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Do Imaginário Marítimo de Nabuco* * As visões contidas neste artigo são expressas a título pessoal e não buscam representar as do Ministério das Relações Exteriores. O autor agradece a Ricardo Benzaquen de Araújo (in memoriam), Evaldo Cabral de Mello, Christian Lynch, Mário Hélio Gomes de Lima, Fabiano Bastos Moraes, Bruno Simões e aos pareceristas anônimos pelas críticas e indicações, isentando-os todavia de qualquer responsabilidade pelo conteúdo deste artigo.

On Nabuco’s Maritime Imagination

De l’Imaginaire Maritime de Nabuco

El Imaginario Marítimo de Nabuco

RESUMO

O artigo realiza uma análise textual dos escritos de Joaquim Nabuco na fase abolicionista para sustentar a tese de que, em sua reflexão, o Brasil forma-se a partir do mar. Essa formação é apresentada, em diálogo crítico com o historiador Oliveira Martins, como uma passagem da colônia deformada, enclausurada no Atlântico Sul imoral do tráfico de cativos, para a nação reformada, integrada ao oceano unificado sob hegemonia inglesa em torno de valores humanos. Embora não descarte um modo de vida telúrico no futuro, o autor se revela cético quanto à ideia de uma sociedade afastada do influxo eurocêntrico do mar. O artigo contrapõe-se a duas tendências da literatura especializada: reduzir o espaço brasileiro à terra brasileira e esvaziar o alcance da reflexão de Nabuco sobre a ordem mundial. Procura contribuir, nesse sentido, para a compreensão de uma perspectiva transoceânica de Nabuco, qualificado como um pensador marítimo sobre a realidade política e social brasileira.

Joaquim Nabuco; transoceanismo; pensamento político e social brasileiro; tráfico transatlântico de cativos; Joaquim Pedro de Oliveira Martins

ABSTRACT

This article argues that Joaquim Nabuco’s abolitionist writings present a sea-based account of Brazilian national development. A critical dialogue with historian Oliveira Martins defines this process as a transition from a deformed colony to a reformed nation: the former enclosed in the immoral South Atlantic of the slave trade, the latter part of an ocean unified under English hegemony and human values. While not ruling out a land-based national life in the future, the author is ultimately skeptical of the idea of a society isolated from the Eurocentric pull of the sea. The article opposes two trends in the specialized literature: equating Brazilian space to Brazilian land and shrinking the reach of Nabuco’s view on world order. Instead, it highlights Nabuco’s transoceanic perspective, presenting him as a maritime thinker of Brazilian political and social reality.

Joaquim Nabuco; maritime imagination; Brazilian political and social thought; transatlantic slave trade; Joaquim Pedro de Oliveira Martins

RÉSUMÉ

L’article effectue une analyse textuelle des écrits de Joaquim Nabuco dans la phase abolitionniste pour soutenir la thèse selon laquelle, dans sa réflexion, le Brésil est formé à partir de la mer. Cette formation est présentée, dans un dialogue critique avec l’historienne Oliveira Martins, comme un passage de la colonie déformée, cloîtrée dans l’Atlantique Sud immoral de la traite des éclaves, à la nation réformée, intégrée à l’océan unifié sous l’hégémonie anglaise autour des valeurs humaines. Bien qu’il n’exclue pas un mode de vie tellurique à l’avenir, l’auteur est sceptique quant à l’idée d’une société éloignée de l’afflux eurocentrique de la mer. L’article contraste avec deux tendances de la littérature spécialisée : réduire l’espace brésilien à la terre brésilienne et vider le champ de la réflexion de Nabuco sur l’ordre mondial. En ce sens, il cherche à contribuer à la compréhension d’une perspective transocéanique de Nabuco, qualifié de penseur maritime sur la réalité politique et sociale brésilienne.

Joaquim Nabuco; transocéanisme; pensée politique et sociale brésilienne; traite transatlantique des esclaves; Joaquim Pedro de Oliveira Martins

RESUMEN

El artículo realiza un análisis textual de los escritos de Joaquim Nabuco durante la etapa abolicionista para apoyar la tesis de que, en su reflexión, Brasil se forma a partir del mar. Esta formación se presenta, en diálogo crítico con el historiador Oliveira Martins, como el paso de la colonia deformada, encerrada en el Atlántico Sur inmoral de la trata de esclavos, a la nación reformada, integrada al océano unificado bajo la hegemonía inglesa en torno a los valores humanos. Aunque no descarta un modo de vida telúrico en el futuro, el autor se muestra escéptico ante la idea de una sociedad alejada del influjo eurocéntrico del mar. El artículo se opone a dos tendencias de la literatura especializada: reducir el espacio brasileño a la tierra brasileña y vaciar el alcance de la reflexión de Nabuco sobre el orden mundial. Busca contribuir, en este sentido, a la comprensión de una perspectiva transoceánica de Nabuco, calificada como un pensador marítimo sobre la realidad política y social brasileña.

Joaquim Nabuco; transoceanismo; pensamiento político y social brasileño; trata transatlántica de esclavos; Joaquim Pedro de Oliveira Martins

(...) um aparelho litoral revolto, feito da envergadura desarticulada das serras, riçado de cumiadas e corroído de angras e escancelando-se em baías, e repartindo-se em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de escombros do conflito secular que ali se trava entre os mares e a terra.

Euclides da Cunha (1903)Cunha, Euclides da. (1903), Os Sertões: (Campanha de Canudos). 2ª ed. Rio de Janeiro e São Paulo: Laemmert & C.

INTRODUÇÃO

Uma frase de Nabuco sobre Camões, lê-lo é o mesmo que navegar, tanto quanto a imaginação permite, cabe bem à sua própria obra. Em um dos memoráveis perfis de Um Estadista do Império, um dos chefes liberais do Segundo Reinado, homem de poucos amigos, é lembrado como “um navio de guerra, com os portalós fechados, o convés limpo, os fogos acesos, a equipagem a postos, solitário, inabordável, pronto para a ação” (Nabuco, 1898Nabuco, Joaquim. (1898), Um Estadista do Império: Nabuco de Araújo: Sua Vida, suas Opiniões, sua Época. Tomo II: 1857-1866. Rio de Janeiro e Paris: H. Garnier, Livreiro-Editor.:117). Em Balmaceda, a atração exercida pelos Estados Unidos sobre a América Latina é figurada como um “ímã do continente, suspenso (...) sobre o Capitólio de Washington” (Nabuco, 1895Nabuco, Joaquim. (1895), Balmaceda. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger.:211), em referência à força magnética que orienta a bússola usada pelos mareantes para navegar. No diário de 1877, a morte de Thiers, chefe de Estado francês, dá ensejo a esta reação: “O leme está sem homem” (Nabuco, 2005a:214). Quatro anos depois, tratando de sua mudança do Rio de Janeiro para Londres em carta ao Barão de Penedo, recorre a uma de suas metáforas prediletas: “será forçoso afastar-me da costa com medo do naufrágio e abrir vela ao tufão” (1949c:55). A imagem do naufrágio reaparecerá muitas vezes e a propósito de muitas coisas em seus escritos, desde a lembrança da dolorosa cena da morte da madrinha, em Minha Formação, até à discussão das derrocadas políticas do primeiro-ministro Sinimbu, em artigo na imprensa em 1884, de D. Pedro II, em Um Estadista do Império, de Floriano Peixoto, em A Intervenção Estrangeira durante a Revolta, e do presidente chileno Balmaceda, no livro homônimo. Meses após a Lei Áurea, dirá premonitoriamente que “estamos passando neste momento o nosso Cabo da Boa Esperança, ao qual chamavam, antes, o Cabo Tormentório” (1949a:49).

Assim, ao falar em Yale, já no fim da vida, sobre Os Lusíadas como um “poema do oceano” (Nabuco, 1908Nabuco, Joaquim. (1908), The Place of Camoens in Literature. Address Delivered before the Students of Yale University, on the 14th May. S/l: s/e.:8) e sobre Camões – pelas palavras de Humboldt – como “um grande pintor de marinhas” (apudNabuco, 1908Nabuco, Joaquim. (1908), The Place of Camoens in Literature. Address Delivered before the Students of Yale University, on the 14th May. S/l: s/e.:8), nosso autor decerto estava voltando, por gosto, a um livro que considerava ter sido “sempre” e “verdadeiramente” seu “companheiro” (Nabuco, 2005b:374), mas também estava abordando uma dimensão espacial que o fascinou ao longo da vida e à qual se referiu, em anotação durante travessia de Liverpool a Nova York, como o “meu mar querido” (Nabuco, 2005b:350). O oceano não foi apenas uma fonte de digressão sentimental, curiosidade literária e inspiração retórica para Nabuco, mas a dimensão a partir da qual concebeu o Brasil. Em sua grande obra de interpretação do país (Nogueira, 2002Nogueira, Marco Aurélio. (2002), “Joaquim Nabuco – O Abolicionismo”, in L. D. Mota (org.), Introdução do Brasil: Um Banquete no Trópico (Vol. II). São Paulo: Ed. SENAC, pp. 167-190.), O Abolicionismo, de 1883, e em outros escritos desse período Nabuco compôs, à sua maneira, um painel marítimo ao retratar a realidade brasileira. Nestas páginas, gostaria de recompor esse painel a partir da seguinte chave de interpretação: Nabuco apresenta uma terra precocemente decrépita em decorrência de uma colonização artificial, enclausurada na imoralidade de um Atlântico Sul absorvido pelo nefasto comércio de cativos africanos, ao mesmo tempo que vislumbra, com a transformação cardeal propiciada pela unificação do Atlântico sob hegemonia naval inglesa, a perspectiva de um Brasil posto sob o influxo eurocêntrico desse oceano e intrinsecamente ligado a ele em sua vida nacional.

Discuto, em Nabuco, a “imaginação sociológica” (Mills, 2000Mills, C. Wright. (2000) [1959], The Sociological Imagination. Oxford: Oxford University Press.) do Brasil como um espaço marítimo, ou, para ser exato, formado a partir do mar. A leitura estará focada em seus escritos abolicionistas mas farei referência adicional, onde necessário, aos de outros períodos em que se note uma raiz ou ramificação de preocupações dessa fase. A exposição da hipótese interpretativa mencionada acima divide-se em quatro partes. Abordaremos o assunto reconstituindo o diálogo de Nabuco com Oliveira Martins, historiador português seu contemporâneo em cuja obra encontrou alguns argumentos-chave que ora assimilou, ora contestou na formulação de sua própria tese, em O Abolicionismo, de que a colonização do Brasil produzira uma terra inorgânica e decadente e que não poderia haver transição natural entre colônia ultramarina e nação independente, sendo imperiosa uma profunda reforma social para esse fim. Em seguida, passaremos à reflexão de Nabuco sobre o Atlântico Sul como uma esfera imoral afinal aberta à aplicação irrestrita de ideais liberais por força da intervenção inglesa que reclassifica o comércio de cativos como pirataria e como um crime contra a humanidade. A terceira seção mostrará como essa geografia política e moral unificada e civilizadora do Atlântico enquadra o abolicionismo do autor e limita o alcance de um Brasil de formação telúrica, que por um momento parece inclusive animar sua retórica eleitoral em Campanha Abolicionista no Recife. Finalmente, veremos como o Brasil de Nabuco, deformado pelo Atlântico Sul, poderia ser reformado sob a atração de um mar que se tornara canal de valores humanos com os quais o bom patriotismo não podia deixar de conciliar-se.

A interpretação aqui proposta de Joaquim Nabuco contrasta com a abordagem convencional do espaço no pensamento político e social brasileiro, centrada no valor e nas potencialidades da terra. Autores como o Visconde do Uruguai, Euclides da Cunha e Sérgio Buarque de Holanda são alguns dos expoentes do que se poderia chamar uma linhagem telúrica de nosso pensamento. A continuada primazia desse modo de refletir sobre o país parece-me patente quando um especialista do gabarito de João Marcelo Ehlert Maia (2013)Maia, João Marcelo Ehlert. (2013), “A Imaginação da Terra: O Pensamento Brasileiro e a Condição Periférica”. Tempo Social, v. 25, n. 2, pp. 79-97. põe o “pensamento brasileiro sobre a espacialidade” em equivalência com a “imaginação da terra”, da qual, acrescenta, o sertão e a fronteira seriam as imagens clássicas. Mas a redução do espaço brasileiro à terra deixa de fora da cena o mar, onde, na expressão de Luiz Felipe de Alencastro (2000)Alencastro, Luiz Felipe de. (2000), O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras., a formação do Brasil também se processou. Este mesmo autor já salientou como a limitação da história brasileira ao território nacional é um “falso axioma” (Alencastro, 2015Alencastro, Luiz Felipe de. (2015), “The Ethiopic Ocean, History and historiography 1600-1975”. Portuguese Literary & Cultural Studies, n. 27, pp. 1-79.). Ademais dos sertões e das fronteiras, há outros panoramas possíveis para a interpretação do Brasil: o litoral latino-americano, o alto mar, a orla ocidental africana e até a costa índica. Curiosamente, foi João Capistrano de Abreu, um autor dedicado à história telúrica por excelência da interiorização continental, quem sugeriu a existência de um antagonismo entre perspectivas de mar e sertão no pensamento sobre o Brasil: em sua introdução à História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, falou em uma “oposição do bandeirismo ao transoceanismo” (Abreu, 1889Abreu, João Capistrano de. (1889), “Introdução”, in F. V. do Salvador, História do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos, pp. i-xix.:xviii). Gilberto Freyre, crítico expresso do “sertanejismo” de Capistrano de Abreu (ver Freyre, 1968), endossou todavia a sugestão deste ao propôr uma “filosofia da história brasileira” marcada pela tensão entre “sentido de continente” e “sentido atlântico” na formação nacional (Freyre, 1943Freyre, Gilberto. (1943), Continente e Ilha. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil.:27-29).

