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O Estado como parte da república

The State as part of the republic

L'État en tant que partie de la république

Resumos

The main objective of this article is to analyze an ideal of civic life, the Republic, based on the form of the sovereign state. Historically, the convergence between Republic and sovereign state has been truncated by the former's commitment to the thesis of royal absolutism. However, as the democratic issue (translated in the values of equality and pluralism) was absorbed by sovereignism, such convergence became more plausible. As viewed in this article, the theoretical bridge of that passage is the concept of political representation. The issue is thus to show in what way a certain vision of the political form (that of the state) can fit into a theory of political representation that contemplates the above-mentioned values.

Republic and state; theory of political representation; the democratic question


Le but principal de cet article est de sonder un idéal de vie civile - la république - ayant pour base la forme de l'État souverain. Au cours de l'histoire la convergence entre république et État souverain s'est révélée incomplète du fait des compromissions de celui-ci avec les thèse propres à l'absolutisme Royal. Toutefois, dans la mesure ou la question démocratique, traduite dans les valeurs de l'égalité et du pluralisme, a été absorbée par le souverainisme, la convergence s'est révélée plus plausible. Selon l'auteur, ce passage théorique s'est fait par le biais du concept de représentation politique. Il s'agit donc de montrer comment une certaine vision de la configuration politique (celle de l'État) peut s'imbriquer dans une théorie de la représentation politique qui tienne compte des valeurs citées plus haut.

République et État; théorie de la représentation politiques; la question démocratique


Republic and state; theory of political representation; the democratic question

République et État; théorie de la représentation politiques; la question démocratique

O Estado como parte da república* * Este texto faz parte de um capítulo de livro do autor, em vias de ser publicado pela editora Martins Fontes, intitulado A Forma da República: Da Constituição Mista ao Estado.

The State as part of the republic

L'État en tant que partie de la république

Cicero Araujo

Professor Titular de Teoria Política do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec). E-mail: craraujo@usp.br

ABSTRACT

The main objective of this article is to analyze an ideal of civic life, the Republic, based on the form of the sovereign state. Historically, the convergence between Republic and sovereign state has been truncated by the former's commitment to the thesis of royal absolutism. However, as the democratic issue (translated in the values of equality and pluralism) was absorbed by sovereignism, such convergence became more plausible. As viewed in this article, the theoretical bridge of that passage is the concept of political representation. The issue is thus to show in what way a certain vision of the political form (that of the state) can fit into a theory of political representation that contemplates the above-mentioned values.

Key words: Republic and state; theory of political representation; the democratic question

RÉSUMÉ

Le but principal de cet article est de sonder un idéal de vie civile - la république - ayant pour base la forme de l'État souverain. Au cours de l'histoire la convergence entre république et État souverain s'est révélée incomplète du fait des compromissions de celui-ci avec les thèse propres à l'absolutisme Royal. Toutefois, dans la mesure ou la question démocratique, traduite dans les valeurs de l'égalité et du pluralisme, a été absorbée par le souverainisme, la convergence s'est révélée plus plausible. Selon l'auteur, ce passage théorique s'est fait par le biais du concept de représentation politique. Il s'agit donc de montrer comment une certaine vision de la configuration politique (celle de l'État) peut s'imbriquer dans une théorie de la représentation politique qui tienne compte des valeurs citées plus haut.

Mots-clés: République et État; théorie de la représentation politiques; la question démocratique

INTRODUÇÃO

Discute-se, neste artigo, as relações entre democracia, igualdade e pluralismo com base num ideal de viver civil (a república) que contenha a forma política do Estado soberano. Embora apresente a descrição de um arranjo teórico, o cerne da discussão envolve um argumento normativo, no qual se procura realçar a importância e a desejabilidade dos valores que o ideal promove.

As dificuldades para argumentar por uma convergência entre república e Estado remontam a uma questão histórica, em vista do comprometimento da noção de soberania com as teses do absolutismo real. Esse comprometimento, todavia, foi se abrandando conforme a questão democrática - primeiro, pelo valor da igualdade; depois, pelo valor do pluralismo - ganhou força na política moderna e encontrou eco na elaboração teórica, inclusive no soberanismo. Ao ver deste artigo, no que concerne à forma Estado, o ponto de passagem é o conceito de representação política. Trata-se, então, de mostrar, ao longo do texto, como uma certa visão do Estado soberano pode ser encaixada numa teoria renovada da representação política que contemple os valores acima mencionados.

Muito se tem escrito sobre o conceito de república - o que não é de surpreender, tratando-se de uma palavra de alto prestígio no vocabulário político e de memória tão veneranda. Longe de pretender uma intervenção nesse debate, o texto parte de uma definição bem ampla e laxa, suficiente para acolher concepções de forma política muito divergentes entre si, mas que já indicam o campo de problemas que o interessa. Assim, entende-se a república não como um objeto empírico perfeitamente decantado, mas como um conjunto de práticas no qual seres humanos investidos de um determinado papel, o de "cidadãos", orientam suas ações para promover certos valores comunitários, entre os quais a liberdade, a igualdade, o império da lei e a própria participação política. O quadro institucional, além disso, na medida em que provê uma estrutura de governo, faz polarizar a cidadania em dois campos distintos - embora não necessariamente especializados -, os governantes e os governados. Essa estrutura pode ser mais ou menos complexa, um "regime político", clivada por diferentes agências que perfazem um arranjo mais ou menos consistente, dependendo dos modos como se espera promover os valores da república. Tal expectativa envolve avaliações a respeito da qualidade das interações entre os próprios governados, suas possibilidades de cooperação e conflito, questões que produzem outros tantos contrastes na forma política.

Portanto, a despeito dos equívocos que a palavra "forma" possa sugerir, não se pretende reduzi-la a uma questão de procedimentos e regras do jogo, mas, ao contrário, incorporar em seu significado os valores substantivos que dão sentido às práticas de um regime político. Essas práticas nunca são exatamente o que deveriam ser, mas também nunca deixam de remeter a concepções a respeito do que o mundo social é capaz de gerar - ou seja, a visões do campo de possibilidades da ação humana, incluindo a capacidade de realizar os valores a que as práticas visam. No fundo, toda prática constitui uma tensão entre o que é, o que deve ser, e o que é possível. Como a tensão ocorre numa certa estrutura de tempo e espaço, seu significado concreto varia de acordo com a concepção dessa estrutura implícita na respectiva forma política. De qualquer modo, segurar essa tensão, nunca deixando que ela relaxe e, finalmente se reduza à mera acomodação ao que aí estiver, é o que empresta dignidade à forma política. E a república é o nome que se dá a essa dignidade.

Mas é possível pensar a forma Estado como parte dessa dignidade? Depende, é claro, de como o conceito é apresentado. Se o reduzimos, como muitas vezes se faz, ao de um tipo de aparato político-administrativo, a questão perde sentido. Mas não se procuramos ampliar seu significado, relacionando-o, como se fará a seguir, a uma teoria da representação política. Parte-se da tese de que o Estado soberano mantém desde os primeiros lances modernos de sua concepção - e a despeito da defesa do absolutismo -, uma cumplicidade com a ideia da representação. Mas busca-se adensar a ideia de modo a dar conta de dois problemas sugeridos, ao mesmo tempo, pelo pensamento democrático e pela moderna teoria da sociedade: as questões do conflito e da diferenciação sociais. Passemos a seu exame.

O ESTADO COMO FORMA SECULAR DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

A representação que se tem em mente nesta reflexão opera em dois níveis: 1) como uma relação entre atores, isto é, entre o sujeito representado e o sujeito representante - o modo ascendente da representação; e 2) como uma relação entre a ideia e o ator que pretende personificá-la - o modo descendente. Em ambos, segue-se a definição mais abstrata proposta por Pitkin, feita a partir da etimologia da palavra: representar é "em algum sentido tornar presente, algo que, porém, não está literalmente ou de fato presente" (1967:8-9, ênfases da autora). O ato da representação - pois representar politicamente sempre envolve uma agência - implica uma tentativa de duplicação de algo, o ser representado, que pode ou não ser uma agência; uma duplicação que, porém, de algum modo deve produzir uma modificação do ser que se representa, mas não a ponto de perder seu vínculo com ele. A representação deve, enfim, produzir um efeito de deslocamento. É este o significado central do conceito que se quer explorar.

Os níveis de representação acima mencionados correspondem a um arranjo institucional também duplicado, digamos assim, mas cujos planos operam simultaneamente: no primeiro, o plano de frente, está o governo representativo, e no segundo, o plano de fundo, encontra-se o Estado soberano. Procura-se endossar com isso a distinção entre governo e Estado que já aparece na teoria contratualista e soberanista moderna, mas de modo a aproveitar, em ambos os lados da diferença, as ricas possibilidades do conceito de representação. O arranjo institucional proposto prevê, portanto, dois modos diferentes de mediar: o governo representativo procura fazê-lo entre agência (o sujeito representado) e agência (o sujeito representante); e o Estado soberano, entre ideia (o ser representado) e agência (o próprio soberano representante). O arranjo como um todo busca, evidentemente, integrar os dois níveis, o que, porém, não está fadado ao sucesso, pois o arranjo mesmo assimila, em cada nível, sentidos diferentes do ato de representar, que na prática podem convergir ou divergir. Vai se discutir esta questão mais abaixo. Por ora, vamos nos concentrar no esclarecimento do que significa representar no plano do Estado soberano: a representação da ideia.

Herda-se, nessa discussão, o esforço da tradição soberanista moderna de encontrar uma forma secular de instituição política. A distinção conceitual, e por hipótese, entre um estado de natureza e uma condição civil preenchia em parte esse propósito, pois levava seus autores pioneiros a sustentar que o Estado soberano serve aos e representa diretamente os homens "cá embaixo", e apenas indiretamente (se muito) um ser transcendente e divino. A missão do Estado é, portanto, exclusivamente terrena, cabendo a outras agências, devidamente neutralizadas em termos políticos, zelar pela experiência religiosa, que no pensamento teológico medieval mesclava-se à representação política1 1 . A questão da neutralização política remete ao conceito de pluralismo, a que se retornará na última seção do artigo. . Contudo, em seu desenvolvimento, o esforço trazia algumas dificuldades. Uma teoria secular da instituição política, ainda que colocando de lado a figura de um ser transcendente e divino como objeto de representação, não poderia reduzir-se apenas a uma teoria do sujeito político, uma teoria do ator. Ela continuaria a precisar de um referencial, uma âncora para além do ator, que fornecesse a este um senso de realidade e uma orientação, sem a qual tanto o sujeito representado quanto o sujeito representante (o soberano) pareceriam constituir agências arbitrárias e caprichosas.

A âncora fornece, ao mesmo tempo, as ideias de limite e de oportunidades para o agir. A teoria contratualista procurou suprir essa necessidade com o conceito de estado de natureza que, porém, além de fornecer apenas um referencial negativo - aquilo que deveria ser superado -, se confundia com uma concepção do ator, cujas propriedades subjetivas eram então transferidas para o soberano. Ademais, como o indivíduo imaginado no estado de natureza, isto é, o sujeito representado, tem de ser negado na passagem para a condição civil, através de sua completa substituição pelo sujeito representante (o soberano), o resultado é que o primeiro perde inteiramente sua condição de agência em prol do segundo. Em outras palavras, essas teorias carecem, de um lado, de um conceito de representação do sujeito que reconheça plenamente o caráter de agência de ambas as partes do jogo representativo (o sujeito representado e o sujeito representante); e, de outro, de um conceito mais claro de representação da ideia, que aponte qual o referencial de realidade e de orientação que o ator busca personificar.

