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Seguir os Documentos, Ouvir as Narrativas: Análise de Políticas Públicas e a Produção de Sentidos Sobre Financiamento da Cultura

Tracking the Documents, Listening to the Narratives: Public Policy Analysis and the Production of Meanings About Culture Funding

À La Suite des Documents ; A l’Écoute des Récits : Analyse des Politiques Publiques et Production de Sens sur le Financement de la Culture

Seguir los documentos, Escuchar los Relatos: Análisis de Políticas Públicas y la Producción de Sentidos sobre la Financiación de la Cultura

RESUMO

Este artigo discute o papel das narrativas, suas contribuições e efeitos no processo decisório de políticas públicas. Examina as controvérsias e narrativas produzidas na trajetória de discussão da reforma do financiamento das políticas culturais federais entre 2003-2018 e na elaboração de documentos que culminaram no PL 6722/2010, o Procultura. Para a sociologia da ação pública, os significados mobilizados pelos grupos e atores sociais não estão soltos, mas entremeados a relações em campos estruturados. Seguir controvérsias e narrativas implica em iluminar pontos cegos do percurso de uma agenda pública, mas também as resistências objetivas, tanto no campo das posições e orientações dos atores, quanto aquelas oferecidas pelos dispositivos sociotécnicos e institucionais. Com efeito, observam-se movimentações e disputas simbólicas que revelam um sem-número de indícios, nem sempre tangíveis, mas de alta potência nas arenas de decisão.

narrativas e racionalidades; lutas simbólicas; financiamento da cultura; policymaking; processo decisório

ABSTRACT

This article discusses the role of narratives, their influence and contributions as a resource for the production of meaning in public policy decision-making by examining the trajectory of PL 6722/2010, “Procultura”, and its effects on cultural policies between 2003 and 2018. As part of a broader thesis research submitted in 2019, here we emphasize the contrasts between discourses and the structured fields of public funding policy. For the sociology of public action, the narratives of social groups and actors are not loose, but intermingled with meanings objectifiable by the empirical and theoretical construction of public policy, and arguably its analysis does not do without narratives as a method, but following their enunciated elements can illuminate blind spots in the path of a public agenda. We conclude that symbolic movements and disputes are identified among the participating actors that reveal countless indications, not always tangible, but very powerful in the decision arenas.

Narratives and Rationalities; Symbolic Struggles; Culture Funding; Policymaking; Decision-Making Process

RÉSUMÉ

Cet article traite du rôle des récits, de leurs apports et de leurs effets dans le processus décisionnel des politiques publiques. Il examine les controverses et les récits produits dans la trajectoire de discussion de la réforme du financement des politiques culturelles fédérales entre 2003-2018 et dans l’élaboration de documents qui ont abouti au PL 6722/2010, nommé « Procultura ». Pour la sociologie de l’action publique, les significations mobilisées par les groupes et les acteurs sociaux ne sont pas lâches, mais imbriquées dans des relations dans des champs structurés. Suivre les controverses et les récits implique d’éclairer les angles morts du déroulement d’un agenda public, mais aussi les résistances objectives, tant dans le champ des positions et orientations des acteurs, que celles offertes par les dispositifs sociotechniques et institutionnels. En effet, on observe des mouvements symboliques et des contestations qui révèlent d’innombrables indices, pas toujours tangibles, mais de grande puissance dans les arènes décisionnelles.

récits et rationalités; luttes symboliques; financement culturel; élaboration des politiques; processus de décision

RESUMEN

Este artículo analiza el papel de las narrativas, sus contribuciones y efectos en la toma de decisiones de las políticas públicas. Examina las controversias y narrativas producidas en la trayectoria de discusión de la reforma del financiamiento de las políticas culturales federales entre los años 2003-2018 y en la elaboración de los documentos que culminaron en el PL 6722/2010, el Procultura. Para la sociología de la acción pública, los significados movilizados por los grupos y los actores sociales no están sueltos, sino que se entrelazan con las relaciones en campos estructurados. Seguir las controversias y las narrativas implica iluminar los puntos ciegos en el curso de una agenda pública, pero también las resistencias objetivas, tanto en el ámbito de las posiciones y orientaciones de los actores, como las que ofrecen los dispositivos sociotécnicos e institucionales. En efecto, se observan movimientos y disputas simbólicas que revelan un sinnúmero de signos, no siempre tangibles, pero de alto poder en las arenas de decisión.

narrativas y racionalidades; luchas simbólicas; financiamiento de la cultura; policymaking; proceso decisorio

INTRODUÇÃO

O repertório de possibilidades para definir políticas públicas é muito grande. Em geral, há uma grande confusão conceitual entre a política das políticas públicas e as políticas públicas; ou seja, entre princípios, valores e a lógica política e as políticas públicas como espaço institucionalizado. Normalmente, a interpretação dessa questão envolve dar respostas para uma pergunta nada trivial: como é possível a ordem em sociedades complexas, policêntricas, internacionalizadas e com Estados que desenvolvem políticas setoriais articuladas por múltiplos atores? (Muller e Surel, 2002Muller, Pierre; Surel, Yves. (2002), A Análise de Políticas Públicas, EDUCAT, Pelotas, 2002.; Muller, 2010Muller, Pierre (2010). Les Politiques Publiques, 8a ed., PUF, Paris.). Ou, posto de outra forma: como as políticas públicas se relacionam com o desafio público da produção da ordem, de padrões normativos e de legitimidade, e que ofereçam as possibilidades de coesão simbólica nas sociedades contemporâneas? A questão das estruturações técnico-institucionais é central. Mas junto a ela aparecem outras de igual importância, quais sejam, as justificativas, os argumentos, os elementos discursivos, os sentidos mobilizados na legitimação e as controvérsias entre valores mobilizados nos processos das políticas públicas.

Este texto não tem a pretensão de oferecer uma definição que resolva todos os problemas de delimitação de planos analíticos, mas visa oferecer argumentos que permitam enriquecer a reflexão sobre o tema das políticas públicas e das suas relações com a política. As políticas públicas se traduzem em instrumentos ou dispositivos institucionais, articulados em torno de uma dimensão sociotécnica (documentos, protocolos, procedimentos, normas, medidas, critérios, etc.) e, sobretudo, ao redor de justificativas de valor, narrativas, formas retóricas e controvérsias (Lascoumes e Le Galés, 2006).

Não listaremos todas as possibilidades de conceituação. Concentramo-nos em uma definição e a partir dela desdobraremos as reflexões que se seguirão. Assim, as políticas públicas podem ser definidas como um “conjunto de ações e programas que se articulam em torno de diretrizes específicas e que são estabelecidas pelo Estado em algum dos seus níveis de governo” (Vasconcelos-Oliveira, 2016Vasconcelos-Oliveira, Maria Carolina. (2016), “Cultura e Estado” in Do Val, Ana Paula; Oliveira, Danilo Júnior; Vasconcelos-Oliveira, Maria Carolina; Souza, Valmir de (orgs.). Políticas Públicas de Cultura. São Paulo, Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo, v. 1, pp. 9-22.:9).

Os elementos enfatizados na definição configuram as políticas públicas numa visão arquitetônica e integrada, como um conjunto de práticas articuladas que se referem à ideia das diretrizes e, possivelmente, ao quadro que associa ideias gerais a objetivos claros. Já interpretando, salta aos olhos a forte ideia de que as “diretrizes específicas” são “estabelecidas pelo Estado”, mesmo quando estas definições venham a contar com a participação, social e popular. Deve-se enfatizar claramente que nesse caso o Estado pode ser descrito como um decisor central e não como um agenciador, coordenador, implementador de ações de terreno localizadas e interdependentes com a ação de inúmeros outros atores.

A rigor, o conceito tem a vantagem de marcar, em primeiro lugar, um regime estabilizado de políticas (orientações valorativas gerais) e, em segundo, um regime de políticas públicas (ações e programas). Ou seja, define, respectivamente, um regime de valores estabilizados e um campo de institucionalidades, demarcando aí seu papel e sinalizando intencionalidades.

Em todo o caso, por contraposição a essa ideia de ordem, a anarquia da ação estatal – ou seja, a descrição da ação pública como um conjunto de elementos sem hierarquização e concertação por princípios e ideias gerais bem definidas –, desafia o mito da ação estatal coerente e integrada. Pode-se supor a presença de referenciais de políticas públicas (Faure, Pollet e Warin, 1998Faure, Alain; Pollet, Giles; Warin, Philip. (1998), La Construction du Sens Dans les Politique Publiques: Débats Autor de la Notion de Referenciel. Paris, L’Harmattan.), mas a presença de múltiplos atores com orientações normativas diferenciadas, e até antagônicas, coloca questões a respeito dos significados da ação racional referida a valores ou a princípios, sinalizando para a multiplicidade das controvérsias que influenciam as decisões e desafiando a visão corrente sobre a ação integrada do Estado.

Os elementos discursivos, retóricos e os enunciados mais genéricos, como diretrizes e princípios, ainda mantém uma força simbólica na ordenação de sentidos das políticas públicas e são produzidos em diferentes espaços públicos (nas audiências, nas consultas públicas, nas diferentes mídias, nos conselhos, comitês, grupos de trabalho, etc.).

Como se verá, a discussão da complexa relação entre os aspectos simbólico-discursivos e a presença de estruturas de ação específicas como objeto das políticas públicas culturais poderá esclarecer (ou não) a necessidade de novas referências conceituais que permitam organizar a descrição das relações entre política e políticas públicas. No andamento do texto, notar-se-á também um vai e vem de reflexões e digressões que, entrelaçadas, corroboram para uma análise sobre política e políticas públicas numa interseção entre o dito e o não dito no processo decisório.

O dispositivo analítico de “seguir controvérsias” organiza a interpretação, contornando a falsa concepção de que tanto os problemas quanto a formulação de respostas a eles são evidentes, lineares, de que podem ser naturalizadas ou de que ideias gerais, próprias à mobilização social, dariam conta dos diferentes caminhos operacionais resolutivos para enfrentar os desafios das políticas públicas. Em segundo lugar, as decisões dos atores não são nem perfeitamente informadas e nem livres: elas dependem de trajetórias, conjunturas, alianças, oposições internas às instituições, relações entre atores portadores de orientações normativas diversas e, sobretudo, de suas relações com contextos mais gerais. E, por fim, o dispositivo permite também complexificar a interpretação sobre como os atores lidam com as situações-problemas e, portanto, possibilita contextualizar os conflitos e consensos na produção dos problemas públicos. A configuração de problemas, soluções e ações se traduz nas controvérsias de sentidos, no confronto de posições e nas oposições entre atores nas conjunturas em questão, mas também em nome e no trabalho simbólico de definição e imposição do que seria o interesse geral. As controvérsias foram acompanhadas no contexto das propostas de modificação das estruturas do financiamento cultural e, assim, seguimos documentos e observamos narrativas e discursos que, quando enunciados, provocavam efeitos sociais e políticos aproximando ou afastando pessoas e formando e reconfigurando grupos e posições nos processos de decisão pública. Entretanto, as controvérsias tensionam constantemente os instrumentos de políticas públicas que lhes oferecem resistência. Os instrumentos constituem-se em dispositivos técnicos e institucionais que organizam as relações entre poder público e os destinatários ou usuários. A instrumentalização se refere ao conjunto de componentes sociotécnicos que materializam e operacionalizam a ação. Os instrumentos portam valores e alimentam-se de interpretações e concepções sobre como orientar a relação entre poder público e sociedade civil. Os instrumentos de política pública têm, portanto, uma dimensão simbólico-social que se mistura a componentes técnicos (medidas, cálculos, regras jurídicas e procedimentos). Seguir controvérsias no contexto da decisão ou inação pública significa seguir motivações simbólicas e habilidades para usar ou reconfigurar os instrumentos de política pública.

AS NARRATIVAS E AS CONTROVÉRSIAS NA ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS

As políticas públicas podem ser concebidas como quadros, matrizes cognitivas e normativas que são de extrema complexidade (Surel, 1997Surel, Yves, (1997). L’Etat et le Livre: Les Politiques Publiques du Livre en France (1957-1993). Paris, L’Harmattan.). Os atores competem para interpretar, explicar e conferir aos fenômenos sentidos de forma tal que as ações pareçam coerentes com seus interesses, valores e visões de mundo. Essa luta ganha a forma de produção de narrativas concorrentes que justificam problemas, ações, aproximações e distanciamentos entre atores, tendo como efeito a construção de grupos aliados e oponentes. O que os atores dizem sobre o que fazem, suas narrativas, mobiliza crenças, representações e significados contextuais, se referindo a jogos de sentidos históricos locais e refletindo controvérsias, contradições, práticas e lutas simbólicas travadas em situações estruturadas (Barbosa da Silva e Abreu, 2012).