Seguindo as indicações do cearense e do pernambucano, desenho o problema de fundo deste trabalho a partir da ideia de que, ademais de uma linhagem telúrica – e em contraste com essa linhagem –, há uma perspectiva transoceânica sobre a formação brasileira. Aureliano Cândido Tavares Bastos, Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre podem ser elencados como alguns dos principais nomes nessa vertente, constituindo uma linhagem marítima do pensamento brasileiro. Entre essas duas linhagens haveria, em comum, o recorte antes espacial que ideológico do pensamento nacional; simultaneamente, uma perceptível desigualdade: a telúrica tem a sua existência reconhecida enquanto tal, falando-se em “tradição territorialista” no pensamento sobre o país (Moraes, 2012Moraes, Antonio Carlos Robert. (2012), “O Barão do Rio Branco e a Geografia”, in M. G. Pereira (org.), Barão do Rio Branco: 100 Anos de Memória. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, pp. 231-252.), mas a transoceânica raramente é assim concebida e não merece igual atenção na literatura mais recente. Freyre alguma vez especulou que isso se deveria ao fato de que “o Brasil, a despeito de sua imensa costa atlântica, parece não perdoar quem se torne demasiadamente transoceânico” (Freyre, 1968:101). Atualmente, porém, com o influxo das abordagens de história oceânica ressaltando o tema da relação entre Estados ou instituições específicos e o mundo atlântico como um todo (Armitage, 2018Armitage, David. (2018), “The Atlantic Ocean”, in D. Armitage; A. Bashford; S. Sivasundaram (eds.), Oceanic Histories. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 85-110.; ver também Baylin, 2005Baylin, Bernard. (2005), Atlantic History: Concept and Contours. Cambridge e London: Harvard University Press.), poderá haver mais margem para visualizar-se, em reflexões nacionais como a de Nabuco, essa dimensão propriamente marítima. De toda forma, o que faço aqui é apenas lembrar a pertinência de uma linhagem marítima brasileira, já divisada por Capistrano de Abreu e Freyre, como enquadramento da perspectiva transoceânica de Joaquim Nabuco sobre a formação nacional. É a Nabuco, não à linhagem a que potencialmente pertence, que se dirige a proposta interpretativa deste artigo. Ao procurar fixar sua perspectiva, contudo, espero contribuir para uma futura prospecção da linhagem mais ampla.

Boa parte da literatura dedicada a Nabuco aborda sua obra pondo ênfase na problemática do territorialismo ou sem tratar adequadamente a dimensão geográfica que venho ressaltando. Um exemplo, mais antigo, vem de Sérgio Buarque de Holanda (1967)Holanda, Sérgio Buarque de. (1967), “Historical thought in Twentieth-Century Brazil”, in B. Burns (org.), Perspectives on Brazilian History. New York: Columbia University Press, pp. 181-196., que formulou um contraponto entre Nabuco e Capistrano de Abreu em termos da oposição entre o “papel do indivíduo” em Um Estadista do Império e o “determinismo geográfico” de Capítulos de História Colonial. Não desejo negar o mérito dessa distinção, e sim apontar, na oportunidade tangenciada mas perdida de explorar as geografias distintas dos dois autores, como Nabuco é tratado aí como se não houvesse lógica geográfica em seus escritos. Mais recentemente, as paisagens terrestres foram dadas como pano de fundo natural de Nabuco, lido como delineador da tensão entre escravismo e centralismo territorial no Segundo Reinado (Salles, 2002Salles, Ricardo. (2002), Joaquim Nabuco: Um Pensador do Império. Rio de Janeiro: Topbooks.) e como analista da cultura política do “iberismo territorialista” no Brasil (Viana, 2004Viana, Luiz Werneck. (2004), A Revolução Passiva: Iberismo e Americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan.). Novamente, não se trata de discordar dessas colocações, mas de observar que elas conduzem a leitura de Nabuco para um âmbito secundário em sua reflexão, embora sem dúvida prioritário para a compreensão da moldagem do territorialismo brasileiro. É verdade já se ter recordado que, para o autor de O Abolicionismo, não há falar em pátria sem entendê-la incorporada ao mundo civilizado (Bethell, Carvalho, 2008). Mas essa afirmação, ao sublinhar judiciosamente que Nabuco não acreditava em um Brasil mantido à parte de valores humanos universais, não discute como a preponderância política e conceitual que conferia à civilização se relaciona com o seu entendimento de espaço.

Um aspecto bem coberto na literatura especializada, nomeadamente no competente estudo de Angela Alonso (2015)Alonso, Angela. (2015), Flores, Votos e Balas: O Movimento Abolicionista Brasileiro (1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras., é o das ações, interações ou impactos de Joaquim Nabuco no âmbito do movimento abolicionista. Meu interesse, à frente, é distinto, pois enfoco o seu legado como pensador. Falar em legado intelectual de Nabuco exige, todavia, certa reivindicação, dado que muito da abordagem sobre o autor prefere focalizar suas inclinações mundanas e suas vicissitudes psicológicas do que o seu pensamento. Noto, na verdade, uma propensão, que se pronunciou ao longo das décadas nas biografias de Nabuco, de acentuar-se a forma em detrimento da substância de sua obra ou, simplesmente, de reduzir-se a análise de sua reflexão à crônica social de sua atuação. Para Carolina Nabuco (1928), por exemplo, O Abolicionismo havia perdido sua relevância após a Lei Áurea e só guardaria valor como testemunho da eloquência de seu pai. Para Luís Viana Filho (1952), o livro era produto da reflexão angustiosa do exilado distante de sua pátria, mas seu teor beirava a mediocridade. Para Angela Alonso (2007)Alonso, Angela. (2007), Joaquim Nabuco: Os Salões e as Ruas. São Paulo: Companhia das Letras., O abolicionismo não é desprovido de méritos, mas esses deviam ser entendidos como frutos arduamente extraídos ao autor em sua conversão, a contragosto, de dândi afeito às frivolidades do ócio em analista disciplinado das estruturas do mundo. Essa suposição de um pendor natural de Nabuco à futilidade – que se pretende demonstrar, entre outros, pela intrigante menção ao seu interesse por Shakespeare – é nova entre seus biógrafos. Somada ao vezo de pôr seus textos sob a luz de fatores psicológicos – a amargura que cercaria O Abolicionismo (Alonso, 2007Alonso, Angela. (2007), Joaquim Nabuco: Os Salões e as Ruas. São Paulo: Companhia das Letras.), a penitência de que nasceria Um Estadista do Império (Alonso, 2009Alonso, Angela. (2009), “Joaquim Nabuco: O Crítico Penitente”, in L. Schwarcz; A. Botelho (orgs.), Um Enigma Chamado Brasil: 29 Intérpretes e um País. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 100-120.), a humilhação que perpassaria a correspondência com Rui Barbosa sobre a conferência da Haia (Alonso, 2014Alonso, Angela. (2014), “O Americanista Tardio: As Relações entre o Brasil e os Estados Unidos nos Escritos de Joaquim Nabuco”. Sinais Sociais, v. 24, pp. 11-25.), etc. –, resulta em uma importante limitação do teor da reflexão de Nabuco: o perfil de privilegiado volúvel sem contato com a realidade de seu país e com intuitos afinal fúteis é uma carga contextual pesada demais para não fazer ceder o alcance de seus textos.

Essa imagem do aristocrata out of touch – parecendo refletir um engajamento moralista com a hora presente antes que uma preocupação em compreender Joaquim Nabuco (ver Lynch, 2012Lynch, Christian. (2012), “O Império é que Era a República: A Monarquia Republicana de Joaquim Nabuco”. Lua Nova, n. 85, pp. 277-324.) – encontrará seu campo de eleição ao ser projetada sobre os momentos em que nosso autor esteve fortemente vinculado ao estrangeiro, nos quais sua reflexão sobre a ordem mundial será insistentemente reduzida à sua atuação nos – e fruição dos – altos círculos sociais que o abolicionismo (Alonso, 2010Alonso, Angela. (2010), “O Abolicionista Cosmopolita: Joaquim Nabuco e a Rede Abolicionista Transnacional”. Novos Estudos CEBRAP, v. 88, pp. 54-70.) e a diplomacia (Alonso, 2013Alonso, Angela. (2013), “Joaquim Nabuco, Diplomata Americanista”, in J. V. de S. Pimentel (org.), Pensamento Diplomático Brasileiro: Formuladores e Agentes da Política Externa (1750-1950). Vol. II. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, pp. 359-404.) lhe permitiram frequentar. Alfredo Bosi certa vez qualificou de leviandade fantasiada de historiografia a “exploração da imagem do Joaquim Nabuco dandy, Quincas o Belo exibindo-se nos salões da aristocracia europeia e da elite americana” e advertiu que o “estereótipo fútil arrisca-se a ocultar a complexidade da pessoa” (2010:99). Arrisca-se também a ocultar a complexidade da obra, especialmente da que se examinará no que segue, os escritos da fase abolicionista. Se a compreensão de Nabuco como pensador da ordem mundial em seus anos de diplomata não sofreu tanto abalo com essa imputação de futilidade, talvez porque a tese da “diplomacia cenográfica” (Alonso, 2007Alonso, Angela. (2007), Joaquim Nabuco: Os Salões e as Ruas. São Paulo: Companhia das Letras.) a que se quer confinar seu legado encontre resistência na longa série de análises de qualidade sobre sua visão de política internacional (para citar só alguns, ver Costa, 1968Costa, João Frank da. (1968), Nabuco e a Política Exterior do Brasil. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora.; Menck, 2009Menck, José Theodoro Mascarenhas. (2009), A Questão do Rio Pirara (1829-1904). Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão.; Pereira, 2009Pereira, Paulo R. (2009), “Joaquim Nabuco e a Concepção de Sistema Mundial e Continental”. Revista USP, n. 83, pp. 104-114.; Ricupero, 2010), o mesmo não parece poder-se dizer da apreciação vigente sobre o alcance de sua reflexão abolicionista, só raramente analisada pelo ângulo marítimo (ver Mello, 2003Mello, Evaldo Cabral de. (2003), “Joaquim Nabuco”, in A. da C. e Silva (ed.), O Itamaraty na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, pp. 111-134.; Santiago, 2004Santiago, Silviano. (2004), O Cosmopolitismo do Pobre: Crítica Literária e Crítica Cultural. Belo Horizonte: Ed. UFMG.; Monteiro, 2010Monteiro, Pedro Meira. (2010), “Por Dentro do Círculo Mágico: Progresso e Melancolia no Discurso de Madison, de Joaquim Nabuco”, in S. J. Albuquerque (org.), Joaquim Nabuco e Wisonsin: Centenário da Conferência na Universidade, Ensaios Comemorativos. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, pp. 171-201.; Araújo, 2016Araújo, Ricardo Benzaquen de. (2016), “Terra de Ninguém: Escravidão e Direito Natural no Jovem Joaquim Nabuco”. Topoi, v. 17, n. 32, pp. 7-21.).

À aludida tendência a acentuar-se a atuação cosmopolita de Nabuco de preferência à sua reflexão geopolítica agrega-se o efeito do também mencionado enfoque territorialista na análise de suas obras, entendidas como retratos da sociedade brasileira em que quaisquer outras considerações mais abrangentes sobre o ordenamento global seriam conspícuas pela ausência. Na verdade, os escritos de Nabuco podem ser revisitados com proveito tanto como uma reflexão atilada, e a quente, sobre a “transformação geopolítica definidora” (Alencastro, 2015Alencastro, Luiz Felipe de. (2015), “The Ethiopic Ocean, History and historiography 1600-1975”. Portuguese Literary & Cultural Studies, n. 27, pp. 1-79.: 9) provocada pelo fim do tráfico de escravizados no Atlântico Sul em 1850, quanto como uma contribuição singular ao pensamento político e social brasileiro de sua quadra histórica. Como veremos, organização social brasileira e ordenamento político atlântico entrelaçam-se com naturalidade em Nabuco. A imbricação dessas dimensões interna e externa, bem como a maior relevância depositada na segunda delas como fator dinâmico da formação nacional, é de se esperar em um pensador cujo elemento é o mar. Daí por que na leitura a contrapelo das teses de Oliveira Martins, historiador do império ultramarino lusitano, nosso autor encontre uma perspectiva à escala da sua reflexão e, este trabalho, um fio condutor para o empenho em trazer à luz a dimensão espacial subjacente aos escritos abolicionistas de Nabuco. Ao situar Nabuco como um pensador transoceânico, gostaria de indicar que o imaginário do mar exibe, no pensamento nacional, tantos títulos ao estudo e à compreensão quanto o da terra.

FAZENDA ULTRAMARINA E IDEAL DE JAVA

Ao assentar o plano de O Abolicionismo na placidez do grande salão de leitura do Museu Britânico, no decorrer de 1882, Joaquim Nabuco fez uso de um livro provavelmente obtido não na biblioteca adjacente, mas ao aportar em Lisboa, em dezembro de 1881, a caminho do ostracismo em Londres. Tratava-se de O Brasil e as Colônias Portuguesas, de Joaquim Pedro de Oliveira Martins, lançado em 1880, reeditado no ano seguinte e, com seu anti-humanismo racista, destinado a fazer época no pensamento colonial lusitano (Alexandre, 1998Alexandre, Valentim. (1998), “A Questão Colonial no Portugal Oitocentista”, in V. Alexandre; J. Dias (orgs.), Nova História da Expansão Portuguesa (Vol. X): O Império Africano (1825-1890). Lisboa: Editorial Estampa, pp. 21-132.). Nabuco tinha em mãos a segunda edição, mas devia conhecer o livro de antes, pois, no começo de janeiro de 1881, ainda deputado e em périplo abolicionista à Europa durante o recesso parlamentar, seu diário registra um jantar em Lisboa com o próprio Oliveira Martins na casa de Ramalho Ortigão. A interação pessoal com o historiador já de renome converteu-se em um diálogo intelectual, mais nuançado do que se costuma avaliar, entre O Abolicionismo e O Brasil e as Colônias Portuguesas. Em vez de um aprendizado unilateral e uma afinidade de fundo melancólico com as teses de Oliveira Martins sobre a decadência de Portugal (cf. Alonso, 2007Alonso, Angela. (2007), Joaquim Nabuco: Os Salões e as Ruas. São Paulo: Companhia das Letras.:123-24), Nabuco adotou uma atitude melhor descrita como de contestação à obra de seu interlocutor (ver Mello, 2003Mello, Evaldo Cabral de. (2003), “Joaquim Nabuco”, in A. da C. e Silva (ed.), O Itamaraty na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, pp. 111-134.:117). Nessa interpelação, que ia além do tom altissonante empregado onde conveniente a propósito do legado português (ver, por exemplo, Nabuco, 1949a:6), mas mantinha-se aquém da indulgência gratuita com o antilusitanismo (ver, por exemplo, Nabuco, 1949a:44), o autor adotava ou revisava certos argumentos de Oliveira Martins, conferindo centralidade a esse diálogo em sua abordagem da formação brasileira.