Descartada a alternativa de que esse referencial fosse o Deus transcendente da cristandade medieval, o que poderia candidatar-se como referencial ou âncora secular da representação política? Note-se que os termos "referencial" ou "âncora", escolhidos nesta exposição, guardam uma semelhança de família com aquilo que no jargão filosófico se costuma chamar de "objeto ontológico"2 2 . "Objeto ontológico" não é o mesmo que "objeto empírico": este último remete a fenômenos, enquanto o primeiro a concepções, que vão além do fenómeno. . No fundo, a representação da ideia, pretendida aqui, é uma representação desse objeto, porém, uma representação política, que deve se traduzir na forma da agência, ou melhor, como se verá, num esquema complexo de agências. Mas voltemos à questão: que objeto é esse? O próprio desenvolvimento do conceito de estado de natureza, na história da tradição contratualista, aponta a resposta. Em seu desdobramento até Rousseau, vemos emergir a ideia moderna de sociedade. E com isso chegamos ao limite da própria tradição, quando a dicotomia estado de natureza/estado civil passa a concorrer com a dicotomia sociedade/Estado. Sociedade, contudo, também admite o duplo sentido que se atribuiu ao conceito de representação, e que convém não confundir: por um lado, a sociedade é ator, o sujeito representado; por outro, a sociedade é referencial, âncora, ou, ainda, objeto ontológico: a ideia. Atentemos, por enquanto, para este segundo sentido.

Deve-se ao Iluminismo escocês, precursor da sociologia moderna, e à chamada Economia Política, nascida em meados do século XVIII, a intuição seminal dessa ideia. A própria Economia Política é um subproduto das cada vez mais complexas elaborações sobre o estado de natureza produzidas no interior do jusnaturalismo e do contratualismo - um ponto, aliás, muito bem demonstrado nos estudos de Haakonsen (1981; 1996, caps. 4,5 e 7). O brilhante argumento que Rousseau elaborou em seu Segundo Discurso, a respeito da gradativa evolução da socialidade humana, é resultado de um diálogo com essas tendências3 3 . Para uma análise dessa obra na direção proposta aqui, ver Araujo (2008). . O que há de novo nessa ideia? A visão de que as interações humanas não são apenas um conjunto de atos intencionais, de consequências prontamente previsíveis, uma vez conhecidos seus propósitos. Ao contrário, começa-se a perceber nos vínculos sociais uma série indefinida de interações marcadas por lances tanto intencionais quanto não intencionais, imagem à qual se acrescenta esse aparente paradoxo: dois ou mais lances intencionais, unidos, podem gerar um vínculo social não intencional. E assim, da soma completa das interações intencionais e não intencionais, resulta um todo que é simplesmente não intencional. Porém, essa soma, apesar de seu aspecto aparentemente caótico, em vista do predomínio da não intencionalidade, acaba adquirindo um aspecto identificável e, pelo menos parcialmente, cognoscível, apesar de mutante, na forma de um padrão evolutivo de interações sociais. É o que a tradição do pensamento social moderno chama de processo. Ao perceber a soma das interações como um processo, os autores da nova tradição passam a assumir que o processo mesmo é passível de se repartir em "estágios", ao supor efeitos cumulativos na evolução, e então especular sobre suas futuras mutações. Que a série de interações adquira um padrão identificável e parcialmente cognoscível, a despeito do predomínio do não intencional, resulta do fato de a própria série possuir um nível macro e um micro. No primeiro, é claro, percebe-se o padrão, enquanto no segundo percebem-se inúmeras pequenas interações, como se fossem um emaranhado de pequenos "fios" enrolando-se uns aos outros em todas as direções, indicando, apesar disso, a formação de uma malha ou tecido. De longe (o nível macro), enxergamos o tecido como uma substância lisa, sem descontinuidades; de perto (o nível micro), vemos seu aspecto rugoso e cheio de falhas, como a imagem de um pedaço de tecido captado por um microscópio.

A analogia com o tecido, porém, se fixa em demasia numa imagem espacial, deixando na sombra que o conceito de processo possui necessariamente uma dimensão temporal. Na verdade, o padrão acima referido é captado no tempo-duração, enquanto as pequenas interações, no tempo-instante. Rigorosamente falando, o tempo-instante não existe de fato, pois mesmo a menor interação demora um tempo para acontecer. A sociedade é um processo porque tudo nela demora para acontecer: em seu significado moderno, a sociedade abole a noção de instantaneidade e, por consequência, a noção de simultaneidade. O tecido social como um todo, portanto, é espaço mais tempo, ou melhor, um ser no qual espaço e tempo se encontram fundidos, de modo que só se pode enxergá-lo adequadamente "rasgando" as fronteiras do aqui e do agora, tanto "para trás" (no sentido do passado), quanto "para frente" (no sentido do futuro). E assim esse ser, seja mais o que for, é algo que nunca está inteiramente encaixado no espaço do presente, e sempre se oferece ao observador como uma projeção.

Muito se poderia dizer sobre a natureza desse objeto, seja abstratamente, como se esboçou acima, seja através de uma detalhada reconstrução de seu desenvolvimento ao longo da história do pensamento social, com suas diversas versões, frequentemente conflitantes. Mas a pretensão do artigo é apenas indicar os caracteres mais relevantes do referencial que, desde suas primeiras intuições, em meados do século XVIII, pouco a pouco se oferece à inteligência moderna como candidato plausível para uma teoria secular da representação política. Em síntese, o que se quer afirmar é simplesmente que, no plano da representação da ideia, o objeto que as instituições políticas seculares, culminadas no Estado soberano, buscam representar é a ideia moderna de sociedade, embora qualificada por um determinado valor central, como se discutirá na próxima seção.

Releve-se, porém, que não se trata de uma mera substituição da ideia do Deus transcendente da representação político-teológica medieval, por uma outra ideia, com funções e propósitos similares. De fato, são ideias de conteúdo muito diferentes, alterando, com isso, todo o jogo da representação. O Deus transcendente da representação medieval permanece um sujeito, cujas capacidades contêm ao infinito as da própria subjetividade humana: a infinita inteligência, a infinita bondade, o infinito poder etc. O sujeito divino, por isso mesmo, age e é portador de um desígnio, um propósito, que, porém, resta desconhecido ao limitado intelecto humano. É essa infinitude do divino que produz a distância intransponível entre o humano e o sobre-humano, cujo acesso só pode se dar por um tipo especial de crença: a fé religiosa. Esta, embora não propriamente irracional, apresenta-se como algo que ultrapassa a razão humana. Daí a ideia de mistério que funda a representação teológica, e que penetra toda a institucionalidade política que nela se sustenta.

Em termos de conteúdo, coisa muito diferente se oferece como âncora à representação política com a ideia moderna de sociedade. Ainda que aberta à ação deliberada do sujeito, a sociedade não é propriamente um sujeito, em virtude do misto de intencionalidade e não intencionalidade que constitui, com predomínio da segunda. Porém, e a despeito disso, sendo ela um processo, passível de projeção, a sociedade oferece-se ao intelecto humano como objeto parcialmente cognoscível e parcialmente moldável pela própria ação. Por certo, entre os grandes mestres do pensamento social, haverá os que pretenderão ir além desse "parcialmente", buscando uma inteligência completa do processo e a correspondente intervenção do ator sobre ele. Essa é, admite-se, uma possibilidade extrema das diferentes versões da nova ideia, e que fará seus epígonos confundir, nos momentos mais entusiasmados da reflexão, o desígnio do ator com um aparente desígnio da sociedade. Todavia, mesmo nesse aspecto continua-se num terreno bem diferente, para não dizer exatamente oposto, ao do Deus transcendente como objeto ontológico: enquanto este permanece inacessível ao extremo, o outro contém a variante da extrema acessibilidade. Além disso, nas próprias suposições iniciais dessas versões, sociedade (como referencial) e ator apresentam-se como conceitos perfeitamente distintos, ponto este bem compartilhado com todas as possibilidades da nova tradição, inclusive as menos radicais, e é isso que importa destacar.

A QUESTÃO DEMOCRÁTICA

A descoberta da ideia moderna de sociedade remete ao pensamento político que se desenvolve a partir da "Era da Revolução Democrática" (a expressão é de Palmer) e que põe na ordem do dia o próprio sentido da democracia. Sua maior contribuição é ter explorado as possibilidades político-morais do nascente pensamento social, enxertando-o de valor. Impossível flagrar a especificidade da questão democrática moderna, em seu contraste com a experiência democrática da Antiguidade clássica, se não a relacionamos com o novo conceito de sociedade. Como lembra Lefort, Tocqueville é ainda hoje a grande referência para pensar a democracia como forma de sociedade, não reduzida, portanto, à definição de uma forma de governo ou um tipo de regime político (cf. Lefort, 1988:14). Com base nessa intuição, Tocqueville analisa e adverte por que e como, das entranhas dessa forma social, poderia (ou não) brotar um regime político de liberdades democráticas.

A visão tocquevilliana da democracia como forma de sociedade advém de sua aguda sensibilidade para com o declínio dos ideais aristocráticos e de seu enraizamento na noção da vida comunitária organizada segundo uma hierarquia fixa, tomada como natural e sancionada religiosamente, de ordens ou estamentos sociais. Mas sua famosa definição da democracia como "igualdade de condições", que caracterizaria a nova forma de sociedade em contraposição à hierarquia estamental, não pretendia significar a abolição pura e simples da desigualdade e da estratificação social. Significava, antes, a dessacralização da desigualdade e, de resto, toda e qualquer estratificação social, tornando-a um dado contingente. Esse ponto crucial é rico de consequências. Primeiro, induz à plena aceitação da mobilidade social, fato há muito identificável nas relações econômicas, e ainda mais intensamente na Europa moderna nascente, com o desenvolvimento do capitalismo, mas que se encaixava mal num ambiente hostil ao valor da igualdade de status social. A mobilidade social, por sua vez, contribui para sugerir, à consciência política e moral, a ideia de história como o regime temporal da transformação das relações entre os homens. Nesse quadro, a igualdade de condições (a igualdade de status social) e a expectativa histórica da transformação das relações humanas tornam-se noções profundamente implicadas uma à outra. Mais: a visão de que essas relações se encontram mergulhadas numa teia única e de extensão indefinida de interações, intencionais e não intencionais, como supõe o novo conceito de sociedade, também traz à consciência o conceito de história com H, a história como um regime temporal único e universal4 4 . Sobre a história com H, isto é, como um "conceito coletivo singular", ver Koselleck (2006, cap.2). .

O que torna a democracia uma questão é a aceitação do conflito não só como fato incontornável, mas como motor da forma de sociedade que corresponde à igualdade de condições. Há dois aspectos a desdobrar aqui. Primeiro, uma sociedade que assimila a mobilidade em sua plenitude é uma forma intrinsecamente dinâmica, que supõe um motor. E se a mobilidade é positivamente valorizada, mais do que considerada um simples fato, segue-se que o motor também deve sê-lo. Porém, na medida em que a sociedade é o todo concebível (em termos seculares) no qual a experiência humana comum se desenrola, o motor não pode ser algo externo a ela. E o que poderia mover a sociedade, não "de fora", mas a partir de si mesma? O atrito, o choque, a contradição entre suas partes - enfim, o conflito social - termos que, de modos variados, traduzem a percepção de que a sociedade não está apenas dividida, mas que as partes em que se divide não devem se harmonizar de uma vez por todas, podendo apenas mudar de uma forma de divisão para outra. O conflito é então admitido como uma condição necessária, e potencialmente salutar, da transformação requerida pelo novo conceito de sociedade.

