INTRODUÇÃO
O universo do trabalho é uma das dimensões mais importantes da vida social. É por meio do trabalho que se produzem os bens e serviços para o coletivo, e é também por meio dele que homens e mulheres encontram autonomia econômica e realização profissional. Por ocupar lugar tão central nas sociedades, entretanto, o mundo do trabalho também gera e reproduz injustiças sociais, dentre as quais se encontra a desigualdade de gênero.
Gênero e classe têm permeado o debate sobre desigualdades no Brasil pelo menos desde o final dos anos 1970 ( Kergoat, 1978 ; Souza-Lobo, 2011 ), mas somente neste século é que a “consubstancialidade” ( Kergoat, 1978 ; 2010 ) destas duas características passou a ser sistematicamente investigada para se mapear como ela condiciona a desvantagem feminina – tanto de inserção quanto de rendimento – no mercado de trabalho ( Santos, 2008 ; Tannuri-Pianto, Pianto, 2002; Coelho, Soares, Veszteg, 2010 ). A ideia de consubstancialidade, mais especificamente, considera que gênero e classe são dimensões complementares e sinérgicas do condicionamento de diferenças observáveis. Ao ignorar-se a simultaneidade e interdependência destas dimensões, corre-se o risco de assumir-se homogeneidade de resultados entre categorias que na verdade são influentes e variáveis. Sabe-se, por exemplo, que a renda média dos homens é superior à das mulheres, mas será que tal diferença permanece ao considerar-se a classe da qual fazem parte? Além disso, teria a fecundidade influência distinta sobre a participação e os rendimentos auferidos por homens e mulheres no mercado de trabalho?
A influência da “consubstancialidade” de gênero e classe sobre a desigualdade de rendimentos entre homens e mulheres, bem como entre mulheres de diferentes classes sob o viés da maternidade, será o foco deste artigo. Focamos sobre a renda como variável dependente e também como definidora de classe social já que esta pode ser vista como um resumo das formas e condições de inserção dos trabalhadores e trabalhadoras em uma determinada ocupação. A renda está correlacionada ao setor que ocupam, ao tipo de atividade que desempenham, à escolaridade exigida, à jornada de trabalho, ao cargo alcançado na hierarquia da instituição e à identidade de classe reportada. Além de explicar o nível de renda alcançado, estes fatores são frequentemente empregados por sociólogos para definir a classe social que as pessoas ocupam ( Salata, 2015 ; Scalon, 1998 ).
Este artigo traz duas contribuições importantes para a literatura de estratificação e desigualdade de gênero. A primeira é mensurar a penalidade materna através do impacto diferencial que o número de crianças tem sobre as chances de homens e mulheres ingressarem no mercado de trabalho. A segunda é investigar o hiato salarial entre homens e mulheres em três quantis de renda representativos das classes baixa, média e alta, considerando-se heterogeneidades atreladas ao capital humano (como escolaridade e experiência) e também à maternidade. Como um desdobramento deste objetivo identificaremos também as faixas de renda em que a desigualdade salarial entre homens e mulheres é maior.
Em síntese, as seguintes perguntas norteiam este estudo: As mulheres são socialmente discriminadas no mercado de trabalho? Quais mulheres são discriminadas: todas ou apenas as de algumas classes de renda? É possível afirmar que, à medida que se avança na estrutura salarial, a diferença sexual tende a aumentar? Há diferenças salariais entre mulheres com e sem filhos? O ônus da maternidade torna-se (de)crescente para cada filho adicional? Além do número de filhos, quais são os fatores que corroboram ou mitigam as diferenças salariais entre as pessoas inseridas no mercado de trabalho?
Ao longo da primeira seção apresentamos os argumentos-chave que justificam as diferenças entre gêneros no mercado de trabalho. Em seguida, descrevemos os dados e a metodologia utilizada. Nas duas seções posteriores serão apresentados os resultados encontrados a respeito da penalidade materna em relação à inserção das mulheres no mercado e aqueles encontrados para explicar o hiato salarial entre os gêneros. Por fim, a conclusão retoma a discussão teórica, fazendo sua devida relação com os resultados e as hipóteses levantadas.
FONTES DA DESIGUALDADE DE GÊNERO
Teorias e evidências prévias sugerem que as taxas de atividade, rendimento e promoção das mulheres são inferiores às dos homens devido aos diferenciais de produtividade e de inserção ocupacional e à discriminação. Quando combinados, estes três fatores explicariam a maior parte da desvantagem feminina.
Diferenciais de Produtividade
A relação entre fecundidade, produtividade e salários femininos é uma das mais investigadas para se explicar a desvantagem laboral das mulheres ( Anderson, Binder, Krause, 2003 ; Budig, 2003 ; Budig, England, 2001 ; Budig, Hodges, 2010 ; Correll, Benard, Paik, 2007 ; Merluzzi; Dobrev, 2015 ). A chamada “penalidade materna” é robusta tanto histórica quanto internacionalmente, sendo encontrada na Austrália, Canadá, Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha, Finlândia, Suécia, Áustria, Itália, Luxemburgo, Holanda, Bélgica e França ( Cooke, 2014 ; Harkness, Waldvogel, 2003 ; Misra, Budig, Moller, 2007 ). No caso brasileiro, a literatura a respeito do impacto do número de filhos sobre os salários femininos é escassa, mas os poucos estudos disponíveis sugerem uma clara relação inversa entre parturição e participação feminina na população economicamente ativa [PEA] (Pazello, Fernandes, 2004; Pazello, 2006 ; Souza, Rios-Neto, Queiroz, 2011). A partir dos dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) realizada em 2013, por exemplo, Guiginski (2015: 99) constatou que mulheres com dois ou mais filhos em idade pré-escolar apresentam chances 3,2 vezes menores de estarem no mercado de trabalho do que aquelas sem filhos. A queda de salários advinda da maternidade estaria, portanto, ligada à intermitência ocupacional e, consequentemente, ao menor número de horas dedicadas às atividades remuneradas em comparação às mulheres sem filhos e também aos homens. Parte do hiato salarial de gênero seria, portanto, atribuído ao custo de se ter crianças ( Goldin, Katz, 2008 ).