O Brasil e as Colônias Portuguesas é considerado um livro cético (Alexandre, 1996Alexandre, Valentim. (1996), “Questão Nacional e Questão Colonial em Oliveira Martins”. Análise Social, v. 31, n. 135, pp. 183-201.) e até malicioso (Ramos, 1997Ramos, Rui. (1997), “As Origens Ideológicas da Condenação das Descobertas e Conquistas em Herculano e Oliveira Martins”. Análise Social, v. 32, n. 140, pp. 113-141.) sobre o projeto colonial português. Oliveira Martins (1881)Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand. publica-o como uma reflexão sobre a obra lusitana na América e a viabilidade de, à luz dela, concretizar-se o muito debatido lema do estabelecimento de um segundo Brasil na África. O autor discute como a decadência portuguesa impunha uma série de dificuldades para que Angola e Moçambique pudessem replicar a experiência da América portuguesa e vir a se tornar, como o Brasil se tornara séculos antes, uma “fazenda ultramarina”, isto é, um território sujeito a um tipo de colonização intensiva em capital, erguida sobre o trabalho servil e viável pela exportação de produtos exóticos. Não descarta, em todo caso, que, com um programa de reformas predicado na rígida subalternização dos negros e na restrição dos direitos de cidadania aos habitantes da metrópole, tal objetivo pudesse ser alcançado. O Brasil e as Colônias Portuguesas se consagraria em Portugal, por isso, como referência para os opositores do humanitarismo liberal, que propunham um modelo especialmente inclemente de exploração colonial (Alexandre, 1996Alexandre, Valentim. (1996), “Questão Nacional e Questão Colonial em Oliveira Martins”. Análise Social, v. 31, n. 135, pp. 183-201.). Visto, porém, pelo ângulo da história que contava sobre a formação brasileira, O Brasil e as Colônias Portuguesas assumia um interesse diferente. No livro, o ceticismo prospectivo com a colonização da África combina-se com uma apologia retrospectiva da colonização do Brasil. Dando balanço à multissecular e multicontinental trajetória imperial lusitana, o autor não tem dúvidas em afirmar que o Brasil “foi a melhor [obra] que ela deixou à história” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:91). Julga mesmo que as duas nações que haviam dado maior lustro à história colonial europeia eram Portugal e Inglaterra, esta por saber “imperar”, aquela por “trilhar os mares e os sertões” e “lançar os alicerces das novas cidades, fundar os elementos de novas Europas” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:91).

A narrativa de Oliveira Martins sobre o Brasil centra-se na ideia – dentro em breve alvo principal de Nabuco – de que a colonização portuguesa deixara formada a nação brasileira. Sustenta que “As sementes lançadas à terra da América germinaram”, legando Portugal ao novo mundo “uma nação formada, livre e forte” (Martins, 1881:vii). O autor reconhece que a economia do país ainda tinha caráter colonial, o que significava que o Brasil “podia estar preparando as causas de uma crise futura” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:169), mas, concomitantemente a essa especulação, postula uma trajetória ascendente do país: desde cedo teria sido fomentada a sua prosperidade, em particular pelo “desenvolvimento da povoação, da riqueza e da exploração interior” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:30). Sobre as quase seis décadas desde a independência, chegava a dizer que “o novo Brasil remiu-se do fardo da herança colonial” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:162). Oliveira Martins sublinha a exitosa passagem de colônia a nação, exclamando “Uma nação, eis aí o futuro do Brasil” (1881:170), e sugere que o Império deveria adotar orientações políticas similares às que “criaram Romas” (1881:149). A analogia com Roma punha o Brasil – não Portugal – na categoria de um organismo expansivo (ver Ramos, 1997Ramos, Rui. (1997), “As Origens Ideológicas da Condenação das Descobertas e Conquistas em Herculano e Oliveira Martins”. Análise Social, v. 32, n. 140, pp. 113-141.:119-124) e conjugava-se à imagem da fundação e transmissão de um poderoso império: já à altura da trasladação de D. João VI, diz o autor, “Portugal era a colônia, o Brasil a metrópole” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:91). Há, assim, uma clara distinção para Oliveira Martins entre a vitalidade da ex-colônia, cujo legado histórico implica em um desafio mas não em um fado de declínio, e a decadência da velha metrópole, cuja derrocada a partir do século XVI responde a causas intrínsecas à sua dinâmica imperial (ver Martins, 1881:34 e 34n). Não há aí nem o argumento de que a decadência de Portugal se originasse no “trinômio vicioso” de latifúndio, monocultura e tráfico implantado na colônia americana (cf. Alonso, 2009Alonso, Angela. (2009), “Joaquim Nabuco: O Crítico Penitente”, in L. Schwarcz; A. Botelho (orgs.), Um Enigma Chamado Brasil: 29 Intérpretes e um País. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 100-120.:63) nem o de que Portugal tivesse efetivamente transmitido um “mal hereditário” de decadência ao Brasil por esse modelo (cf. Alonso, 2007Alonso, Angela. (2007), Joaquim Nabuco: Os Salões e as Ruas. São Paulo: Companhia das Letras.:124).

A questão, para Oliveira Martins, é outra. De acordo com O Brasil e as Colônias Portuguesas, o país fora colonizado segundo duas lógicas distintas, uma no norte, outra no sul. No norte, ou mais especificamente na região do Brasil situada na zona intertropical do planeta, desenvolvera-se a citada colonização “comercial-marítima” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:123), do tipo “fazenda ultramarina” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:204). “Tudo é aí artificial” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:212): os trabalhadores são desterrados de um continente a outro e submetidos à escravidão, dita indispensável porque as lavouras não admitiriam mão de obra intermitente; os fazendeiros batalham com um clima que lhes é adverso e regressam à metrópole quando se dão por satisfeitos com os frutos do labor alheio; os produtos são tropicais e exportados por mar; e a sociedade forma-se sob forte mestiçagem. Esse empreendimento tropical, exigindo constante direção política da metrópole, não se erguia com valores humanos: “as fazendas só prosperam à custa da exploração mais ou menos brutal dos braços indígenas” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:208). No sul, mais precisamente na região do Brasil situada na zona temperada, a ação portuguesa fora “agrícola-industrial” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.: 123), pertencendo ao tipo das “colônias propriamente ditas” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:206). Está-se aí “elaborando uma construção orgânica” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:73): os adventícios europeus imigram espontaneamente para uma área de clima dito compatível com seus perfis raciais; integram-se a uma terra que não mais abandonam; dedicam-se à produção dos bens necessários para suprir sua existência proto-independente; e a sociedade forma-se com relativa homogeneidade. O sentido dessa vida cada vez mais nacional, dispensando a tutela estrangeira, só poderia ser bem aquilatado pela contribuição que prestaria à causa da superioridade racial indo-europeia: “humanitariamente, as colônias propriamente ditas (...) não são instrumento de riqueza apenas, são focos de dispersão da raça branca sobre todos os continentes e ilhas do globo” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:199).

O desafio herdado pelo Brasil estava nesse “dualismo” sobre que fora erigido e que seguia existindo (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:73). A trajetória ascendente do país significava que, para Oliveira Martins, a passagem de fazenda a nação devia ser concluída. Indica ao menos dois caminhos em direção a esse resultado. Um é que as fazendas por si mesmas podiam “transformar-se em colônias” no Brasil (1881:199), raciocínio possível para quem julgava a escravização “predecessora de uma extinção fatal” da raça negra (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:138), ou seja, previa a reversão do caráter socialmente heterogêneo das fazendas. Outro caminho, discutido com menos laconismo, era a “absoluta supremacia” imposta pelo sul ao norte a partir da descoberta do ouro em Minas Gerais (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:74), o que deu ao bloco paulista, mineiro e fluminense controle sobre os destinos nacionais. O fato é que, por esta ou por aquela razão (ou por ambas), o panorama oferecido em O Brasil e as Colônias Portuguesas é o de uma formação nacional orgânica, sustentada e vigorosa no Brasil.

Joaquim Nabuco tira muito dessa reflexão de Oliveira Martins. Em primeiro lugar, define o país inteiro, e não apenas uma de suas partes, como uma fazenda comercial-marítima. Com isso, o Brasil torna-se, em todos os seus aspectos, fruto de uma formação colonial artificial e – acrescenta Nabuco – decadente, a qual tem sua síntese na escravidão. Em segundo lugar, rejeita a compreensão do trópico como campo aberto à brutalidade, ao afirmar – fazendo o antagonismo possível, ainda que impuro (ver Nabuco, 1883:144 e 252), a uma das mais influentes perspectivas racistas do mundo lusófono – a validade do humanitarismo liberal para toda a sociedade brasileira. Em terceiro lugar, postula a formação orgânica como uma aspiração a realizar-se pela abolição da escravidão e pelo futuro estabelecimento de uma vida nacional agrícola-industrial. Assim, o dualismo entre país engendrado e país espontâneo em O Brasil e as Colônias Portuguesas não é negado nos escritos abolicionistas de Nabuco, mas transferido do espaço para o tempo. No restante desta seção, procuro expor o primeiro desses pontos. Os outros dois pontos são abordados nas seções subsequentes.

Em O Abolicionismo, o Brasil é formado a partir do mar. Embora a escala da preocupação reformista do livro seja nacional, e não, como a de Oliveira Martins, ultramarina, é no ultramar português que sua narrativa histórica situa o surgimento da escravidão brasileira.

A população europeia era insignificante para ocupar essas ilimitadas expansões de terra, cuja fecundidade a tentava. Estando a África nas mãos de Portugal, começou então o povoamento da América por negros; lançou-se, por assim dizer, uma ponte entre África e o Brasil, pela qual passaram milhões de africanos, e estendeu-se o habitat da raça negra das margens do Congo e do Zambeze às do S. Francisco e do Paraíba do Sul (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:139).

O espaço ultramarino não pode ser apreendido se limitado a este ou aquele litoral, só concatenando-se as margens oceânicas nessa “ponte” em que os navios do tráfico “prolongavam os barracões da costa de Angola e Moçambique até à costa da Bahia e do Rio de Janeiro” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:98). Obedeciam à lógica cruamente exposta pelo historiador português: “(...) a nós coube a sorte de possuirmos o litoral da África e boa parte da América tropical. Tínhamos a produção e o consumo, a mercadoria e o mercado, dentro dos vastos limites das nossas colônias” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:49-50). Nabuco, um dos adeptos da “filantropia moderna” combatida em O Brasil e as Colônias Portuguesas (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:49), o que fará é reavaliar as dinâmicas desse mesmo espaço como um crime: “(...) essa trilogia infernal, cuja primeira cena era a África, a segunda o mar, a terceira o Brasil, é toda a nossa escravidão” (1883:100). Mas fiquemos por enquanto em terra.

Para além do Atlântico, sobretudo entrando-se pela boca dos rios, situavam-se as fazendas. Ocorre que estas, conquanto estivessem em terra firme, não se orientavam por uma lógica telúrica (e menos ainda territorialista). Para compreender como isso se dá, acompanhemos Nabuco, a começar pelo momento em que caracteriza todo o Brasil nos termos que Oliveira Martins usava apenas para o norte: “Quando o sr. [Gaspar] Silveira Martins disse no Senado, ‘O Brasil é o café, e o café é o Negro’ – não querendo por certo dizer o escravo –, definiu o Brasil como fazenda, como empresa comercial de uma pequena minoria de interessados” (Nabuco, 1883:161). O sistema econômico gerado por esses empreendimentos funciona sem variação essencial no norte e no sul, antes e depois da independência, e impede que a terra seja cultivada de maneira sustentável. Dado que os escravizados e não a terra constituem a riqueza dos proprietários, explica Nabuco citando um autor estadunidense, os investimentos dos fazendeiros dirigem-se ao aumento de sua força de trabalho e não à melhoria de suas terras: “O estabelecimento tem valor somente enquanto as terras adjacentes são proveitosas para o cultivo. Não tendo o agricultor afeições locais, os filhos não as herdam” (Cobb apudNabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:162). A desafeição à terra é um enunciado rico em sentidos. Um deles é a destruição material. “Onde ela chega”, diz, “queima as florestas, minera e esgota o solo e, quando levanta as suas tendas, deixa após si um país devastado em que consegue vegetar uma população miserável de proletários nômadas” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:148), concluindo que “A escravidão passou sobre o território e os povos que a acolheram como um sopro de destruição” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:168). Outro sentido, sugerido por Nabuco ainda antes de ganhar fama pela expressão de Capistrano de Abreu, é o que seria chamado por este de “desprezo e desgosto pela terra brasileira, o transoceanismo” (1889:xii).