O segundo aspecto refere-se à relação entre a democracia como igualdade de condições e o conflito social. Se a igualdade de condições, menos que a consumação de uma igualdade absoluta, é a dessacralização da hierarquia social, esse dado abre campo para um sentimento de desconforto profundo para com as desigualdades persistentes. Por trás desse sentimento está a expectativa de que numa sociedade democrática todos os seres humanos, individual ou coletivamente considerados, merecem um lugar ao sol - na forma da igualdade universal de direitos, de participação política, de oportunidades sociais, da distribuição equitativa dos benefícios da cooperação social... Enfim, a lista do que seria lícito esperar se torna extensível ao infinito, pois, em princípio, não há nenhuma dimensão das relações humanas em que o universalismo democrático não possa exigir a igualdade. Assim, a história da democracia moderna tende a ser a história de uma passagem contínua de velhas para novas dimensões da vida social nas quais a expectativa de igualdade ainda não tenha se realizado. Em termos jurídicos, tal fato corresponde àquela inflexão fundamental do significado do conceito de direito, muito bem marcada na filosofia política de Kant, que deixa de designar um privilégio concedido a certos grupos ou indivíduos, para se tornar uma demanda subjetiva e universalizável5 5 . Para uma exposição desse aspecto do pensamento de Kant, ver Terra (2004). . Mas a ideia de uma passagem da igualdade para sempre novas dimensões sociais implica algo mais: que o direito, além de demanda universalizável, seja um conceito insaturado; isto é, um conceito que, deixando de admitir apenas conteúdo definido e delimitado, passa a aceitar ampliações contínuas de conteúdo, em princípio ilimitadas.

Esses tópicos revelam com especial agudeza o contraste com a experiência democrática da Antiguidade: não havia, nesta última, qualquer tensão entre o reconhecimento de igualdade, para certos grupos, e sua completa desconsideração, para outros. Ampla cidadania igual para os homens livres (ainda que pobres) e ampla escravidão poderiam conviver lado a lado sem qualquer desconforto, como ocorreu em Atenas em certa fase de sua história, precisamente porque a igualdade era considerada um privilégio sancionado religiosamente. Bem distinto é o quadro normativo da experiência democrática moderna: mesmo onde um regime de escravidão manteve-se ao lado de uma cidadania com amplitudes diversas, como ocorreu nas Américas, esse fato era percebido não só como uma iniquidade, mas como uma perfeita contradição, que não poderia nem deveria persistir - algo que colocava os defensores daquele regime em permanente defensiva6 6 . Para uma descrição muito elucidativa de como os abolicionistas norte-americanos exploravam essa contradição, utilizando para isso a Declaração de Independência de 1776, ver Armitage (2011:83-87). .

Mas, ainda falta assinalar, com a devida precisão, em que sentido esse aspecto da sociedade democrática se entrelaça com a dinâmica do conflito. Eis o ponto crucial: saber como uma lista irrestrita de expectativas de igualdade pode se acomodar às condições presentes, ou quando e em que lugar, torna-se um tema crítico. As expectativas e suas correspondentes demandas são reconhecidas sem que necessariamente se esclareça como atendê-las. Wanderley Guilherme dos Santos expressou com muita felicidade esse fato:

"a democracia é a única forma de exercício do poder político que reconhece como legítimas demandas a que não pode atender [...] Não há registro de outra sociedade organizada de acordo com o mesmo princípio. Todas as aspirações geradas em ordens políticas anteriores, se inalcançáveis por questões naturais, eram, por definição, ilegítimas, quando não ilegais" (Santos, 2007:143).

Exatamente por isso, a democracia vem a ser, menos do que uma resposta, a abertura de uma questão. Também por esse motivo, a democracia admite uma distância inédita entre a norma e o fato, entre o projetado e o realizado. Daí que o encurtamento da distância, junto com sua programação, se apresente como objeto da disputa mais aguda. Não havendo resposta clara e prévia, a luta é o único recurso disponível para quem pretende apressar ou antecipar a realização de suas demandas. Como o sentido das demandas é universalizável, mesmo quando elas emergem com conteúdos muito específicos, nenhuma parte da sociedade pode exigir as suas sem que outras também não o façam. O resultado é a divisão e o conflito entre as partes, as quais não estão fadadas a se fixarem numa determinada linha de clivagem, podendo ser periodicamente redesenhadas, conforme as expectativas passem de uma dimensão para outra da vida social.

É nesse ponto que a concepção de uma história não cíclica, infinitamente aberta para o futuro, se credencia como um moderador importantíssimo das angústias e ansiedades geradas pelo próprio conflito social. Porém, mais do que a moderação, o que a história aberta traz de volta, junto com as noções de tempo que a acompanham, é o tópico da vazão do conflito. Essa questão já havia sido exposta, em termos mais clássicos, na concepção maquiaveliana da república e da constituição mista. Esta, sob o impacto de transformações importantes da forma de vida da cidade medieval-renascentista, supõe um questionamento da hierarquia de status dos grupos sociais que a teoria da constituição mista clássica-antiga endossava. Ainda que preservando o ideal da forma mista, a teoria de Maquiavel, como sabemos, é uma das primeiras a realçar a relevância do conflito entre os grupos sociais da cidade, em prol de sua própria preservação enquanto regime de liberdade7 7 . Para uma análise mais detalhada da originalidade de Maquiavel neste ponto, situando-a no contexto do classicismo renascentista, ver Skinner (1978, vol. 1:180-189). . Ao mesmo tempo, contudo, a teoria é levada a conjecturar modos de compensar o excedente de tensões que relações mais iguais entre esses grupos produz no interior da república. Esse é, precisamente, o problema da vazão, que no âmbito da constituição mista enseja, como resposta, a ideia da ampliação (externa) da república, isto é, a conquista de povos e territórios.

A recuperação do equilíbrio interno da república por esse caminho, todavia, traz consigo uma angustiante contradição, e disso se aperceberam os mais argutos pensadores modernos desse problema. A própria experiência da república romana, que Maquiavel considerava exemplar, a expunha: é que o sucesso da empreitada, o império conquistado, ao tornar-se peso imenso, acabava por fazer-se insucesso, ao desabar sobre a liberdade da cidadania8 8 . No século XVIII, a análise mais influente desse problema foi feita por Montesquieu, em seu Considerações sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e de sua Decadência. . Mas se os conflitos civis levam à liberdade, que então levam à grandeza da república e, no fim das contas, à sua ruína, mais do que a uma contradição lógica, não estaríamos diante dos próprios limites da teoria da constituição mista? E haveria um modo de superá-los? Ocorre que a concepção de história de Maquiavel, fundamental para compreender sua alternativa, impõe esses limites e os torna incontornáveis. Costuma-se chamá-la de "concepção cíclica", e convencionou-se atribuí-la aos historiadores e pensadores políticos da Antiguidade. Se tal concepção pode ser assim generalizada, é algo muito controverso9 9 . Ver, por exemplo, a crítica dessa generalização em Momigliano (2004). . O fato, porém, é que em Maquiavel ela se apresenta articulada, coerentemente, com a ideia de que os recursos político-morais - a "quantidade" de virtu - à disposição da humanidade são fixos. Sendo assim, se esses recursos estiverem muito concentrados em certos povos numa determinada época, o estarão menos em outros povos; mesmo que a virtu possa migrar, com o passar do tempo, de um povo para outro, sua quantidade total no mundo será sempre a mesma10 10 . Em seus desdobramentos concretos, essa relação abstrata informa, por exemplo, os diversos dilemas que o pensador florentino apresenta às escolhas estratégicas de príncipes e repúblicas - notadamente, no caso das repúblicas, entre a opção defensiva e a expansiva em política externa (Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, livro I, cap.6). Para uma formulação global, quase cosmológica, do problema, ver os "Proêmios" do livro II dos Discursos. . A finitude da virtu impõe a finitude do tempo da república, de modo que essa última dimensão não é um recurso apropriado para resolver o desequilíbrio constitucional que advém dos conflitos sociais. A carência dele é compensada, então, pela dimensão espacial, que repõe o equilíbrio através da ampliação da república. Porém, é uma reposição apenas provisória, pois na verdade a expansão territorial é uma "fuga para frente", um adiamento da corrupção e não seu banimento.

Sem dúvida, para Maquiavel isso não se apresenta propriamente como um problema, pois o ciclo das repúblicas nada mais é do que uma expressão do ciclo da natureza: nascimento, crescimento, apogeu, declínio e morte. Em sua visão, importa menos a duração da república do que a qualidade política dessa duração, ou seja, o que a virtu de homens e povos for capaz de fazer entre o início e o fim do ciclo. Contudo, a passagem da república como constituição mista, para a república como Estado, nas teorias soberanistas, muda os termos da questão, sugerindo novos modos de respondê-la. Na verdade, o problema da democracia moderna, que aqui vai irmanado com a reelaboração da herança intelectual do soberanismo e do Estado, apenas os consagra da maneira mais límpida possível. Através dessa reelaboração, não só a intuição seminal do republicanismo de Maquiavel sobre a desejabilidade do conflito recebe pleno reconhecimento - a ponto de virar lugar-comum do discurso político -, mas o problema de sua vazão ganha um novo horizonte de possibilidades.

Há que insistir neste ponto: fazer do conflito social algo desejável não é o mesmo que torná-lo um bem em si. O problema original maquiaveliano permanece: todo conflito requer vazão, e o bem que produz está condicionado a isso. O que há de novo é que a democracia como igualdade de condições, inteiramente afinada com a nova concepção do tempo, endossa e pede a expectativa de transformação social. A sociedade democrática não tem outro modo de existir senão ao modo da transformação: a alternativa é seu próprio perecimento. E ela não pode transformar-se a não ser pelo conflito.

Mas "transformação", aqui, não tem o sentido de uma mera modificação de alguma coisa para qualquer outra coisa. Pois que ganho haveria nisso? A transformação significa uma mudança de qualidade, uma mudança com valor. É o valor que a enriquece e a credencia política e moralmente. No quadro das convicções democráticas, este só pode ser o valor da igualdade. Assim, quando a mudança se enxerta de mais igualdade - mais da mesma dimensão ou mais de novas dimensões de igualdade -, ela adquire o aspecto de preenchimento, parcial que seja, da expectativa de transformação. O vir-a-ser da igualdade consuma-se então como sinônimo do próprio aperfeiçoamento da teia das relações humanas: é isso que a "Era da Revolução Democrática", passou a chamar de progresso. A inflexão dos termos originais do problema da vazão não poderia ser mais clara: trata-se agora de conquistar o futuro, e não povos e territórios. Nesta altura, também há de ficar mais claro como a questão democrática vincula-se intimamente à ontologia da sociedade em sentido moderno, discutida na seção anterior. Pois a democracia como forma de sociedade nada mais é do que a qualificação político-moral da sociedade como processo. E é na medida em que o processo torna-se progresso que o conflito social encontra sua vazão.