Budig e England (2001) e Budig (2003) , ao examinarem diferenças nos padrões de trabalho entre mães e não mães, concluíram que interrupções no trabalho, trabalhar meio horário e a perda de experiência explicam cerca de um terço da motherhood penalty , ou penalidade materna. Estimou-se que cada filho adicional estaria associado a uma perda salarial de cerca de 5% para as mulheres americanas empregadas, mesmo depois de controlar-se pelas diferenças de capital humano e inserção ocupacional ( Budig, England, 2001 ; Anderson, Binder; Krause, 2003). Juntas, estas variáveis e o número de adultos no domicílio explicariam 24% da penalidade salarial para mulheres com um filho, e 44% para mulheres com dois ou mais filhos (Anderson , Binder & Krause, 2003 apud Correll, Benard & Paik, 2007:299). Budig e Hodges (2010) foram as primeiras a utilizarem regressões quantílicas para descrever sistematicamente como os efeitos da maternidade variam ao longo da distribuição de renda das mulheres que trabalham, considerando assim a “consubstancialidade” entre gênero e classe. De acordo com as autoras, dado o complexo de pressão e recursos que as mulheres de diferentes níveis salariais encontram em casa e no trabalho, é razoável que a atuação dos mecanismos geradores da penalidade materna seja diferenciada nesses níveis. A contribuição de Budig e Hodges (2010) é, portanto, paradigmática por mostrar que as mães, localizadas em diferentes classes de renda, não sofrem a mesma penalidade salarial ao terem filhos.
O menor número de horas trabalhadas, o tempo de experiência e a penalidade materna diferencial por classe de renda seriam assim condicionantes da produtividade e dos menores salários das mulheres. Mesmo diante do histórico e concomitante aumento das suas taxas de escolarização, 1 de renda e de inserção laboral, 2 as mulheres ainda auferem menores salários que os homens. Mesmo as mulheres tendo, em média, mais anos de estudo que os homens, deve-se considerar que estes anos tenham sido investidos na aquisição de habilidades distintas, que poderiam conduzir a ocupações que pagam salários menores do que aqueles pagos aos homens. É sobre esta segunda razão, diferenciais de inserção ocupacional, que a próxima seção se debruça.
Segmentação Ocupacional
Quando as mulheres se inserem no mercado de trabalho, suas ocupações são, em geral, diferentes e pior remuneradas que aquelas nas quais os homens se encontram. Isso explicaria o porquê de elas receberem menores salários apesar de terem, em média, estudado por mais tempo ( Petersen, Morgan, 1995 ; Reskin, 1993 ; Tomaskovic-Devey, Skaggs, 2002 ). Para entender o diferencial de rendimentos entre homens e mulheres, é essencial responder por que os homens ingressam em determinadas ocupações enquanto as mulheres escolhem outras (costureiras, professoras, secretárias, telefonistas, enfermeiras etc.), levando em conta o papel que ocupam na família e na reprodução. A persistência em manter as mulheres com as responsabilidades domésticas e funções socializadoras na família faz com que uma articulação constante seja necessária para se conciliar o papel profissional com os papéis familiares.
Ao conciliar o trabalho remunerado e as atividades domésticas, as mulheres, principalmente as de classes mais baixas, acabam se concentrando em ocupações que não exigem dedicação em tempo integral, nas quais o retorno financeiro é baixo e a progressão de carreira é difícil ( Giddens, 2004 ; Degraff, Anker, 2004 ; Hirata, Kergoat, 2003 ; Anker, 1997 ; Becker, 1981 ). Trabalhos informais, sem jornadas regulares de trabalho, costumam facilitar o arranjo necessário para conciliar família e trabalho e são os que concentram a maior parcela das mulheres. Porém, nesses espaços, os rendimentos são inferiores e instáveis, sem garantias de direito às trabalhadoras. Além disso, há evidência sugerindo que certas atividades tendem a ser pior remuneradas justamente por serem majoritariamente ocupadas por mulheres. O mecanismo explicativo para isso estaria em normas compartilhadas de depreciação do trabalho feminino, ou em erros de cognição daqueles responsáveis pela remuneração feminina, que supostamente subestimariam a contribuição das mulheres para os objetivos organizacionais, incluindo o aumento de lucros a partir de aumentos da produtividade ( England, 1992 ; 1999).
Os diferenciais de produtividade e de inserção ocupacional entre homens e mulheres, portanto, ajudariam a justificar o hiato salarial de gênero. No caso brasileiro, dos 20% a mais que os homens ganham, cerca de 13 pontos percentuais correspondem a diferenças de capital humano, produtividade e inserção ocupacional, condicionados sobretudo pelos papéis sociais de gênero atrelados à maternidade e ao cuidado com os filhos ( Stein, Sulzbach, Bartels, 2015 ). 3 Mesmo que os sete pontos percentuais residuais da diferença pudessem ser explicados por outros fatores produtivos ou de difícil mensuração (in)direta (influência da rede de contatos, postura física, fluência verbal, influências motivacionais etc.), a prática comum, pelo menos entre economistas, consiste em atribuí-los à discriminação praticada pelo empregador.
Discriminação
Se homens e mulheres com as mesmas características produtivas e profissão ganham salários distintos, é possível que um dos componentes desta diferença seja a discriminação. As funções socialmente definidas para cada gênero, em parte, conduziriam a diferenciais de inserção e rendimento no mercado de trabalho ao ditarem a dinâmica interacional não só dentro do domicílio, mas também entre empregadores e empregados. A questão então passa a ser por que mulheres e mães receberiam tratamento diferenciado e estariam expostas a desvantagens no mercado de trabalho? Por que o mesmo tipo de desvantagem não afetaria os homens?