Um “povo antes escravo do que senhor do vasto território que ocupa” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:160) não podia tirar uma existência sustentada nem uma identidade estável da terra. A devastação física do território e o desapego sentimental em relação a ele ligavam-se intimamente ao caráter comercial-marítimo conferido ao país pela colonização – “Sem marinha, não há colônias”, advertira Oliveira Martins (1895Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1895), Portugal nos Mares: Ensaios de Crítica, História e Geografia. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, Editor.:34). O povo era escravo do território porque o território era uma dependência do mar, e o mar drenava o potencial (inclusive de autonomia) da terra. Daí que o Brasil tivesse uma vida artificial e sem fontes possíveis de vitalidade. Nabuco fala no “desenvolvimento inorgânico, artificial e extenuante que tivemos” (1883:140), fórmula que só poderia ser endossada por Oliveira Martins até o segundo adjetivo. Essa terra extenuada não condiz com as reiteradas afirmações de O Brasil e as Colônias Portuguesas sobre uma prosperidade brasileira que se expressaria no crescimento da povoação e no maior domínio sobre o interior do país. Longe de ser prova da singular aptidão lusitana de fundar cidades, o Brasil de O Abolicionismo oferece um panorama urbano arruinado e um hinterland desconhecido. Quanto ao primeiro, “Os progressos do interior são nulos em trezentos anos de vida nacional. As cidades (...) são por assim dizer mortas” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:151). Quanto ao segundo: “A escravidão explorou parte do território estragando-o, e não foi além, não o abarcou todo, porque não tem iniciativa para migrar, e só avidez para estender-se. Por isso o Brasil é ainda o maior pedaço de terra incógnita no mapa do globo (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:162). Campanha Abolicionista no Recife condena o “triste (...) espetáculo de um país novo reduzido à decrepitude” (Nabuco, 1885Nabuco, Joaquim. (1885), Campanha Abolicionista no Recife (Eleições de 1884): Discursos de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos.:153). Este o encaminhamento diverso que Nabuco dá à tese de Oliveira Martins: a existência artificial da fazenda não é compensada por nenhuma força orgânica do país e conduz inapelavelmente à decadência (ver, para esse tirocínio sobre a decadência, Marson, 2009Marson, Izabel Andrade. (2009), “Liberalismo, História e Escravidão: Presença dos Antigos na Argumentação de Joaquim Nabuco”, in F. M. Peres (org.), Antigos e Modernos: Diálogos sobre a (escrita da) História. São Paulo: Alameda, pp. 145-168.). Agora sim o trinômio monocultura, latifúndio e tráfico pode-se dizer vicioso. Se em um a escravidão encaixava-se numa história de transição para a vida nacional, no outro ela é um fator holístico de declínio colonial. Nesse ponto, diga-se de passagem, Nabuco aproxima-se da imagem estampada por Antero de Quental, em Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, das duas margens do Atlântico contaminadas pela degeneração portuguesa: “Fomos nós (...) quem condenou o Brasil ao estacionamento, quem condenou à nulidade toda essa costa de África” (Quental, 1871Quental, Antero de. (1871), Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nosÚltimos Três Séculos: Discurso Pronunciado na Noite de 27 de maio, na sala do Casino Lisbonense. Porto: Na Typographia Commercial.:42).

Em Nabuco, a formação colonial a partir do mar dá origem à deformação nacional. Ademais do estado lastimável da terra, o autor acusa o equívoco do patriotismo vigente no país, “um ideal de pátria grosseiro, mercenário, egoísta e retrógrado” (Nabuco, 1883:146). O Abolicionismo observa que a escravidão era uma forma de expatriar habitantes do Brasil, tornando-os um “povo que não é nem estrangeiro nem nacional” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:29). Campanha Abolicionista no Recife vai além e precisa que, na visão escravista, os imigrantes atraídos para o país podiam reter sua nacionalidade originária e receber a nova, mas uma ampla parcela do povo brasileiro devia permanecer sem nenhuma. Era uma das mais “salientes contradições” da escravidão o chamado à imigração estrangeira simultâneo à proibição da livre movimentação de parte da população nacional (Nabuco, 1885Nabuco, Joaquim. (1885), Campanha Abolicionista no Recife (Eleições de 1884): Discursos de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos.:12n). A liberdade de que desfrutava a parte não escravizada do país era nominal. O servilismo degenerava tanto os escravizados quanto o despotismo degenerava os senhores, razão pela qual a escravidão incidira sobre todas as classes: “nivelou-as, degradando-as” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:176). Já na obra de juventude A Escravidão, escrita em 1870, Nabuco indagara: “O que é mais degradante, (...) a covardia do medo ou a covardia da força, açoitar ou ser açoitado?” (1951:23). Consistente nesse antigo motivo retórico, dirá, em carta de 1888, que todo o povo lhe causava a impressão de “uma imensa chaga aberta em nosso território infeliz” (Nabuco, 1949c:176). Mas esse vocabulário das enfermidades do organismo ou da alma não era o único em que se expressava a crítica ao ideal deformado de pátria.

Em O Abolicionismo, há uma referência importante, se bem que à primeira vista críptica, aos abolicionistas como aqueles que “não se contentam com o ideal de Java da América sonhado para o Brasil” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:215). Uma comparação preliminar apontaria para o fato de serem, o Brasil e a Java oitocentistas, grandes produtores de café, a então colônia holandesa sendo responsável por 18% das exportações mundiais do produto no início da década de 1880 (Fernando, 2003Fernando, M. R. (2003), “Coffee Cultivation in Java, 1830-1917”, in W. G. Clarence-Smith; S. Topik (orgs.), The Global Coffee Economy in Africa, Asia, and Latin America, 1500-1989. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 157-172.). Ainda uma vez, porém, Nabuco está dialogando com O Brasil e as Colônias Portuguesas, onde se estipula Java como ideal de “fazenda” a ser emulado por Angola (ver Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:207; 217; 262). Duas observações de Oliveira Martins merecem registro. Do ângulo socioeconômico, a Holanda teria arquitetado, lá, um regime servil que era uma maneira de “tornar forçado o trabalho do negro, sem cair no velho tipo condenado da escravidão” (Martins, 1881:217). Do ângulo político-militar, Java pudera ser submetida sem o custoso desdobramento de tropas terrestres, como fora o caso dos ingleses na Índia, mas, sendo uma ilha, haviam “basta[do] as esquadras” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:195). Ao falar em Java da América, portanto, Nabuco atacava soluções paliativas que visassem, na prática, a manter o status quo de subalternidade dos negros com o menor dispêndio repressivo possível. Em outro plano, essa figura insular dava expressão geográfica àquele ideal grosseiro de pátria mencionado há pouco. A imagem do Brasil como uma fazenda insular oferece uma síntese bastante provocativa do que os escritos abolicionistas de Nabuco indicavam ser a ordem espacial escravagista. De um lado, como vimos, o Brasil da escravidão não era pensado como um território desmedido e progressivamente explorado, mas um enclave dominado pelo oceano. De outro, há o traço de isolamento suscitado pelas ilhas. É o que Nabuco critica, em 1884, como o provincianismo moral – contraparte talvez paradoxal da desafeição pela terra – dos escravistas para quem o Brasil devia “governar-se por suas próprias ideias exclusivamente, (...) fechado em si mesmo” (1949b:76). Essas anotações nos levam à reflexão de Nabuco acerca da possibilidade de que sociedades tropicais organizadas a partir do mar pudessem orientar-se por valores humanos.

CRIME EM QUALQUER LATITUDE E LIMPEZA DO ATLÂNTICO

Trópicos, fazendas ultramarinas e brutalidade formam um sistema em O Brasil e as Colônias Portuguesas que O Abolicionismo capta criticamente na imagem da “trilogia infernal”. Já vimos como, no livro de 1883, esse sistema impunha à terra um desenvolvimento social e econômico inorgânico. Acompanhemos agora como Nabuco passa daí à vertente central de sua crítica: a denúncia do espaço de imoralidade que a escravidão criara no oceano. Há, para isso, que voltar à sua interpelação de Oliveira Martins. O historiador português fora bastante explícito ao vedar a aplicação de valores humanos aos empreendimentos comercial-marítimos situados na zona intertropical: “Com a liberdade, com a humanidade, jamais se fizeram colônias-fazendas” (Martins, 1881:218). Sem adentrar nos meandros do “pessimismo etnogeográfico” que sustenta uma abordagem como essa (Merquior, 1987Merquior, José Guilherme. (1987), “Gilberto y Después”. Vuelta, n. 131, pp. 63-66.), aliás dotado de antiga genealogia (Gerbi, 1993Gerbi, Antonello. (1993), La Disputa del Nuevo Mundo: Historia de una Polémica (1750-1900). Cidade do México: Fondo de Cultura Económica.), desejo apenas frisar que o tráfico transatlântico de escravizados e a primazia lusitana nessa empresa não despertavam maiores preocupações de Oliveira Martins: “Não cremos, portanto, que nos devamos afligir muito com a acusação de termos inventado o odioso tráfico. Sem os negros, o Brasil não teria existido; e sem escravos nação alguma começou” (1881;50, ênfase no original). A vileza e barbaridade do tráfico na realidade só teriam começado, de acordo com ele, após a Inglaterra, em tributo interessado à filantropia, desencadear a repressão de sua esquadra ao comércio reclassificado como contrabando.

Essa perspectiva sobre o tráfico e o valor da escravidão na história brasileira é questionada de plano por Nabuco, que cita da segunda edição do livro de Oliveira Martins:

Pretende um dos mais eminentes espíritos de Portugal que “a escravidão foi o duro preço da colonização da América, porque, sem ela, o Brasil não se teria tornado no que vemos”. Isso é exato, “sem ela o Brasil não se teria tornado no que vemos”; mas esse preço quem o pagou, e está pagando, não foi Portugal, fomos nós; e esse preço a todos os respeitos é duro demais e caro demais para o desenvolvimento inorgânico, artificial e extenuante que tivemos (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:140; ver Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:50).

Ao inverter a perspectiva sobre o “preço” da colonização e converter a narrativa da transição nacional exitosa em O Brasil e as Colônias Portuguesas em análise do fardo colonial ainda não remido em O Abolicionismo, Nabuco decerto não se fazia um revolucionário classista, mas, como ensinou Antonio Candido (2004)Candido, Antonio. (2004), Vários Escritos. 4ª ed. São Paulo e Rio de Janeiro: Duas Cidades e Ouro sobre Azul., pensava radicalmente a partir da escala nacional. Esse custo “duro demais” da colonização não se expressava somente na constatação da escassa organicidade do desenvolvimento brasileiro. Extrapolando os moldes de uma reflexão estritamente terrestre, Nabuco aborda o problema da formação nacional pelo mar não só em suas repercussões materiais como também em suas consequências morais. É o que faz, desde logo, ao reproduzir outro trecho de O Brasil e as Colônias Portuguesas, em que se descreve a cena pavorosa do desembarque de africanos no Brasil após a travessia atlântica (ver Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:57), e tirar conclusão oposta à de Oliveira Martins sobre o papel da escravidão nos primórdios da vida das nações: “Não é com tais elementos que se vivifica moralmente uma nação” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:141).

Esse desassossego de Nabuco com as origens da nacionalidade brasileira remete a um problema mais fundamental que perpassa os seus escritos, que é o país ter sido concebido como uma colônia situada fora do espaço da moralidade. É antigo o seu incômodo com a indistinção entre o Brasil independente e a antiga colônia ultramarina, como se lê em uma entrada do diário de 1874 (mais de meio século após o Sete de Setembro), referente a um jantar durante visita a Florença: “Um irlandês vermelho que me faz as mais singulares questões. A primeira: ‘O Brasil... isso pertence a Portugal?’” (Nabuco, 2005a:58). Mais adiante, será ele próprio a contrastar o ideal de uma nação de trabalho livre, verdadeiramente soberana, à realidade do país escravocrata, mera reencarnação da colônia: “Ali está o berço de uma nação livre; aqui está o túmulo de uma colônia decrépita” (Nabuco, 1949b:68). Uma passagem especialmente reveladora está em O Abolicionismo, quando Nabuco menciona um alvará de 1773 em que el-rei simultaneamente proscrevera a escravidão no reino e a mantivera em suas possessões americanas e africanas: “Para o Brasil a escravidão era ainda muito boa, para Portugal, porém, era a desonra. A área desse imenso império posta em relação com o pudor e a vergonha nacional era muito limitada, de fato não se estendia além do Reino” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:47). No século XVI, quando dera largada à colonização do país, Portugal não havia tido “a intuição de que a escravidão é sempre um erro, e força bastante para puni-la como um crime” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:141); no XVIII, quando enfim percebe o erro e o crime, só os enfrenta na metrópole, evitando aplicar tais ideias ao ultramar. Há aqui, evidentemente, uma linha a partir da qual a moralidade fica em suspenso. Ainda que Nabuco não cite o famoso dizer registrado por Barléu, “Além da linha equinocial não se peca”, em sua indignação pode-se discernir a repulsa à lógica de que a moralidade não se aplicaria aos espaços – particularmente aos mares – meridionais, “como se a linha que divide o mundo separasse também a virtude do vício” (Barléu, 1940:49).

Enfatizo o mar lembrando uma observação de Carl Schmitt (2003Schmitt, Carl. (2003) [1950], The Nomos of the Earth in the International Law of the Jus Publicum Europaeum. New York: Telos Press.; ver Araújo, 2016Araújo, Ricardo Benzaquen de. (2016), “Terra de Ninguém: Escravidão e Direito Natural no Jovem Joaquim Nabuco”. Topoi, v. 17, n. 32, pp. 7-21.) sobre esse cânone, Ultra aequinoxialem non peccari, constituir uma referência já do século XVI à lógica de uma linha global que, daquela época até fins do século XIX, separou o âmbito de ordem e equilíbrio entre os Estados europeus do âmbito colonial aberto ao conflito brutal entre eles e à vigência da lei do mais forte. Nesse “além-da-linha” em que o único crime era a virtude, o mar seria o campo por excelência das liberdades ilimitadas e incontrastadas, tão extensas quanto o poder que se lograva acumular. A partir do Tratado de Uterque no início do século XVIII, contudo, o autor de Nomos da Terra explica ter havido um gradativo empenho pelo controle estatal (sobretudo inglês) dos oceanos, coibindo-se a margem de ação dos piratas e reclassificando-se a sua atividade como a de criminosos comuns. É como tal que, acelerando-se ao século XIX e ao caso brasileiro, a Inglaterra passará a tratar os traficantes, fazendo recair sobre eles o peso de sua repressão. Simbolicamente, desde a convenção anglo-portuguesa de 1815, o tráfico de cativos estava limitado ao sul da linha do Equador (Lima, 1901Lima, Manoel de Oliveira. (1901), O Reconhecimento do Império. Rio de Janeiro e Paris: H. Garnier, Livreiro-Editor.). Como o autor de O Abolicionismo sabia muito bem, é nesse Atlântico Sul que o Brasil, baluarte do tráfico, existira e resistira longamente como um “além-da-linha” moral, terra moldada pelo mar e de escassos “pudor” e “vergonha nacional”. Em suas palavras, aliás, um “colosso” de país que se destacava “no planisfério com a cabeça sob o Equador, o coração sob o Capricórnio e os pés sob o Cruzeiro do Sul” (Nabuco, 1949a:42). O Equador como uma linha efetiva – e derradeira, pela ótica inglesa (Allain, 2007Allain, Jean. (2007), “The Nineteenth Century Law of the Sea and the British Abolition of the Slave Trade”. British Yearbook of International Law, v. 78, n. 1, pp. 342-388.) – de liberdade para os pecados tinha para Nabuco, assim, um valor sociológico e espacial absolutamente concreto.