SOBERANIA POPULAR, DEMOCRACIA E GOVERNO REPRESENTATIVO

Devemos agora nos aproximar do problema da relação entre a questão democrática e a representação política. Como tal, a democracia ganha o terreno de um problema institucional. Tocqueville, como se sabe, ao definir a democracia como igualdade de condições, pensou que essa forma social poderia gerar diferentes e contraditórios regimes políticos, inclusive regimes de negação das liberdades políticas. Democracia social não é o mesmo que democracia política. Essa distinção parece reiterar, em outros termos, a clivagem entre forma social e forma institucional, típica da vertente soberanista do pensamento político. Mas o próprio autor, no mesmo capítulo em que assinala a divergência entre igualdade e liberdade, reconhece que a igualdade de condições gera enorme pressão no sentido da igualdade política, a qual é impossível de ser praticada sem liberdade11 11 . Cf. A. de Tocqueville (Democracia na América,vol. II, segundolivro, cap. 1). Opresente autor segue a leitura crítica de Lefort (1999:69) a respeito desse ponto: "A obstinação em reduzir a democracia a um estado social, a igualdade de condições, contraria sua reflexão sobre a liberdade democrática, sem impedi-lo, diga-se, de escrutar todos os sinais dessa liberdade". . Por outro lado, não fica claro em seu argumento como a própria igualdade de condições poderia sustentar-se a longo prazo sem que ela ganhasse o terreno crucial do poder político e lá permanecesse. A questão da clivagem entre forma social e forma política continua fundamental, mas talvez pudesse ser formulada de modo mais frutífero. Seria mais interessante, ao ver deste artigo, dizer que a democracia como igualdade de condições gera em si mesma os fatores de sua possível autossubversão, começando pela subversão da forma política; que a sociedade democrática, em vez de ser capaz de produzir regimes políticos não democráticos, na realidade carrega consigo forças que podem levá-la, inclusive através da colonização da forma política, à sua própria regressão para formas sociais não democráticas. Diga-se de passagem, o progresso democrático é uma expectativa, jamais um fato inexorável.

Como na primeira seção deste texto, o problema a ser abordado se desdobra em dois níveis: a representação da ideia pelo ator e a representação do ator pelo ator, a forma descendente e a forma ascendente. No primeiro nível, representar democraticamente significa construir, no Estado, a soberania popular. Por sua vez, construir a soberania popular significa tornar ator coletivo - "personificar", para quem prefira a terminologia de Hobbes e Rousseau, resguardados os equívocos e a memória negativa que seu teor absolutista produzem - a sociedade democrática, ou melhor, sua ideia. No segundo nível, representar significa operacionalizar a soberania popular, produzindo o jogo entre o sujeito representado e o sujeito representante através do complexo de instituições condensado no conceito de governo representativo.

Tome-se, em primeiro lugar, uma questão já antecipada pelos pioneiros modernos da defesa do Estado soberano, mas que só ganha plena maturidade com o avanço político do pensamento democrático e da ideia da sociedade democrática. Qual seja: uma vez rejeitada a hierarquia estamental, a estrutura institucional do Estado não pode mais reconhecer grupos sociais fixos como elementos primários de sua articulação política e jurídica. Direitos e deveres, a distribuição do valor da igualdade, a própria lei, devem então ser pensados tendo em vista essa mudança na imagem da sociedade. Em especial, grupos fixos não podem mais integrar a distribuição oficial do poder político. O modelo clássico da constituição mista perde legitimidade: cidadãos como indivíduos independentes, em vez de cidadãos integrados a grupos distintos, passam a ocupar o papel de elementos primários do arranjo institucional, ainda que grupos sociais continuem a existir e a ser atores fundamentais do jogo político - agora, porém, como elementos derivados e fluidos.

Sublinhe-se, porém, que a individualidade da cidadania reflete apenas a desnaturalização da pertença social e não o fato óbvio de que indivíduos são também seres sociais. Não é esse fato que é posto em questão, mas sua ontologia: o que se entende por ser social e como este se conserva ou se modifica. Indivíduos podem mover-se para cima ou para baixo da hierarquia social com mais ou menos liberdade, dependendo da rigidez ou plasticidade da estratificação. A expectativa democrática da mobilidade social e, portanto, da provisoriedade da pertença num determinado degrau da hierarquia, rejeita a rigidez em favor da plasticidade. Isso bloqueia a alternativa de congelar a própria hierarquia social, e a ligação do indivíduo a seu degrau de origem, no direito e na estrutura oficial do poder político. Essa inflexão, ao contrário de sufocar o conflito, simplesmente o libera, tornando-o mais amplo, difuso e dinâmico. Trata-se do tipo de embate de grupos que nossa época se acostumou a chamar de "luta de classes" que, em vez de eclipsar, apenas ganha sua maioridade e verdadeira importância quando, acompanhando aquela inflexão, a mutante forma social se desamarra do arranjo institucional12 12 . Certos expoentes da sociologia moderna, como Max Weber, ao se darem conta desse caráter mutante da forma social, resolveram distinguir o conceito de "estamento" ou "grupo de status" do conceito de "classe social". Sobre essa questão, ver Nisbet (1993, cap. 5). .

Nesse contexto, faz todo sentido distinguir "Estado" e "sociedade". Essa distinção é filha da nova imagem da clivagem social, acima descrita. Se a imagem da sociedade fosse o de um todo homogêneo, fixo e sem fissuras, não teria sentido falar do par "Estado/sociedade", que de resto é também uma clivagem. Justamente para reconhecer a divisão e a diferenciação social em sua plenitude, o Estado tem de aparecer como uma agência superposta à sociedade. Reconhecer significa dar valor: com isso se dignifica esses dois fatos, a divisão e a diferenciação, e seu papel na busca do aperfeiçoamento humano. Revertendo a imagem tradicional, a unidade da sociedade deixa de ser considerada um dado para tornar-se um problema: é necessário falar agora não de uma unidade de partida, mas de um processo de unificação, algo que requer um esforço, que exige a iniciativa do ator. A partida desse processo, ao contrário, é a fratura social: a "sociedade" do par "Estado/sociedade" assinala esse ponto.

Vê-se por que a inteligência política precisa, outra vez, do recurso da concepção do tempo histórico aberto e infinito para acomodar essa dupla demanda. Pois distinguir "Estado" e "sociedade" nada mais é do que clivar a própria dimensão do tempo em dois momentos: o da divisão eoda unificação. Rigorosamente falando, é o todo social - não sendo apenas espaço, como já anotado, mas espaço e tempo - que se encontra cindido em Estado e sociedade. O Estado é uma espécie de antecipação da unidade a alcançar: uma antecipação do futuro, embora sua estrutura institucional esteja empiricamente cravada no presente. Como tal, ele não pode ser reduzido a um tipo de organização ou de aparato administrativo dotado de força coercitiva e capacidade material para sustentar um governo - ainda que também o seja, é claro. Escapa a essa redução seu papel normativo, como um "ente de razão", para usar o termo de Rousseau. A despeito de estar cravado no presente, como se disse, ele tem de se projetar na dimensão do tempo segundo a antecipação racional que o ator venha a fazer do futuro social. Enquanto a sociedade da qual se distingue e com a qual faz um par é o aqui e agora, o presente por inteiro, o Estado apenas "adere" ao presente, buscando transcendê-lo por via daquela antecipação.

Mas o que essas considerações têm a ver com a questão da representação política na democracia? Clivagem social, clivagem Estado/sociedade: parece estranho continuar a admitir essas distinções, uma vez que fique evidente que o Estado também faz parte da sociedade. Por isso se disse anteriormente que o todo social não é apenas "sociedade", e, sim, "sociedade" mais "Estado". Embora possam provocar certa confusão, os termos empregados têm o propósito de realçar o vínculo entre os conceitos de duplicação e de representação, envolvido na trama de um arranjo institucional que tenha como âncora uma certa ideia de sociedade. Já na obra de Hobbes se destaca o uso que ele faz da analogia da máscara do teatro para explicar o conceito de soberania, e então aproximá-lo do conceito de representação13 13 . Cf. T. Hobbes (Leviatã, Parte I, cap. 16). A esse respeito, ver Araujo (2006:234-242). . A máscara é um artefato, a construção de uma personalidade artificial a partir de um objeto original, que pode ser uma pessoa, uma coisa ou mesmo uma ideia abstrata. Mas não se trata de uma mera cópia, pois nesse caso o trabalho da máscara seria redundante e inútil. É que a máscara tematiza algo do objeto representado, iluminando certos aspectos, sombreando outros, como a pintura ou o retrato. Ao fazer a duplicação do original, a máscara produz um efeito de deslocamento. Ou seja, a duplicação faz uma espécie de glosa, produz uma diferença em relação ao original, reposicionando-o. Inicia-se então um jogo de vaivém entre os dois lados, o objeto original e o artificial, cada qual se reposicionando a cada novo lance. Além disso, a escolha da analogia da máscara do teatro é sugestiva porque a máscara - indo agora além da pintura, que admite a natureza morta - é sempre uma personificação, feita para se expor a uma audiência. Mesmo que o original não seja, ele mesmo, uma pessoa, mas uma coisa ou ideia abstrata, trata-se sempre de transformar o original num ator público . A duplicação precisa, portanto, não só deslocar, mas ser encenada numa arena em que seres humanos agem e reagem.

De certo modo, esse é o jogo da representação política. Em sua operação, ele deve glosar a divisão social14 14 . A questão do agenciamento da diferenciação social será abordada na próxima seção. e, através de uma projeção do todo social (a ideia), levá-la para a cena, a arena pública, com um efeito de deslocamento. Isto é, fazendo com que a fratura original seja duplicada de maneira não redundante e, portanto, produzindo uma diferença. Lembrando outra vez a definição de Pitkin, representar é "em algum sentido tornar presente algo que, porém, não está literalmente ou de fato presente". O efeito político da representação não se dará se esta última copiar ipsis literis a fratura original. A cópia, nesse caso, produziria mera substituição, a qual não só não acrescentaria nada na passagem do representado para o representante, como encobriria inteiramente o espaço e o conteúdo do representado, cessando o necessário movimento de vaivém que daria continuidade aos reposicionamentos recíprocos dos dois polos do jogo.

Note-se, porém, que, assim como no caso da fratura social original, a própria ideia, que é objeto de projeção do ator representante, não poderia ser meramente "copiada" de um modelo original. Como a ideia não é o produto de uma imaginação solipsista - assim como o ator não é um sujeito fechado em si mesmo -, ela só pode emergir do atrito social e da relação intersubjetiva. Para tanto, a ideia deve ser questão de disputa na arena pública. Disputá-la não significa outra coisa que levar para a cena política o conflito entre as partes em que a sociedade se divide, duplicando-o, todavia, numa perspectiva e numa linguagem diferentes do conflito original. A diferença está em que, enquanto a cisão de origem é o aqui e agora, ejetada ao mundo no tempo-instante, a cisão que se encena é glosada pela projeção do vir-a-ser social, exposta no horizonte do tempo-duração (o ciclo longo do processo), o qual oferece, pelo discurso político, uma proposta de vínculo entre o presente e o futuro. A parte continua sendo representada como parte, porém obrigada, na arena pública, a se expor na perspectiva de uma ideia do todo15 15 . "Isto quer dizer que, se o Estado democrático tem as divisões e contradições sociais como inevitáveis, ele nem por isto as toma como absolutamente congeladas e insuscetíveis de superação, ou só admitindo soluções de barganha, esteadas em compromissos de interesses, dos quais não faz parte nenhum princípio de legitimidade" (Brum Torres, 1986:47). . Exatamente porque o sujeito representante não pode deixar de carregar seu elemento de parcialidade - ele é sempre o representante de uma parte -, a ideia desse todo não pode ser objeto de monopólio de nenhuma agência comprometida com o jogo da representação. Fazê-lo seria o mesmo que encobrir toda a ideia, cujo significado original já se saberia de antemão e acima de qualquer dúvida, cabendo apenas "copiá-lo", e assim transformar algo que deveria ser uma imagem pública, de sentido aberto, numa imagem privada, de sentido fechado. Rigorosamente falando, ideia representada e sujeito representante só podem ser ideia e ator no plural, tanto quanto é plural o sujeito representado, de onde emerge o conflito entre as partes16 16 . Essa flexão do ator no plural pode ser chamada de a "condição de pluralidade" do conflito e do jogo da representação democrática. Porém, não se deve confundi-la com o conceito de pluralismo inspirado no liberalismo político, como se verá na próxima seção. . A arena pública é a cena de um choque de atores que disputam sobre divergentes ideias do todo social, cada qual fazendo-o a partir do lugar ocupado por sua parte na própria arena.