A teoria baseada nas características de status ( status characteristics theory , originalmente proposta por Berger, Cohen, Zelditch, 1966 ; 1972 ) justifica tais diferenças de tratamento a partir da tensão existente entre o entendimento e as expectativas culturais sobre os papéis idealmente definidos de maternidade e do que seria um(a) trabalhador(a) modelo. Ao explicar por que a classe social é uma característica de status , por exemplo, Berger, Cohen & Zelditch (1966:33-34) afirmam que pessoas da classe alta ( white collar class ) seriam vistas como “mais diligentes” e “mais energéticas” do que aquelas da classe baixa. De maneira similar, a expectativa de que mulheres ou mães são menos competentes e compromissadas com seus trabalhos do que os homens levaria a processos discriminatórios na contratação, promoção e na definição de salários femininos, mesmo que de maneira inconsciente, pelo empregador ( Blair-Loy, 2003 ; Ridgeway, Correll, 2004 ). Uma característica de status é um atributo (raça, gênero, religião, classe etc.) ou um papel (maternidade, gerente, diretora etc.) categórico de distinção acompanhado por um conjunto de crenças culturais sobre o seu valor e significado. Estas características salientes seriam então utilizadas para orientar comportamentos e avaliações discriminatórias ( Berger et al., 1977 ). Ao guiarem-se por estereótipos sociais e normas culturais sobre o papel das mulheres na sociedade como mães cuidadoras e educadoras, os empregadores negariam às mulheres as mesmas chances de progressão oferecidas aos homens, simplesmente por aterem-se a perfis de gênero socialmente construídos como incompatíveis com o comprometimento profissional.
Cuddy, Fiske e Glick (2004) , por exemplo, utilizam evidência experimental para mostrar que, quando a frase “tem um filho de dois anos” é adicionada à descrição de consultoras participando de processos seletivos, estas são percebidas pelos participantes como menos competentes do que aquelas sem filhos. Mães são consistentemente julgadas como 10% menos competentes e 15% menos comprometidas do que mulheres sem filhos (Correll, Benard, Paik, 2007:316). Conclusões na mesma linha, reforçando o fato de empregadores discriminarem mães, também são reportadas por pesquisas qualitativas ( Blair-Loy, 2003 ) e quantitativas ( Olian, Schwab, 1988 ).
Neste artigo, o argumento teórico que pretendemos avaliar é se o número de crianças e a classe de renda são características de status que resultam em desigualdade de rendimentos entre gêneros. Para testar tal hipótese calcularemos as probabilidades condicionais de trabalhar e os diferenciais de renda por gênero, controlando-se pelo número de crianças no domicílio, pela classe econômica e também por diferenciais de produtividade, ocupação e outras covariáveis relevantes. A interseção entre classe e gênero, em especial, será destacada por ser fundamental para se compreender relações simbióticas de poder e dominação que impregnam todo o sistema social ( Saffiot, 1992 ).
DADOS
Utilizam-se dados da Pesquisa Dimensões Sociais das Desigualdades (PDSD), realizada em 2008 pelo Centro para o Estudo da Riqueza e da Estratificação Social (Ceres), do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), à época Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). 4 A pesquisa envolveu 25 pesquisadores em 16 instituições de sete estados do país, visando o entendimento e acompanhamento da dinâmica da desigualdade e da mobilidade social no Brasil, utilizando como referência a Pesquisa sobre os Padrões de Vida (PPV) conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1996 e 1997. A pesquisa, entretanto, possui vantagens em relação à PPV já que (1) inclui todo o território nacional e não apenas as regiões Sudeste e Nordeste; (2) permite comparações com as outras pesquisas domiciliares (PNADs e Censos Demográficos); e (3) inclui dimensões não presentes na PPV, como a mobilidade de carreira no curso de vida das pessoas. O banco de dados contempla perguntas retrospectivas sobre história das uniões, história dos nascimentos, rendimentos, histórico escolar, informações sobre atividade econômica e características demográficas dos moradores e dos pais. Além disso, a PDSD é particularmente adequada para se estudar diferenças de classe, já que sobreamostra os ricos, garantindo assim maior representatividade desta classe de renda do que os bancos de dados produzidos pelo IBGE (ex.: Pnad, Censo, PPV).
O universo da pesquisa é formado por domicílios particulares permanentes em setores comuns ou não especiais (inclusive favelas) de todos os estados 5 e regiões urbanas e rurais do Brasil. O público alvo são os chefes de família e respectivos cônjuges, mas o banco contempla também informações menos detalhadas sobre todos os moradores do domicílio. A PDSD possui informações sobre 26.146 pessoas divididas entre 8.048 domicílios. Entre as 13.948 mulheres entrevistadas, 2.982 são chefes de família e 4.204 são cônjuges.