Reunir as práticas em um plano único – como o da própria narrativa ou das representações sociais – é um risco calculado, justificado em função do problema de pesquisa, mas limitador da interpretação. Elementos díspares compõem as práticas. O que é feito em um edital público pode ser deduzido do que é dito, ou o que é dito pode ser objeto de interpretação; mas os sentidos da política pública estão no conjunto de narrativas, nos dispositivos institucionais em funcionamento, assim como nos resultados da ação pública. Esses elementos são interdependentes.

As práticas são heterogêneas e refletem as diferentes posições que atores ocupam em relações sociais estruturadas. Vamos desenvolver, na próxima seção, um exemplo para facilitar a discussão. Trata-se de uma análise de um programa da área cultural, onde prezamos as narrativas produzidas em entrevistas feitas com os atores da administração pública que participavam do Programa Mais Cultura (Barbosa Da Silva e Abreu, 2012). O Programa Mais Cultura era constituído por recursos gerais do Ministério da Cultura (MinC) e compunha parte significativa dos recursos do Fundo Nacional de Cultura (FNC), chegando a ser, em 2009, 67% dos recursos daquele fundo. Ademais, o programa era composto por ações do “Programa Livro Aberto”, do “Brasil Som e Imagem”, do “Cultura Viva” (Silva e Walczak, 2014Silva, Frederico; Walczak, Irmina. (2014), “O Redesenho do Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva: O Último Ato e a Racionalidade dos Processos Decisórios nas Políticas Públicas”. Anais do III Encontro Internacional De Direitos Culturais, 2014, Fortaleza, Ceará. Fortaleza, Unifor.) e do “Engenho das Artes”, com recursos orçamentários executados na unidade orçamentária no Ministério da Cultura, repita-se, e no FNC.

A partir da seção, “seguir as controvérsias”, as entrevistas e conversas de campo foram realizadas com o intuito de triangular informações: complementando o levantamento de fontes primárias, documentos, notas taquigráficas etc. a respeito das controvérsias que envolveram a lei Rouanet; auxiliando a contextualização e interpretação da produção de justificativas, ideias, narrativas e discursos; e dando sentido às proposições relativas às mudanças da estruturação do financiamento às políticas culturais. As entrevistas semiestruturadas, foram realizadas com atores em diferentes posições institucionais, testemunhas do processo de formação da agenda pública e de decisão que se dividiram em três tipos: (1) gestores e funcionários do MinC que protagonizaram ou presenciaram os debates e momentos-chave sobre financiamento da cultura desde 2003; (2) funcionários técnicos do Parlamento brasileiro que acompanharam a fase mais avançada da tramitação do Procultura a partir de 2010; e (3) gestores de projetos culturais que testemunharam o percurso do PL a partir de 2015.

OS LIMITES E POTENCIAIS DAS NARRATIVAS E DO INSTITUCIONALISMO DISCURSIVO COMO MODELO ANALÍTICO

O foco agora será a descrição da produção de narrativas a respeito da realização de editais públicos e os seus sentidos, especialmente aquelas centradas na ideia de que o FNC já foi um “balcão” e de que agora seria regido pela lógica de uma “política de Estado”. O uso dessa análise não tem a intenção polêmica, mas tem como objetivo apontar que a análise sociológica envolve um vai e vem sistemático entre as narrativas dos atores, a densidade das relações sociais (em sentido de sua estrutura técnica, econômica e institucional) e a interpretação (narrativa do sociólogo).

As narrativas a respeito dos editais, que já foram nosso objeto de reflexão em trabalhos anteriores (Barbosa da Silva e Abreu, 2012), puderam transformar os editais do FNC num processo de aprendizado social e, simultaneamente, em um jogo de narrativas a respeito das próprias práticas. Lembrando que os editais são uma das ferramentas do instrumento de dispêndio direto, as chamadas públicas, decorrentes de um passo a passo negociado, mediado ou objeto de agenciamentos.

O sentido da produção de um edital tornou-se, por efeito da nossa própria narrativa, num acontecimento que acompanhava a produção ou usos singulares dos editais. Tudo bastante interessante não fosse a descrição tomar ares próximos ao trivial: ou seja, a afirmação de que cada edital tem usos e segue caminhos ou fluxos negociados a cada evento, que os envolvidos aprendem e tornam-se mais habilidosos e que tecem sentidos para todo o processo. Narrativa genérica ou, pelos menos, generalizada para todos os casos. Difícil imaginar que convênios, transferências de recursos para bibliotecas nos municípios, doações de acervos bibliográficos, construção de centros culturais etc. possam estar alinhados de forma genérica a práticas institucionais, prêmios, bolsas, compras de equipamentos audiovisuais, fomento a microprojetos, convênios com pontos de cultura entre outras possiblidades.

Entretanto, nossa narrativa, em estilo analítico – ou seja, que vale para qualquer situação, independentemente das conexões e do sequenciamento de fatos e ações – também desconsiderou as posições institucionais diferenciadas. Em verdade, a produção de um edital tem significados diversos a depender de quem narra, da sua trajetória e posição institucional. Para um funcionário experiente de carreira o edital é instrumento de política pública que tem suas regras, sequências e protocolos definidos na legislação, em portarias ou instruções normativas. A produção de um edital é algo diferente para um ocupante de cargo comissionado encarregado de fazer política, articular aliados, organizar encontros, discursar, apresentar dados etc. Fazer um edital, para este, é talvez algo bem mais obscuro. Não pela falta de um protocolo ou noção de clareza impossível, mas pelo desconhecimento prático de como o processo formal funciona (Barbosa da Silva e Telles, 2013). Para os atores que são, antes de tudo, mediadores que transitam entre a administração, grupos e comunidades culturais, os editais permitem compor, aliançar, participar, formar redes etc. Mas permitem também, especialmente, produzir discursos e narrativas mobilizando sentidos.

Da mesma forma, desconsideramos a prática como comportamento regulado e objetivo, com as interdependências densas entre narrativas, representações sociais, crenças construídas e contexto. As narrativas dos atores entrevistados circulam ali, no contexto da narrativa sobre narrativas, sem contexto referencial claro – muito embora narrar, em determinadas situações, possa constituir-se no próprio sentido do uso e da “troca de palavras”. As narrativas mobilizadas em entrevistas podem fazer sentido apenas para responder ao contexto da própria entrevista. E isso não é inusual.

Aliás, a pesquisa sociológica empírica deve distinguir entre o contexto dos sentidos mobilizados pela entrevista, que se constitui como jogo social específico, e a referencialidade do que ali é enunciado. Também é necessário distinguir as objetivações ou as interpretações sociológicas, fortemente caracterizadas por diálogos com o campo das ciências sociais, do sentido ordinário da situação. As narrativas, caso não sejam levadas a sério, sobretudo no jogo de remissões, esquecimentos e ressignificações nos quais os entrevistados estão envolvidos, podem se configurar como simples fragmentos descontextualizados ou em um jogo de projeções de sentidos sociológicos sobre os sentidos comuns. As generalizações simbólicas realizadas para criar efeitos de clareza e de compreensão correm o risco de incorrerem em construções abertas semanticamente, disponíveis aos sentidos a elas atribuídos pelas lutas simbólicas no campo institucional.

Deve-se enfatizar, portanto, que o movimento interpretativo em ciências sociais implica em um vai e vem entre dados empíricos e conceitos. A densidade da descrição depende desse duplo movimento. Não é incomum que levantamentos parciais, insuficientes ou incompletos sejam contornados com a estratégia de majoração teórica e analítica. A insuficiência na construção dos dados empíricos não é, evidentemente, um problema do raciocínio, da generalização apressada ou do uso indiscriminado de enunciados analíticos; ou seja, daqueles enunciados que não acrescentam conteúdos específicos às relações e processos sociais pesquisados. Em muitas situações, os atores não se revelam e nem querem se revelar. E quando o fazem, são vagos, esquivos e reticentes, afirmando trivialidades que dão sentido às questões a respeito do fenômeno social pesquisado e respondem especificamente à situação da entrevista. Nesses casos, é possível que as habilidades interpretativas, retóricas e narrativas do pesquisador contornem as lacunas deixadas no levantamento dos dados.

Em geral, mesmo que com exceções, o trabalho baseado em entrevistas se direciona a descrever o que acontece nas políticas, raramente aventurando-se na interpretação dos instrumentos de políticas públicas, suas conexões com as controvérsias e narrativas dos atores e instituições. Embora as narrativas ordinárias – ou mesmo aquelas produzidas para a entrevista – possam trazer equívocos a respeito do alcance dos instrumentos de política, institucionalmente, na prática, um edital jamais será confundido com uma licitação1 1 . Para a interpretação dos sentidos da produção de editais, ver Barbosa da Silva e Telles (2021). . A indistinção conceitual entre as visões de mundo expressas nas narrativas genéricas e o uso de instrumentos técnicos, por exemplo, ou entre a dimensão analítica e a baixa visibilidade para o pesquisador sobre o que é feito efetivamente no “campo estudado”, são problemas comuns no estudo de políticas públicas e de instituições da burocracia estatal. Por método, podemos aceitar adjetivações sobre ausência de política, política de balcão, política de editais ou outras do gênero; afirmações que fazem parte da política mas que, isoladas, não tem alcance para a interpretação da política pública como prática.

Para a sociologia da ação pública, as narrativas não estão soltas, mas estão entremeadas a sentidos objetiváveis pela construção empírica e teórica das políticas públicas. Abreu afirma que:

O discurso diz muito pouco quando retirado das suas relações, primeiro, com a prática, ou melhor, a práxis; e, depois, com os outros discursos. Ao falar de práxis, faz-se referência não apenas à ideia de que aquilo que dizem as pessoas está entremeado pelo fazer, pelas instituições, pelas posições de força, e que o sentido das narrativas, neste caso, equivale ao seu uso; mas também aos diversos lugares (que se articulam entre si das formas mais inusitadas) onde é importante falar algo sobre o sistema. As narrativas, por sua vez, “conversam”, “dialogam”, quer dizer, relacionam-se com outras narrativas – de práticas, histórias, posições, estratégias, operações políticas, processo orçamentário, editais, realizações etc. (Abreu, 2011:145).

A descrição densa é possível e até desejável (GEERTZ, 1989Geertz, Clifford. (1989), A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Editora Guanabara Koogan.), embora não seja o único recurso metodológico para lidar com as produções simbólicas e tenha que ser complementado, sendo necessário articulá-la com a análise dos instrumentos de política (Lascoumes e Les Galès, 2004Lascoumes, Pierre; Le Galès, Patrick. (2004), Gouverner par les Instruments. Presses de Sciences Po.). Em instituições complexas, provavelmente o sociólogo deverá extrair sentido dos fragmentos de sentidos do que é capaz de observar ou ouvir. Entretanto, a sobredeterminação das categorias teóricas ou analíticas do observador e a insuficiência empírica da construção do objeto são incapazes de tomar as práticas sociais como objeto. Citamos Passeron (1995Passeron, Jean-Claude. (1995), O Raciocínio Sociológico: O Espaço Não Popperiano do Raciocínio Natural, Editora Vozes, Petrópolis, RJ.:453-453) para sintetizar de forma indireta a posição defendida:

A discussão epistemológica sobre a interpretação muito facilmente confunde suas duas formas, que, no entanto mantêm uma relação oposta com a empiria: em geral nos referimos (é o caso de Popper cada vez que fala de “interpretação”) a interpretação que intervém depois de uma observação empírica cujos protocolos e resultados não são por ela transformados e contenta-se em seguir ou parafrasear seu sentido intrínseco, a menos que ela não se dê (o que acontece) uma supra interpretação intemperante pelo acréscimo de significados extrínsecos, ou seja, extra empíricos – esta interpretação, que não acrescenta nada de empírico ao que a observação enuncia de empírico, é forçosamente interpretação livre (“sugestiva”, romanesca, poética, mitológica, metafísica etc.). No sentido mais estrito, reservamos a denominação hermenêutica a esta forma inconstante de interpretação. Logo se vê a diferença da hermenêutica em relação à teoria interpretativa que intervindo durante o trabalho empírico, para estender ou transformá-lo, produz a possibilidade e a exigência de novas observações empíricas, cujas condições mesmas eram impensáveis enquanto não eram pensadas nas categorias da teoria (Passeron, 1995Passeron, Jean-Claude. (1995), O Raciocínio Sociológico: O Espaço Não Popperiano do Raciocínio Natural, Editora Vozes, Petrópolis, RJ.:453-453).