O humanitarismo liberal lhe dará um meio de atacar essa geografia moral. A preocupação de Nabuco, desde cedo, será afirmar a universalidade dos valores humanos, isto é, a validade destes na faixa tropical do globo, e a sincronia de sua evolução, isto é, a inviabilidade de que qualquer região do planeta subsistisse à margem da civilização. Em outras palavras, tratava-se, para ele, de classificar a escravidão como um crime onde quer que se manifestasse e de negar qualquer fator local que atenuasse e, por isso, prolongasse sua invariável perversidade. Quase no fim do libelo A Escravidão, o jovem autor já explicava sua atitude crítica perante a escravidão notando ser preciso “acusar o crime por ser crime, em vez de desculpá-lo por ter partido de nós”, afora “honrar o sentimento e a nobreza de alma em qualquer latitude que ela seja encontrada” (Nabuco, 1951Nabuco, Joaquim. (1951) [1870]), “A Escravidão” (Manuscrito de Joaquim Nabuco. Oferta da Exma. Viúva D. Evelina Nabuco ao Instituto Histórico). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 204, jul.-set. 1949, pp. 3-106.:80). Em O Abolicionismo, a denúncia do crime será retomada nos mais fortes termos: “(...) a história não oferece no seu longo decurso um crime geral que (...) possa de longe ser comparado à colonização africana da América” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:89). E ainda: “(...) a escravidão na América é sempre o crime da raça branca” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:201), acusação impensável para um Oliveira Martins convicto de que os fins da superioridade branca justificam todos os meios da expansão colonial. Não cabia falar em suavidade da escravidão e bondade dos senhores, pois “A verdade (...) é que toda escravidão é a mesma” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.: 133). Em artigo de imprensa de 1884, o autor sublinha o aspecto da universalidade geográfica dos valores que o inspiram, frisando que a “consciência da humanidade civilizada” deve ser expressa “sem diferença de latitude nem de continente” (Nabuco, 1949b:74). Em carta de 1886, acentua a sincronia desses valores no tempo, ao escrever que “as ideias viajam pelo planeta e a civilização se ergue em todas as partes ao mesmo nível” (Nabuco, 2008Nabuco, Joaquim. (2008), “Correspondência”, in L. Bethell; J. M. de Carvalho (orgs.), Joaquim Nabuco e os Abolicionistas Britânicos: Correspondência 1880-1905. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras e Topbooks, pp. 45-437.:289). Em suma, servindo-se de palavras de abolicionistas ingleses, condena a escravidão como nada menos que um “grande crime contra a humanidade” (Nabuco, 1949b, p. 80).

A civilização não figurava como um elemento puramente abstrato em Nabuco. Era o resultado de uma ordem concreta que se ia impondo pelo oceano. A questão do fim do tráfico punha em jogo a existência do Atlântico Sul como um mar enclausurado em sua própria imoralidade, moldura inescapável da fazenda insular que era o Brasil colonial e “javanês”. É, portanto, significativa a linguagem empregada por nosso autor ao falar na escravidão como um “mar de tão feios escolhos” (1949b:13) e ao associar o abolicionismo inglês a uma “onda” que “veio quebrar-se em nossas praias” (1949b:77). Esses termos referem-se, repito, a ordens espaciais concretas em seu pensamento. De um lado, um Atlântico Sul encerrado na “trilogia infernal” do tráfico, em que a vida se fechava como no interior de “muros da China” e em que “não nos importa a opinião estrangeira” (Nabuco, 1949b:77-78). De outro, um Atlântico unificado pela progressiva abolição do tráfico e da escravidão, em que “Não há acontecimento político de importância universal que deixe de afetar-nos” (Nabuco, 1949b:77). Em um sentido mais amplo, está-se diante do secular antagonismo entre conquista colonial e intercâmbio comercial que marca a vida atlântica moderna (Rothschild, 2008). E Nabuco sabe que lado tomar nessa disjuntiva, pois a “navegação maldita” (Nabuco, 1883:90) representada pelo tráfico é uma “especulação sem consciência que deslustra as conquistas civilizadoras do comércio” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.: 97)1 1 . O trágico painel marítimo composto em O Abolicionismo lembra a Nabuco O naufrágio da Medusa, tela de Géricault (ver Nabuco, 1883:90). O autor pode ter encontrado, muito mais tarde, outro quadro à altura do panorama que traçou em 1883. Já embaixador em Washington, seu diário registra com delícia um passeio por Massachusetts em setembro de 1905 (ver Nabuco, 2005b:337). Nesses dias pode ter visto, no Museum of Fine Arts de Boston, a impressionante tela Slavers throwing overboard the dead and dying – typhoon coming on, de J. M. W. Turner, datada de 1840 e exposta aí ao público desde 1899, após décadas em coleções privadas inglesas e norte-americanas. Embora não haja qualquer anotação sua a respeito, sublinho a relevância deste motivo comum ao Nabuco de 1880 e ao Turner de 1840: o desvirtuamento da função benigna do comércio (a “navegação maldita” que “deslustra as conquistas civilizadoras do comércio”). Acrescento que, ao falar nominalmente em Turner no diário de 1906, quando vê o entardecer de Olinda a bordo do navio em que regressa do Rio de Janeiro a Washington, Nabuco usa um qualificativo que se aplicaria muito bem a Slavers throwing overboard the dead and dying – typhoon coming on: um “ocaso que flameja” (Nabuco, 2005b:372). Essa calha de ser a palavra justa para o quadro de Turner exposto até hoje em Boston: um céu que flameja, não no pôr do sol na pacata Olinda, mas em torno do navio que se desfaz de cativos lançando-os ao mar revolto pelo vendaval que se avizinha. Outro aspecto da “trilogia infernal” composta em O Abolicionismo passível de especulação diz respeito ao nome do engenho onde cresceu Nabuco, Massangano. Bosi observou que o autor de Minha Formação optou pela desinência feminina, Massangana. Apontou uma “decifração psicanalítica para a mudança de gênero: o engenho era o regaço materno, e o menino, como tantos dos seus escravos fiéis, não tinha pai, só mãe, melhor dizendo, mãe-madrinha” (Bosi, 2010:60). Sem prejuízo dessa explicação, gostaria de notar que, lendo O Brasil e as Colônias Portuguesas em algum ponto de 1881 ou início de 1882, Nabuco obrigatoriamente passou pela informação – talvez surpreendente para ele – de que Massangano fora nome do “primeiro baluarte do domínio português em Angola”, domínio este “a cuja sombra se explorava o comércio da gente negra” (Martins, 1881:17). Oliveira Martins registra inclusive que, das “intermináveis” guerras de captura de escravos promovidas pelos portugueses, ficara a memória do “cerco de Massangano (1595)” (1881:17; ver também p. 98). . Para esse liberal que combina a vigência universal de valores humanos com a expectativa de abrandamento dos costumes e dos governos pelo comércio, dando à causa abolicionista o tom moral próprio do “evangelismo laico” que aprendera com seu admirado W. E. Gladstone (Merquior, 1997Merquior, José Guilherme. (1997) [1991], Liberalismo Viejo y Nuevo. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica.), o fim do tráfico não podia deixar de ser um fato capital. Nem ele considerava aplicável a distinção entre cidadania na metrópole e subalternidade no ultramar, nem sua pregação podia ser como a de um filantropo diante de uma tragédia remota, dado que os afetados eram “parte integrante do povo brasileiro (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:20): “No Brasil a questão não é, como nas colônias europeias, um movimento de generosidade em favor de uma classe de homens vítimas de uma opressão injusta a grande distância das nossas praias” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:19).

Onde a grande campanha inglesa pela abolição do tráfico dava margem à ambivalência de Nabuco era no fato de que, no meio século seguinte ao Congresso de Viena, o liberalismo esteve estreitamente associado à agressão marítima, a ideia de moralidade progressista à de guerra naval (Semmel, 1986Semmel, Bernard. (1986), Liberalism & Naval Strategy: Ideology, Interest, and Sea Power during the Pax Britannica. Boston: Allen & Unwin.). Dois princípios disputavam entre si o ordenamento do Atlântico: por um lado, um direito absoluto à liberdade de comércio, que estendia ao tráfico de escravizados a proteção assegurada pela bandeira de cada embarcação; por outro, um direito de busca e apreensão mesmo em tempo de paz, que facultava à grande potência naval prerrogativas policiais no mar (Allain, 2007Allain, Jean. (2007), “The Nineteenth Century Law of the Sea and the British Abolition of the Slave Trade”. British Yearbook of International Law, v. 78, n. 1, pp. 342-388.). Era justamente essa a linguagem de um dos arquitetos do regime de proibição do tráfico, Lord Castlereagh, que falava na criação de uma “espécie de polícia internacional nos mares africanos” (apudBew, 2012Bew, John. (2012), Castlereagh: A Life. Oxford: Oxford University Press.:446). Perseguindo os traficantes como piratas e livre para empregar a força conforme à sua concepção de que no mar a guerra era contra inimigos totais (Schmitt, 1938; ver Yamato, 2020Yamato, Roberto. (2020), “Reading Schmitt from the Sea: Tracing Constitutive Outsiders and Displacing the Conceptual Order (and Ordering) of the Political”. DADOS, v. 63, n. 4, pp. 1-32.), a Inglaterra liquidou esse comércio, no que respeita ao Brasil, tão logo dispôs de parte de sua esquadra para, sob a égide do bill Aberdeen, bloquear a costa do país e sufocar o componente transatlântico da economia escravista nacional – sendo preferível falar na aplicação de um bloqueio (Lloyd, 1968Lloyd, Christopher. (1968), The Navy and the Slave Trade: The Suppression of the African Slave Trade in the Nineteenth Century. London e New York: Routledge.) do que seguir a terminologia algo terrestre de navios “estacionados” na costa (cf. Araújo, 2018Araújo, Carlos Eduardo Moreira de. (2018), “Fim do Tráfico”, in L. M. Schwarcz; F. Gomes (orgs.), Dicionário da Escravidão e Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 230-236.:234). De um ponto de vista naval, o caso não era complexo e cabia, com folga, na máxima que Nabuco, sempre inclinado às referências náuticas, viria a empregar anos mais tarde a propósito da revolta da armada: “(...) quem ficar senhor do mar acabará por vencer. Desde Temístocles essa é a política verdadeira” (Nabuco, 1949c:299; para uma referência de juventude a Temístocles, ver Nabuco, 2005a:191). A dificuldade surgia quando políticos brasileiros tomavam o partido do emprego unilateral da força pela esquadra inglesa. Defender o ato Aberdeen e suas implicações tinha seu custo: “Antônio Carlos [Andrada] foi acusado de haver renegado o seu país, quando aconselhou à Inglaterra que cobrisse de navios as nossas águas para bloquear os ninhos dos piratas do Rio e da Bahia” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:250).

É por isso que, contra a imagem convencional de um Nabuco anglófilo estampada em Minha Formação (ver Araújo, 2004Araújo, Ricardo Benzaquen de. (2004), “Através do Espelho: Subjetividade em Minha Formação, de Joaquim Nabuco”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 56, pp. 5-13.), em A Escravidão encontramos o autor tão angustiado com os abusos da esquadra inglesa quanto com o despotismo dos traficantes (Araújo, 2016Araújo, Ricardo Benzaquen de. (2016), “Terra de Ninguém: Escravidão e Direito Natural no Jovem Joaquim Nabuco”. Topoi, v. 17, n. 32, pp. 7-21.). Indeciso entre qualificar o bloqueio naval imposto ao Brasil como “generosidade” ou “perfídia” do gabinete de Londres (Nabuco, 1951Nabuco, Joaquim. (1951) [1870]), “A Escravidão” (Manuscrito de Joaquim Nabuco. Oferta da Exma. Viúva D. Evelina Nabuco ao Instituto Histórico). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 204, jul.-set. 1949, pp. 3-106.:65), Nabuco acaba por adotar esta fórmula de compromisso: “O fim honra a Ingl[aterra]. O meio desonra-a” (1951:67). Concede de toda maneira que, como o Brasil, “para vergonha nossa, (...) estava há muito tempo do lado do tráfico” (Nabuco, 1951Nabuco, Joaquim. (1951) [1870]), “A Escravidão” (Manuscrito de Joaquim Nabuco. Oferta da Exma. Viúva D. Evelina Nabuco ao Instituto Histórico). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 204, jul.-set. 1949, pp. 3-106.:65), sobrara para a Inglaterra o “papel de defensora da humanidade” (Nabuco, 1951Nabuco, Joaquim. (1951) [1870]), “A Escravidão” (Manuscrito de Joaquim Nabuco. Oferta da Exma. Viúva D. Evelina Nabuco ao Instituto Histórico). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 204, jul.-set. 1949, pp. 3-106.:65). Essa tese da omissão brasileira, ademais de dar a Nabuco ares de “corajoso” no Brasil de 1870 (Bethell, 2016Bethell, Leslie. (2016), Joaquim Nabuco no Mundo: Abolicionista, Jornalista e Diplomata. São Paulo: Bem-Te-Vi.:72), indicará a linha de sua abordagem em 1883, já menos hesitante, em O Abolicionismo, sobre a ação inglesa. Neste livro, despacha mais sucintamente todo o drama diplomático do fim do tráfico com a avaliação de que “Só por um motivo essa lei Aberdeen não foi um título de honra para a Inglaterra. Como se disse por diversas vezes no parlamento inglês, a Inglaterra fez com uma nação fraca o que não faria contra uma nação forte” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:91) – embora não o faça sem lamentar a inexistência de um “sistema de medidas iguais contra todas as bandeiras usurpadas pelos agentes daquela pirataria” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:92), observação reveladora do desamparo de um Segundo Reinado ausente do multilateralismo europeu mas impactado por suas decisões longínquas (ver Fonseca Jr., 2011). O aplauso aos fins humanitários da Inglaterra sobressai frente à condenação dos meios iníquos empregados por sua esquadra, o que permite a Nabuco redobrar a crítica à cumplicidade do Estado brasileiro com o tráfico. A Inglaterra, diz em 1884, “por honra da humanidade empreendera limpar o Atlântico dos últimos vestígios da mais ignominiosa pirataria que já lhe infestou as ondas e ensanguentou as praias” (Nabuco, 1949b:84). Já o governo imperial, lê-se em O Abolicionismo, “em vez de aceitar agradecido o concurso do estrangeiro para resgatar a sua própria bandeira do poder dos piratas, (...) deixou-se aterrar e reduzir à impotência por estes” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:91). A bandeira verde e amarela arvorada nos navios dos agentes da escravidão é, note-se, o símbolo tristemente adequado do país cuja independência vergava sob o fardo colonial. A barbárie do tráfico está aí, no tráfico, e não, como quisera Oliveira Martins, no policiamento dos mares, a Inglaterra investida, apesar dos pesares, da causa da humanidade.