Para realçar a ideia do jogo de vaivém entre o representado e o representante, Urbinati fala da representação como uma circulação entre sociedade e Estado, circulação que "torna o social, político" e vice-versa (cf. Urbinati, 2006:24 e 27). O termo é muito oportuno. Além de sublinhar que a representação é mediação, não sendo atributo exclusivo de um de seus polos (o representante), ele também sugere que a distinção entre Estado e sociedade não é algo dado, cujas fronteiras estão traçadas para todo o sempre. Na verdade, é a própria atividade da representação que repõe a cisão entre Estado e sociedade, na medida em que, a cada circulação, as fronteiras entre ambos são redefinidas. Assim o é porque a representação, se opera ao modo de uma duplicação não redundante, tensiona esses dois lados do espaço-tempo social e os desloca de suas posições iniciais. Similarmente, a representação bem-ordenada estimula os cidadãos a não fundir sua identidade social à sua identidade política17 17 . O que repercute em sistemas partidários e eleitorais democráticos - regidos pelo sufrágio universal e contrastados aos sistemas antes dominados pelos "notáveis" (de voto censitário) - na tendência de "dissociação dos candidatos de suas classes sociais" (Urbinati, 2006:20). . De fato, ao repor, em sua atividade, as fronteiras entre Estado e sociedade, ela provoca no cidadão que se sente representado um questionamento de sua identidade social pré-política, retirando-a de sua naturalidade, para situá-la na perspectiva da transformação, do aperfeiçoamento humano. Nesse sentido, ela guarda uma forte afinidade com as expectativas progressistas e igualitárias da sociedade democrática, com sua desaprovação do enclausuramento dos indivíduos em grupos fixos e seus respectivos degraus numa dada hierarquia social - clausura essa que significaria a reiteração e o congelamento de uma certa distribuição de poder e prestígio social, isto é, a fixação da própria hierarquia.

Em face desse vínculo entre duplicação e representação, cabem ainda algumas notas exploratórias sobre o governo representativo. Este artigo segue o conceito proposto por Manin, que vincula o governo representativo a uma forma de governo eletivo regido por quatro práticas fundamentais: 1) a eleição periódica dos governantes; 2) a liberdade de opinião pública; 3) as decisões tomadas com base em prévia discussão por um colégio de representantes eleitos; 4) a autonomia parcial dos eleitos em relação aos eleitores (cf. Manin, 1997, cap. 5). A definição visa distinguir o governo representativo, tanto do governo hereditário, quanto de uma forma de governo popular não fundada na eleição (o governo por sorteio). Haveria uma série de apontamentos e questões a fazer a esses critérios, alguns deles já expostos por este autor em outro lugar (cf. Araujo, 2009). Aqui, vale apenas chamar a atenção para o problema da dívida do governo representativo para com o princípio do consentimento: o direito igual de consentir ao poder político. Como o próprio Manin salienta:

No tempo em que o governo representativo surgiu, o tipo de igualdade política que estava no centro das atenções era o direito igual de consentir ao poder, e não - ou muito menos do que - uma igual chance de ocupar um cargo público [como no governo por sorteio]. Isso significa que uma nova concepção de cidadania tinha emergido: os cidadãos eram vistos agora como a fonte da legitimidade política, em vez de pessoas que poderiam, elas mesmas, desejar ocupar cargos. (Manin, 1997:92)

A concepção de cidadania a que o autor se refere, curiosamente, é afim à distinção entre a questão da legitimidade e a da forma de governo, desenvolvida pelas teorias soberanistas. Essas teorias estavam preocupadas com o princípio do consentimento não, primariamente, para constituir governos concretos, mas como um fundamento hipotético da soberania. E assim, os primeiros soberanistas podiam defender um princípio universal de consentimento sem necessariamente endossar o governo eletivo. Mesmo os pensadores pioneiros da soberania popular, como Rousseau - que claramente distinguia soberania e governo -, não tinham dificuldades de sustentar essa diferença18 18 . Para uma análise de por que e como Rousseau prioriza a questão da legitimidade sobre o velho problema da melhor forma de governo, ver Bignotto (2010:140-150). . O vínculo obrigatório entre aquele princípio e a eleição de governantes só ocorrerá mais tarde - de fato, só com o advento da política democrática.

Uma distância histórica separa, portanto, o governo representativo original de seu tipo democrático. E uma distância conceitual separa a soberania, inclusive a soberania popular, do governo representativo democrático. Na história intelectual de ambos há um termo comum equívoco, "representação", que, porém, varia de significado na passagem de um conceito para o outro, e cuja implicação recíproca não é necessária. Este artigo pretende que esses conceitos só vão se implicar reciprocamente na medida em que o cidadão representado for reconhecido como ator imprescindível no jogo da representação, fazendo com que a operação do soberano (o povo) obrigue à operação do governo representativo e vice-versa. Em outras palavras, para o advento da política democrática, ao princípio universal do consentimento deve corresponder à universalização do cidadão-ator - questão que, porém, não se reduz a torná-lo um eleitor. Há que discutir um pouco mais essa questão.

Um ponto crucial do reconhecimento do cidadão-ator é evitar concepções que estipulam que o campo do representante deve encobrir completamente o campo do representado. São típicas, nessa direção, as teorias que identificam o consentimento com a simples autorização ou substituição, como já observado antes. O consentimento como um gesto que autoriza incondicionalmente esvazia, na prática, toda a densidade de ator do sujeito representado. Não muito distante disso, porém, é reduzir o consentimento a simples manifestação de preferência, como se preferências não tivessem de ser ponderadas pela opinião e pelo discurso político. Todas essas concepções acabam repercutindo no modo como se interpreta a participação do cidadão nas instituições do governo representativo, especialmente sua participação por meio do voto. Porém, ao fazer sua crítica, não se trata de diminuir a importância da eleição e do voto, mas de inseri-los num contexto mais amplo que esclareça como seu exercício se vincula à ativação do soberano. Esses institutos do governo representativo são, sim, cruciais, mas não apenas porque selecionam governantes e lhes emprestam legitimidade para exercer seus cargos. A questão é que, além de produzir governantes, a eleição e o voto democrático estimulam o circuito da representação, ativam a circulação entre Estado e sociedade.

O brilhante estudo de Urbinati sobre a democracia representativa, já citado nesta seção, sublinha exatamente esse ponto. A representação, como modo privilegiado da política democrática, não pretende um contato fugaz (o momento eleitoral) de governantes e governados, mas visa a um elo contínuo entre ambos e também entre os próprios governados. Nunca é demais insistir nesse aspecto da continuidade. A política representativa, diz Urbinati, é um "processo", não se reduzindo a um determinado lugar ou instante. Daí a autora dizer que a democracia representativa é um "regime do tempo" e "orientado ao futuro":

Ao contrário do voto em questões pontuais (democracia direta), um voto por um candidato reflete a longue durée e efetividade de uma opinião política ou uma constelação de opiniões políticas; ele reflete o julgamento dos cidadãos sobre uma plataforma política, ou um conjunto de demandas e ideias ao longo do tempo (a democracia representativa é então vista como um regime do tempo [time-regime]. (Urbinati:31; ênfase no original)

Repare-se, porém, o sentido especial do conceito de opinião. Por uma longa época, antes do advento da cultura política democrática, a opinião era tida como uma memória compartilhada, um depósito ancestral de práticas e rituais reiterados, modos não questionados de entender o passado e o presente da vida comunitária, capaz de influenciar decisivamente seu destino político. Como tal, ela se confundia com o costume, um hábito social que, ao controlar a vontade coletiva e orientá-la numa mesma direção, poderia garantir a harmonia e a estabilidade social. Voltada para a preservação da tradição, a política da opinião, nesse contexto, era a de preservá-la do exame crítico e da contestação aberta. A opinião era um tesouro a ser muito bem guardado, como um tipo de objeto sagrado, e seu escrutínio, acessível apenas aos "sábios".

Contudo, com a emergência da questão democrática, a opinião sofre uma notável inflexão de sentido - precisamente porque perde esse caráter sagrado, tornando-se objeto contestável. Em suma, a opinião passa a submeter-se à "condição de publicidade", para empregar um termo kantiano muito em voga atualmente: a opinião é pública e visa a um público que a examina incessantemente. E com o advento do governo representativo democrático, a opinião pública ganha um papel decisivo na integração do circuito da representação política. Na verdade, porém, esse papel no jogo da representação já é antecipado no conceito moderno de soberania e na sua cumplicidade com a ideia do contrato social. O contrato implica a obrigação do soberano de orientar suas decisões (sua vontade) supondo o consentimento dos governados. Ou seja, no desempenho de suas funções, é como se tivesse de estabelecer um elo imaginário, e contínuo, com seus governados. Mas aquilo que no contratualismo é apenas uma suposição, uma hipótese, torna-se, na democracia, uma pressão normativa palpável, projetada em instituições reais.

Uma opinião pública, é claro, não se sustenta no vazio: ela não pode subsistir numa sociedade pastosa e desarticulada. Daí a necessidade de supor, na concepção de sociedade democrática, um manancial de "corpos intermediários" que, mesmo não tendo nascido com um propósito político, possam predispor os cidadãos à ação coletiva, não só para enfrentar problemas específicos de qualquer natureza, mas para o exercício de estar atentos aos problemas comuns de toda a comunidade política. É o que se costuma chamar de "sociedade civil". Enquanto opinião pública e sociedade civil, a sociedade é ator. O conceito de sociedade civil, porém, não deve induzir à imagem de uma oposição estanque entre Estado e sociedade, como se o conflito estivesse vertebrado essencialmente nessa linha vertical: os cidadãos, embaixo, contra o Estado, em cima. Há que insistir: a dualidade Estado/sociedade emerge do conflito entre os próprios cidadãos, e só faz sentido por causa disso. De modo que o manancial mesmo de corpos intermediários deriva e é estimulado pelo conflito entre os cidadãos. O reconhecimento da condição de ator do cidadão não pode abstrair desse dado originário da questão democrática.

Esse ponto dá ensejo a uma reelaboração da dualidade "estado de natureza"/"ordem civil" do contratualismo moderno. Sua formulação clássica faz pensar, equivocadamente, na relação entre um antes e um depois, como se o estado de natureza, significando a condição do conflito, tivesse de ser definitivamente superado pela condição civil, a qual, sob a égide do Estado soberano, significaria a unidade do todo social. Se, porém, pretende-se preservar a condição de conflito como elemento dinâmico da sociedade democrática, não se pode confiná-la ao conceito de estado de natureza. No fundo, a condição de conflito inscreve essas duas possibilidades opostas: o estado de natureza, por um lado, e a ordem civil, por outro. Sob esse ponto de vista, o conflito social, como já se afirmou neste capítulo, não é nem bom nem ruim, construtivo ou destrutivo em si mesmo. O conflito possui um potencial de transformação positiva (o progresso), mas isso depende de os cidadãos serem capazes de articulá-lo e organizá-lo. A possibilidade de seu contrário (o regresso), portanto, também está inscrito nele.

A forma com que o jogo da representação se desdobra é, nesse sentido, questão decisiva. A representação, na medida em que não ofereça perspectiva de vazão do conflito, para, desse modo, deflagrar um processo de unificação, torna-se parte do problema, e não sua resposta. E assim, a duplicação com efeito de deslocamento, que deveria produzir, converte-se em duplicação redundante: em vez de glosar o conflito social, tematizando-o, começa a tematizar a si mesma, num jogo perverso de autorreferência. Com isso o próprio Estado, esvaziando-se de seu elemento de idealidade, como "ente de razão", ingressa na trilha de sua redução a simples aparato administrativo e coercitivo.

