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Eduardo Kugelmas (1940-2006)

Eduardo Kugelmas (1940-2006)* * Este texto é um desdobramento de minha intervenção no painel de homenagem ao Eduardo Kugelmas, pelo Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo – USP, com participação de Álvaro de Vita (chefe do departamento), Gildo Marçal Brandão, Brasílio Sallum Jr. e Maria Hermínia Tavares de Almeida.

Lourdes Sola

O súbito falecimento de Eduardo Kugelmas, em 14 de novembro, atingiu com forte sentimento de privação intelectual e afetiva as comunidades de ciências sociais de que participou, os companheiros de lutas democráticas no Brasil e os que com ele conviveram na diáspora brasileira nos anos de chumbo, no Chile, na França e na Inglaterra; e, em um sentido muito especial, os alunos que ao longo dos anos foram – como nós, seus colegas de departamento – os beneficiários mais diretos de sua generosidade e de sua vocação para o magistério e para a pesquisa de processos macro-históricos.

Por formação, estava equipado como poucos para o exercício de cruzar as fronteiras entre as ciências sociais a partir da ciência política. Formado em direito pela tradicional faculdade do Largo São Francisco e em ciências sociais pela antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, iniciou sua carreira acadêmica em 1962-1963, no casarão da rua Maria Antonia, integrando o núcleo de pesquisa e de ensino que constituiu a "célula mater" do atual Departamento de Ciência Política. Um núcleo iniciado por Lourival Gomes Machado e coordenado por Paula Beiguelman, cimentado pelo propósito comum de diferenciar a análise e a teoria política da sociologia – em especial da sociologia do desenvolvimento – então dominante no nosso panorama intelectual.

Por essa razão, entre outras bem mais lúdicas, resulta quase impossível para os alunos e colegas dos anos de 1960 separarmos a presença de Eduardo daquela de Carmute (Maria do Carmo Campello de Souza, 1936-2006) nas salas de aula, nos debates políticos e nos bares do "território livre das Américas": um espaço conquistado nos anos anteriores ao golpe de 1964 e preservado até 1968, que se estendia do saguão da "Maria Antonia" às vizinhas Faculdade de Economia, de Arquitetura, até a praça da República – o ponto de encontro (e de paquera) dos "outros" colegas de Eduardo –, o núcleo de esquerda da Faculdade de Direito.

Não deixa de ser irônico que o turbilhão repressivo – tardio em São Paulo comparativamente a outros estados, pois só nos atingiu radicalmente com o Ato Institucional nº 5 – tenha criado oportunidades insuspeitas para os que sobrevivemos. Novas formas de interação política, intelectual e a construção de vínculos afetivos transnacionais foram, de fato, um dos resultados não-esperados pelos artífices do regime autoritário. Cito apenas duas dessas oportunidades, registradas por Eduardo com seu fino senso de ironia e de paciência históricas. Por um lado, a visão de democracia como construção – social e institucional – não-redutível à sua dimensão substantiva até então dominante na América Latina, uma visão alimentada pelo privilégio de exílios em países democráticos. Por outro, o reconhecimento de que, graças à experiência de exílio, 1964 propiciou uma mudança sem precedentes, até então: a "latino-americanização" de duas gerações de brasileiros que contribuíram em várias frentes para a formação de um ethos democrático no Brasil e, sobretudo, para explicá-lo melhor, ancorando em uma experiência regional a análise comparada, tanto política quanto econômica.

É nesse contexto que se inicia o novo ciclo na formação de Eduardo, decisivo para a consolidação de seu perfil acadêmico em dois eixos básicos. A vocação para a análise de temas e problemas de economia política em escala regional e internacional consolidou-se no Chile, através de um curso de pós-graduação na Escola Latinoamericana para Graduados en Economia – Escolatina, da Universidade do Chile, de 1970 a 1973, época em que se beneficiou do mix de orientações que a escola combinava: a da tradição neoclássica de Chicago e a escola keynesiana, cujo centro irradiador era a Comisión Económica para América Latina y el Caribe – Cepal, localizada em Santiago, que então abrigava os melhores representantes do estruturalismo latino-americano e brasileiro. Além disso, graças a um segundo exílio, na França, freqüentou com gosto a produção dos Annales e da escola regulacionista (em embrião), bem como a produção dos historiadores ingleses. Esse convívio deu impulso à trajetória de Eduardo como historiador da formação política e econômica brasileira.

É da combinação dessas duas vertentes e de pesquisa empírica minuciosa que resultou sua tese de doutoramento, defendida na USP em 1986, sem dúvida sua mais acabada contribuição à análise das nossas matrizes políticas e econômicas. "A Difícil Hegemonia: Um Estudo sobre São Paulo na Primeira República" não é uma tese de história política ou econômica, embora seja possível (e mesmo útil) lê-la como tal. Nasce do confronto disciplinado e metódico entre as idéias convencionais sobre as relações entre a política e a economia na Primeira República, por um lado, e, por outro, os processos decisórios efetivos, derivados das características de um sistema político local articulado pelo partido único paulista. Por seu escopo, é uma abordagem crítica que, embora pareça "situada", é passível de generalização nos moldes de um tipo de ciência política, ao gosto de um Charles Tilly, para quem a construção dos objetos de pesquisa, a partir de um quadro analítico context specific, não dispensa, mas, ao contrário, requer o conhecimento e a incorporação do background formado "pelas grandes estruturas, pelos processos de longo alcance e pelas comparações amplas". É a essa estirpe, a meu ver, que pertence a obra de Eduardo, em especial sua tese, que deverá ser publicada em breve pela editora Mameluco, de um de seus orientandos mais queridos, Jorge Caldeira.