AS NARRATIVAS NOS CAMPOS OBJETIVOS: PRÁTICAS ESTRUTURADAS E JOGOS SIMBÓLICOS

Como objeto de interpretação sociológica, a prática tem múltiplos sentidos (Bourdieu, 2009Bourdieu, Pierre. (2009), O Senso Prático. Editora Vozes, Petrópolis, RJ.). Pode ser tomada como produto intencional de sujeitos conscientes, capazes de antecipar e calcular o futuro e as consequências da ação. A ação, por outro lado, pode ser reduzida aos efeitos de determinações estruturais, de condições e significados de jogos objetivos (Bourdieu e Wacquant, 2008Bourdieu, Pierre; Wacquant, Loïc. (2008), Una Invitación a la Sociología Reflexiva. Editora Siglo Veintiuno, Buenos Aires, Argentina.). Ainda pode ser conceituada como conjunto de disposições internalizadas potencialmente mobilizadas e desativadas segundo situações específicas. As práticas seriam, então, relacionadas a disposições para agir, valorar, sentir, apreciar, narrar, discutir etc., dependendo de campos estruturados e situações específicas.

Normas, ideias, interesses e instituições configuram práticas e são internalizadas como sentidos da ação devendo, portanto, ser descritas em suas relações densas e nas suas interdependências. Palavras avaliativas, mesmo quando criadas originariamente para descrever a realidade, são muitas vezes mobilizadas na produção simbólica e na lutas sociais. Pode-se exemplificar com palavras mobilizadas nos jogos e disputas simbólicas: “capitalismo”, “classes dominantes”, “elites”, “neoliberalismo”, “Estado”, “mercado”, “movimentos sociais”, “cultura popular”, “indústria cultural”, “balcão”, “sistema”. Essas palavras expressam ideias e, se em certas situações constituem arranjos conceituais que organizam descrições de como as coisas funcionam, em outros são expressão das práticas nas suas dimensões normativas, ideacionais e expressivas, das posições, relações estruturadas e da própria dinâmica social que precisa ser descrita e interpretada.

O que significa levar a sério as práticas como objeto de interpretação? Significa interpretar os contextos de ação unindo estruturas históricas de significação (ideias, crenças, interesses, representações, valores, narrativas etc.) à história dos campos estruturados de luta simbólica. Essa vertente contém uma complexa rede conceitual para relacionar a dialética histórica entre estruturas estruturadas e estruturantes (Lahire, 2005Lahire, Bernard. (2005), “Patrimônios Individuais de Disposições: Para uma Sociologia à Escala Individual”. Revista Sociologia Problemas e Prática, n. 49, pp. 14-42.:14-42). Não é caso de rever esse quadro conceitual e os limites de suas aplicações, mas apenas enfatizar suas exigências de análise empírica de situações concretas.

Exemplificaremos, mais uma vez, com o nosso trabalho sobre o Programa Mais Cultura do MinC. Em “As políticas públicas e suas narrativas – o estranho caso entre o Mais Cultura e o Sistema Nacional de Cultura” entrevista com funcionários do Ministério fundamentaram a descrição das narrativas e controvérsias que envolveram a Secretaria de Articulação Institucional (SAI); ou seja, as relações de entre duas de suas ações estruturantes: o Programa Mais Cultura e a construção do Sistema Nacional de Cultura (SNC).

Seguimos diferentes controvérsias e especialmente uma delas estava presente nas narrativas onde se afirmava (o tema eram os Editais) que “aprende-se fazendo”. Supostamente isso se referia a um campo das práticas administrativas. No entanto, a interpretação construída (nossa narrativa) não descreve as práticas de elaboração concreta de um edital, mas o jogo de remissões, ideias, opiniões, e as narrativas dos funcionários entrevistados sobre os sentidos dos editais. Não se trata apenas da opacidade do objeto. Falta algo na construção da interpretação.

Como já se escreveu, as práticas mobilizam crenças, valores, ideias, representações, interesses e narrativas contextuais que dão sentidos e estruturam as relações em campos e situações específicas. As práticas em políticas públicas ainda mobilizam métodos, instrumentos, medidas, objetivos, metas, documentos, protocolos e processos. Nenhum componente isolado dá sentido às práticas, que são constituídas por elementos subjetivos e objetivos interdependentes. Mesmo que nas entrevistas os funcionários afirmassem de forma recorrente “não existirem procedimentos padrão para elaboração de editais” ou que indicassem “a falta de uma definição clara de fluxos e processos”, é pouco certo afirmar que a administração pública não seja guiada por rotinas e padrões objetivos de comportamento formalizados em norma e documentos. Mesmo que de fato e objetivamente essas regras não existam, é pouco provável e crível que padrões de ação rotineiros não sejam dominados funcionários experientes. Na verdade, em contraposição às narrativas coletadas, essas regras objetivas existem.

Assim, não se deve aceitar de forma apressada o que dizem os atores. Em situação de entrevistas, eles procuram dar sentido e se posicionar a respeito de interpretações. Os entrevistados são interlocutores e se posicionam em relação ao que é proposto, mas também em relação a outras narrativas, o que significa se posicionar em relação a outros atores. Manter a autonomia das narrativas em relação aos contextos objetivos significa descrever aspectos parciais da experiência institucional da implementação da política pública; nesse caso, da produção de editais. Em realidade, a interpretação do dia a dia da administração pública deve considerar as complexidades das práticas, da multiplicidade de narrativas e posições relativas de quem conta histórias.

Nenhuma prática é completamente transparente. Nenhuma prática é descrita em seus significados da mesma forma por diferentes atores. Eles possuem suas redes de relações, seus aliados e adversários. Narrar implica em dar sentidos, mas também em se posicionar em relação a outros. O uso da fórmula retórica “aprende-se fazendo” ajuda na exemplificação. Ela tem usos particulares, opondo os que ainda estão aprendendo e aqueles que já sabem fazer, tendo, portanto, rendimentos simbólicos. Além de colocar atores em relação implicitamente, valoriza rotinas e pequenas lutas cotidianas, valoriza a experiência trivial em contraposição às regras burocráticas formais.

Por outro lado, “seguir a portaria”, fórmula muito comum no dia a dia dos funcionários da administração, é um aliado dos técnicos mais experientes. Valoriza distinções entre os que já dominam processos e rotinas formais e os recém-chegados. Evidentemente, essas distinções são dinâmicas, sendo eventualmente invertidas, moduladas e objeto de quid pro quo. Assim, o “aprende-se fazendo” adquire outro uso, permitindo a suspensão provisória de antagonismos. Afinal, todos acabam aprendendo, inclusive os neófitos. O seguir a portaria, por sua vez, abstrai controvérsias, dúvidas e ambiguidades, como se a prática se constituísse em apenas aplicar as regras e protocolos presentes em normas.

A situação de entrevista é ocasião para mobilizar narrativas e estabelecer marcadores de posição. A presença do pesquisador, ouvinte e atento, pode estimular ou inibir; mas sempre impõe a necessidade de uma resposta. Assim, as narrativas coletadas devem ser trianguladas com outras informações objetivas e comparadas com outras narrativas. A própria situação de entrevista, momento de investimentos simbólicos, diz algo a respeito do entrevistador – que carrega interesses teóricos e sociais específicos –, e de quem responde – funcionários ou políticos que estabelecem relações específicas com práticas administrativas. Dessa forma, as narrativas se dobram e friccionam com materialidades e institucionalidades. Normas, protocolos, métodos, procedimentos, documentos, recursos, sequência de ações formalizadas, cálculos etc. fazem parte de outra ordem: a ordem dos instrumentos de política pública, dos dispositivos jurídico-administrativos ou dos dispositivos sociotécnicos. Estes, por sua vez, são contextualizados pelas narrativas, mas não são redutíveis a elas.

A descrição das políticas públicas, dos seus instrumentos, de suas práticas, encontra resistências a sua redução à dimensão narrativa. Evidentemente, a análise de narrativas tem potencial e seguir controvérsias tem lá suas utilidades para mapear dinamismos administrativos. Os limites das narrativas também são claros. Os editais, licitações, programações orçamentárias, medidas de monitoramento e investimentos não são conjuntos narrativos.

Assim, além de as práticas envolverem a mobilização de narrativas, são também sistemas de disposições internalizadas pelos agentes ou atores nos diferentes processos de socialização e nas diferentes instituições. Isto se dá, sendo mais ou menos ajustados às condições objetivas das relações sociais e, também, aos jogos e lutas que tem por efeito a imposição simbólica e a afirmação ou negação de posições nos campos sociais.

Além desses, pode-se aproximar mais um sentido para descrição da prática. Ela pode se referir à presença da intencionalidade, de planos de ação conscientes com potencial para coordenar atores em certa direção ou objetivos através de sequências de ações e eventos. Nesse caso, capacidades de agência individual e coletiva entram no jogo social na forma de institucionalização de assembleias e fóruns de atores, ou seja, de coletivos capazes de ação reflexiva. Nesse sentido, as políticas públicas se constituem em instituições capazes de dar forma a essas práticas de coordenação da ação.

O raciocínio que aqui se propõe na interpretação é um raciocínio de entremeio. É um híbrido entre intenções conscientes e tácitas, entre assertivas teórico-formais e assertivas indexadas aos campos de relações históricas estruturadas. Assim, a compreensão das práticas através de documentos, entrevistas, observação e escuta participante deve ser indexada aos contextos de pesquisa e, duplamente, ao campo das relações estruturadas em torno de políticas públicas específicas, sendo que o conjunto de questões colocadas também deve contextualizado. Seguir documentos e controvérsias, portanto, é uma estratégia de promover o encontro do mundo das narrativas e de como foram sendo objetivadas em documentos e práticas institucionais com todas suas ambiguidades, contradições, antagonismos e titubeios.

Ou seja, as práticas e as subjetividades no processo de produção de politicas públicas precisam ser consideradas de modo integrado. Nenhuma reflexão (ou método), caso aplicada de forma mecânica e apressada, por mais criativa que se apresente, é capaz de responder às questões de pesquisa (ou avaliação) de forma adequada e empírica.

SEGUIR AS CONTROVÉRSIAS A PARTIR DOS DOCUMENTOS E NARRATIVAS

a constituição da Lei 8.313/91 foi uma tentativa de limitar os estragos realizados pelo Governo Collor na área cultural. Recompunha os instrumentos de financiamento direto, pela via do Fundo Nacional de Cultura (FNC), e de financiamento indireto, pela via dos incentivos fiscais e pelos fundos de investimento. Tinha como objetivos garantir recursos do orçamento e estimular empresários na criação e um mecenato privado, com ou sem apoio público e, por último, a criação de fundos geridos na forma de condomínio. Portanto, o objetivo primário era o de pluralizar fontes de recursos. Antes da Lei Rouanet existia um sistema de financiamento com contribuições financeiras e orçamento público regular e mecanismos de incentivos fiscais previstos pela Lei Sarney. Então, nada de fundamentalmente novo, embora alguns instrumentos tenham sido remodelados para responder a críticas, jamais materializadas com evidências, de desvios e de usos inadequados dos recursos públicos.

A partir dos primeiros anos do século XXI as ideias relacionadas às políticas culturais ganharam outro dimensionamento, com especial atenção para a ideia de Sistema Nacional de Cultura (SNC), com comando único em cada esfera de governo e dotado de mecanismos de participação e financiamento público (fundos estaduais, distrital e municipais). A partir daí, a Lei Rouanet passou a ser criticada e foi objeto de intenso debate sobre sua reforma, chegando a ser cogitada sua substituição por outros mecanismos considerados mais adequados.

Seguiremos algumas das controvérsias a partir de documentos que foram sendo gerados em processos de consultas públicas e no parlamento brasileiro. A descrição de processos políticos pode ser realizada de diferentes maneiras. Em geral, se fixam atores em posições ideológicas e depois se deduz seu comportamento, interesses, ideologias e movimentos institucionais. Pode-se seguir os resultados dos embates através dos seus registros, da inscrição das lutas simbólicas em documentos e na sua transformação sucessiva.

Um documento é resultado de muitos embates e é referência para novos movimentos discursivos e políticos. Os documentos posicionam questões e hipóteses de resolução de problemas enunciados pelos atores na forma de proposições formais e informais. Um exemplo são os projetos de lei (PL), que seguem um trâmite formal no legislativo e mobilizam atores do executivo; entre eles, ministérios setoriais e Casas Civis e agentes da sociedade civil. Estes atores se posicionam tanto quanto aqueles oriundos do ambiente público das instituições participativas, tais como os conselhos e conferências, audiências, consultas via internet e, nas mídias, nos coletivos, sindicatos, etc.

Portanto, os documentos são artefatos; ou seja, resultados, sínteses provisórias de um conjunto complexo de intrigas, discursos, narrativas e dados mobilizados, pequenas escaramuças, inventivas, acusações, críticas etc. Mas, sobretudo, resultam de uma rica produção simbólica, localizada, materializada e posicionada.