Diga-se de passagem, o equívoco maior da ideia de "personificação", em sentido absolutista, é pensar o soberano como um substrato que se encarna numa pessoa concreta, por sua vez identificada com um aparato ou organização. Assim reificado, o Estado soberano perde sua qualidade de sujeito normativo, o qual é melhor definido pelas expectativas de realização de valor que procura promover, do que pelo fato de existir, aqui e agora, como uma coisa. Ao hipertrofiar-se, o aparato do Estado, descontrolado e sem qualquer propósito que não seja sua própria expansão, em vez de salvaguarda e promotor da ordem civil, torna-se produtor de estado de natureza. Pois a ordem civil só faz sentido, como o oposto do estado de natureza, se oferece as condições para o exercício da liberdade dos cidadãos. Essa liberdade se alimenta do conflito social, seu combustível indispensável: é assim que o cidadão se faz ator. Mas se o jogo da representação se enerva e perde capacidade de encenar na arena pública a cisão da sociedade, é o cidadão mesmo que é descaracterizado como ator, abrindo-se espaço para a dominação política, isto é, a representação fechada em si mesma e a prevalência do Estado como aparato puro e simples. Da dominação política, passa-se então à dominação social: a sociedade democrática que se vai desmanchando na esteira da regressão de sua forma institucional19 19 . Este parágrafo e o anterior foram extraídos, com alterações, de artigo do autor que acaba de ser publicado na Revista Brasileira de Ciência Política (cf. Araujo, 2012). .

O que está em jogo, portanto, na dualidade estado de natureza/ordem civil, é a dualidade dominação/liberdade. A soberania popular não é outra coisa senão o exercício da liberdade; e a ordem civil, o quadro geral em que o par Estado/sociedade, junto com o complexo de instituições do governo representativo, se fazem efetivamente um viver civil, dignificando a forma política. É isso o que significa tornar o Estado soberano parte da república.

PLURALISMO, NEUTRALIZAÇÃO E POLITIZAÇÃO

Falou-se até aqui do exercício da liberdade tout court. No entanto, para interpretar o conceito de pluralismo esta reflexão parte da célebre distinção entre liberdade positiva e liberdade negativa. Tratar a liberdade desse modo é certamente polêmico, tendo recebido muitas críticas pelo menos desde que Berlin o tornou canónico. De fato, a fim de esclarecer o ideal do pluralismo, é frutífero aceitar parcialmente essa distinção, ou seja, fazendo um recorte bem mais restrito do que o pretendido em sua formulação original, e sem endossar os argumentos que Berlin oferece para justificá-la. Aqui, a liberdade positiva é simplesmente a liberdade para a política, um espaço do agir que visa influenciar as decisões do soberano; enquanto a liberdade negativa é a liberdade da política, um espaço colocado fora do alcance dessas decisões, embora constituído pelo próprio soberano. Mas nada disso implica o comprometimento com uma definição geral de "liberdade negativa" como uma capacidade humana, boa em si mesma, de fazer ou deixar de fazer algo, independente de seu propósito. Pois ela nos levaria à conclusão berliniana, no limite, absurda, de que restringi-la, com a coerção se necessário, "é ruim em si mesma, embora possa ter de ser aplicada para prevenir outros males maiores; ao passo que a não interferência, que é o oposto da coerção, é boa em si mesma, embora não seja o único bem" (Berlin, 2002:234). Ronald Dworkin mostrou com clareza por que, no limite, tal raciocínio é insustentável:

Suponha que eu queira assassinar meus críticos. A lei irá me impedir de fazê-lo, e a lei irá, portanto, na visão de Berlin, restringir minha liberdade. Naturalmente, todos concordam que eu devo ser impedido [...]. [Porém,] se não há nada de errado em ser impedido de matar meus críticos, então não temos motivo de adotar uma concepção de liberdade que descreve o evento como algo em que a liberdade foi sacrificada. (Dworkin, 2006:115)20 20 . Para outros aspectos dessa discussão, envolvendo o campo temático da república e do republicanismo, ver as contribuições de Pettit (1997) e Skinner (1998), e a análise de Silva (2008).

A distinção entre liberdade negativa e positiva restringe-se, neste texto, ao intuito de demarcar dois espaços do agir do cidadão, sem que se precise lançar mão de dois conceitos opostos de liberdade. No fundo, como se verá abaixo, uma mesma concepção básica de liberdade orienta essa demarcação. Além disso, não se deve pensar que tais espaços estão separados por uma fronteira fixa e impermeável. De fato, há sempre um potencial de conversão da liberdade negativa em liberdade positiva. E também no sentido contrário. É que uma mesma capacidade humana de agir - a capacidade de falar ou se expressar, de se reunir e de se associar etc. - pode atualizar-se, seja como liberdade negativa, seja como liberdade positiva. Sendo sua separação porosa, a passagem depende de certas circunstâncias que levam ou a neutralizar o sentido político ou, ao contrário, a politizar o quadro de ações possíveis do cidadão.

Regimes autoritários desmobilizadores, por exemplo, ao tentarem diminuir o espaço da liberdade positiva em favor da negativa, acabam, de modo não intencional, politizando todos os lugares em princípio reservados apenas a esta ultima. Pois seus próceres logo se dão conta da porosidade acima referida, e passam a suspeitar, e em seguida perceber, que a liberdade expurgada de um lugar, inevitavelmente se insinua em outro. Parecerá, pois, impossível manter a liberdade política sob rígido controle, sem tentar controlar todas as manifestações possíveis de liberdade, indistintamente. Mas intervindo assim de modo indiscriminado, o próprio regime as torna todas elas politizáveis, não por seus agentes, mas pelos cidadãos que vierem a se opor ao regime. Por outro lado, há também regimes autoritários mobilizadores - regimes totalitários, especialmente - que procuram, por princípio, politizar todos os aspectos da vida social, eliminando, agora de modo intencional, a diferença entre a liberdade negativa e a positiva. Fazem-no, porém, não em favor da liberdade dos cidadãos de influenciar o soberano em qualquer alternativa que seja, e, sim, com o intuito de forçá-los a uma mesma e única direção. Mas ao tentarem politizar tudo, acabam produzindo o efeito exatamente oposto: não por acaso, a forma mais típica de oposição a eles é a apatia deliberada, a recusa de engajar-se. Requerendo a mobilização política como seu modo privilegiado de sustentação, tais regimes terminam, assim, por beber de seu próprio veneno21 21 . Apesar de voltados para uma outra discussão, os termos "mobilizador" e "desmobilizador" para qualificar regimes autoritários foram sugeridos a este autor por Debrun (1983: esp. 13-20).

A passagem de uma liberdade para outra também pode (e deve) acontecer em regimes democráticos, cujas constituições, porém, procuram manter um equilíbrio dinâmico entre ambas. O conceito de pluralismo fornece, nesse contexto, matéria interessante para pensar a questão. É preciso, no entanto, evitar algumas confusões. Primeiro, não se pode igualar a distinção entre liberdade negativa e positiva com a distinção entre "Estado" e "sociedade", formulada anteriormente. Como se viu, a "sociedade" é ator, e o ator pode manifestar-se das mais diferentes formas, inclusive ao modo da liberdade negativa ou da positiva. Seu conceito envolve, portanto, todas as possibilidades pelas quais o mundo social se divide ou se diferencia. Mas a divisão é potencialmente produtora de liberdade para a política, ao ensejar o conflito social; e a diferenciação é potencialmente produtora de liberdade da política, de sua neutralização. Consequentemente, não se pode confundir, em segundo lugar, o conceito de pluralismo, tal como se o entende aqui, com aquilo que vários autores chamam de "condição de pluralidade", que é uma exigência da arena pública da política, na qual o conflito se dá, embora mediado pela representação22 22 . Em vários de seus escritos, Hanna Arendt alude à condição de pluralidade para descrever qualquer espaço de embate de opiniões políticas, por exemplo, a polis grega. É, portanto, condição de exercício da liberdade positiva, e nada tem a ver com o conceito de pluralismo como forma de exercer a liberdade negativa. Cf., entre outros, Arendt (1972:292). .

Apesar de efeito da secularização política, a ideia moderna de pluralismo é perfeitamente compatível com a persistência da experiência religiosa. Porém, rejeita seu monopólio e sua fusão com a forma política. Mas a questão geral do pluralismo, embora tenha começado a ganhar sentido com a problematização do vínculo entre o político e o religioso, não se limita a esse campo. Desde o advento da liberdade religiosa, a questão vem, gradualmente, se estendendo a outras esferas da vida social: o pensamento filosófico e científico, o estilo de vida, a expressão artística, a conduta moral e sexual etc. Tal como a religiosa, são tantas outras esferas em que o constitucionalismo dos Estados modernos admitiu que se traçasse uma fronteira, ainda que porosa, com a arena do embate e das decisões políticas. O que explica esse desenvolvimento e como justificá-lo?

A resposta é que a secularização expressa uma aspiração por autonomia: a autonomia "cá embaixo", a autonomia deste mundo. No fundo, ela radicaliza algo já inscrito no Cristianismo, e aprofundado na Reforma Protestante, que é a subjetivização da vida, porém de uma forma que amplia o espaço da experiência social para fora da esfera religiosa. Daí o reconhecimento da individualidade. Esta, por sua vez, não é nada mais do que a prática do valor da autonomia pessoal (ou moral). Acompanhando, portanto, a perspectiva de alguns autores da teoria política normativa contemporânea, como Raz, este trabalho considera que há um intrincamento de fundo entre pluralismo e autonomia.

A ideia regente por trás do ideal da autonomia pessoal é que as pessoas deveriam fazer suas próprias vidas. A pessoa autónoma é (em parte) um autor de sua própria vida. O ideal da autonomia pessoal é a visão de que as pessoas controlam, até certo grau, seu próprio destino, moldando-o através de sucessivas decisões ao longo de suas vidas. (Raz, 1988:156)23 23 . Ver também Raz (1986, cap.14). Essa vinculação de pluralismo e autonomia pessoal não é ponto pacífico na literatura acadêmica. Cf., por exemplo, a crítica de Gray (2000:41 e ss). Ver, também, Rawls (1996:xliv-xlv).

É essa busca que leva à expectativa de que o Estado soberano respeite as muitas e contraditórias maneiras pelas quais uma pessoa moral pode tornar-se "autor" de sua vida.

Mas tanto quanto a autonomia pessoal (ou moral) e o pluralismo, a subjetivização da vida social também põe na ordem do dia a demanda pela autonomia da esfera política (a soberania): ambas são a face e a contraface da secularização. A soberania significa a afirmação da autonomia de uma comunidade política, vista como uma comunidade de cidadãos-indivíduos: autonomia interna da comunidade, a soberania popular, e autonomia externa, a soberania de umEstado frente a outros Estados. Dado esse ponto de interseção, faz todo sentido supor que a separação entre o que é próprio à esfera pessoal e o que à esfera política, se faz por uma superfície muito porosa - tal como ocorre com as liberdades negativa e positiva, no fundo apenas uma outra maneira de abordar o mesmo problema: a liberdade como autonomia24 24 . Essa afirmação, evidentemente, é contestada por quem não reconhece a cumplicidade do pluralismo com a autonomia. A rigor, a liberdade negativa é uma liberdade de fazer ou não fazer, um espaço institucional em que se poderia realizar uma gama de diferentes valores, ou nenhum. Porém - pelo menos até onde enxerga o presente autor -, como justificar o próprio direito a esse espaço senão pela demanda de autonomia pessoal? A liberdade negativa e o pluralismo parecem remeter, portanto, para a mesma questão de fundo, como se verá a seguir. - trazendo à tona a questão nunca bem resolvida do constitucionalismo moderno: como combinar, na prática, as duas expectativas? Em que ponto termina uma e começa a outra?