A ruptura do sistema sul-atlântico de tráfico de cativos africanos para a América tem importância em si mesma para o autor, antes de ser um passo rumo à abolição. Já representa, para ele, a mudança geopolítica cardeal que Alencastro identifica, em nossos dias, na história desse oceano. Diluindo-se desde 1808 o Atlântico luso-brasileiro em um Atlântico internacionalizado sob controle inglês (Elliot, 2016Elliot, John H. (2016), El Atlántico Español y el Atlántico Luso: Divergencias y Convergencias. Las Palmas: Cabildo Insular de Gran Canaria.), em 1850 o oceano torna-se um único sistema de comunicação (Armitage, 2018Armitage, David. (2018), “The Atlantic Ocean”, in D. Armitage; A. Bashford; S. Sivasundaram (eds.), Oceanic Histories. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 85-110.), e esse seu caráter unificado explica a (possibilidade de) sincronia que Nabuco sempre afirma entre o Brasil e a civilização bem como converte o mar em um elemento moralizador na formação nacional. O enaltecimento da atuação inglesa em 1850 nos escritos abolicionistas marca a origem do raciocínio de uma das páginas mais célebres de Minha Formação:

Não quero dizer que haja duas humanidades, a alta e a baixa, e que nós sejamos desta última; (...) mas, no século em que vivemos, o espírito humano, que é um só e terrivelmente centralista, está do outro lado do Atlântico; o Novo Mundo, para tudo o que é imaginação estética ou histórica é uma verdadeira solidão” (Nabuco, 1900Nabuco, Joaquim. (1900), Minha Formação. Rio de Janeiro e Paris: H. Garnier, Livreiro-Editor.:42).

Esse eurocentrismo de Nabuco andava junto a uma visão afinal benévola da hegemonia naval inglesa, fiado ele na “verdade clássica” oitocentista de que a primazia de uma potência marítima, diferentemente do predomínio de uma potência terrestre, podia revestir-se de um componente civilizacional e humanitário (Schmitt, 2015Schmitt, Carl. (2015) [1942]. Land and Sea: A World-historical Meditation. Candor: Telos Press.:75n). O Atlântico unificado é o mar que “não pertence a ninguém, pertence a todos e finalmente pertence a um só: à Inglaterra” (Schmitt, 2015Schmitt, Carl. (2015) [1942]. Land and Sea: A World-historical Meditation. Candor: Telos Press.:72).

A modernidade ocidental tinha que se impor, senão pelo atroar das belonaves, pelo vento das novas ideias. Na frase lapidar de Nabuco a um ex-primeiro-ministro italiano anos mais tarde, que bem merece ser relida (como tanto do seu diário e epistolário) com outro propósito que não o da crônica recriminativa de seus repastos em Roma – como, por exemplo, o da avaliação de seu aporte a uma história atlântica cujos marcos começam a abranger uma geografia mais ampla do que a área oceânica a norte do Equador (ver Armitage, 2018Armitage, David. (2018), “The Atlantic Ocean”, in D. Armitage; A. Bashford; S. Sivasundaram (eds.), Oceanic Histories. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 85-110.; Gomes, Schwarcz, 2018):

No jantar faz um grande efeito uma frase que eu digo: “Em política ainda não se descobriu a navegação a vapor, não se pode navegar contra o vento, contra as grandes correntes nacionais”. O marquês de Rudini diz que me citará, ou que se servirá dessa maneira de dizer no Parlamento. A marquesa pede-me essa frase com o autógrafo meu (Nabuco, 2005b:301; cf. Alonso, 2007Alonso, Angela. (2007), Joaquim Nabuco: Os Salões e as Ruas. São Paulo: Companhia das Letras.:308-9; cf. Alonso, 2013Alonso, Angela. (2013), “Joaquim Nabuco, Diplomata Americanista”, in J. V. de S. Pimentel (org.), Pensamento Diplomático Brasileiro: Formuladores e Agentes da Política Externa (1750-1950). Vol. II. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, pp. 359-404.:373).

BLOQUEIO MORAL E ORLA APAGADA

Se o fim do tráfico é o prelúdio à grande causa política da abolição, para Nabuco o drama naval de 1850 dá o enquadramento ideal para a campanha dos anos 1880 como a continuação, em terra, do combate à pirataria. Bloqueado o Atlântico ao tráfico, era chegado o tempo de aprofundar o “bloqueio moral da escravidão” iniciado com a Lei do Ventre Livre (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:73). Nabuco partia do raciocínio de que o Império passara a nomear o tráfico como pirataria na Convenção de novembro de 1826 com a Grã-Bretanha e na subsequente Lei de novembro de 1831 para concluir que praticamente todos os escravizados vivos no Brasil de 1883 eram mantidos no cativeiro de modo ilegal (ver também Mamigonian, 2017Mamigonian, Beatriz G. (2017), Africanos Livres: A Abolição do Tráfico de Escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.:435-437). A escravidão existente nesse ano era “na sua máxima parte a continuação do tráfico ilegal que de 1831 a 1852 introduziu no Brasil aproximadamente um milhão de africanos” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:108). Nas palavras precisas de O Abolicionismo: “(...) todos os africanos ainda em cativeiro sendo bona piratarum, têm direito de considerar [a Lei de 1831] como a sua carta de liberdade rubricada pela Regência em nome do Imperador” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:107). Em artigo de jornal de 1884, reitera essa associação do abolicionismo a uma causa marítima: “A luta hoje é com efeito sobre a própria questão do tráfico, sobre as últimas carregações de africanos ilegalmente importados; ela está posta entre a pirataria e a civilização” (Nabuco, 1949b:37).

No mar, o combate à pirataria fora incumbência da esquadra inglesa, em terra, tornava-se missão do movimento abolicionista. É interessante esse paralelismo não tão implícito que Nabuco traça entre as duas entidades imbuídas da causa de destruir a escravidão, uma por meio da “tutela” unilateralmente conferida a seus navios (Nabuco, 1951:79), outra por meio do “mandato” autoproclamado que autoriza sua visão reformista (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:17), ambas irmanadas em um progresso moral que desconhece, quando preciso, o zelo soberanista do Estado alvo de suas ações. Nesse sentido, é pertinente falar no abolicionismo, nos termos de José Almino de Alencar, como um fator externo (como a intervenção inglesa o fora antes): “O peso da inércia escravocrata só poderia ser quebrado por um fator, digamos assim, externo: a vontade política de uma elite, erguida a partir da militância de uma aristocracia do espírito, capaz de vir a romper com o sistema e aboli-lo” (2009:45).

Mas justamente ao constatarmos que a formação ou a transformação do Brasil deve ser movida, segundo Nabuco, por fatores externos – em um sentido amplo deste vocábulo –, é preciso seguirmos com cautela, pois os discursos do então candidato a deputado por Pernambuco parecem mostrar certo entusiasmo com a ideia de uma ordem telúrica no país. Campanha Abolicionista no Recife sinaliza que a ruptura com o sistema escravista, epitomizada no propósito de destruir a escravidão e a sua obra, poria fim à antiga decadência do país, desencadearia o aproveitamento do território em toda a sua fertilidade e extensão e deslancharia o seu crescimento orgânico (ver Nabuco, 1885Nabuco, Joaquim. (1885), Campanha Abolicionista no Recife (Eleições de 1884): Discursos de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos.:49). A abolição do trabalho escravizado e as outras reformas nacionais destravadas por ela, como a reforma agrária, o desenvolvimento fabril, a valorização do trabalho manual e a difusão da educação (Prado, 1999Prado, Maria Emília. (1999), “O Cavaleiro Andante dos Princípios e das Reformas: Joaquim Nabuco e a Política”, in M. E. Prado (org.), O Estado como Vocação: Ideias e Práticas Políticas no Brasil Oitocentista. Rio de Janeiro: Access Editora, pp. 239-266.), encaminhariam o Brasil para o tempo agrícola-industrial de sua existência. Era essa a reforma imprescindível para que se passasse de colônia a nação. A linguagem de Nabuco combina com limpidez imoralidade marítima presente com organicidade terrestre futura:

O que falta ao Brasil (...) é confiança no trabalho livre e no poder orgânico da liberdade: porque, desde que essa resolução aparecer e ele queimar os navios apodrecidos em que a escravidão veio da África, há de achar-se, como Cortés, na posse de um Novo Mundo de incomensurável grandeza e inesgotável opulência (Nabuco, 1885Nabuco, Joaquim. (1885), Campanha Abolicionista no Recife (Eleições de 1884): Discursos de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos.:110).

Após assegurar a viabilidade desse tempo futuro para a jovem nação, o autor resguarda a viabilidade do espaço tropical para os imigrantes que a ela se destinavam: “(...) nada está menos provado do que essa incapacidade orgânica da raça branca para existir e prosperar em uma zona inteira da terra” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:142). Diferentemente de O Brasil e as Colônias Portuguesas, O Abolicionismo não discriminava entre áreas do Brasil vedadas ou abertas à fixação dos imigrantes europeus, salvando a faixa tropical do país, de uma maneira diferente da de Oliveira Martins, do fado de perpetuar-se como “fazenda”. Por isso opõe deformação e pestilência na costa pantanosa da escravidão e formação e fecundidade no hinterland salubre do trabalho livre:

Hoje podemos dizer que chegamos ao cume desse divisor das águas, dessa alta fronteira moral que separa duas épocas da nossa história, dir-se-ia duas nacionalidades. De um lado avistamos o ponto do qual partimos, nós abolicionistas, com todos os seus prolongamentos até à orla apagada dos tempos coloniais; de outro avistamos o mapa extensíssimo do futuro nacional. Que importa que o solo que pisamos seja por sua natureza vulcânico, se é preciso atravessá-lo para passar da região desolada e mefítica da escravidão para as planícies saudáveis e fecundas do trabalho livre? (Nabuco, 1885Nabuco, Joaquim. (1885), Campanha Abolicionista no Recife (Eleições de 1884): Discursos de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos.:198).

A menção anterior ao conquistador espanhol de México-Tenochtitlan não fora fortuita. A tripulação de Hernán Cortés receara o comandante que “os havia levado tão longe dentro do naufrágio e da perdição”, mas afinal ouvira “o grito sublime de Terra!” (Nabuco, 1885Nabuco, Joaquim. (1885), Campanha Abolicionista no Recife (Eleições de 1884): Discursos de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos.:138). O mesmo dizia Nabuco aos seus correligionários e eleitores, vendo a terra a partir do oceano:

(...) possamos nós brasileiros, (...) que acreditamos na existência além dos limites da escravidão de um mundo desconhecido, ouvir também (...) esse grito de Terra! levantar-se dos mastros dos nossos navios e encher os corações dos escravos livres ao despontar da nova pátria! (Nabuco, 1885Nabuco, Joaquim. (1885), Campanha Abolicionista no Recife (Eleições de 1884): Discursos de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos.:138).

Fala expressamente no ideal de “reconquistar a terra de que a escravidão fez um monopólio” (Nabuco, 1885Nabuco, Joaquim. (1885), Campanha Abolicionista no Recife (Eleições de 1884): Discursos de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos.:123). O jogo metafórico é sem dúvida sugestivo: o navio apodrecido da escravidão, soçobrando nas costas de uma colônia insular e decrépita, daria lugar à nau do abolicionismo, que, ao alcançar o novo mundo do trabalho livre, conquista a terra desmedida e opulenta de uma nova pátria. O naufrágio, modernamente uma metáfora da imprudência na condução dos assuntos públicos (Blumenberg, 1997Blumenberg, Hans. (1997), Shipwreck with Spectator: Paradigm of a Metaphor for Existence. Cambridge e London: The Massachussets Institute of Technology Press.), levaria consigo o país escravista enquanto o abolicionismo encarna o bom governo.

Em O Abolicionismo, Nabuco remetera à estória de Cortés ao qualificar sua conversão ao abolicionismo como um ato de “queimar os meus navios” (1883:206). Mas se a metáfora valia para uma decisão pessoal de Joaquim Nabuco, em que medida seria possível figurar o Brasil por ele imaginado queimando os seus navios, abandonando por completo o ideal insular e satisfazendo-se com a vida da terra? A imagem da “orla apagada” não pareceria um caso de excesso da retórica eleitoral, embora mais por ímpeto reformista que por um atavismo aristocrático que “amacia” as palavras para confortar a audiência (cf. Alonso, 2009Alonso, Angela. (2009), “Joaquim Nabuco: O Crítico Penitente”, in L. Schwarcz; A. Botelho (orgs.), Um Enigma Chamado Brasil: 29 Intérpretes e um País. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 100-120.:62)? O crescimento orgânico da terra era obviamente importante, mas a superação do vínculo colonial com o mar não significava dar as costas ao oceano, antes o contrário, dado que a natureza deste se transformara em uma direção moralizadora. O fator externo tinha que dar a medida do bom governo. Só por meio dessa via moral sempre renovada e vivificada, que se confundia com a da prudência, se poderia chegar à organicidade e à simultânea “organização da sociedade e do Estado no Brasil em moldes liberais” (Prado, 1999Prado, Maria Emília. (1999), “O Cavaleiro Andante dos Princípios e das Reformas: Joaquim Nabuco e a Política”, in M. E. Prado (org.), O Estado como Vocação: Ideias e Práticas Políticas no Brasil Oitocentista. Rio de Janeiro: Access Editora, pp. 239-266.:240). Mas, considerando-se que para Nabuco a organicidade tinha que ser vazada em moldes liberais, isto é, que a terra só podia ser efetivamente conquistada a partir do domínio do trabalho livre, poderíamos mesmo concluir que não havia, afinal, tanto telurismo no raciocínio de Campanha Abolicionista no Recife. Uma terra dotada de instituições condizentes com a modernidade ocidental era uma terra posta, de novo, sob o signo do oceano. Em vez da exaltação do solo, a reafirmação do mar. Em seu abolicionismo, Nabuco não podia aceitar uma existência pura e simplesmente terrestre para o país, na suposição – como já dissera com graça Tavares Bastos (uma fonte, que não discuto aqui, de sua crítica ao provincianismo) – de “que o Pão de Açúcar é o limite do mundo moral” (Bastos, 1863:139).