A análise sobre os condicionantes da inserção no mercado de trabalho envolve 8.904 pessoas (47% de mulheres). Os demais entrevistados não serão considerados por não terem declarado as informações necessárias ou não se enquadrarem no recorte amostral. Já a investigação sobre os diferenciais de rendimento por gênero ao longo da distribuição de renda inclui 4.601 homens e mulheres que possuíam rendimento 6 e estavam inseridos no mercado de trabalho na véspera da pesquisa. Seguindo a literatura revisada, a Tabela 1 apresenta, por gênero e presença de crianças no domicílio, estatísticas descritivas das variáveis utilizadas:
Tabela 1 Estatísticas descritivas das variáveis dos modelos de primeiro e segundo estágios, por sexo
Estágio 1: Inserção no mercado de trabalho | Estágio 2: Rendimentos | |||||||||||||||
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Dom. SEM crianças a | Dom. COM crianças a | Dom. SEM crianças a | Dom. COM crianças a | |||||||||||||
Homem | Mulher | Homem | Mulher | Homem | Mulher | Homem | Mulher | |||||||||
| ||||||||||||||||
média | d.p. | média | d.p. | média | d.p. | média | d.p. | média | d.p. | média | d.p. | média | d.p. | média | d.p. | |
Variável resposta: | ||||||||||||||||
% trabalha c | 0,58 | 0,46 | 0,78 | 0,65 | ||||||||||||
Renda (R$/ hora) d | 29,69 | 428,84 | 11,67 | 48,97 | 11,65 | 41,08 | 7,34 | 18,09 | ||||||||
Covariáveis: | ||||||||||||||||
Idade | 53,93 | 16,72 | 55,37 | 15,98 | 42,96 | 13,33 | 42,17 | 13,87 | 44,84 | 13,74 | 46,46 | 13,08 | 39,57 | 10,45 | 38,93 | 10,22 |
Anos de estudo | 6,69 | 4,68 | 6,67 | 4,79 | 6,84 | 4,08 | 7,16 | 4,19 | 7,97 | 4,36 | 8,18 | 4,64 | 7,44 | 3,89 | 7,99 | 4,06 |
Cor autodeclarada (ref. brancos): | ||||||||||||||||
% pretos | 0,12 | 0,11 | 0,14 | 0,13 | 0,13 | 0,12 | 0,13 | 0,13 | ||||||||
% pardos | 0,38 | 0,36 | 0,46 | 0,46 | 0,40 | 0,37 | 0,46 | 0,43 | ||||||||
Crianças no domicílio: | ||||||||||||||||
% entre 0 e 5 anos | 0,43 | 0,40 | 0,48 | 0,39 | ||||||||||||
% entre 6 e 18 anos | 0,81 | 0,83 | 0,78 | 0,84 | ||||||||||||
Renda do restante do domicílio b | 1,95 | 19,69 | 2,93 | 28,99 | 2,07 | 9,17 | 3,83 | 17,80 | ||||||||
Salário de reserva (R$/ mês) | 2.636 | 4.701 | 1.491 | 3.289 | 2.354 | 4.616 | 1.030 | 3.481 | ||||||||
% classe média (>= p33 e <p66) | 0,41 | 0,37 | 0,42 | 0,25 | ||||||||||||
% classe alta (>= p66) | 0,43 | 0,21 | 0,38 | 0,11 | ||||||||||||
| ||||||||||||||||
Anos de experiência laboral | 29,75 | 15,42 | 29,72 | 15,04 | 25,01 | 11,64 | 22,24 | 11,53 | ||||||||
Região (ref. Norte): | ||||||||||||||||
% Nordeste | 0,25 | 0,23 | 0,31 | 0,27 | ||||||||||||
% Sudeste | 0,34 | 0,38 | 0,29 | 0,30 | ||||||||||||
% Sul | 0,23 | 0,24 | 0,21 | 0,25 | ||||||||||||
% Centro-Oeste | 0,10 | 0,08 | 0,09 | 0,10 | ||||||||||||
Ocupação (ref. Setor público): | ||||||||||||||||
% Setor privado | 0,44 | 0,33 | 0,53 | 0,34 | ||||||||||||
% Profissional liberal | 0,02 | 0,01 | 0,01 | 0,01 | ||||||||||||
% Autônomo/ empregador | 0,43 | 0,32 | 0,34 | 0,30 | ||||||||||||
% Serviço doméstico | 0,01 | 0,16 | 0,01 | 0,20 | ||||||||||||
Tamanho amostral (n) | 2.236 | 2.000 | 2.472 | 2.196 | 976 | 806 | 1.519 | 1.300 |
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Pesquisa Dimensões Sociais das Desigualdades, 2008.
a Crianças são definidas como pessoas residentes no domicílio com menos de 18 anos.
b Domicílios com renda faltante (ex.: missing values) foram considerados com renda 0.
c As proporções de homens e mulheres que trabalham são estatisticamente distintas. Nos domicílios sem crianças, o IC95% para a diferença entre as proporções é [0,087; 0,148]. Nos domicílios com crianças, este IC95% é [0,104; 0,156].
d A renda horária de homens e mulheres, em ambos os tipos de domicílio, é estatisticamente distinta (ao nível de 95%) segundo o teste de Wilcoxon-Mann-Whitney.
A Tabela 1 mostra que, apesar do salário de reserva 7 das mulheres ser metade do dos homens, a probabilidade de participação masculina no mercado de trabalho é maior que a das mulheres, que ainda são responsáveis pela maioria dos cuidados com a casa e os filhos ( IBGE, 2018 ; Jesus, 2018 ; Medeiros, Pinheiro, 2018 ; Soares, 2008 ). Os dados da PDSD mostram que 68% dos homens e 56% das mulheres haviam trabalhado nos últimos 7 dias ou nos últimos 12 meses, a maioria no setor privado (49% dos homens e 34% das mulheres). O percentual de inserção ocupacional feminina em serviços domésticos (18%), por outro lado, destoa do dos homens (1%).
Além disso, a renda horária média dos homens (R$20,7) é mais que o dobro da das mulheres, e a média de experiência laboral deles é de cerca de dois anos a mais que a delas, 8 apesar da escolaridade feminina ser ligeiramente superior. A Tabela 1 também mostra que a maioria da amostra é composta por pessoas brancas, residentes da região Sudeste, com mais de 40 anos e vivendo em domicílios sem empregada doméstica.
Apesar de 53% da amostra total da PDSD ser composta por mulheres, no recorte utilizado esta proporção altera-se para 46,5% ao se considerar somente pessoas que estavam trabalhando e que auferiram renda oriunda do trabalho. O fato de as mulheres enfrentarem maiores restrições para participar do mercado de trabalho é um dos principais desafios metodológicos para se estudar os condicionantes do diferencial de renda, já que o salário é observável apenas para quem está trabalhando. O outro desafio é fazer com que os grupos cujos salários se quer comparar sejam o mais parecido possível em todos os seus atributos observáveis, para assim isolar-se ao máximo o efeito da característica chave que se quer investigar (ex.: gênero). A Tabela 1 , por exemplo, ilustra que, em média, as amostras de homens e mulheres possuem características distintas, exigindo assim uma homogeneização das características individuais para que homens e mulheres tenham sua similaridade maximizada antes de terem suas rendas potenciais comparadas. 9 Por fim, o último desafio consiste em examinar diferenciais de renda e participação ocupacional além da média, isto é, atentando-se também às diferenças que se encontram em diferentes seções da distribuição de renda. A seção seguinte discorre em maior profundidade sobre estes desafios e sobre os métodos apropriados para lidar com eles.