As discussões da Lei no 8.313/93, a Lei Rouanet, não poderiam constituir algo diferente. Construções retóricas de diferentes tipos foram mobilizadas: o neoliberalismo se constituía em projeto de governos despreocupados com o republicanismo e com a democracia, mas engajado na “cultura como negócio”; atendia aos interesses do mercado, das grandes empresas e artistas consagrados; despreocupava-se com o fortalecimento do Estado e com a participação social; não atentava para as regiões onde os mercados seriam menos dinâmicos, as fragilidades institucionais seriam maiores e onde as culturas locais seriam objeto de estigmatização e exclusão.

Esse eixo retórico organiza muitas formas discursivas e representações: a oposição entre governos liberais e democratas, entre mercado e Estado, atores privados e públicos, cultura de elite e popular, cultura de mercado e diversidade etc. Da mesma forma, articula posições sobre o sentido do uso dos instrumentos públicos de financiamento: incentivos fiscais, que beneficiam agentes de mercados e são decididos pelas empresas por oposição ao FNC, que tem decisão do Estado e dos órgãos de decisão coletiva e participativa. Outra posição que se adiciona a esta é a ideia de que os incentivos fiscais são concentrados nos eixos RJ e SP e que seus benefícios estariam ainda mais direcionados a bairros ou regiões dessas cidades. Estas posições, contrastam diretamente ao padrão alocativo do orçamento público republicano, que se direcionaria à cultura em sentido antropológico e, portanto, aos grupos das periferias das cidades e das regiões menos favorecidas: grupos e coletivos mais vulneráveis e excluídos.

Como se vê, a produção simbólica sobre o sentido dos instrumentos é clara: os instrumentos de financiamento indireto concentram-se em agentes de mercado (empresas e artistas consagrados), seja no processo decisório ou na resultante distributividade desigual. Já o financiamento direto se concentra no conceito antropológico de cultura e em ideias de equidade. Tudo verdadeiro, se não fosse falso. Ou verdades e falsidades relativas, posicionais. Mesmo não sendo nosso objeto, vale lembrar de pontos simples: incentivos fiscais e FNC são instrumentos complementares da própria Lei Rouanet/PRONAC. Os incentivos fiscais são concentrados e desigualmente distribuídos, mas respondem a um esforço significativo dos grupos artísticos e culturais para acessar a recursos, sendo que entre esses se encontram os consagrados, mas também a inúmeros agentes públicos que demandam recursos para suas atividades de mérito cultural.

Não trataremos disso. O que interessa dizer é que essas ideias são confusas por várias razões. A mais definitiva é que elas fazem parte de razões práticas e cálculos de força específicos. Os sistemas de representação e classificação do mundo são transversais: se misturam e atravessam, não oferecem razões distintas e claras. Por exemplo, construir um Sistema Nacional de Cultura (SNC), descentralizado e participativo, demanda recursos e mobilizações sociais e institucionais, não apenas normas. Além disso, essas mobilizações, o tempo de ação e decisão dos atores é muito variado e não sincronizado.

Dessa forma, pode-se dizer que criar o Sistema implica na defesa não apenas de um modelo, mas de ações que mobilizem os atores. Entretanto, os atores têm posições variadas em relação ao sistema: alguns não acreditam que seja possível vincular recursos do governo federal ou avaliam ser impossível demover o “Ministério das Finanças” de sua ideologia de liberdade alocativa. E, em decorrência, as ações de mobilização passam a ganhar autonomia e passam a ser elas próprias narradas como sistema. Outros agentes simplesmente acham que fazer sistema de cultura é fazer a própria cultura e que a construção de estruturas estatais federativas e coordenadas significa somente adicionar burocracias a um mundo que as recusa.

Nesse contexto, fazer política, ou fazer política simbolicamente, passa a ser a capacidade de mobilizar e fazer alianças através da palavra, logo, das suas narrativas. Acreditamos que a confusão discursiva sobre a Lei Rouanet é natural. A razão não é sempre (ou quase nunca o é) analítica ou instrumental.

O uso do conceito de paradigma organiza a confusão e o debate histórico. Dois paradigmas podem iluminar a discussão a respeito da Lei Rouanet, apesar das ambiguidades e confusões históricas que sempre permanecerão e que só são resolvidas nas ideias ou ideologias gerais. No primeiro paradigma, o mercado organiza o fomento e o financiamento, no segundo os orçamentos públicos o fazem.

No primeiro paradigma, o decisor é a empresa e no segundo é Estado. Entretanto, os tipos puros se misturam e hibridizam-se nas práticas e na implementação das políticas públicas. No primeiro caso, o fomento por parte das empresas e pessoas físicas pode ser incentivado com renúncias, o que chamaremos de incentivos fiscais. Ou seja, o empresário ou pessoa física patrocina ou doa recursos e têm parte ou a totalidade dos recursos abatidos de impostos. Então, temos: a) os recursos próprios de origem empresarial; b) os incentivos fiscais que são valores renunciados pelo Estado e abatidos dos impostos pelas empresas; c) recursos novos ou adicionais das empresas obtidos em decorrência de níveis de abatimentos menores do que 100%, no uso de incentivos fiscais; e d) recursos públicos alocados pelos empresários ou pessoas físicas, quando 100% é abatido dos recursos de patrocínio ou doação.

Nesse diapasão, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) é responsável pela aprovação de projetos que devem ser apresentados ao MinC e pelo estabelecimento de parâmetros de consistência e de regulações que influenciam o desenho dos projetos. Assim, deve-se acrescentar outra camada institucional aos “incentivos fiscais”. No primeiro caso, (a), a decisão é das empresas ou pessoas físicas; no segundo, (b), o Estado renuncia a impostos e a decisão é do empresário ou pessoas físicas, mas os projetos devem ter sido aprovados por instâncias estatais responsáveis por definir parâmetros e aprovar os projetos que serão posteriormente objeto de captação. Os recursos novos, em (c), também são objeto de regramento, nesse caso com aprovação legislativa que define alíquotas diferenciais que compõem a lei. Os atores públicos estão presentes aqui com apoio do MinC e do Legislativo Federal. Assim, existem decisões político-normativas em (b) e (c). Em (b) as definições são da CNIC e em (c) são do MinC e do Legislativo; mas no momento de aprovação e desenho do perfil de projetos, da CNIC. Em (d) o estado renuncia e o empresário ou pessoas físicas não adicionam recursos, mas a CNIC aprova, de novo com a ajuda de pareceristas externos, os projetos que serão objeto de captação. Portanto, existem diferentes formas de conexão entre Estado e financiamento via incentivos fiscais. Essa dinâmica pode ser descrita com uma assertiva simples, isto é, o MinC aprova tecnicamente o projeto e, depois, os proponentes buscam apoio, sendo que aquela aprovação não implica em avaliação de mérito e nem garante que alguma empresa apoiará o projeto.

O caso (a) não nos importa aqui. Ele carece de dimensionamento e pesquisas que deem conta da sua importância e não há uma dicotomia perfeita entre estado e empresa (mercado), a não ser no plano das ideias. Já em (b), (c) e (d) as regras e a participação diferencial da CNIC são definidas politicamente e devem ser consideradas como regulações públicas. É verdade que o desenho das regras legislativas ou da participação da CNIC implicará em diferentes políticas. Entretanto, também é certo que a participação Estatal na aprovação dos projetos não garante a captação dos recursos junto a potenciais patrocinadores. Pode-se dizer que as fontes de recursos são: empresas, empresas-Estado, Estado-empresas, e Estado. O poder público pode regular tanto as composições via Legislativo ou via CNIC quanto a definição de tetos de projetos e das regras às quais os projetos serão subsumidos. Outro ponto importante a lembrar é do papel das empresas estatais, que em algumas situações é de reconhecido alinhamento com as políticas ministeriais. Então, nesse caso, adicionamos mais uma variável importante ao mix mercado-estado.

Finalmente, quem executa os projetos ou programas de trabalho? Ou seja: são agentes do mercado, públicos ou do terceiro setor? Também é relevante saber, para elaborar tipologias a partir dos instrumentos de políticas de financiamento, qual é a distribuição territorial dos projetos. Todavia, mais importante, que a tipologia é organizar as categorias ou as cartografias (Guattari, e Rolnik, 2005Guattari, Félix; Rolnik, Suely. (2005), Micropolítica: Cartografias do Desejo. Editora Vozes, Petrópolis, RJ.) das representações do problema do financiamento à cultura que permitam nos situar em meio às controvérsias a respeito do financiamento à cultura no Brasil.

Assim, seguir os documentos implicou na organização de momentos que dessem sentido aos debates em suas linhas gerais. A participação maior ou menor dos agentes culturais, instituições e interessados na cultura nos levou à separação de momentos de mobilização, ampliação da participação e depois de desmobilização. Os processos de formulação e implementação de políticas públicas envolvem a mobilização de múltiplas e diferentes formas de construções retóricas. O processo de discussão e decisão sobre a reforma da “Lei Rouanet” é um drama com muitas cenas vividas, narradas e documentadas.

O período 2003-2018 é rico em movimentos de idas e vindas em torno de mudança da lei e tem como fio condutor a tramitação do Procultura, PL 6722/2010, criado para “substituir” ou, como defendiam seus artífices, “reformar” a Lei Roaunet. O drama movimenta incontáveis controvérsias, retóricas e elementos discursivos. Para organizar a rotação desses elementos e seus ritmos diferenciados nos propusemos a seguir os documentos do Procultura, algo próximo a seguir suas controvérsias.

A construção de uma Linha do Tempo do Documento Procultura (Figura 1), considerando suas transformações, narrativas e falas capturadas, permitiu-nos construir um conjunto rico de referências documentais, textuais e narrativas, localizando e guiando as interpretações e análises sobre a reforma da Lei Rouanet e seus sentidos. Repare que na Figura 1 verificam-se elementos que compõem essa trajetória de modo a auxiliar-nos nas interpretações sobre o percurso desse PL. No primeiro quadrante, destacam-se os atores e principais artífices desta empreitada. Observe que, com o tempo, é notória a ampliação do número de participantes, bem como a diversificação de perfis – público, privado e terceiro setor. Logo abaixo, veem-se as ideias nas quais se baseavam esses atores na condução dos debates e dos avanços da agenda: é notável que a preocupação com a institucionalização da pauta é o principal foco. Na sequência, verificam-se acontecimentos (distribuídos entre fatos e análises) ocorridos ao longo desta trajetória e os efeitos sobre o andamento da pauta. Já na Figura 2, é possível acompanhar a trajetória do PL em suas diversas versões criadas e/ou readequadas e que buscavam dar conta dos anseios e demandas dos policymakers. Tanto na Figura 1 quanto na Figura 2 são verificadas movimentações de atores e ideias que demonstram uma ampliação dos envolvidos e também dos interesses em jogo.

Figura 1
Linha do tempo da Agenda de Financiamento da Cultura – Anos 2000.

Figura 2
Linha do tempo do Documento Procultura e Adjacentes.

Necessário destacar que para a produção de sentidos e o significado das fontes eleitas para este estudo foi utilizada uma Análise Documental (AD) (Minayo, 2001Minayo, Maria Cecília de Souza (org.). (2001), Pesquisa Social: Teoria, Método e Criatividade. 18a ed. Petrópolis, Vozes.; Muylaert et al., 2014Muylaert, Camila Junqueira; Sarubbi Jr., Vicente; Gallo, Paulo Rogério; Rolim Neto, Modesto; Reis, Alberto Olavo (2014). “Entrevistas Narrativas: um Importante Recurso em Pesquisa Qualitativa”. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 48, n. spec. 2, pp. 184-189, dez.2014. Disponível em <https://www.scielo.br/j/reeusp/a/NyXVhmXbg96xZNPWt9vQYCt/?lang=pt>.
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), que se constituiu em assinalar ideias e visões contidas nas diferentes versões e tipos de documentos examinados. Aplicou-se também a Análise de Narrativas (AN) (Id. 2014) para capturar narrativas (textuais e não textuais) de atores participantes, assim como falas de atores – previamente identificados. Isto se deu por meio de entrevistas e/ou leitura de registros textuais e audíveis, gravações e notas taquigráficas, que foram os artefatos produzidos em encontros, conferências, audiências públicas, seminários entre 2003 e 2018. Segundo os autores, a análise de narrativas pode ser uma importante aliada para capturar circunstâncias em que o pesquisador aspira investigar e cumprir o papel de composição do rol de informações relevantes de uma pesquisa. Em que pese sua natureza livre, toma-se por base não apenas o que foi narrado, mas principalmente os contextos e variáveis circunstanciais que podem influenciar o mensageiro dessa narrativa. Ao lançar mão da AN são enfatizados fatores sobre o que e como se narra, buscando por meio de sinais não verbais – as ênfases, as pausas, a postura, o tom dado às expressões – enriquecer a investigação capturando o “não dito” (Id., p. 195). Muylaert et al., (2014)Muylaert, Camila Junqueira; Sarubbi Jr., Vicente; Gallo, Paulo Rogério; Rolim Neto, Modesto; Reis, Alberto Olavo (2014). “Entrevistas Narrativas: um Importante Recurso em Pesquisa Qualitativa”. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 48, n. spec. 2, pp. 184-189, dez.2014. Disponível em <https://www.scielo.br/j/reeusp/a/NyXVhmXbg96xZNPWt9vQYCt/?lang=pt>.
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considera como pilares desta ferramenta: ideias, eventos, pessoas, interesses, lugar de fala e representatividade; diversidade de pontos de vista; e peso e poder de influência sobre as decisões. Assim, a AN se mostrou um importante insumo para a análise documental feita. E as narrativas tiveram o papel de fazer uma “costura” entre artefatos textuais (documentos) e não textuais (discursos e entrevistas) para subsidiar argumentos, fazer aproximações e apurar os conteúdos velados ou implícitos.