O valor da autonomia pessoal, porém, é diferente do valor da autossuficiência, a autarkeia clássica-antiga. Esta última solicita a plenitude e a satisfação - a eudaimonia -, enquanto a autonomia pode ser, no máximo, um pré-requisito dela. De qualquer forma, querer a autonomia não implica obrigatoriamente querer a autossuficiência, e vice-versa. O que a autonomia exige, em essência, é que a vida que levo seja (deliberadamente) endossada por mim, isto é, que "até certo grau", como diz Raz, eu seja "autor" de minha vida. Esse "até certo grau" exprime, é claro, o limite comunitário da autonomia pessoal, especialmente quando se põe em xeque a tese rousseauniana de que, numa comunidade bem ordenada (o contrato social), a liberdade do homem se realiza inteira e necessariamente na liberdade do cidadão, a liberdade política. Mas também exprime a cumplicidade ambígua da autonomia com a interdependência social. Pode-se mesmo dizer que a autonomia emerge historicamente como um valor moral de primeira ordem, no mesmo contexto em que se toma consciência de que indivíduos e comunidades estão mergulhados numa teia indefinida de relações sociais que só parcialmente está sob seu campo de controle, e, porém, produz impacto em suas vidas. Essa percepção é a própria imagem da sociedade como processo. A autonomia traduz uma ansiedade para com ela e, ao mesmo tempo, é um tipo de resposta que leva em conta o fato inescapável da interdependência que, afinal, essa forma de vida social produz. Nesse sentido, querer a articulação comunitária por meio da política pode ser interpretado como um esforço para ampliar o limitado controle humano sobre o processo social. Porém, este continuará excedendo os limites dessa articulação. Daí que o problema não se restrinja apenas à autonomia pessoal, afetando também a autonomia política.

A soberania requer necessariamente o endosso da vida comunitária que se leva, mas não a autossuficiência dessa comunidade. O que significa a percepção correlata de que a comunidade política, articulada na forma do Estado soberano, está mergulhada num mundo social mais amplo, que a impacta e, porém, ultrapassa seu campo de controle. Mesmo que a ansiedade para com a interdependência venha a solicitar uma agência ainda mais abrangente, como uma comunidade (internacional) de Estados que observem suas respectivas soberanias, ainda assim não se terá abarcado o todo social.

O que, enfim, essas observações põem a nu é a defasagem entre a sociedade como processo e a sociedade como ator. Esta última é um vínculo intencional, deliberado, de seres humanos - a comunidade -, enquanto a primeira é uma soma de interações intencionais e não intencionais, da qual resulta um todo não intencional25 25 . Não confundir, porém, o que se propõe aqui com o clássico par de opostos definido por Ferdinand Tonnies, a "comunidade" (Gemeinschaft) e a "sociedade" (Gesellschaft). Sobre este último, ver Nisbet (1993:71-79). . Porém, é só nas plenas circunstâncias da sociedade democrática, e sob a forma secular da representação, que a agência se vê duplicando, ao mesmo tempo, a sociedade como ator e a ideia da estrutura processual das relações sociais. Fazê-lo reflete, como se viu antes, uma mudança no modo de pensar o ser social. Mas como, assim pensado, se reproduz esse ser? Através da divisão e da diferenciação. Ao projetar a primeira forma, a agência duplica o conflito; ao projetar a segunda, ela duplica o pluralismo. Com esses dois recursos diversos, a sociedade como ator procura reduzir sua defasagem em relação ao desenvolvimento ininterrupto e indefinido da teia das relações sociais. Produzindo mais agência através de sua própria duplicação, é como se o ator se visse capacitado a intervir na sociedade-processo, imprimindo-lhe uma orientação, um direcionamento, e, com isso, enxertando-lhe valor humano. E não poderia ser de outro modo: o ser social só incorpora valor se de algum modo se deixa infundir (ainda que só parcialmente) pelos atributos do sujeito, entre os quais a intencionalidade. Graças a essa capacidade de intervenção com propósito, o ator pode se pensar como um sujeito endossando sua própria vida, isto é, realizando "em algum grau" o ideal da liberdade como autonomia. Por sua vez, a ontologia da divisão e da diferenciação define a possibilidade de bifurcar esse último ideal institucionalmente, nas direções da autonomia pessoal (a esfera da liberdade negativa), por um lado, e da autonomia política (a esfera da liberdade positiva), por outro. Vejamos essa questão um pouco mais de perto.

Sem dúvida, afirmar uma conexão interna entre o conceito de pluralismo e o da liberdade como autonomia leva a uma restrição no campo de concepções sobre o que é valioso na vida (concepções de "boa vida") que poderiam ser promovidas pelo primeiro. Pois a autonomia é um valor entre outros, e nem tudo o que pode ser concebido como valioso na vida é compatível com ela. Por exemplo, os valores implícitos em concepções paternalistas chocam-se com ela: o paternalismo é uma espécie de altruísmo e, no entanto, visa promover o bem alheio independente de os supostos beneficiados o endossarem. Essa concepção considera que o valor de uma ação permanece essencialmente o mesmo, ainda que seu beneficiado a deteste. É como se apenas levasse em conta o bem "objetivo" e não o bem "subjetivo". Do ponto de vista da autonomia, porém, uma ação tem seu valor prejudicado, ou mesmo anulado, quando o sujeito a quem se visa o benefício não a escolhe. Sua inquietação central é que nenhuma vida pode ser boa se ela não for julgada assim pelo próprio sujeito que a vive. Ter na mais alta consideração esse problema na conduta de alguém equivale a tratá-lo "como um fim em si mesmo, e não apenas como um meio", atitude que a moral kantiana chama de respeito26 26 . Cf. I. Kant, A metafísica dos costumes (Segunda Parte, "Doutrina dos Elementos da Ética", Parte II, cap. I, seção II, parág. 38). Sobre a crítica do paternalismo, ver Dworkin (2000:216-218). . Por outro lado, a autonomia, exatamente porque promove a faculdade da escolha e do juízo, é compatível com uma enorme variedade de valores e as respectivas concepções de boa vida. Essa variedade é o pluralismo. Como se vê, tal conceito define, sim, um pluralismo de valores, mas, ao mesmo tempo, assume a "hegemonia" do valor da autonomia. Portanto, ele não é inteiramente neutro em relação a todas as possíveis concepções de boa vida27 27 . Para um argumento distinto em defesa do pluralismo e da tolerância, mais próximo da visão rawlsiana, que, todavia, também problematiza a questão da neutralidade, ver Vita (2010). .

Do ponto de vista da presente análise, uma consequência importantíssima desse ideal é a expectativa de que, quanto mais livre a razão para conceber e praticar o que cada um entende ser valioso, maiores as chances de desdobramento das potencialidades humanas e de diversificação da vida comunitária. Isto é, livremente exercida, a razão prática, ao invés de reduzir, amplia o leque de opções sobre a melhor forma de viver e, ao fazê-lo, promove o florescimento, e não o recalque, de todos os possíveis talentos e habilidades do ser humano, no âmbito intelectual, artístico, moral, esportivo, e assim por diante28 28 . Assim, o pluralismo "não é visto como um desastre, mas antes como o resultado natural das atividades da razão humana sob instituições livres duradouras" (Rawls, 1996:xxvi). O autor acrescenta que, aceitar o pluralismo desse modo, vale dizer, não como uma falha no uso da razão, mas como "resultado natural" de seu bom uso, leva à concepção de um pluralismo "razoável", que vai além da mera constatação do fato bruto do pluralismo. Sobre um ideal de "união social" que visa ao florescimento das diversas potencialidades humanas, ver, também, Rawls (1971:458-460). . Expectativa positiva, que vai de par com a valorização da individualidade e a forma com que, através dela, se faz o aperfeiçoamento da vida humana em seu conjunto. Ela guarda, além disso, afinidade com um determinado modo de projetar a forma da sociedade: a diferenciação29 29 . Associado a um valor positivo, essa palavra não está comprometida neste estudo com a sociologia funcionalista ou a chamada "sociologia de sistemas", que a empregam para designar um processo inexorável e sempre neutro de valor. É certo que a diferenciação leva a um aumento da complexidade da sociedade-processo. Porém, há muitas maneiras de conceber essa complexidade, sem que se tome como necessárias as implicações cinzentas daquelas teorias. .

Como se indicou preliminarmente, a diferenciação e o pluralismo podem fazer com a divisão e o conflito social uma comunicação intensa e complexa. Há, nessa comunicação, um movimento de reforço mútuo entre a cisão da sociedade e a cisão interna do ator. Isso nos remete, outra vez, ao tema da subjjetivização do mundo. Seu ponto de partida é a busca religiosa, mas para dentro do sujeito, do autor da natureza e do homem, que então se transforma na busca da identidade pessoal - isto é, a busca do autor de sua própria vida. Mas ela não se faz no vazio, e, sim, no exercício mesmo de escolha entre concepções substantivas sobre o que é valioso na vida, reelaboradas a partir de recursos herdados da vida comunitária, inclusive sua própria identidade inicial. Dá-se, aqui, e de forma generalizada, o mesmo problema que emerge do advento do pluralismo religioso: a verdadeira religião, o Deus verdadeiro, deixa de ser uma questão dada, resolvida de antemão, e passa a ser uma procura permanente, nunca inteiramente resolvida pelo crente. Tal estado de coisas o leva a uma atividade reflexiva inédita, vale dizer, um questionamento da identidade herdada através da "quebra" imaginária do próprio Eu, que separa o Eu atual de um Eu virtual, aquele que, hipoteticamente, realizaria a concepção verdadeira.

Pode-se vislumbrar, neste ponto, algo como a "gênese psíquica" do jogo da representação: um esforço interno de deslocamento da identidade herdada para a identidade reelaborada. Nesse deslocamento, a consciência encena um embate interno do Eu consigo mesmo. Deslocamento que, porém, exige referências externas e uma orientação, sob pena de girar em falso - uma espécie de duplicação redundante do Eu - e ameaçar o próprio sujeito reflexivo de autodissolução. É isso, fundamentalmente, que o atira ao mundo, para o espaço da ação. Agir no mundo é como um ponto de fuga, uma vazão externa do conflito interior. O mundo se coloca assim entre o Eu negado e o Eu realizado, oferecendo-se ao ator como um obstáculo e, ao mesmo tempo, como um meio de superação. Esse "estar entre" do mundo se apresenta preenchido de duas matérias: a sociedade-ator - o outro, com quem se pode estabelecer relações de cooperação e conflito -, e o tempo histórico aberto, reino da decantação de inúmeros Eus possíveis. Essas matérias formam a argamassa da sociedade-processo. Embora, evidentemente, secular, a questão é a mesma para toda busca do valioso que, a partir do interior, da consciência, se pluraliza, seja ele de teor religioso ou não. A descoberta do mundo como saída do imbroglio da consciência (inclusive a religiosa) no social-histórico é a própria secularização, dita em outros termos.