MÉTODOS
Em linha com a literatura prévia, mas com resultados distintos dos estudos anteriores, a proposta deste artigo é averiguar se homens e mulheres, similares em seus atributos produtivos observáveis, sofrem influências específicas do número de crianças no domicílio e em diferentes partes da distribuição de renda. Apesar de aparentemente simples, estes objetivos são permeados por três desafios metodológicos até então não considerados pela literatura brasileira: 1) o viés de seleção daquelas que se encontram no mercado de trabalho; 2) as heterogeneidades, ou diferenças de composição, entre homens e mulheres; e 3) a especificidade das associações e dos diferencias de rendimento em diferentes pontos da distribuição relativa de renda. Descreve-se a relevância destes três desafios a seguir:
Viés de seletividade: Como os homens são mais propensos a estarem trabalhando (e a terem rendimentos válidos) do que as mulheres, a subamostra perde representatividade populacional por sobrerrepresentar os homens e sub-representar as mulheres ( Heckman, 1979 ). Para amenizar o viés de seletividade implícito na seleção amostral de pessoas com rendimentos declarados válidos, utilizaremos as soluções propostas por Buchinsky (1998 , 2001 ) e utilizadas por Tannuri-Pianto, Pianto (2002) e por Coelho, Soares, Veszteg (2010) para o caso brasileiro. O procedimento consiste em primeiro estimar probabilidades masculinas e femininas de participação no mercado de trabalho e, em seguida, inseri-las como covariáveis em um modelo de segundo estágio ao investigar diferentes quantis de renda. 10
Composição e heterogeneidade da amostra: para aproximar a análise de um experimento controlado, visando identificar diferenciais estritos de rendimento entre os gêneros, optamos por parear os grupos de homens e mulheres segundo as suas características observáveis. Ao fazer isso garantimos que as unidades de análise em cada classe da regressão quantílica são semelhantes em suas características, exceto naquela cujo efeito se quer isolar, o gênero. Tal procedimento oferece uma estratégia rigorosa para se avaliar como, e se, a maternidade representa uma fonte de desvantagem. Estabelecemos comparações de rendimento entre os seguintes grupos:
- Modelo 1: Mulheres versus homens;
- Modelo 2: Mulheres versus homens considerando-se as probabilidades diferenciais de participação no mercado de trabalho (viés de seleção);
- Modelo 3: Mulheres versus homens considerando-se o viés de seleção e o número de crianças entre 0 e 5 e entre 6 e 18 anos;
- Modelo 4: Modelo 3 mais os diferenciais de inserção ocupacional, idade, cor, região, anos de estudo e de experiência.
As quatro especificações graduais permitem acompanhar a contribuição marginal de cada grupo de covariáveis para o diferencial de renda esperado em cada quantil.
Associação diferencial em partes da distribuição de renda: Modelamos o logaritmo natural da renda horária a partir de regressões “quantílicas causais” ( Cattaneo, 2010 ; Cattaneo, Drukker, Holland, 2013), que estimam a distribuição de resultados potenciais (ex.: rendimentos horários sob condições contrafactuais) de homens e mulheres em diferentes seções da distribuição de renda, equalizando as diferenças entre estes dois grupos nas suas covariáveis. Regressões quantílicas tradicionais são mais apropriadas do que mínimos quadrados ordinários quando há diferentes associações entre o efeito do tratamento (gênero) e os rendimentos potenciais em diferentes quantis da distribuição relativa de renda. 11 A diferença entre as regressões quantílicas tradicionais e as utilizadas neste artigo é a identificação da renda-potencial 12 de mulheres e homens com características observáveis equivalentes, mas que se encontram em classes distintas da distribuição de renda. 13 Como a comparação das rendas preditas será feita entre homens e mulheres com atributos similares, a constatação causal de que as diferenças de renda se devem à discriminação torna-se mais forte do que se a comparação fosse feita apenas entre médias de rendas de pessoas com características produtivas distintas.
Infere-se a desigualdade pura de gênero (provavelmente devida à discriminação) a partir da diferença entre valores esperados (ou “resultados potenciais”) da renda de homens e mulheres localizados em três classes econômicas: pessoas de classe baixa, ou pobres, correspondem àquelas que se encontram no quinto quantil (q5); as de classe média localizam-se no quinquagésimo quantil (q50); e as de classe alta, ou ricas, no nonagésimo quinto quantil (q95). As predições de renda para cada quantil consideram a segmentação regional do mercado de trabalho e outras características domiciliares e individuais. Ao examinar os resultados determinaremos o quanto a escolaridade, o tipo de ocupação, o número de filhos e, sobretudo, o gênero estão associados aos rendimentos auferidos por homens e mulheres no Brasil. A Figura 1 ilustra a estratégia de modelagem empregada:

Fonte: os autores.
Nota: As linhas pontilhadas no modelo de primeiro estágio referem-se a covariáveis interativas entre sexo e cor da pele, número de crianças presentes no domicílio, classes de renda (definidas a partir do salário de reserva), e entre classes de renda e número de crianças presentes no domicílio.