SOBRE OS DOCUMENTOS

A ideia de seguir o caminho do documento sintetiza a trajetória do Projeto de Lei Procultura (e suas diferentes versões ao longo do tempo) entre consensos e dissensos, concepções e visões políticas dos atores, acordos e controvérsias que aparecem e desaparecem em torno de pontos nevrálgicos no percurso de tramitação desse documento. Mas é também um exemplo de caminho analítico para auxiliar-nos na análise de outros instrumentos legais propositivos voltados ao tema da política de financiamento da cultura.

É certo que toda política pública implica na produção e disputa de sentidos. A trajetória do projeto de lei e as dificuldades em implementar mudanças específicas sugere-nos a hipótese de que o projeto foi, além de um instrumento político de política em formação, um recurso de mobilização e de retórica que movimentou marcadamente jogo de forças político.

Por óbvio, o drama discursivo visava a reforma da Lei no 8.313/91, a Lei Rouanet, mas não sabemos se essa realização era, à luz das evidências, o objetivo principal. A leitura das controvérsias encontradas no caminho dos documentos aponta para uma grande ambiguidade em relação a mudanças do instrumento de política e para certos acordos, ainda assim, bastante opacos em relação às ideias gerais. A partir daqui faremos movimentos sucessivos de aproximação seguindo os documentos de diferentes maneiras. Entre 2014 e 2017, depois de um percurso de mais de 10 anos, a marcha da reforma diminuiu seu ritmo. O timing para aprovação do PL havia sido, aparentemente, perdido.

O documento do PL 6722/2010, o Procultura, é um artefato. Trata-se de um fato estabilizado, um documento que mal esconde um complexo de produções institucionais e sociais que lhes são externos e, ao mesmo tempo, constitutivos. Por essa razão, é arquivo vivo e fio condutor do percurso da agenda de política pública no espaço da cultura, o lugar das narrativas e controvérsias cravadas no texto. Ali estão presentes, na forma de enunciados estabilizados, aspirações, sistemas de crenças, justificativas, imaginações, narrativas, atores e instituições.

Numa primeira aproximação, pode-se constatar as transformações realizadas em cada versão do Procultura e o fato de que elas dialogam entre si – ainda que, evidentemente, sejam distintas. Ao mesmo tempo, um sem-número de controvérsias se acomodam nos artefatos sucessivos, a cada versão, retratando momentos e conjunturas que falam por si, como se vê na Figura 2.

Analisando as versões do PL elaboradas em diferentes momentos desde 2003, verifica-se que até 2014, embora fossem notadas algumas ausências, há certa linearidade no processo de decisão sobre proposta do PL, mesmo considerando as divergências e quebras de rotinas internas do MinC nesse período. Até aí existe sintonia entre as versões e, de certo modo, entre os atores. Para o processo decisório de uma política pública, isso é sinal positivo.

Entre uma versão e outra são observados avanços e recuos, muito em função do calor dos debates, da presença do tema na mídia e da entrada de novos atores com poder de veto e/ou de influência. Percebe-se ainda um processo paulatino de maturação de conceitos e visões, ao mesmo tempo em que ocorre um esforço incremental com inserções de pontos inovadores no texto do PL – a exemplo das novas modalidades de desembolso e o uso do endownment ou fundos patrimoniais. Estes fundos são estruturas que abrigam recursos financeiros provenientes de doações de pessoas físicas e jurídicas e que podem ser considerados como instrumento de garantia da sustentabilidade financeira de longo prazo – evitando dependência de uma única fonte de recursos – pelas instituições de cultura. No entanto, isso se dá sob a matriz de um velho modelo: o uso de mecanismos fiscais como fonte relevante para o financiamento do setor, instrumento tão criticado por ser um dispositivo instável em momentos de crise econômica.

É dessa perspectiva, que se revela ambígua, que são identificadas inúmeras controvérsias do Estado entre intencionalidade e efetiva assunção para si desse tema na agenda pública, onde se teria a Cultura na centralidade da agenda política. Ao mesmo tempo, verifica-se que entre as diversas variáveis que influenciaram as decisões encontram-se os atores com papel de veto (dentro e fora do MinC) e seus argumentos: importantes elementos do processo democrático.

Há controvérsias, por exemplo, quando os primeiros debates sobre a mudança da Lei Rouanet tiveram como foco a “reforma” e não a “substituição” da Lei. Esse aspecto é um ponto de atenção que seguirá pelos anos seguintes no percurso do Procultura. Isso ocorre muito em função de que havia um discurso potente voltado para reformar aspectos específicos da Lei, alterando itens relevantes para uma real mudança do modelo de financiamento. No entanto, nas sete versões do PL, desde o PROFIC - primeira versão do que hoje se conhece como Procultura - (entre 2008-2016) verifica-se a defesa da revogação da Lei Rouanet e sua substituição pelo Procultura, sinalizando os primeiros indícios de diferenças entre discurso e prática.

Essa mudança de retórica denota mais uma das incontáveis controvérsias encontradas, sendo mais um ponto de tensão entre os grupos de interesse e também de clivagem que reforçou as disputas e debates. A razão para tal tensão se deve ao fato de que a Lei Rouanet, sendo substituída pelo Procultura, entraria numa nova regra de revisão de incentivos fiscais pelo Ministério da Fazenda – que atualmente ocorre a cada cinco anos.

Outro dado indicativo de controvérsia é a ideia de que soluções dentro da própria Lei Rouanet poderiam resolver os problemas encontrados e as fissuras detectadas na Lei. O que nos leva a indagar se de fato seria necessário elaborar uma “nova lei” ou se seria suficiente implementar ajustes que a livrasse das revisões previstas em lei pela Fazenda. Outros contrapontos também são identificados, por exemplo, entre os grupos de interesse de diferentes origens e destes com os profissionais da cultura, que por sua vez têm embates na relação com o empresariado. Sobre estes últimos, também são observados jogos de força com o Ministério da Cultura, que por sua vez encara diversos contrapontos com os demais Ministérios e a Casa Civil, quando se depara com um orçamento que pouco acena para a relevância do setor. Soma-se a isso a tensa relação de Juca Ferreira, então Ministro da Cultura, com grupos internos do MinC.

Apesar de todo o esforço do então ministro pela aprovação do Procultura, aqueles grupos (profissionais das artes, grupos internos do MinC, e parte das lideranças estaduais e municipais) estavam mais inclinados à ideia de “sistema” de financiamento (no caso o SNC) – cujo desenho passaria pela integração de instrumentos incluindo o próprio Procultura e um repasse automático de recursos que interligaria os fluxos de receitas e as decisões descentralizadas de sua destinação. Nesse sentido, nota-se que, ainda que de modo velado, as disputas endógenas ou “brigas intestinais” no MinC permitiram um sem-número de situações que indicam espaços de disputas simbólicas e de controvérsias entre os atores dentro do Ministério e dentro do Governo.

Outro bom exemplo de controvérsia é a questão das alíquotas de abatimento, em especial a de 100%, que apresenta certo paradoxo quando argumentos importantes entre atores contra e a favor desta alíquota foram paulatinamente se remodelando e tomando novas feições no debate, tendendo a um certo consenso. A questão também expõe uma das principais fissuras na Lei: embora o PRONAC/Lei Rouanet tenha sido criado para o fomento e a parceria público-privada no fomento da cultura, a experiência dos últimos anos não apresentou uma prática de mecenato autônomo efetivo.

Se não é o mais polêmico, o tema das alíquotas, junto à defesa por maior participação nas decisões sobre a alocação dos recursos para a cultura – a exemplo do papel da CNIC –, estaria entre os que mais sofreram críticas, embates e jogo de força entre os atores. Item considerado inegociável e criticado como principal ponto de dissenso entre governo e grupos de interesse, a questão da alíquota de abatimento de 100% foi, ao longo do tempo, se transformando na mesma medida em que seus defensores e seus críticos também mudaram seu olhar sobre o tema, chegando ao ponto de ambos os lados admitirem que um meio-termo no uso da alíquota de 100% tornando seu uso possível sem macular o interesse público.

Entretanto, deve-se assinalar que a discussão das alíquotas de abatimento mascara um debate maior a respeito do orçamento para as políticas culturais e a correlação FNC “vs.” renúncia fiscal; bem como a relação entre mecanismos de financiamento e orçamento da cultura, um dos menores entre os Ministérios. Tema espinhoso, o enfrentamento da questão é uma demanda latente entres os grupos de interesse ligados ao campo e requer um debate aberto, visando o reordenamento de prioridades pelo Estado que não o faz plenamente – já que opta por assumir o uso de incentivos fiscais como mais adequado às políticas culturais, em vez de definir um orçamento mais robusto para a pasta.

Ora, examinando uma camada mais “subterrânea” da questão, pode-se inferir que o temor pela suspensão daquela alíquota só evidenciou uma questão ainda maior sobre o drama do financiamento da cultura: a relação de dependência dos incentivos fiscais pelos profissionais da cultura que se depreendeu ao longo das três décadas de Lei Rouanet. Este, por sinal, é o cerne do problema para o campo das políticas culturais, pois apesar de todos os benefícios que a Lei Rouanet propiciou ao longo dos anos, esse tipo de dependência é o principal motivador de um ciclo vicioso que faz desse modelo alvo de críticas por ser concentrador de recursos e pela baixa destinação de recursos próprios privados (e não apenas renunciados) que pudessem indicar uma verdadeira parceria público-privada. Adiciona-se a isso o enfrentamento do debate sobre orçamento público direto e os processos participativos sobre o tema.

Desse modo, essas questões expressam ambiguidades e controvérsias que tornam o tratamento da matéria impreciso e contraditório quando atores de distintas visões buscam responder à questão: o que vigora hoje como modelo de financiamento da cultura, trata-se de uma política pública de fato?

SOBRE AS NARRATIVAS

Narrativas vindas de atores reforçam e reiteram a existência das controvérsias. Ressalte-se que as narrativas serviram de ligadura entre pontos cegos na linha do tempo da trajetória da agenda do financiamento da cultura, via Procultura, auxiliando na compreensão e entendimento da construção desse processo decisório. As falas dos atores envolvidos dizem muito dos bastidores, das conversas de corredor e das trocas informais entre atores que contribuem relevantemente para formar as visões e leituras desses mesmos atores. Estes, por sua vez, ora corroboram, ora contrapõem-se aos registros encontrados nas fontes documentais, férteis em sua expressão de ótica testemunhal. São temas recorrentes nas narrativas aspectos como: a importância do processo de construção coletiva; as pressões conflituosas entre grupos de interesse indicando um claro teor corporativista e hierarquizado das linguagens artísticas impulsionadas pelo debate sobre os 100% de abatimento; as tensões em torno da proposta do fim da alíquota de abatimento de 100%; e, principalmente, a necessidade de inverter a lógica que se estabeleceu sobre o uso dos recursos da renúncia fiscal.

As narrativas, quando não divergem, por vezes reforçam as controvérsias e mudanças de retórica ocorridas sobre a tessitura do Procultura em suas diferentes versões. Observam-se recorrências e divergências de itens longamente discutidos no texto do PL, tais como a participação social e o papel da CNIC; mecanismos de financiamento e orçamento; e alíquotas de abatimentos. Todos eles alvos de disputas entre grupos de interesse que se opõem em campos de batalha, reforçando a tese de que as contradições foram o combustível desse processo de decisão que expõe as fissuras do campo das políticas culturais.

Vale lembrar o episódio da CPI-Lei Rouanet, que acabou por se tornar fortuitamente um espaço de maior esclarecimento sobre a matéria dentro do Parlamento, expondo a “realidade dos fatos” tão propalada nos objetivos da CPI e que acabou por se reverter em um ambiente de visibilidade para a real problemática do campo das políticas públicas de cultura.

