busca as políticas de reorientação de investimento, a dinamizar recursos quase secularmente ociosos. Agregava-se a luta contra a indústria do atraso e o sistema de interesses constituído na política orçamentária; o enfrentamento da ponta mais resistente de coalizão entre as formas vetustas do latifúndio e a sagacidade, pelo domínio dos clãs políticos, de garantir-se o imobilismo, senão a esterilização, do aproveitamento das receitas públicas federais. Em uma perspectiva mais larga e definitiva a Sudene acabou com uma mitologia do Brasil folclórico ou da explicação de nosso atraso pelo castigo apocalíptico das saúvas e das secas, ou das verbas evaporadas para a construção dos açudes em nosso semi-árido.

As Estratégias da Racionalidade

Os abalos políticos resultantes da renúncia de Quadros no "vai-e-vem" do parlamentarismo, como trégua para sobrevivência da democracia já rondada pelo intervencionismo militar, tiveram em Furtado um pólo de aprumo, transferido a uma primeira e ambiciosa ordenação do planejamento brasileiro. Na volta à democracia o Celso recrutado, de novo, à vida pública é levado à literal fundação dessa política como então reclamava a ação do Estado na pasta da Cultura, dissociada do Ministério da Educação. Impõe-se-lhe a superação do primarismo dos aportes orçamentários, o preparo da filosofia das renúncias fiscais, e dos estímulos ao investimento invisível, que marca a objetivação da vida do espírito e a valorização deste mesmo intangível que assentaria uma memória nacional, no aprofundamento de nosso reclamo identitário.

A Nação, à Obra e Risco

Toda última década, entretanto, já é a de Celso que toma a voz do arcano e desse saber que porta em todas as suas cicatrizes, exposto ao trauma os retrocessos e avanços do desenvolvimento, para nos dar a certeza final da sua sustentabilidade. Sua palavra se tornou a desses definidores de horizontes históricos, quando é todo um vertedouro de um processo social que se verga à quase fatalidade da globalização, condenando-nos à perpétua conjuntura.

Deve-se a Furtado não só o aponte do norte grosso e ineludível dos rumos nacionais como convém a voz imperiosa dos profetas, mas, em tempo do mais solerte e final desarme do Estado, a cobrança da retomada de sua presença em nossa vida econômica. O clamor do octogenário foi talvez o primeiro a mostrar o capital de barganha externo que guarda o país se mantiver estruturas públicas como a da Petrobras, ou do aparelho energético remanescente, ou do papel da iniciativa governamental como novo estímulo indispensável à volta estratégica da empresa nacional.

Vivemos um momento crítico, no que o pós-guerra no Iraque tenta reorganizar as constelações econômicas do Primeiro Mundo e nos deixa com esperanças minguadas do que seja ainda a racionalização desses mercados, a partir das primeiras esperanças de Cancun quanto à Área de Livre Comércio das Américas – ALCA ou da Organização Mundial do Comércio – OMC, a garantir uma política de exportações sustentáveis para os mercados da afluência internacional. E só começam os emperros para darmos validade econômica ao mundo transcontinental de ação periférica, tal como vislumbrado ainda em começo de 2003 pelo consórcio entre Brasília, Pretória e Nova Délhi.

Ninguém como Celso na polêmica de 2004 exprimiu a confiança do regime em vencer, a seu tempo, as areias movediças neoliberais. Em todos os incidentes do debate entre Luiz Fernando Furlan, Henrique Meireles e Carlos Lessa, Furtado repetiu a confiança no propósito de transformação social no Planalto, apostando na vontade do Estado, e sabedor de que não saímos do labirinto entregues tão só à inércia do mercado. Mas esse encaminhamento está na dimensão interna da nossa economia, pela interveniência do aparelho público a quem incumbe firmar as economias nacionais que sobrevirão ao mundo global.

A Academia Brasileira de Letras teve talvez mais que qualquer outro cenário a palavra repetida, nos últimos meses, de Celso em assinalar o quanto não há precedentes de economias de nosso porte a querer, de fato, se desgarrar da vala comum da conjuntura e de seu enleio. O ministro da Cultura inclusive predominava na sua voz sobre a do Planejamento. A afirmação da nossa identidade transpunha-se a esta dimensão crescentemente ameaçada em que, afinal, a globalização pode trazer o seu último recado de terraplanagem das diferenças do multiculturalismo, no universo da ordem hegemônica. Esta, especialmente a partir do 11 de setembro, deu outro teor às velhas dominações e reclama mobilização de um verdadeiro inconsciente coletivo, diante do impacto acrítico do progresso sobre a subjetividade remanescente dos atores coletivos de nossos dias.

Devemos a Celso também a insistência em dar à consciência de latinidade um denominador que nos situe em dimensões supracontinentais, dentro do nosso sentir de Ocidente. O que defendeu e previu como nossa posição relativamente excrescente do universo das globalizações, pela nossa economia de mercado interno no Continente, continua ou mesmo se antecipa pela consciência do caráter expropriatório com que a visão de mundo hegemônica se apossa dos inconscientes coletivos à sua volta.

O mesmo Celso que sustentava a causação histórica para explicar, para além da economia as estruturas de mudança, atenta ao impacto final da modernização econômica como invasor e dissolvente do processo cultural que o recebe. Todo o recado de Celso vai à sua capacidade de viver por inteiro e, ao mesmo tempo, exprimir o momento canônico da vida do espírito brasileiro exposto ao repto do assentamento de nosso "ser de nação". Representou singular remate ao que logrou o cientista social, em um país de frágil vocação para a plenitude do pensamento feito obra.

O Brasil para si mesmo sabe do seu tempo e da sua agenda histórica para fugir das somas algébricas de um ganho e perda passada aos pratos da globalização. Não foi outro que o bordão do velho Hino da Independência, das estrofes de Evaristo da Veiga, o que se ouviu à beira da sepultura do pensador. Entoado, de saída, por popular sindicalista, terminou em palmas: nada mais haveria a dizer do que cumpra, como testamento de Celso, ao país de Lula.

(Recebido para publicação em janeiro de 2005)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Ago 2007
  • Data do Fascículo
    Mar 2005

Histórico

  • Recebido
    Jan 2005
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