BRISAS MARÍTIMAS E CONCILIAÇÃO COM A HUMANIDADE

O raciocínio contrafactual de Oliveira Martins de que sem a escravidão “o Brasil não se teria tornado no que vemos” (1881:50) leva Nabuco a reagir com uma incursão similar pela “história virtual” (Mello, 2003Mello, Evaldo Cabral de. (2003), “Joaquim Nabuco”, in A. da C. e Silva (ed.), O Itamaraty na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, pp. 111-134.). A certa altura de O Abolicionismo, escreve o seguinte:

Ninguém pode ler a história do Brasil no século XVI, no século XVII e, em parte, no século XVIII (...) sem pensar que a todos os respeitos houvera sido melhor que o Brasil fosse descoberto três séculos mais tarde. Essa imensa região, mais favorecida do que outra qualquer pela natureza, se fosse encontrada livre e desocupada há cem anos, teria provavelmente feito mais progressos até hoje do que a sua história recorda. A população seria menor, porém mais homogênea; a posse do solo talvez não se houvesse estendido tão longe, mas não houvera sido uma exploração ruinosa e esterilizadora; a nação não teria ainda chegado ao grau de crescimento que atingiu, mas também não mostraria já sintomas de decadência prematura (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:139-140).

Menor estruturação nacional, menor população e menor território: Nabuco responde a Oliveira Martins trocando pela descoberta tardia, hipoteticamente, tudo aquilo em que o Brasil se tinha tornado em razão da escravidão (a desvantagem formativa estava no “cativeiro”, explica, não na “raça negra”; Nabuco, 1883:142). Já vimos suas críticas à invertebração do que passava por nação brasileira, à degradação do servilismo e despotismo gerados pela sociedade heterogênea de senhores e escravizados e à decrepitude de uma terra esterilizada e devastada. Mas o exercício contrafático revela mais do que isso. Desde logo, contrasta com a sugestão de Oliveira Martins de que o futuro da colônia americana de Portugal podia guardar uma história expansiva como a de Roma e passar, sem mais, do mar à terra. Ademais, é difícil não notar, na citação acima, certo desprendimento de Nabuco em relação à integridade territorial brasileira. Ainda que formulado como cosa mentale, o trecho soava herético à luz do preceito territorialista solenemente expresso pelo Marquês de São Vicente menos de três décadas antes em seu Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império: “O território do império não constitui somente a sua mais valiosa propriedade; a integridade, a indivisibilidade dele é de mais a mais não só um direito fundamental, mas um dogma político” (Bueno, 1857Bueno, José Antonio Pimenta. (1857), Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Typographia Imp. e Const. de J. Villeneuve e C.:21). Tudo pesado, a própria tese de O Abolicionismo sobre o legado lusitano como um estorvo punha em causa o paradigma historiográfico saquarema de acordo com o qual a “colonização portuguesa prefigurava o destino imperial brasileiro” (Lynch, 2014Lynch, Christian. (2014), “Um Saquarema no Itamaraty: Por uma Abordagem Renovada do Pensamento Político do Barão do Rio Branco”. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 15, pp. 279-314.:281).

Concluir daí que Nabuco simplesmente abriria mão da integridade territorial de seu país seria errar em vários níveis, desconhecendo-se a advertência de O Abolicionismo sobre o risco de que a escravidão levasse à desagregação territorial do sul do Brasil (ver Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:240n), a preocupação unitária de Um Estadista do Império (ver, por exemplo, Nabuco, 1899Nabuco, Joaquim. (1899), Um Estadista do Império: Nabuco de Araújo: Sua Vida, suas Opiniões, sua Época. Tomo III: 1866-1878. Rio de Janeiro e Paris: H. Garnier, Livreiro-Editor.:207) e os temores geopolíticos das memórias e cartas sobre a questão da Guiana (ver, por exemplo, Nabuco, 1949d:170-179). O meu ponto é que parece haver um distanciamento, um ceticismo mesmo, de Nabuco quanto a perspectivas telúricas que fizessem a boa formação do país depender de virtudes emanadas da conquista de seu hinterland. Essa atitude vai além de O Abolicionismo. A desconcertante passagem de Minha Formação em que o autor afirma que a Amazônia não valia um trecho da Via Ápia – afirmação que por ser literária não deixava de surpreender, vinda de um autor que era, simultaneamente, o laborioso advogado da causa brasileira sobre a então Guiana inglesa – é outro exemplo disso (ver Nabuco, 1900Nabuco, Joaquim. (1900), Minha Formação. Rio de Janeiro e Paris: H. Garnier, Livreiro-Editor.:42), e deve sua sobrevida polêmica ao incômodo que ainda causa ao tratar o Brasil como um “teatro provinciano” (Rouanet, 2011Rouanet, Sergio Paulo. (2011), “A ‘Moléstia de Nabuco’ Revisitada”. Revista Brasileira, fase 7, ano 17, n. 66, pp. 104-114.:48). A mesma reserva emana do intrigante advérbio que matiza o elo entre território e futuro em uma avaliação capital de Um Estadista do Império: “(...) a política exterior é a política por excelência, sobretudo para as nações quase de futuro, como o Brasil, senhoras de um imenso território que tem de ficar, por gerações, desocupado” (Nabuco, 1899Nabuco, Joaquim. (1899), Um Estadista do Império: Nabuco de Araújo: Sua Vida, suas Opiniões, sua Época. Tomo III: 1866-1878. Rio de Janeiro e Paris: H. Garnier, Livreiro-Editor.:207, ênfase minha). Se em toda a sua obra há indícios de limitações de uma existência telúrica, parece-me haver em O Abolicionismo, e não só nele, sinais nítidos de que o oceano era a fonte principal de deformação, no passado, e de reforma, no futuro, da experiência brasileira.

Pedro Meira Monteiro (2010)Monteiro, Pedro Meira. (2010), “Por Dentro do Círculo Mágico: Progresso e Melancolia no Discurso de Madison, de Joaquim Nabuco”, in S. J. Albuquerque (org.), Joaquim Nabuco e Wisonsin: Centenário da Conferência na Universidade, Ensaios Comemorativos. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, pp. 171-201. delineou com elegância a disjuntiva espacial em Nabuco, lembrando que, em sua obra, a inevitável busca romântica e oitocentista do “gênio das nações”, que aponta para a terra, coexistiria com o “senso de observação” que o viajante e diplomata, herdeiro dos horizontes descortinados pela literatura de viagens, adquire em sua intimidade com o mar. Essa fórmula de compromisso tem por si o equilíbrio construído por Nabuco em uma das mais célebres frases de Minha Formação e de toda sua obra: “O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação europeia” (1900:42, ver Nabuco, 1949d:192). Gostaria, entretanto, de refletir sobre aquela disjuntiva tomando por guia o tirocínio que Nabuco apresenta no parágrafo seguinte de Minha Formação, que citei antes e que me parece desequilibrar um pouco os termos da equação Brasil-Europa: o “espírito humano”, “um só e terrivelmente centralista”, “está do outro lado do Atlântico”. Não à toa o capítulo em que aparece essa discussão intitula-se “Atração do mundo”, tributo ao eurocentrismo que se irradiava pelos mares e não aos sentimentos que floresciam na terra ainda meio provinciana.

O Nabuco viajante e observador (ainda que só pelos livros, como bem lembra Monteiro) me parece anteceder frequentemente o Nabuco empenhado na busca do caráter recôndito de seu país. Não que essa não exista, como se nota, para ficar em um só exemplo, no discurso a propósito do terceiro centenário da morte de Camões em junho de 1880 (provavelmente antes do contato com o livro de Oliveira Martins), em que retrata positivamente o legado português e sua possível continuidade no caráter brasileiro (ver Venancio, 2013Venâncio, Giselle. (2013), “Comemorar Camões e Repensar a Nação: O Discurso de Joaquim Nabuco na Festa do Tricentenário da Morte de Camões no Rio de Janeiro (1880)”. Revista Brasileira de História, v. 33, n. 65, pp. 277-290.). Mas vejamos dois exemplos contrários. Prestes a embarcar para seu périplo europeu no recesso parlamentar, em dezembro do mesmo ano de 1880, escreve a um amigo que, para evitar a “injustiça para com o povo e à ingratidão para com a terra”, adota a “higiene das brisas marítimas, que destrói todos os maus fermentos da perseguição e coloca a pátria ao lado de Deus como uma das grandes realidades da vida” (Nabuco, 1949c:38-39). Já mais no fim da vida, na missão especial a Roma, em 1903, ao contrastar no diário monogamia e monotopia: “eu acho mais fácil uma só companhia do que permanecer em um só lugar. A infidelidade de lugar, a única incurável para a imaginação” (Nabuco, 2005b:276).

A dificuldade de formulação da identidade nacional na reflexão de Nabuco remete a essa sua orientação antes marítima que terrestre. Há dificuldades de duas ordens, uma própria ao Brasil e sua trajetória escravocrata, outra inerente à modernidade e seus fluxos de bens, capitais, pessoas e ideias. A primeira explicita-se na constatação de Minha Formação de que “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil” (Nabuco, 1900Nabuco, Joaquim. (1900), Minha Formação. Rio de Janeiro e Paris: H. Garnier, Livreiro-Editor.:216). Se isso é verdade, observa certeiramente Evaldo Cabral de Mello, “(...) nossa identidade não é tão nacional assim, pois a compartilhamos com todas as sociedades do Novo Mundo outrora organizadas na base do trabalho escravo de origem africana, da monocultura e da grande propriedade territorial” (2003:132). A segunda dificuldade explicita-se desde cedo, na anotação de Nabuco no diário de 1877:

O homem tende a uniformizar-se (...) no futuro os característicos [nacionais] estarão ainda mais apagados, o comércio, o casamento, as comunicações internacionais – e o caráter de unidade da civilização ocidental – terão confundido na aparência pelo menos os diversos tipos europeus (2005a:199).

O diário de 1904 volta ao assunto e o esclarece à saciedade: “No século passado o fato colossal da imigração mostra que a pátria de nascimento é um sentimento limitado pelas perspectivas que se oferecem ao homem (...) [A pátria] não é um cativeiro perpétuo absoluto” (Nabuco, 2005b:294; ver também Nabuco, 2005b:35). Mesmo sem mudança definitiva de pátria, a imigração podia ter o efeito benéfico que Sergio Paulo Rouanet identificou em Nabuco, o surgimento do “exilado lúcido, que por ser exilado percebe o que as evidências locais impedem que seja percebido” (2011:53-54). Era, afinal, como imigrante que o autor escrevia, no prefácio de O Abolicionismo, que o estrangeiro era “(...) donde se ama ainda mais a pátria do que no próprio país” e “(...) onde o patriotismo (...) parece mais largo, generoso e tolerante” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:ix). E é à visão que o viajante tem de seu país “como um todo” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:ix) a partir de Londres – cabendo cogitar se não assumia uma perspectiva “inglesa” ao pensar sua terra a partir do enquadramento mais amplo do mar – que devemos o radicalismo de Nabuco.

As experiências marítimas da migração e da deportação oceano afora, vivenciada uma, pensada outra por Nabuco, constituem realidades mais primordiais, em seus escritos, do que a sertaneja ou a fronteiriça. O que impacta concretamente a formação brasileira para Nabuco é a transição de um Atlântico Sul enclausurado e imoral para um Atlântico eurocêntrico2 2 . Esses dois modos de conceber o oceano não são, naturalmente, os únicos havidos por Nabuco. Além do Atlântico enclausurado e do Atlântico unificado, surgirá, mais tarde, a noção do Atlântico cindido. Deixo, sobre este terceiro, um apontamento sumário. Os escritos do autor durante suas missões em Roma e em Washington evidenciam um valor bastante concreto conferido ao ordenamento marítimo como garantia da integridade territorial brasileira. Se nos anos 1890 Nabuco fora um duro crítico da interferência da esquadra estadunidense na revolta da armada por haver desequilibrado o conflito em favor da força terrestre (ver Nabuco, 1896), uma década depois, havendo passado pela má experiência da arbitragem do caso da Guiana, estará convicto do valor da Doutrina Monroe para a proteção do hemisfério contra os imperialismos europeus: “Para nós a escolha está entre o Monroísmo e a recolonização europeia. O equilíbrio dos dois mundos não permite mais a existência de nações isoladas dele e tirando benefícios dele. Hoje a proteção impõe deveres às nações que a recebem, e a única proteção da América é o sea-power que só os Estados Unidos têm nela. Monroísmo é assim a afirmação da independência e integridade nacional pelo único sistema que as pode garantir. Quero inteligência que pareça aliança tácita. Agora mesmo o Brasil procede com a Alemanha como a França não ousaria. Em que se fia? Sem o sea-power, um bloqueio alemão do Rio e Santos nos faria stew in our own juice” (Nabuco, 2005b:346-7). É difícil negar que sua reflexão tivesse um forte fundamento espacial na linha do hemisfério ocidental. Mas enfatizo que, gradualmente, e já no tempo de vida de Nabuco, essa linha foi-se transpondo da terra americana para o Atlântico (ver Schmitt, 1995), cindindo-o – com valor político concreto – entre novo e velho mundo. Na correspondência de Nabuco e Rui Barbosa sobre a Conferência da Haia, espécie de gênese da tensão conceitual entre bilateralismo e multilateralismo na política externa brasileira, fica evidente que a Doutrina Monroe fornece a Nabuco um “princípio espacial delimitado”, enquanto Rui busca no direito internacional geral um “princípio espacial indiferenciado” (uso expressões de Schmitt, 2011:47; San Tiago Dantas parece-me prolongar essa busca mais adiante). É por tal via que Nabuco chegará à sua crítica ao princípio da igualdade soberana entre os Estados defendido por Rui na Haia como uma ideia que “exclui[ria] em absoluto a lei de proporção da esfera do direito internacional” (1949d:291). Essa “lei de proporção” substitui a – ou sobrepõe-se à – anterior “lei do predomínio europeu” (Nabuco, 1949a:42), base da “atração do mundo”, pela aludida cisão política do Atlântico em dois hemisférios, da qual – pleiteia o Nabuco monroísta – o Brasil devia tornar-se outro baluarte. . A criação de uma sociedade orgânica podia ser viável, mas ainda estava no reino das possibilidades; e em todo caso podia dar largas a uma autenticidade nacional na melhor das hipóteses provinciana, e, na pior, despótica. Nada garantia, em outras palavras, que do território desmedido, afastado da civilização, não ressurgisse um ideal grosseiro de pátria. Só uma nação devidamente integrada ao Atlântico unificado e civilizador podia nutrir um “ideal de pátria mais elevado, compreensivo e humano” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:10). Nesse espaço, “a soberania dos Estados não pode exercer-se de modo a anular o direito mais elevado, e mais geral da humanidade” (Bluntschli apudNabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:112n). Estamos no cerne da visão prospectiva de Nabuco em O Abolicionismo, que equaciona as ordens nacional e mundial em um mesmo pleito pelo “verdadeiro patriotismo, isto é, o que concilia a pátria com a humanidade” (Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:97).