Ao acompanhar a trajetória da proposição do Procultura, há munição para interpretar a questão de fundo de como se deu o processo decisório e sobre as razões para que a reforma da Lei, não se realizasse. Há indícios de que os atores protagonistas vivenciaram uma acanhada capacidade política e institucional para fazer desse processo uma agenda de decisão. Politicamente, os embates e as negociações foram volumosos e desafiadores. Institucionalmente, dentro do próprio MinC verificaram-se controvérsias e ambiguidades, supostamente equacionadas, que possivelmente explicariam os propósitos desse importante ator.

Os indícios a respeito de capacidades reformadoras estão nas controvérsias, mas também nos consensos. Sobretudo, uma conjunção de ideias e interesses que se materializam em clivagens de posições internas e na descontinuidade das prioridades da agenda de governo no período estudado, demonstrando hiatos entre as diferentes gestões do Ministério da Cultura ao longo dos governos Lula/Dilma. Os indícios também apontam para uma ausência (histórica) da compreensão da pauta da cultura como fato relevante na agenda política, constatação feita observando as idiossincrasias entres os próprios grupos de interesse a favor da reforma da Lei Rouanet.

A trajetória do Procultura pode ser sintetizada na ideia de que o Estado deu sinais de fazer a escolha para a não-política. Ou, na linguagem de análise de políticas públicas, a non-decision-making – uma não decisão, o que sinalizou que não fazer política é política (Bachrach e Baratz, 1962Bachrach, Peter; Baratz, Morton. (1962), “Duas Faces do Poder”. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 40, pp. 149-157. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782011000300011&lng=en&nrm=iso>.
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); e, que não agir é, em última instância, agir. No entanto, sua inação, distinta de sua retórica sobre a matéria, se materializa ou decorre da fragilidade de suas capacidades de decisão, de além de construir a agenda e mobilizar atores e de ser capaz de conduzir a decisões efetivas.

Outra questão é que, às vezes, os objetivos da agenda são conflitantes. Desta forma, é possível questionar se o Sistema Nacional de Cultura – SNC e a PEC 150/2003, atual PEC 421/2014 – estariam no radar das prioridades do MinC, se foi dada prioridade ao Procultura ou se houve mesmo priorização de algo. A ideia de Sistema foi preconizada por parte dos gestores e técnicos do MinC e até do Parlamento, que viam no Procultura não o principal, mas um dos elementos que atuaria em sinergia com aqueles dispositivos de financiamento, como a PEC e o SNC, ambos ainda inacabados e carentes de aprovação e regulamentação.

Além dessa questão, está o fato de que muitos críticos da reforma do modelo em vigor, via Lei Rouanet, se fixaram no argumento de que mesmo havendo mudanças nas estruturas do financiamento da cultura, o Procultura, se aprovado, ainda se valeria de velhos instrumentos vigentes e criticados nas diferentes conjunturas, ou seja, o uso de incentivos fiscais. O que indicaria uma contradição na própria concepção do Procultura.

Essas constatações sinalizam a existência de dissensos, dentro do próprio MinC, sobre o entendimento de uma política pública de financiamento da cultura mais estruturada e integrada com vistas à solução para o problema. Sinaliza também que o Procultura, numa trajetória solitária, sofreu revezes que possivelmente contribuíram para sua frustração. E nos leva a arguir se pensá-lo de modo integrado com aqueles dispositivos seria ou não um reforço frente aos “gate-keepers” do Parlamento (Giglioli, 2015). As constatações indicam também uma clara disputa de sentidos dentro do próprio Ministério da Cultura e do Governo, que teria correlação com o desfecho dessa agenda. Ao final de seu percurso, em 2018, o Procultura foi arquivado no Senado Federal, seguido de uma proposição de outro projeto de lei similar ligada à CPI-Lei Rouanet.

Deste modo, verifica-se que o Procultura pode ter tropeçado nas próprias contradições e idiossincrasias e que seu debate serviu mais como espaço de legitimação de outras estratégias e agendas – igualmente importantes –, e menos como uma mudança nos paradigmas do financiamento da cultura como desejado pelos seus artífices.

E O QUE ISSO TUDO MOSTRA?

Seguir as controvérsias por intermédio de documentos e outros artefatos discursivos nos mostra a longa trajetória de idas e vindas, avanços, abandono de ideias, retomadas, e refundações na construção de uma nova política pública de financiamento da cultura, tendo por base o PL Procultura e suas conexões com Fundo Nacional de Cultura e o Sistema Nacional de Cultura. Também nos mostra de como todos esses movimentos associados a visões e percepções dos atores políticos recaem sobre o processo decisório em política pública. Portanto, as clivagens já iniciadas desde as primeiras discussões sobre a matéria (anteriores a 2014, momento chave desse processo decisório) foram, possivelmente, as principais responsáveis pela delonga e desfecho dessa agenda.

Como se vê, nada está fora do campo das práticas socialmente construídas. Em decorrência dessa premissa, se não podemos supor ingenuamente uma completa imersão nos sentidos de senso comum, também não podemos imaginar um distanciamento e objetividade plenos. Entretanto, é desejável objetivar a posição de quem interpreta e refletir sobre a qualidade dos processos de interpretação. Da mesma maneira, é necessário situar e qualificar o campo das práticas que estão em foco.

OS FUNDAMENTOS DE UM SISTEMA: NARRATIVAS, NORMAS E DESENHOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Usamos até aqui exemplos das práticas em políticas públicas. Nelas são situadas interdependências entre planos cognitivo, normativo, metodológico e instrumental, que se articulam na ação do Estado no enfrentamento de problemas públicos. As políticas públicas culturais, por sua vez, têm outra natureza, como veremos a seguir. A maneira como se descrevem as práticas fará diferença na maneira como imaginamos ações de políticas públicas no campo da cultura.

Voltemos à descrição do FNC feita na segunda seção desse artigo. Na primeira, considera-se a dimensão cognitiva, a argumentação e as ideologias que dão sentidos ao conjunto de ações e interesses fragmentados que constitui o FNC. Muitas são as ênfases imagináveis. Entre essas, a constituição de atores e de redes de apoio estimulada pelo sistema de financiamento e pelo próprio Fundo. Mas aqui se enfatiza – depois de considerações sobre as mediações simbólicas e o seu contraste com operações institucionais concretas e instrumentais possíveis – a descrição da estrutura do FNC. A última parte discute os significados alternativos preconizados pela produção do FNC como parte do Sistema nacional de Cultura (SNC).

O Fundo Nacional de Cultura (FNC) tem múltiplas funções, tais como legitimação, regulação e manutenção de coalizões de apoio. Os elementos simbólicos e ideológicos que unem essas dimensões atravessam questões operacionais, instrumentais e normativas, sendo por elas limitadas.

PONDERAÇÕES SOBRE O FUNDO NACIONAL DE CULTURA E OS INCENTIVOS FISCAIS

Já se escreveu que as políticas públicas produzem sentidos. O FNC já foi descrito como “balcão”, como parte de uma futura “política de Estado”, como instrumento para agenciar ações e relações do Estado com a sociedade por contraste aos mecanismos de mercado, como instrumento de “políticas republicanas” e, ainda, como parte da estratégia de fortalecimento de um sistema nacional, descentralizado e participativo de políticas culturais. Não nos esqueçamos de que há também questões adicionais relacionadas ao fortalecimento e à institucionalização do Sistema Federal de Cultura (SFC), em vigor até 2019. Integra o SFC o Ministério da Cultura e os seus entes vinculados: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); Agência Nacional de Cinema (ANCINE); c) Fundação Biblioteca Nacional (BN); d) Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB); e) Fundação Nacional de Artes (FUNARTE); e f) Fundação Cultural Palmares (FCP); g) Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC); h) Comissão Nacional de Incentivo a Cultura (CNIC); e i) Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM)2 2 . Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Decreto/D5520.htm. Acesso em 10 fev. 2022. .

O FNC é ou foi tudo isso. Ou algo mais ou menos do que tudo isso. No caso do FNC ainda é certo que se constitui em peça de resistência discursiva e prática ao financiamento “via mercado” (incentivos fiscais). O aumento dos recursos do fundo significaria maior possibilidade de direcionamento de recursos definidos política e democraticamente, ao contrário dos incentivos fiscais que teriam destinação definida pelas empresas. O FNC é objeto de demanda por fortalecimento e seus recursos, preconiza-se, seriam vinculados à Receita Corrente Líquida (RCL), que seria transferida fundo a fundo, com percentuais fixos, para Estados, Distrito Federal e municípios. Voltaremos a essa questão na última etapa dessa análise.

O caso do Fundo Nacional de Cultura (FNC) nos serve como exemplo para a nossa reflexão sobre a realização de direitos. No caso, o direito à cultura. Sabe-se que o FNC tem objetivo e funções positivadas. Na prática, seus sentidos são objeto de inúmeras controvérsias que se traduzem em diferentes narrativas e dimensões de sua gestão.

O FNC é um fundo contábil que pode ser destinado a projetos apresentados segundo certos protocolos, admitindo-se a discricionariedade da administração, que tem a liberdade de escolher prioridades. Esses protocolos podem conter um conjunto de ações de interesse do poder público; e essas ações podem significar ou não o uso de seleções públicas de projetos, e estes podem ser individuais ou coletivos, podem ter dimensões limitadas ou não. Além disso, os critérios podem ser territoriais, ou podem implicar em teste de meios – ou critério de vulnerabilidade –, podem se relacionar à experiência dos destinatários, ou implicar em contrapartidas etc. O FNC também pode conter diretrizes, recursos vinculados ou não a certas áreas e pode, ainda, ser organizado por cotas, ou percentuais, para tipos de destinação específicos, definir público beneficiário e implicar em investimento ou fomento. Pode implicar em discursos a respeito da democratização e acesso a recursos públicos e no fortalecimento de fundos setoriais e das políticas de Estado.

Assim, o FNC também foi associado a discursos de fortalecimento da ação estatal e da democracia contra os mercados – especialmente simbolizados pelos incentivos fiscais. Paradoxalmente, as críticas foram genericamente endereçadas à Lei Rouanet, que estabelecia instrumentos de financiamento direto e indireto, incluindo o próprio FNC. Em nome de fortalecimento de políticas republicanas e democráticas a lei foi criticada e alvo de tentativas de reforma.

Sobre os incentivos fiscais, vejamos as proposições do Procultura e os pontos relativos ao FNC. O Projeto de Lei é uma proposição de reforma da Lei Rouanet que serviu de núcleo semântico estruturador dos discursos e sentidos das políticas culturais nos anos recentes. Entretanto, ele é obscuro em muitos pontos e, aparentemente, não responde às tecnicalidades da linguagem jurídica e nem às exigências de clareza da produção normativa.

Em muitos casos, as formulações mostram desconhecimento a respeito não só de técnica de redação de leis, mas do próprio objeto e limites dos instrumentos de políticas públicas, como veremos. Devido a isso, utilizamos a última versão disponível e aperfeiçoada pela Câmara dos Deputados, na forma do Projeto de Lei da Câmara nº 93, de 2014, o PLC 93/2014 (a última versão ainda em apreciação pelo Senado). E pelas razões descritas, nos deteremos em alguns poucos pontos relativos ao FNC.

O texto do PLC 93/2014 mantém o FNC, Incentivo Fiscal a Projetos Culturais, o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (FICART’s) e o Vale Cultura3 3 . Lei nº 12.761, de 27 de dezembro de 2012. Institui o Programa de Cultura do Trabalhador, o Vale Cultura. . Este último, como mais um componente do sistema de financiamento previsto no art. 2o e já criado por lei específica. No PLC ainda se acrescenta um quinto mecanismo, visto como uma inovação em relação às versões anteriores do Procultura: ele prevê “programas setoriais de arte, criados por leis específicas”. Ademais, ao longo do texto do PLC, destacam-se estratégias e ações, de relevância, tais como: os critérios e pontuações de avaliação de projetos, faixas de dedução fiscal, revisão de competências da CNIC, diversificação de fontes de recursos, revisão de tetos de renúncia fiscal com fortalecimento de FNC, territorialização e desconcentração da aplicação de recursos. Entretanto, nos interessa de perto o Capítulo II– Do Fundo Nacional da Cultura.