Figura 1 Modelo quantílico causal de desigualdade de gênero considerando-se a probabilidade de inserção no mercado de trabalho
Para analisarmos a inserção laboral por gênero e os diferenciais de rendimento de acordo com a classe de renda, estimaremos regressões quantílicas pareadas, considerando-se a probabilidade feminina de estar trabalhando, indo assim além das diferenças médias salariais entre homens e mulheres e compatibilizando dois processos dependentes: inserção e recebimento de renda no mercado de trabalho. No primeiro estágio utiliza-se regressão logística binária para se estimar a penalidade materna (ex.: o efeito do número de filhos) e o efeito de outras covariáveis relevantes sobre as chances de participação no mercado de trabalho. Para minimizar o viés de seleção, as probabilidades estimadas neste primeiro estágio são utilizadas como preditoras do potencial rendimento horário do trabalho em regressões quantílicas causais, nas quais o “gênero” é a variável de tratamento. Assume-se, portanto, que o gênero tenha distribuição aleatória e não correlacionada às demais covariáveis do modelo. As seções seguintes apresentam os resultados dos modelos descritos na Figura 1 .
A PENALIDADE MATERNA
Para investigar a associação entre a presença de crianças no domicílio e a participação no mercado de trabalho, calculamos quais seriam as probabilidades de homens e mulheres, com as mesmas características, estarem trabalhando. Os coeficientes do modelo logístico mostram que, independentemente do número de filhos e dos demais atributos produtivos, a chance de as mulheres participarem do mercado de trabalho é 33% maior que a dos homens, e 51% maior quando o domicílio possui empregada(o) doméstica(o) (ver Anexo 1 ). A ajuda doméstica, entretanto, não reverte o impacto diferencial do número de filhos sobre a inserção laboral de homens e mulheres. A desvantagem feminina torna-se evidente ao considerar-se o número de crianças na Figura 2 , que ilustra o ritmo de variação destas probabilidades em função do número de crianças com menos de 5 anos de idade no domicílio 14 e segundo a classe de renda:

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Pesquisa Dimensões Sociais das Desigualdades, 2008.
Nota: As predições assumem “tipos ideais” prevalentes na amostra: pessoas brancas, sem ajuda no domicílio e com as demais variáveis contínuas fixadas na média. As barras representam intervalos de confiança estatística de 95%. A probabilidade média de estar trabalhando, para ambos os sexos, é igual a 0,62.
Figura 2 Probabilidades de inserção no mercado de trabalho, por sexo e segundo o número de crianças presentes no domicílio entre 0 e 5 anos de idade
Por um lado, as estimativas pontuais mostram que mulheres pobres e sem filhos possuem 65% de probabilidade de estarem inseridas no mercado de trabalho, mas estes valores diminuem cerca de oito pontos percentuais para cada criança a mais no domicílio, corroborando assim resultados anteriores obtidos para as décadas de 1990 ( Pazello, Fernandes, 2004 ; Pazello, 2006 ) e também 2000 (Souza, Rios-Neto, Queiroz, 2011) para mulheres de todas as classes. Ao estimarem o impacto de cada criança sobre a participação feminina na PEA dos anos 1990 a partir dos dados da Pnad, coletada pelo IBGE, Souza, Rios-Neto e Queiroz (2011) constataram que o primeiro filho reduzia esta participação de 64,62% para 59,29% (uma redução de 8,25% para as mulheres entre 15 e 49 anos). O segundo filho reduziria em 11,7% a participação das mães de filhos pequenos (2 anos no máximo) na PEA, e um terceiro (ou mais) filho diminuiria a probabilidade de a mãe ser economicamente ativa em cerca de 5,52%.
Por outro lado, para os homens (e para as mulheres ricas), há um aumento na probabilidade de participação para cada criança a mais no domicílio. Além disso, a Figura 2 mostra que o impacto marginal de cada criança é maior sobre a queda da participação feminina do que sobre o aumento da inserção masculina (e das mulheres de classe alta) no mercado de trabalho, tal como ilustrado pelo diferencial de inclinação entre as duas curvas. Este resultado alinha-se com o de evidências anteriores ( Budig, 2003 ) e investigações experimentais que demonstraram que mães são pior avaliadas que pais em termos de competência e compromisso profissional, o que conduziria a menores taxas de participação no mercado de trabalho (Correll, Benard, Paik, 2007).
Contudo, tal como colocado por Hirata (2014) , são as mulheres pobres quem geralmente se dedicam à provisão de cuidados domésticos e da família. Para elas, a imbricação do papel de gênero e classe tem um peso maior do que para as mulheres que se encontram na parte superior da distribuição de renda, cujo amplo acesso a recursos permite que a conciliação entre vida profissional e familiar seja possível através da contratação de ajuda doméstica ou creches em período integral; privilégio ordinariamente intangível às mulheres pobres. Examina-se em seguida a influência do número de filhos sobre o diferencial de rendimentos.
O HIATO SALARIAL ENTRE HOMENS E MULHERES
A proposta da regressão do segundo estágio é verificar a variabilidade da desigualdade salarial entre homens e mulheres ao longo da distribuição de renda (ex.: pobres, classe média e ricos), controlando-se por diferentes efeitos de composição amostral. Para isso, estimaram-se modelos multivariados com a inserção gradual de covariáveis de interesse. Tal estratégia permite isolar a variação gradual da renda potencial de homens e mulheres, em diferentes quantis de renda, na medida em que novas variáveis são consideradas na especificação dos modelos quantílicos causais.
A Figura 3 mostra as rendas potenciais de pessoas pobres (q5), classe média (q50) e ricas (q95). Ela evidencia a distância entre classes e também mostra que a renda dos homens que se encontram na classe mais alta torna-se semelhante à das mulheres após considerar-se na predição os diferenciais ocupacionais e de capital humano atrelados à maior produtividade (ou renda) masculina. Os diferenciais ao longo do eixo horizontal, no entanto, são melhor visualizados a partir dos gráficos correspondentes a cada classe (q95, q50, q5) [ figuras 4 , 5 , 6 ]:

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Pesquisa Dimensões Sociais das Desigualdades, 2008.