Eduardo abriu outros caminhos, sempre fiel à sua incontestável vocação para um ativismo intelectual e afetivo. Foi co-fundador das redes de Política e Economia da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – Anpocs (1982). Ajudou a consolidar o Grupo de Estudos sobre Democracia e as Matrizes Políticas e Sociais da Inflação, no Instituto de Estudos Avançados da USP (1987-1992); dirigiu a área de Política e Economia da Associação Brasileira de Ciência Política – ABCP, até o último encontro, em julho de 2006. Como exímio analista da conjuntura política, participou de outros dois grupos de consultoria, liderados por Brasilio Sallum Jr.: a produção da "Carta Política" em resposta à demanda de um núcleo de empresas dos setores privado e público; e o projeto patrocinado pela Financiadora de Estudos e Projetos – Finep "Transição Democrática e Conjuntura Política".

Suas idéias e sua erudição estão presentes na maioria dos textos escritos nos últimos 10 anos, parte dos quais em parceria comigo, o que torna difícil comentar sua contribuição – e ainda mais difícil assimilar a despedida que não houve. Mas posso, sim, dar meu testemunho sobre sua tolerância diante do contraditório e o sentimento de orfandade dos membros da nossa equipe de pesquisa, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp e integrada por Maria Rita Loureiro, Matthew Taylor, Moisés Marques e, mais recentemente, Mônica Baer. Também fico à vontade para apontar os temas de preferência mais recente de Eduardo, sobre os quais posso dizer e divulgar: o novo desenho do capitalismo internacional e o novo lugar das democracias emergentes de mercado eram objetos de um estudo em curso, cujos primeiros resultados foram publicados sob forma de artigo, em inglês** ** "Recent Modifications of the International Financial System", in L. Sola e L. Whitehead, Statecrafting Monetary Authority. Democracy and Financial Order in Brazil. Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006. , em vias de tradução, a ser editado também pela Mameluco. Graças a um intenso convívio intelectual, fomos nutridos e fertilizados por suas reflexões, muitas das quais em artigos, sobre o federalismo brasileiro, sobre os processos decisórios e de formação de políticas públicas, no Brasil e na América Latina, sobre "o modo Lula de governar" e, sobretudo, pela liberdade interna e a ausência de narcisismo com que revia suas idéias de ontem.

No caso de Eduardo, falar em memória tem caráter simbólico profundo, intelectual e emocional. Foi um exímio mestre em cruzar fronteiras e as barreiras à entrada – suave na forma de conduzir a travessia, mas guerreiro na motivação e na escolha das armas. A motivação: dar respostas aos problemas que seu agudo sentido de justiça acusava como prementes, mobilizando os recursos de que dispunha (que eram muitos). As armas eram duas. Uma modalidade de internacionalismo, de humanismo, de auto-ironia e, sobretudo, de repulsa a qualquer forma de fundamentalismo. Sob esse aspecto, cabia-lhe como luva a descrição do "judeu não-judeu" por Isaac Deutscher. A outra arma: uma atitude de vida que era também um método de cruzar fronteiras sem maiores salvo-condutos ou credenciais outorgados pelas "autoridades" desta ou daquela disciplina: situar-se em perspectiva histórica, dar conta dos contextos – um método que poucos podem integrar à análise política com facilidade. É nesse espaço que ela é, além de uma disciplina científica, uma forma de arte, pois depende também de uma forma de sensibilidade que necessita de cultivo.

Acima de tudo, Eduardo tinha o dom de mobilizar e recriar redes a partir de afinidades eletivas as mais variadas, dedicando-se a sua localização, antecipação e cultivo. É este dom que está na raiz de seu empenho em aproximar os membros das tribos entre as quais transitava, ignorando deliberadamente diferenças e tensões entre elas – sempre com um ar entre majestoso e irônico. O mesmo dom está também na origem da necessidade imperiosa de compartilhar, sem reservas e no calor da hora, achados intelectuais que julgava ser de interesse para cada um de nós. Enfim, um globalista da afetividade.

Lourdes Sola é Ph.D. em Ciência Política pela Universidade de Oxford e presidente da International Political Science Association – IPSA. É co-editora com Laurence Whitehead de Statecrafing Monetary Authority. Democratization and Financial Order in Brazil (Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006) e co-organizadora com Eduardo Kugelmas e Laurence Whitehead, de Banco Central, Autoridade Política e Democratização. Um Equilíbrio Delicado (Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas Editora, 2002) (E-mail: loursola@usp.br).

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    Este texto é um desdobramento de minha intervenção no painel de homenagem ao Eduardo Kugelmas, pelo Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo – USP, com participação de Álvaro de Vita (chefe do departamento), Gildo Marçal Brandão, Brasílio Sallum Jr. e Maria Hermínia Tavares de Almeida.
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    "Recent Modifications of the International Financial System",
    in L. Sola e L. Whitehead,
    Statecrafting Monetary Authority. Democracy and Financial Order in Brazil. Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Abr 2007
    • Data do Fascículo
      2006
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