É nesse terreno que se faz o jogo da neutralização e da politização. Note-se a terminação das palavras escolhidas, que derivam de "neutro" e "política", mas flexionadas para indicar um sentido de movimento e não um estado de coisas fixo. Nenhuma concepção de boa vida é politicamente neutra em si mesma, assim como nenhum discurso político o é em si mesmo. A questão do que é valioso na vida se neutraliza ou se politiza, dependendo das circunstâncias e do propósito do ator, e não por conta de seu conteúdo ou da maior ou menor abrangência das concepções que a embasam. Uma teoria que se propõe distinguir os campos específicos do político e do não político com base nesses critérios, acaba perdendo de vista a instabilidade e a porosidade de sua separação na política moderna, especialmente na política democrática30 30 . Essa crítica se dirige, entre outras, à visão da tolerância liberal (e das liberdades que lhe correspondem) defendida por John Rawls, que faz coincidir a distinção entre o político e o não político com a diferença entre "concepções políticas de justiça" e "doutrinas filosóficas, morais ou religiosas" de boa vida, entendidas estas como "concepções abrangentes de bem". Para Rawls, a diferença entre ambas, como o próprio termo "abrangente" sugere, é uma questão de "escopo": "isto é, o leque de matérias para as quais uma concepção se aplica e o conteúdo que um leque mais amplo requer" (Rawls, 1996:13). .

A neutralização desloca uma concepção de boa vida do campo da divergência para o da convergência - mas não porque essa concepção passa a ser consensualmente aceita como verdadeira, mas porque é reconduzida para o campo da consciência e da autonomia pessoal. A politização faz exatamente o inverso. E quando o faz, a concepção de boa vida se transforma numa forma de discurso apropriada para travar o conflito social - a ideologia política -, que é a maneira pela qual o discurso interno da consciência se seculariza. Vale dizer, converte-se numa representação da idéia no mundo, de como aquela concepção vencerá os obstáculos postos pela sociedade-ator e se incorporará à sociedade-processo ao longo do tempo histórico. Nesse sentido, a ideologia política é sempre um discurso em perspectiva, relativo ao futuro, enquanto o discurso da consciência, posto como uma questão do Eu consigo mesmo, é atemporal.

Foi dito acima que a neutralização reconduz uma concepção do valioso ao campo da consciência e da autonomia pessoal. Isso sugere uma dinâmica em que, primeiro, a questão do valor sai daquele campo e ganha o mundo e, em seguida, pode (ou não) retornar a ele, dependendo do sucesso da neutralização; porém, já de uma outra forma, reelaborada - e só assim ela pode retornar de modo suficientemente administrável pela própria consciência. Mas antes, ao ganhar o mundo, a questão se politiza e, portanto, se torna divisiva. A ideologia política, como qualquer concepção do valioso, é um discurso sobre o todo, mas do ponto de vista de uma das partes em que se divide a sociedade. A ideologia é o recurso discursivo moderno de que o ator lança mão para transformar a sociedade, quando esta é concebida como um processo, e pelo único meio através do qual o ator pode mover essa forma de sociedade: produzindo o conflito.

Ressaltou-se em seção anterior deste artigo que a transformação, entendida como uma mudança positiva, carregada de valor, significa um avanço do aperfeiçoamento humano no sentido da igualdade social (o progresso). No entanto, em vista do que se discutiu na presente seção, pode-se agora ampliar o significado desse aperfeiçoamento - e sem prejuízo da igualdade -, de modo a incorporar a questão do pluralismo: a sociedade, pensada desse ângulo, se transforma e avança, na medida em que alarga o espaço de desenvolvimento das diferentes, e não raro contraditórias, potencialidades humanas, graças ao próprio alargamento das opções em torno do que é aceitável como valioso na vida. Transformar, nesse sentido, é lograr, sempre parcialmente, converter a divisão da sociedade numa diferenciação.

NOTAS

(Recebido para publicação em maio de 2012)

(Aprovado para publicação em agosto de 2012)

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  • 1
    . A questão da neutralização política remete ao conceito de pluralismo, a que se retornará na última seção do artigo.
  • 2
    . "Objeto ontológico" não é o mesmo que "objeto empírico": este último remete a
    fenômenos, enquanto o primeiro a
    concepções, que vão além do fenómeno.
  • 3
    . Para uma análise dessa obra na direção proposta aqui, ver Araujo (2008).
  • 4
    . Sobre a história com H, isto é, como um "conceito coletivo singular", ver Koselleck (2006, cap.2).
  • 5
    . Para uma exposição desse aspecto do pensamento de Kant, ver Terra (2004).
  • 6
    . Para uma descrição muito elucidativa de como os abolicionistas norte-americanos exploravam essa contradição, utilizando para isso a Declaração de Independência de 1776, ver Armitage (2011:83-87).
  • 7
    . Para uma análise mais detalhada da originalidade de Maquiavel neste ponto, situando-a no contexto do classicismo renascentista, ver Skinner (1978, vol. 1:180-189).
  • 8
    . No século XVIII, a análise mais influente desse problema foi feita por Montesquieu, em seu
    Considerações sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e de sua Decadência.
  • 9
    . Ver, por exemplo, a crítica dessa generalização em Momigliano (2004).
  • 10
    . Em seus desdobramentos concretos, essa relação abstrata informa, por exemplo, os diversos dilemas que o pensador florentino apresenta às escolhas estratégicas de príncipes e repúblicas - notadamente, no caso das repúblicas, entre a opção defensiva e a expansiva em política externa
    (Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, livro I, cap.6). Para uma formulação global, quase cosmológica, do problema, ver os "Proêmios" do livro II dos
    Discursos.
  • 11
    . Cf. A. de Tocqueville
    (Democracia na América,vol. II, segundolivro, cap. 1). Opresente autor segue a leitura crítica de Lefort (1999:69) a respeito desse ponto: "A obstinação em reduzir a democracia a um estado social, a igualdade de condições, contraria sua reflexão sobre a liberdade democrática, sem impedi-lo, diga-se, de escrutar todos os sinais dessa liberdade".
  • 12
    . Certos expoentes da sociologia moderna, como Max Weber, ao se darem conta desse caráter mutante da forma social, resolveram distinguir o conceito de "estamento" ou "grupo de status" do conceito de "classe social". Sobre essa questão, ver Nisbet (1993, cap. 5).
  • 13
    . Cf. T. Hobbes
    (Leviatã, Parte I, cap. 16). A esse respeito, ver Araujo (2006:234-242).
  • 14
    . A questão do agenciamento da
    diferenciação social será abordada na próxima seção.
  • 15
    . "Isto quer dizer que, se o Estado democrático tem as divisões e contradições sociais como inevitáveis, ele nem por isto as toma como absolutamente congeladas e insuscetíveis de superação, ou só admitindo soluções de barganha, esteadas em compromissos de interesses, dos quais não faz parte nenhum princípio de legitimidade" (Brum Torres, 1986:47).
  • 16
    . Essa flexão do ator no plural pode ser chamada de a "condição de pluralidade" do conflito e do jogo da representação democrática. Porém, não se deve confundi-la com o conceito de
    pluralismo inspirado no liberalismo político, como se verá na próxima seção.
  • 17
    . O que repercute em sistemas partidários e eleitorais democráticos - regidos pelo sufrágio universal e contrastados aos sistemas antes dominados pelos "notáveis" (de voto censitário) - na tendência de "dissociação dos candidatos de suas classes sociais" (Urbinati, 2006:20).
  • 18
    . Para uma análise de por que e como Rousseau prioriza a questão da legitimidade sobre o velho problema da melhor forma de governo, ver Bignotto (2010:140-150).
  • 19
    . Este parágrafo e o anterior foram extraídos, com alterações, de artigo do autor que acaba de ser publicado na
    Revista Brasileira de Ciência Política (cf. Araujo, 2012).
  • 20
    . Para outros aspectos dessa discussão, envolvendo o campo temático da república e do republicanismo, ver as contribuições de Pettit (1997) e Skinner (1998), e a análise de Silva (2008).
  • 21
    . Apesar de voltados para uma outra discussão, os termos "mobilizador" e "desmobilizador" para qualificar regimes autoritários foram sugeridos a este autor por Debrun (1983: esp. 13-20).
  • 22
    . Em vários de seus escritos, Hanna Arendt alude à condição de pluralidade para descrever qualquer espaço de embate de opiniões políticas, por exemplo, a
    polis grega. É, portanto, condição de exercício da liberdade positiva, e nada tem a ver com o conceito de pluralismo como forma de exercer a liberdade negativa. Cf., entre outros, Arendt (1972:292).
  • 23
    . Ver também Raz (1986, cap.14). Essa vinculação de pluralismo e autonomia pessoal não é ponto pacífico na literatura acadêmica. Cf., por exemplo, a crítica de Gray (2000:41 e ss). Ver, também, Rawls (1996:xliv-xlv).
  • 24
    . Essa afirmação, evidentemente, é contestada por quem não reconhece a cumplicidade do pluralismo com a autonomia. A rigor, a liberdade negativa é uma liberdade de fazer ou não fazer, um espaço institucional em que se poderia realizar uma gama de diferentes valores, ou nenhum. Porém - pelo menos até onde enxerga o presente autor -, como justificar o próprio
    direito a esse espaço senão pela demanda de autonomia pessoal? A liberdade negativa e o pluralismo parecem remeter, portanto, para a mesma questão de fundo, como se verá a seguir.
  • 25
    . Não confundir, porém, o que se propõe aqui com o clássico par de opostos definido por Ferdinand Tonnies, a "comunidade"
    (Gemeinschaft) e a "sociedade"
    (Gesellschaft). Sobre este último, ver Nisbet (1993:71-79).
  • 26
    . Cf. I. Kant,
    A metafísica dos costumes (Segunda Parte, "Doutrina dos Elementos da Ética", Parte II, cap. I, seção II, parág. 38). Sobre a crítica do paternalismo, ver Dworkin (2000:216-218).
  • 27
    . Para um argumento distinto em defesa do pluralismo e da tolerância, mais próximo da visão rawlsiana, que, todavia, também problematiza a questão da neutralidade, ver Vita (2010).
  • 28
    . Assim, o pluralismo "não é visto como um desastre, mas antes como o resultado natural das atividades da razão humana sob instituições livres duradouras" (Rawls, 1996:xxvi). O autor acrescenta que, aceitar o pluralismo desse modo, vale dizer, não como uma falha no uso da razão, mas como "resultado natural" de seu bom uso, leva à concepção de um pluralismo "razoável", que vai além da mera constatação do fato bruto do pluralismo. Sobre um ideal de "união social" que visa ao florescimento das diversas potencialidades humanas, ver, também, Rawls (1971:458-460).
  • 29
    . Associado a um valor positivo, essa palavra não está comprometida neste estudo com a sociologia funcionalista ou a chamada "sociologia de sistemas", que a empregam para designar um processo inexorável e sempre neutro de valor. É certo que a diferenciação leva a um aumento da complexidade da sociedade-processo. Porém, há muitas maneiras de conceber essa complexidade, sem que se tome como necessárias as implicações cinzentas daquelas teorias.
  • 30
    . Essa crítica se dirige, entre outras, à visão da tolerância liberal (e das liberdades que lhe correspondem) defendida por John Rawls, que faz coincidir a distinção entre o político e o não político com a diferença entre "concepções políticas de justiça" e "doutrinas filosóficas, morais ou religiosas" de boa vida, entendidas estas como "concepções abrangentes de bem". Para Rawls, a diferença entre ambas, como o próprio termo "abrangente" sugere, é uma questão de "escopo": "isto é, o leque de matérias para as quais uma concepção se aplica e o conteúdo que um leque mais amplo requer" (Rawls, 1996:13).
  • *
    Este texto faz parte de um capítulo de livro do autor, em vias de ser publicado pela editora Martins Fontes, intitulado A Forma da República: Da Constituição Mista ao Estado.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      Maio 2012
    • Aceito
      Ago 2012
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