Nota: A especificação “Gênero” apresenta apenas o sexo como covariável. Os demais modelos causais incluem gradualmente, às suas especificações, as probabilidades de inserção no mercado de trabalho e o número de crianças presentes no domicílio (“+Crianças”); idade, cor, região, anos de estudo, experiência, e o tipo de ocupação (“+Demais controles”). A linha que corta o eixo horizontal indica a renda horária média de homens (4,22) ou mulheres no modelo mais completo, ou seja, após controlar-se por todas as covariáveis do modelo.
Figura 3 Renda horária potencial de homens e mulheres, por percentil e segundo diferentes modelagens

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Pesquisa Dimensões Sociais das Desigualdades, 2008.
Figura 4 Renda horária potencial dos ricos (p95), segundo diferentes modelos

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Pesquisa Dimensões Sociais das Desigualdades, 2008.
Figura 5 Renda horária potencial da classe média (p50), segundo diferentes modelos

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Pesquisa Dimensões Sociais das Desigualdades, 2008.
Figura 6 Renda horária potencial de pobres (p5), segundo diferentes modelos
Estas figuras descrevem o hiato salarial sexual e podem ser analisadas de duas formas: em termos absolutos – a partir da diferença –, ou em termos relativos – a partir da razão entre as rendas de homens e mulheres. Em termos absolutos, e sem considerar todos os diferenciais de composição, a maior desigualdade encontra-se entre os ricos, onde homens ganham cerca de R$50/hora enquanto as mulheres ganham R$33/hora (modelo “Gênero”, Figura 4 ). Após considerar-se o tempo de experiência, o tipo de ocupação e o número de crianças no domicílio, o hiato de renda praticamente desaparece entre os 5% mais ricos (modelo “Demais controles”, Figura 4 ). Já nos demais quantis da distribuição (q50 e q5, figuras 5 e 6 ), ao considerar as demais diferenças de composição, o hiato de renda apenas diminui. Diferentemente dos ricos, o hiato de renda entre homens e mulheres nas demais classes é sempre (estatisticamente) significativo, apesar de tornar-se menor em termos absolutos. 15
Analisando-se o hiato de renda em termos relativos obtém-se um retrato alternativo da desigualdade de gênero ( Anexo 3 ). Sob esta perspectiva, homens ganham, em média, 44% a mais que as mulheres. Ao considerar-se os demais fatores condicionantes da renda, entretanto, este percentual cai para 17%. A vantagem de se utilizar regressões quantílicas, entretanto, está na possibilidade de se examinar o hiato dos resultados potenciais de renda de homens e mulheres fora da média. Após considerar os diferenciais de experiência, ocupação e número de filhos (Modelo 4) o seguinte padrão de desigualdade de gênero emerge: homens pobres ganham cerca de 50% a mais que as mulheres, os de classe média ganham 21% a mais, e homens e mulheres ricas ganham praticamente a mesma coisa, já que o intervalo de confiança de 95% para a razão de rendimentos deste grupo foi estatisticamente não significativo [0,67; 1,27]. Constata-se assim que o tamanho da desigualdade entre os gêneros varia ao longo da distribuição de renda, estando, em termos relativos, bem acima da média entre os pobres e sendo aproximadamente inexistente entre os ricos.
A comparação entre modelos ( anexos 2 e 3 ) revela o impacto gradual das covariáveis sobre o hiato de renda. Tendo como referência o Modelo 1, que considera apenas o gênero (ex.: “Gênero”), percebe-se que, ao se incorporar o viés de seleção (Modelo 2, “+Prob. Seleção”), há redução substancial da razão entre as rendas médias (de 1,44 para 1,26). Ao considerar o número de crianças, a razão entre as rendas médias muda pouco em relação ao modelo anterior (1,23), mas ao se incluir todas as demais covariáveis, a desigualdade sexual relativa entre os pobres torna-se bem maior que entre os ricos. No modelo causal do segundo estágio o efeito específico do número de filhos para homens e mulheres é evidenciado não por um coeficiente,16 mas pela comparação entre as rendas preditas de homens e mulheres fornecidas pelos modelos 2 e 3 (ver anexos 2 e 3 ). Caso houvesse um efeito diferencial do número de crianças sobre a renda de homens e mulheres, as predições obtidas pelos modelos sem (Modelo 2) e com crianças (Modelo 3) seriam estatisticamente distintas. Como se pode ver no Anexo 3 , esse não é o caso.17
A penalidade materna faz-se presente sobre a desigualdade sexual de renda, principalmente, de forma indireta, através da probabilidade de participação feminina. Este resultado corrobora aquele encontrado por Souza, Rios-Neto e Queiroz (2011), que constataram que o número de filhos pequenos reduz a participação feminina no mercado de trabalho. Diferentemente da literatura americana ( Budig, Hodges, 2010 ; Correll, Benard, Paik, 2007) e europeia ( Cooke, 2014 ), os modelos aqui empregados não forneceram evidência de que o número de filhos esteja associado ao rendimento diferencial de homens e mulheres. A renda potencial de ambos, em quaisquer classes de renda, não se altera significativamente ao incluir-se o número de crianças presentes no domicílio na especificação do modelo. O hiato salarial entre homens e mulheres, portanto, independe desse número. 18
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo ofereceu três contribuições para a literatura sobre desigualdade de gênero a partir das perguntas que ele se propôs a responder. Em primeiro lugar, constatamos que a maternidade afeta negativamente a participação das mulheres pobres no mercado de trabalho de forma diretamente proporcional ao número de crianças pequenas presentes no domicílio. 19 Por outro lado, a potencial discriminação social de gênero – baseada em expectativas sobre as normas de divisão de trabalho induzidas pela assimetria biológica da maternidade – não atinge as pessoas no topo da distribuição de renda tanto quanto aquelas que se encontram na base: a probabilidade de homens e mulheres ricas trabalharem aumenta na medida em que cresce o número de crianças abaixo de 5 anos no domicílio. Tal resultado sugere que classe, gênero e maternidade são características de status que podem estar atreladas a percepções e tratamentos diferenciais por parte do empregador. Reforça-se assim a importância de se considerar a interação ou “consubstancialidade” ( Kergoat, 1978 ; 2010 ) entre gênero e classe como condicionante fundamental da desigualdade, já que estas duas categorias não representam dimensões independentes, mas sim complementares.