No seu art. 10º, parágrafo 2º, afirma que “o FNC será o principal mecanismo de fomento, incentivo e financiamento à cultura”. O artigo 13º estabelece as receitas do FNC. A novidade é incorporar recursos de arrecadação da Loteria Federal da Cultura, a ser criada. As demais receitas não correspondem a novidades e já eram passíveis de serem acionados no contexto normativo da legislação vigente – à exceção do quadro geral das contribuições e dos mecanismos criados pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), inspirado nos FICART’s. O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) é um fundo destinado ao desenvolvimento integrado de toda a cadeia produtiva do audiovisual. Criado pela Lei 11.437/2006 e regulamentado pelo Decreto 6.299/2007, é uma categoria específica do Fundo Nacional de Cultura (FNC). Os recursos são alocados em linhas de ação específicas, seguindo uma lógica que prioriza o investimento em setores considerados urgentes. Tomemos como exemplos produções de longa metragem e a aquisição de direitos de distribuição de obras cinematográficas. Em 2006, o MinC propôs uma reestruturação do FNC, reforçando o papel do Estado como protagonista no incentivo do audiovisual, promovendo projetos e rearranjando sua atuação nos diversos elos da cadeia produtiva. O FSA surgiu, então, como uma programação específica desse novo modelo do FNC.

Destarte, parte das questões que envolvem a modernização da Lei Rouanet não são resolvidas por dificuldades provenientes da lógica orçamentária; dificuldades relacionadas, por exemplo, à operacionalização de cobrança de empréstimos, pagamento de juros, distribuição de resultados e outras tantas questões relacionadas à gestão que, em geral, poderiam ser solucionadas com a administração de recursos por instituições financeiras. Outra parte da modernização é controversa e depende de avaliações, orientações ideológicas, de conjunturas institucionais específicas e da presença de quadros normativos específicos. A construção do FSA e da sua estrutura de gestão superou vários dos impasses levantados pelos fundos de investimento e da cultura. Não são esses os pontos sobre os quais se desenvolveremos interpretações.

No que o Procultura enuncia sobre o FNC, na versão do PL no 6.722/2010, criavam-se nove fundos setoriais, sendo que um deles, o FSA, já havia sido criado pela Lei no 11.437 de 28 de setembro de 2006. Já o Projeto de Lei no 93/2014 (última versão do Procultura) cria 13 fundos setoriais4 4 . Em uma primeira versão eram estabelecidos nove fundos contemplando as mesmas temáticas que a versão anterior e acrescentando outras quatro. . O artigo 2º, parágrafo, 2º, diz que a dotação do Fundo Nacional de Cultura será, no mínimo, equivalente àquela do ano de aprovação da lei. Depois, no artigo 10º, afirma que o FNC será o principal mecanismo de fomento, incentivo e financiamento à cultura. Diz o art. 19º que a União deverá destinar no mínimo 30% (trinta por cento) dos recursos do FNC por meio de transferências diretas fundo a fundo, a fundos públicos de Estados, municípios e do Distrito Federal. Destes 30%, 50% deve ser destinado aos proponentes de projetos vindos da sociedade civil, não vinculados a patrocinador incentivado ou ao poder público nos entes federados.

Ainda no artigo 19º, reteremos apenas o parágrafo 2º para a análise. Ele diz que do montante geral destinado aos Estados, no mínimo 50% deverão ser repassados aos fundos municipais no prazo de 180 dias.

Tabela 1
Descrição dos Artigos 2º e 19º da Lei N º 93/2014 (PL – Procultura)

Finalmente, um último passo para o qual direcionaremos a atenção diz respeito às proposições do PL nº 93/2014 que permitem aumento de recursos do FNC, agora estabelecendo a obrigatoriedade de doações tributáveis ao FNC por parte daqueles que financiam a cultura através de incentivos fiscais. Assim, as doações para o FNC seriam de 20, 30, 40 e 50% a partir do ano de aprovação da Lei.

Nosso exercício parte daqui. Qual o montante de recursos a serem destinados ao FNC e como calculá-lo? Por enquanto, não nos interessa questionar os critérios5 5 . A ideia de associar patamares de gastos tributários diretos com indiretos descarta a discussão de necessidade de controles mais finos a respeito da qualidade dos gastos indiretos, do seu comportamento e sensibilidade a decisões políticas, tanto do poder público quanto do mundo empresarial. , mas no fundo queremos dizer que as proposições da reforma partem de uma equação de difícil solução e que, embora esta seja política, e talvez por essa razão, exige métodos simples, objetivos, diretos e sem torções estratégicas e ideológicas.

Em segundo lugar, pela possibilidade de limitação por parte da fazenda pública dos recursos fiscais através de diferentes mecanismos – dentre eles, as desvinculações (DRU), por exemplo, ou contigenciamentos. Logo de início é preciso redefinir a redação dada ao artigo 2º, parágrafo 2º. Ali se fala de dotação do FNC e que ela será equivalente, no mínimo, àquela do ano de aprovação. Entendemos que é importante e necessário garantir mínimos de empenho ou liquidação. A dotação é, em geral, maior do que empenhos e liquidações que, por sua vez, nem sempre são plenamente realizadas. Assim, seria importante definir uma linha de base, com recursos a serem efetivamente empenhados e liquidados, sem que sejam diminuídos em anos posteriores. Também é preciso definir outro critério como ponto de partida para os mínimos, que serão tendencialmente muito baixos depois de todo um período de crise fiscal entre 2008 e 2015.

Outro ponto opaco é que não está bem definido se nas transferências do FNC para outros entes federativos serão considerados os montantes dos recursos vinculados ao FSA. Se eles serão deduzidos e depois serão realizadas as transferências, ou se comporão os 30% previstos no artigo 10º.

Por fim, se interpretamos bem, as críticas à renúncia fiscal foram em parte atenuadas. Elas serão mantidas, mas serão diminuídas; ou melhor, 50% da renúncia serão direcionados ao FNC. Ou seja, depois de quatro anos do início da vigência da nova lei, 50% das doações dedutíveis deverão ser feitas ao FNC e ainda poderão ser lançados como despesa operacional das empresas. O que muda nesse caso é o decisor, que passa a ser o Conselho Nacional de Políticas Públicas (CNPC), o CFNC e o próprio MinC – e não mais as empresas. Mas as empresas financiadoras continuam abatendo seus impostos.

Então as empresas doam, deduzem impostos e os recursos das empresas são transformados em orçamento. Muitas dúvidas por aqui. O que os gestores do FNC desejam é também de interessa das empresas? Os recursos do FNC somados às doações poderão ser desvinculados em 30% pela DRU? Poderão ser contingenciados? As doações estarão vinculadas a projetos ligados ao FNC ou ao próprio fundo em termos de doações genéricas e transformadas em orçamento?

Enfim, a lógica é interessante mas gera muitas dúvidas. E não parece razoável ligar o comportamento do FNC ao da renúncia fiscal, a mecânica prevista no artigo 20, parágrafo 4º, itens I, II, II, IV, significa diminuição de gastos tributários indiretos e sua transformação em recursos do FNC. O que se ganha com isso? Não seria mais simples e direto propor o aumento dos recursos do FNC e a diminuição (ou a continuação) dos recursos tributados? Para termos uma ideia, voltemos a 2013. O autorizado (dotação inicial + créditos adicionais) foi de R$ 1.121 milhões, sendo que R$ 625 milhões (56%) foram empenhados e liquidados em valores correntes. Deixaram de serem empenhados R$ 496 milhões. Caso aplicássemos no ano o aumento de 50% dos gastos tributários indiretos (R$ 1.261 milhões em valores correntes), o aumento nos recursos seria de aproximadamente R$ 631 milhões, alcançando o valor de R$ 1.256 milhões, pouco mais do que R$ 134 milhões em relação ao que foi autorizado naquele ano. Para alcançar esse nível de recursos bastaria uma pequena melhora no nível de execução do autorizado, ou seja, daqueles R$ 496 milhões que não foram liquidados.

Evidentemente, nada é tão linear como estamos apresentando, mas propomos um critério simples, que a navalha de Occam funcione aqui. Duas propostas simples. A primeira é o aumento da capacidade de empenhar e liquidar os limites autorizados ao FNC. O Procultura também propõe a criação de uma loteria para a cultura, o que parece ser uma fonte nova.

Reformar ou não os incentivos fiscais (como proposto no Procultura) tende a ser outra decisão simples. Vemos que o principal ponto estrutural é o aumento dos recursos novos dos empresários. A partir daqui é necessário saber quanto, de fato, existe de mecenato privado no Brasil sem uso dos recursos dos incentivos fiscais, o chamado “dinheiro bom”. O outro ponto é saber do impacto efetivo dos incentivos fiscais nas estratégias tanto dos mercados de produção artística e de fomento ao patrimônio, quanto das empresas financiadoras.

Os impactos poderiam ser potencializados com estratégias e oferta de ações estruturadas para a ocupação de espaços públicos, equipamentos e outras formas de comunicação das obras criadas por públicos mais amplos. A gratuidade, como se propõe como princípio, muitas vezes é apenas uma das possibilidades. Enfim, é possível melhorar a eficiência no uso dos recursos.

Seja como for, transformar os gastos tributários indiretos em doações é um bom argumento de princípio, mas pouco provável que se ganhe muito com a estratégia. É necessário ter programação adequada, o financeiro precisa estar disponível e o MinC deve ter capacidade de empenhar os recursos em tempo oportuno. Entretanto, as doações podem ser feitas em fundos cujos recursos não transitam no Tesouro, mesmo que essa alternativa implique em princípios de organização orçamentária diferentes dos que têm sido implementados até aqui, especialmente para dotar o orçamento e sua execução de transparência e accountability.

Em relação aos repasses aos entes federados, vemos abaixo que as escolhas realizadas seriam muito conservadoras, com aumentos pouco expressivos de recursos a serem repassados federativamente. Mas também é verdade que a proposta do Procultura dá parâmetros interessantes para a ampliação de recursos a partir de 20% e até 50%. Mesmo que aparentemente o critério seja muito bom, no entanto, ele oferece referências iniciais de valores.

Lembremo-nos que o FSA é uma linha estruturada, com mecanismos diferenciados e estabelecido pela Lei no 11.437/2006, mas que faz parte do FNC e é composta por recursos de contribuições vinculadas às linhas das políticas do audiovisual. Em 2013, o FNC constituía-se em 27,4% dos seus recursos oriundos do MinC, enquanto o FSA correspondia a 20% do MinC e a 72,8% do FNC, em 2013. Essa participação aumentou para 82% em 2015. Através do FNC, o Ministério da Cultura pode apoiar programas, projetos e ações culturais mediante o aporte direito de recursos.

A intenção por detrás da criação desse fundo setorial era afastá-lo dos raciocínios comumente usados para dar sentido aos mecanismos de fomento indireto – os incentivos ou renúncias fiscais –, que ancoraram as políticas para o cinema e audiovisual ao longo da década de 1990. Por conta disso, as políticas públicas a serem promovidas pelo FSA teriam outro desenho, visto que poderiam selecionar diretamente os projetos a serem incentivados por critérios de políticas públicas, especialmente por internalizar critérios de desempenho de mercado e de acesso a públicos cada vez mais amplos.

A criação do FSA, dentro do FNC, veio seguida da criação de fontes específicas, especialmente a CONDECINE, como se viu até aqui. Portanto, em 2006, o MinC propôs uma reestruturação do FNC, reforçando o papel do Estado como protagonista no incentivo do audiovisual, promovendo projetos e rearranjando sua atuação nos diversos elos da cadeia produtiva. O FSA surgiu então como uma programação específica desse novo modelo do FNC.

A Tabela 2 apresenta os valores anuais do FNC desde 2007 a 2015. Na segunda coluna, o FSA, que é um dos seus componentes. Verifica-se que em 2007 era 13,7% do FNC e, em 2015, já constituía 86,4%.

Tabela 2
Aplicação dos Parâmetros do PL Nº 93/2014, Artigo 19º

A coluna “Fundos federativos” mostra as transferências de 30% do FNC, somando R$ 71,6 milhões, em 2007 e R$ 191 milhões em 2015. A coluna seguinte estima os mesmos repasses descontando a presença do FSA. Assim, os repasses para os entes federados seriam da ordem de R$ 35,8 milhões em 2007 e R$ 95,6 milhões em 2015. Considerando um rateio equitativo entre os 26 Estados e 5.570 municípios veremos a distribuição de montantes muito pequenos individualmente.

A Tabela 3 apresenta a renúncia de cada ano e os montantes que seriam destinados ao FNC na forma de doação, sendo as doações objeto de ampliação gradual, 20% no primeiro ano de vigência, 30% no segundo e assim por diante até a meta de 50% no quarto ano. Como já se viu, a renúncia fiscal não seria reduzida, mas destinada em parte a inundar o FNC incluindo os incentivos fiscais no processo de discussão e direcionamento político por parte de órgãos ligados a administração pública e instâncias participativas. No final do período, os aumentos dos recursos seriam significativos e estariam sob debate público. Mas, evidentemente, uma parte significativa ainda seria mantida no âmbito decisório das empresas.