Em segundo lugar, confrontamos desafios metodológicos, via de regra, ignorados pela literatura sociológica e econômica, tais como o viés de seleção feminino no mercado de trabalho, e a identificação de processos causais confundidos por heterogeneidades entre grupos de comparação e ao longo de diferentes seções da distribuição de renda. Ao lidar com estes desafios mostramos que, ainda que homens recebam salários 44% maiores que os das mulheres, minora-se esta diferença média para 17% ao se comparar homens e mulheres parecidos entre si. Possivelmente, esta diferença seria ainda menor caso tivéssemos acesso a outras características atreladas ao salário, mas não captadas quantitativamente, tais como a eficiência individual, perseverança, autonomia, a habilidade de trabalhar em grupo, de resolver problemas, a inteligência emocional, o grau de influência social e outros aspectos cognitivos e não cognitivos influentes. É importante notar, portanto, que os hiatos salariais reportados estão sobrestimados, e que, dependendo da influência diferencial destas heterogeneidades sobre as pessoas pertencentes às classes de renda consideradas, também estariam as diferenças médias reportadas entre as classes. Esta diferença remanescente pode ser atribuída, como de costume, à discriminação, mas poderia também ser explicada por outras características produtivas não mensuradas (capital social, cultural, físico, distância do trabalho, qualidade da escolaridade, experiência angariada etc.), que poderiam ser captadas a partir de estudos qualitativos e dados de percepção, ou neutralizadas a partir de estudos de auditagem ( Bertrand, Mullainathan, 2004 ). Além disso, a robustez dos resultados aqui apresentados só seria confirmada a partir de análises similares, feitas para outros contextos, períodos e dados. É preciso replicar para poder generalizar.
Em terceiro lugar, mostramos que a razão de rendimentos entre homens e mulheres é maior entre os 5% mais pobres (1,5) do que entre os 5% mais ricos (0,94). Homens de classe baixa ganham em torno de 50% a mais que as mulheres, mesmo sob as mesmas condições de inserção ocupacional e produtividade. Entre as pobres, a desigualdade mantém-se pervasiva e elevada. Já na classe alta, a desigualdade de rendimentos entre gêneros não é significativa, apesar de entendermos que há outros fatores discriminatórios que acontecem no ambiente de trabalho, para além da renda, inclusive referentes à própria probabilidade de mulheres estarem no grupo de cargos de gerência ou liderança.
Entre as limitações do estudo está a sua incapacidade em lidar com a endogeneidade da relação entre fecundidade, inserção laboral e renda. Como estas variáveis foram simultaneamente observadas, não conseguimos separar a direção causal das mesmas. Apesar disso, nosso resultado alinha-se com aquele apresentado por Souza, Rios-Neto e Queiroz (2011), que utilizaram experimentos naturais (ocorrência de natimortos e o nascimento de gêmeos) e variáveis instrumentais (a preferência dos pais por filhos de ambos os sexos) para captarem o efeito do número de filhos sobre a inserção feminina no mercado de trabalho. Ainda que não tenhamos utilizado “estratégias causais” na modelagem do primeiro estágio, nossas probabilidades preditas de inserção laboral feminina são muito parecidas às destes autores, o que nos dá confiança para afirmar que o suposto viés oriundo da endogeneidade não seja tão grave assim, tendo importância mais teórica do que substantiva. Também chamamos a atenção para o fato da nossa tipologia ocupacional não captar o diferencial de concentração de mulheres ou homens em certas ocupações, o que poderia em si gerar um efeito sobre os salários ( England, 1999 ). Diante desta limitação, sugerimos que estudos futuros comparem os salários de homens e mulheres dentro de uma mesma ocupação e firma, em vez de compará-los a partir dos nossos cinco agrupamentos ocupacionais, dentro dos quais há grande variabilidade de profissões e rendimentos por sexo.
Nossos resultados concordam com aqueles apresentados por Budig, Hodges (2010 ; 2014 ) e Cooke (2014) ao mostrar que as mulheres que ganham mais estão em menor desvantagem ao terem filhos do que aquelas que são de classe baixa. Melhores salários permitem a compra de serviços domésticos – babás, creches, restaurantes, serviços de limpeza – e maior comprometimento com a especialização profissional ( Gupta, 2006 ). As mães de classe alta não precisam, necessariamente, optar entre cuidar da família ou trabalhar fora de casa, já que a maior afluência de recursos lhes permite conciliar estas escolhas com maior conforto que aquelas em classes mais baixas. Nossos resultados, entretanto, contrastam com aqueles da literatura ao mostrarem que a penalidade materna afeta, sobretudo, a entrada das mulheres de classe baixa no mercado de trabalho. A maternidade não se mostrou um fator significativo nos diferenciais de rendimento entre homens e mulheres em geral, e também não diferencia os salários entre as mulheres ricas com e sem filhos. Ou seja, outros fatores como a escolaridade e a ocupação foram mais importantes na diferenciação.
As respostas à desigualdade de renda entre os gêneros devem, portanto, voltar-se sobretudo para as mulheres de classe baixa, mas também para aquelas da classe média, entre as quais a discriminação social – e que enseja a discriminação estatística 20 – é evidente. Enquanto o fenômeno da desigualdade de rendimentos entre gêneros for tratado de maneira geral, sem o enquadramento necessário às suas demandas específicas por classe (creches perto de casa e em tempo integral e flexibilização da jornada de trabalho para mães e gestantes, por exemplo), é improvável que vejamos progressos notáveis neste campo. Enquanto a desigualdade de gênero for percebida e midiatizada apenas na média, sem ater-se aos seus condicionantes mais fortes e aos grupos de renda nos quais ela é maior, mais difícil será sua mitigação através de respostas institucionais-transversais, apropriadas àquelas que mais delas necessitam.