Tabela 3
Aplicação dos Parâmetros do PL nº 93/2014, Artigo 20º

A Tabela 4 soma os valores anuais do FNC e as possíveis doações, mostrando o incremento dos recursos. Entretanto, observemos que a participação do FSA no FNC aumenta e que os recursos a serem transferidos aos fundos federativos seriam aproximadamente de R$ 290 milhões, em 2007, e de R$ 361 milhões em 2015. Mas, ainda assim, seriam recursos muito pequenos nas transferências para os demais entes federados, especialmente em caso de serem os montantes do FSA descontados. Nesse caso, os valores seriam de R$ 279 milhões, em 2007, e de R$ 191milhões em 2015. A lógica é simples. Os recursos do FSA são vinculados e não poderiam ser distribuídos na lógica das transferências fundo a fundo ou sequer de outra política. A última coluna aplica aos recursos dos “fundos federativos” a transferência de 50% prevista no PL. Não parecem ser recursos suficientes. A situação piora quando descontado o FSA.

Tabela 4
Aplicação dos Parâmetros do PL Nº 93/2014, Artigo 19º e 20º (FNC + Doações Incentivadas)

A esse ponto, fica clara a razão de termos tocado na questão do Sistema Federal de Cultura (SFC) e na necessidade de considerar o FSA no quadro das estratégias globais de construção do SNC. A perspectiva do Procultura não contempla a proteção e ampliação dos recursos globais do MinC, mas apenas o do FNC como parte do SNC.

Como se viu, os recursos não são apenas insuficientes. O problema é pior. As estratégias de fortalecimento da federação a partir de recursos transferidos por via do FNC são confusas, especialmente por desconsiderem os recursos vinculados ao FSA e por conterem a proposição de mais alguns fundos setoriais. Isso tudo aumenta a fragmentariedade e potencializa movimentos políticos aleatórios ou sem direção, dada a dificuldade de consolidação de políticas estruturantes com recursos significativos. Esse arranjo é contraditório em seus termos.

Um pequeno parêntese para colocarmos nossa colher nesse caldeirão de controvérsias. O mais simples seria considerar o FSA como fundo a parte com seu desenho de funcionamento ajustado às políticas e aos limites anuais de recursos estimados para as suas finalidades. O FNC seria composto com outras fontes garantidas de forma a realizar transferências automáticas fundo a fundo e complementarmente de forma convenial, se for o caso, com recursos a serem destinados pela União.

A proposta mais simples, a nosso ver, é a da PEC 150. E, embora já tenha sofrido inúmeras emendas, inclusive para contemplar aumentos escalonados de recursos, vamos considerar a redação que segue. A ideia deve ser simples e direta: é necessário fortalecer o SFC, e especialmente o FNC, para que possa realizar repasses de recursos de forma federativa6 6 . Nem simplicidade, nem complexidade são critérios para boas propostas. Em tempo de ajuste fiscal draconiano é pouco provável que a sensibilidade dos atores políticos para com a cultura desiniba as propostas de vinculação de qualquer recurso para a área. . Ao Art. 1º da PEC 150/2003 foi acrescentado o Art. 216º-A à Constituição Federal, com a seguinte redação:

Art. 216 – A União aplicará anualmente nunca menos de dois por cento, os Estados e o Distrito Federal, um e meio por cento, e os Municípios, um por cento, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na preservação do patrimônio cultural brasileiro e na produção e difusão da cultura nacional. § 1º – Dos recursos a que se refere o Caput, a União destinará vinte e cinco por cento aos Estados e ao Distrito Federal, e vinte e cinco por cento aos Municípios. § 2º – Os critérios de rateio dos recursos destinados aos Estados, ao Distrito Federal, e aos Municípios serão definidos em lei complementar, observada a contrapartida de cada Ente.

Partido dessas formulações elaboramos a síntese presente na Tabela 5.

Tabela 5
Aplicação dos Parâmetros da PEC 1507

O aumento de recursos com a aprovação da PEC não seria explosivo, como temem muitos fiscalistas. Os recursos seriam da ordem de R$ 4,7 bilhões em 2015, com recursos para aplicação direta no SFC de R$ 2,1 bi, e de R$ 1,067 bi para os Estados, sendo esse o mesmo valor a ser repassado para os municípios. Incluindo o FNC, o aumento de recursos para o SFC seria próximo de 10%.

Assim, a estratégia aqui seria muito mais federativa do que de garantia de recursos para a União. Os valores adicionais para a União aumentariam em 45% em 2015, enquanto os do MinC teriam aumentado apenas 10%. Os repasses para Estados, Distrito Federal e Municípios seriam de R$ 2,135 bilhões.

Em 2015, os valores vinculados ao FNC/FSA eram de aproximadamente R$ 540 milhões. Se deduzirmos esses valores, pensando para estes fundos outros papéis relacionados às políticas federais, não os computando no cálculo das aplicações diretas federais e sem a substituição de fontes – caso os ministérios da área econômica e finanças não deduzam as fontes vinculadas da vinculação geral – o aumento dos recursos seria próximo a 40%. Organizacionalmente parece ser a alternativa mais clara dentro dos parâmetros que usamos, mas encontraria dificuldades importantes na conjuntura de ajustamentos fiscais, sendo a menos provável.

Como é possível notar, o FNC foi considerado balcão para projetos discricionários do MinC, ou avulsos da sociedade, como parte de um sistema de financiamento orçamentário composto por outras modalidades de financiamento (incentivos e fundos de investimento). Seu fortalecimento implicaria na discussão do estabelecimento de políticas de Estado. Como resposta à Lei Rouanet, seria republicano.

Como se vê, o FNC oscilou nos seus sentidos. Pode-se dizer que traduziu ideias relacionadas à construção de um sistema de financiamento, sendo funcional para os discursos contrários à ênfase das ações no mercado e nas artes, para a construção de uma arquitetura institucional de políticas de Estado nacionais (SNC), para incentivar e apoiar a cooperações interfederativas e, finalmente, para a realização de políticas federais no território (programas).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciamos a análise da Lei Rouanet selecionando as controvérsias, narrativas, discursos e sentidos variados que os atores estratégicos tecem sobre ela. Levamos a sério o que nos disseram entre entrevistas, conversas de campo e depoimentos, mas, ao mesmo tempo, consideramos que uma estratégia metodológica importante seria contrastar narrativas com os campos estruturados das políticas públicas ou com o que se faz na prática: ou seja, com os instrumentos de políticas públicas.

O contraste significou desdobrar as narrativas a respeito do FNC e dos Incentivos Fiscais em prospecções empíricas, ou seja, desvendar o que significam as narrativas se contrastadas com resultados empíricos previsíveis em decorrência da estruturação das políticas. Os dados empíricos permitiram tecer mais uma narrativa, a da ausência de alinhamentos e discussões políticas à luz de instrumentos de políticas – especialmente instrumentos de planejamento, desenho e prospecção de cenários.

Os resultados dessas movimentações resultaram em sentidos múltiplos para as funções do FNC, enquanto as decisões políticas levaram o FNC a ganhar sentidos mais específicos. O FNC hoje é, em grande medida, o espaço de funcionamento do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), cuja prioridade alocativa é a política do audiovisual. As narrativas sobre o papel do FNC como condicionador de múltiplas políticas setoriais, de um fundo federativo cooperativo, como parte de um mecanismo de transferências automáticas, como agência de políticas nacionais etc., devem ser contrastadas com a primazia do FSA. Como se vê, não bastam as narrativas, ainda que sejam de grande influência sobre o processo de formulação de política pública – sobretudo quando se atentam aos instrumentos de política e aos campos estruturados das políticas públicas. Os recursos orçamentários foram ampliados, mas a potência das políticas inscritas no FNC não.

O movimento final do texto foi o de acompanhar as mudanças da estrutura do FNC em termos de padrão alocativo. Pretendemos entender como o FNC se relaciona com discursos gerais, como “política das artes”, “desenvolvimento da cultura”, “sistema nacional de cultura”, “diversidade cultural” etc. Evidentemente, a delimitação de uma política para as artes, para o desenvolvimento da cultura ou do sistema no âmbito do FNC, significaria uma reflexão sobre os limites de cada configuração conceitual ou conjunto de escolhas políticas, de suas relações internas e da sua participação nos quadros discursivos e valorativos da diversidade cultural, bem como seu papel na inclusão de comunidades culturais no âmbito das políticas culturais.

Nas políticas públicas, o discurso se desloca para outros pontos mais afins à gramática da ação pública, quais sejam, a discussão sobre o papel distributivo e republicano dos subsídios para a cultura, de forma que as políticas expressem a cidadania e o papel dos artistas e intelectuais nas atividades sociais. O tricô narrativo tem outras características, especialmente pelo apelo retórico a ideias gerais. As ideias genéricas dão o tom das políticas públicas? Talvez, mas é necessário avaliar com rigor outras dimensões. É possível que uma melhor compreensão mútua implique em processos de agenciamento, coordenação e delimitação de objetivos de forma mais efetiva.

Ao analisar as narrativas e controvérsias da Lei Rouanet e do Procultura, e suas conexões com SNC, FNC e com o sistema de financiamento, foi possível observar as movimentações dos atores, suas combinações guiadas por preferências, interesses e visões que, compartilhados, permitiram um sem-número desdobramento nas estratégias, nas conexões de sentido, posições, argumentos e defesas de valores e diferentes jogos na arena política.

As distintas posições contrárias e a favor nesse processo decisório revelaram as diferentes gramáticas dos atores. Também mostraram que as controvérsias expressavam preferências e interesses, mas também ideias, argumentos e valores dos atores. Seguir os documentos e suas transformações permitiu interpretar as conexões entre narrativas e controvérsias; o que inicialmente dava a impressão de fuga do assunto, posteriormente auxiliou na elaboração de uma compreensão mais global sobre o tema da pesquisa.

Na verdade, o desfecho no caso do Procultura é o conjunto de narrativas, controvérsias e documentos que agenciaram a mobilização social. A “não decisão” que dele resulta – posto que não foi aprovado e encontra-se arquivado no Senado Federal – é o desfecho, pelo menos para os mais “pragmáticos”, culminando numa “não-política” ou no policy (não política pública). Do ponto de vista incremental (Lindblom, 1979Lindblom, Charles. (1979), “Still Muddling, Not Yet Through”. Public Administration Review, v. 39, n. 6, pp. 517-526.), muitas foram as decisões, ocorridas em cadeia, que mostram o caráter multifacetado, pontual e rico que compõe o processo decisório de uma agenda de política pública. É possível afirmar que o Procultura se destacou entre outros temas da agenda das políticas culturais, servindo de plataforma para um processo de maturação do debate sobre a questão do financiamento para as políticas culturais; ainda que o repertório e o capital político não tenham sido suficientes para o desfecho planejado pelos policymakers.

Entendido aqui como uma “construção retórica, narrativa, rede de controvérsias” que mobiliza um exército de imagens, ideias, representações e atores, o Procultura teve outros usos: cristalizou imagens, construiu espaços democráticos de debate e, especialmente, mobilizou atores, colocando a política cultural na agenda de um espaço público ampliado.

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NOTAS

  • 1
    . Para a interpretação dos sentidos da produção de editais, ver Barbosa da Silva e Telles (2021)Barbosa da Silva, Frederico; Telles, Eliardo. (2021), “O Pacto Federativo nas Políticas Culturais e seus Instrumentos”, in Barbosa da Silva (org.), Direitos e Políticas Culturais. Rio de Janeiro, IPEA, pp. 69-109. Disponível em <http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10903/1/PactoFederativoPoliticas_cap02.pdf>.
    http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream...
    .
  • 2
  • 3
    . Lei nº 12.761, de 27 de dezembro de 2012. Institui o Programa de Cultura do Trabalhador, o Vale Cultura.
  • 4
    . Em uma primeira versão eram estabelecidos nove fundos contemplando as mesmas temáticas que a versão anterior e acrescentando outras quatro.
  • 5
    . A ideia de associar patamares de gastos tributários diretos com indiretos descarta a discussão de necessidade de controles mais finos a respeito da qualidade dos gastos indiretos, do seu comportamento e sensibilidade a decisões políticas, tanto do poder público quanto do mundo empresarial.
  • 6
    . Nem simplicidade, nem complexidade são critérios para boas propostas. Em tempo de ajuste fiscal draconiano é pouco provável que a sensibilidade dos atores políticos para com a cultura desiniba as propostas de vinculação de qualquer recurso para a área.
  • 7
    . A ocorrência de valores negativos no mês refere-se a classificação de receitas de meses anteriores, superiores às receitas classificar do mês

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    6 Maio 2021
  • Revisado
    10 Set 2021
  • Aceito
    17 Set 2021
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