A abolição da escravatura, crucial no Brasil e inescapável no Atlântico, era a ilustração óbvia da equação entre reforma e oceano. A reforma para a passagem de colônia a nação processava-se a partir de um fator externo à terra, a continuação do combate à pirataria iniciado pelo bloqueio naval inglês e prosseguido pelo bloqueio moral abolicionista. A organicidade, bem-vinda como fosse, não podia surgir do nada na terra, carecendo do contínuo influxo civilizatório do mar. Aqui, uma das raras imagens marítimas de Campanha Abolicionista no Recife reveste-se de grande significação. Nabuco explica, nesse livro, que a abolição solucionaria o “problema maior do país”, a “igualdade social de todos os brasileiros” (Nabuco, 1885:16). Mas, ao tratar o movimento abolicionista como um grande rio, tem que fazê-lo desembocar não na terra, como no jogo metafórico com Cortés, mas em um oceano de igualdade, o que põe o fluxo retórico em coincidência com o leito argumentativo:

Vi-o quando, depois das cataratas, ele ganhou as planícies descobertas da opinião (continuam os aplausos) e desdobrou-se em toda a sua largura, alimentado por inúmeros afluentes vindos de todos os pontos da inteligência, da honra e do sentimento nacional; mudando de nome no seu curso, como o Solimões – chamando-se primeiro Ceará, depois Amazonas, depois Rio Grande do Sul (os aplausos cobrem a voz do orador) e hoje o vejo prestes a despejar-se no grande oceano da igualdade humana (Nabuco, 1885Nabuco, Joaquim. (1885), Campanha Abolicionista no Recife (Eleições de 1884): Discursos de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos., p. 14, ênfase no original).

Um registro, para concluir, sobre a forma – simbólica, não cartográfica – que podia tomar o espaço brasileiro após sua descolonização. A terra desmedida não era, para Nabuco, a fonte mística de grandeza nacional que havia sido para a tradição saquarema. Se tivéssemos que nos ater ao antagonismo formulado por Gilberto Freyre (1943)Freyre, Gilberto. (1943), Continente e Ilha. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil. entre sentido insular atlântico e sentido continental americano, parece suficientemente claro que a obra de Nabuco estaria mais próxima do primeiro. Vimos que o ideal de Java repugnava a nosso autor por várias razões. Vimos que tampouco o poderia satisfazer um ideal de Socotra, se posso dizer assim, lembrando a ilha no Índico cujo povo, segundo Montaigne, vivia “tão contente de sua fortuna que, no meio do mar, ignora o uso de navios” (2002:480). Um Brasil como ilha continental, mais que como continente insular (ver Finazzi-Agrò, 1993Finazzi-Agrò, Ettore. (1993), “A Invenção da Ilha: Tópica Literária e Topologia Imaginária na Descoberta do Brasil”. Remate de Males, v. 13, p. 93-103.), teria para Nabuco a virtude de estar sempre aberto ao mundo, sem que fundos territoriais desmedidos fizessem perder de vista – apagassem – a orla marítima. Essa visão insular, se é pertinente sugeri-la, talvez se pudesse decifrar no que o jovem Nabuco escreveu sobre a Ilha dos Amores em Camões e os Lusíadas: “Todos imaginamos no meio do oceano um torrão delicioso” (Nabuco, 1872Nabuco, Joaquim. (1872), Camões e os Lusíadas. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artístico.:93). “É um idílio”, diz, “É a ilusão da saudade” (Nabuco, 1872Nabuco, Joaquim. (1872), Camões e os Lusíadas. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artístico.:226). Quiçá nessa elusiva ilha a meio caminho do oceano a dupla saudade – “De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país” (Nabuco, 1900Nabuco, Joaquim. (1900), Minha Formação. Rio de Janeiro e Paris: H. Garnier, Livreiro-Editor.:42; ver Santiago, 2004Santiago, Silviano. (2004), O Cosmopolitismo do Pobre: Crítica Literária e Crítica Cultural. Belo Horizonte: Ed. UFMG.) – pudesse ser remediada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Joaquim Nabuco é um pensador marítimo. O Atlântico foi um palco de sua vida cosmopolita tanto quanto o espaço central da formação brasileira em sua reflexão geopolítica. Nos seus escritos da fase abolicionista, há dois Atlânticos, um enclausurado na imoralidade do tráfico de cativos e outro sincronizado com a modernidade ocidental, assim como há duas pátrias brasileiras, uma escravista e brutal e outra livre e humana. O Atlântico torna-se o fator externo que deve orientar constantemente o ideal patriótico pelo ideal humano. Fora desse rumo moral e prudente, a “nau do Estado” (Nabuco, 1897:214n) tem que ir a pique – e é significativo que, nas conflagrações dos anos 1890, Nabuco use com frequência a retórica clássica do Estado como embarcação, da discórdia civil como mar tormentoso e da paz como porto ansiado. A transição da colônia deformada à nação reformada não se processaria, assim, como uma evolução do passado marítimo para o futuro telúrico. A terra orgânica enquadrava-se pelo oceano moral. É por isso que a perspectiva terrestre, enaltecendo o legado de dominação progressiva do hinterland e o encontro afinal virtuoso com a autenticidade nacional nos sertões, caminhos e fronteiras, suscita o ceticismo de Nabuco. Para esse íntimo do alto mar, observador de costas e de contracostas, adepto de portos, de vapores e de viagens, o valor daquela herança era questionável e afastar-se do oceano era apagar a irradiação eurocêntrica. Se nunca hesitou em defender a integridade territorial do país, sempre o quis aberto ao contato profícuo com o mundo. Daí que a geografia simbólica de uma ilha continental seja sugestiva de sua visão do Brasil. Tratando Nabuco, convencionalmente, como pensador político e social brasileiro, também devemos advertir, em sua obra, a indissociabilidade entre organização nacional e ordem mundial. O Brasil só é concebível, para ele, pela ruptura da “trilogia infernal” com a África e pela “atração do mundo” exercida pela Europa – afora, mais tarde, pelo alinhamento, na acepção própria de linha hemisférica, com os Estados Unidos. Será preciso descrever-se um longo arco histórico para que, superado o velho cânone equatorial, a linhagem transoceânica volte a imaginar o elo do Brasil com a África, primeiro (para ficar em duas ocorrências) como imperialismo luso-brasileiro (Freyre, 1953Freyre, Gilberto. (1953), Aventura e Rotina: Sugestões de uma Viagem à Procura das Constantes Portuguesas de Caráter e Ação, com 22 ilustrações. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.) e depois como vínculo de solidariedade e segurança entre os Estados banhados pelo Atlântico Sul (Franco, 2007Franco, Afonso Arinos de Melo. (2007), “Trechos de exposição do ministro Afonso Arinos de Melo Franco na Câmara dos Deputados. Câmara dos Deputados. 125ª Sessão / Em 28 de julho de 1961”, in A. C. Franco (org.), Documentos da Política Externa Independente: Vol. 1, Rio de Janeiro e Brasília, Centro de História e Documentação Diplomática e Fundação Alexandre de Gusmão, pp. 116-144.). Entrementes, visto com frequência pelo prisma territorialista e recoberto pela porfiada contextualização da origem fútil da obra a que pertence, o flamejante painel marítimo traçado por Nabuco mantém-se sob o véu do olhar telúrico.

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NOTAS

  • 1
    . O trágico painel marítimo composto em O Abolicionismo lembra a Nabuco O naufrágio da Medusa, tela de Géricault (ver Nabuco, 1883Nabuco, Joaquim. (1883), O Abolicionismo. London: Typographia de Abraham Kingdon e Ca.:90). O autor pode ter encontrado, muito mais tarde, outro quadro à altura do panorama que traçou em 1883. Já embaixador em Washington, seu diário registra com delícia um passeio por Massachusetts em setembro de 1905 (ver Nabuco, 2005b:337). Nesses dias pode ter visto, no Museum of Fine Arts de Boston, a impressionante tela Slavers throwing overboard the dead and dying – typhoon coming on, de J. M. W. Turner, datada de 1840 e exposta aí ao público desde 1899, após décadas em coleções privadas inglesas e norte-americanas. Embora não haja qualquer anotação sua a respeito, sublinho a relevância deste motivo comum ao Nabuco de 1880 e ao Turner de 1840: o desvirtuamento da função benigna do comércio (a “navegação maldita” que “deslustra as conquistas civilizadoras do comércio”). Acrescento que, ao falar nominalmente em Turner no diário de 1906, quando vê o entardecer de Olinda a bordo do navio em que regressa do Rio de Janeiro a Washington, Nabuco usa um qualificativo que se aplicaria muito bem a Slavers throwing overboard the dead and dying – typhoon coming on: um “ocaso que flameja” (Nabuco, 2005b:372). Essa calha de ser a palavra justa para o quadro de Turner exposto até hoje em Boston: um céu que flameja, não no pôr do sol na pacata Olinda, mas em torno do navio que se desfaz de cativos lançando-os ao mar revolto pelo vendaval que se avizinha. Outro aspecto da “trilogia infernal” composta em O Abolicionismo passível de especulação diz respeito ao nome do engenho onde cresceu Nabuco, Massangano. Bosi observou que o autor de Minha Formação optou pela desinência feminina, Massangana. Apontou uma “decifração psicanalítica para a mudança de gênero: o engenho era o regaço materno, e o menino, como tantos dos seus escravos fiéis, não tinha pai, só mãe, melhor dizendo, mãe-madrinha” (Bosi, 2010Bosi, Alfredo. (2010), “Joaquim Nabuco Memorialista”. Estudos Avançados, v. 24, n. 69, pp. 86-104.:60). Sem prejuízo dessa explicação, gostaria de notar que, lendo O Brasil e as Colônias Portuguesas em algum ponto de 1881 ou início de 1882, Nabuco obrigatoriamente passou pela informação – talvez surpreendente para ele – de que Massangano fora nome do “primeiro baluarte do domínio português em Angola”, domínio este “a cuja sombra se explorava o comércio da gente negra” (Martins, 1881Martins, Joaquim Pedro de Oliveira. (1881), O Brasil e as Colônias Portuguesas. 2ª ed. emendada. Lisboa: Livraria Bertrand.:17). Oliveira Martins registra inclusive que, das “intermináveis” guerras de captura de escravos promovidas pelos portugueses, ficara a memória do “cerco de Massangano (1595)” (1881:17; ver também p. 98).
  • 2
    . Esses dois modos de conceber o oceano não são, naturalmente, os únicos havidos por Nabuco. Além do Atlântico enclausurado e do Atlântico unificado, surgirá, mais tarde, a noção do Atlântico cindido. Deixo, sobre este terceiro, um apontamento sumário. Os escritos do autor durante suas missões em Roma e em Washington evidenciam um valor bastante concreto conferido ao ordenamento marítimo como garantia da integridade territorial brasileira. Se nos anos 1890 Nabuco fora um duro crítico da interferência da esquadra estadunidense na revolta da armada por haver desequilibrado o conflito em favor da força terrestre (ver Nabuco, 1896), uma década depois, havendo passado pela má experiência da arbitragem do caso da Guiana, estará convicto do valor da Doutrina Monroe para a proteção do hemisfério contra os imperialismos europeus: “Para nós a escolha está entre o Monroísmo e a recolonização europeia. O equilíbrio dos dois mundos não permite mais a existência de nações isoladas dele e tirando benefícios dele. Hoje a proteção impõe deveres às nações que a recebem, e a única proteção da América é o sea-power que só os Estados Unidos têm nela. Monroísmo é assim a afirmação da independência e integridade nacional pelo único sistema que as pode garantir. Quero inteligência que pareça aliança tácita. Agora mesmo o Brasil procede com a Alemanha como a França não ousaria. Em que se fia? Sem o sea-power, um bloqueio alemão do Rio e Santos nos faria stew in our own juice” (Nabuco, 2005b:346-7). É difícil negar que sua reflexão tivesse um forte fundamento espacial na linha do hemisfério ocidental. Mas enfatizo que, gradualmente, e já no tempo de vida de Nabuco, essa linha foi-se transpondo da terra americana para o Atlântico (ver Schmitt, 1995Schmitt, Carl. (1995) [1943], “Cambio de Estructura del Derecho Internacional”, in C. Schmitt, Escritos de Política Mundial. Buenos Aires: Ediciones Heracles, pp. 111-131.), cindindo-o – com valor político concreto – entre novo e velho mundo. Na correspondência de Nabuco e Rui Barbosa sobre a Conferência da Haia, espécie de gênese da tensão conceitual entre bilateralismo e multilateralismo na política externa brasileira, fica evidente que a Doutrina Monroe fornece a Nabuco um “princípio espacial delimitado”, enquanto Rui busca no direito internacional geral um “princípio espacial indiferenciado” (uso expressões de Schmitt, 2011Schmitt, Carl. (2011) [1939], “Großraum versus Universalism: The International Legal Struggle over the Monroe Doctrine”, in S. Legg (ed.), Spatiality, Sovereignty and Carl Schmitt: Geographies of the Nomos. London e New York: Routledge.:47; San Tiago Dantas parece-me prolongar essa busca mais adiante). É por tal via que Nabuco chegará à sua crítica ao princípio da igualdade soberana entre os Estados defendido por Rui na Haia como uma ideia que “exclui[ria] em absoluto a lei de proporção da esfera do direito internacional” (1949d:291). Essa “lei de proporção” substitui a – ou sobrepõe-se à – anterior “lei do predomínio europeu” (Nabuco, 1949a:42), base da “atração do mundo”, pela aludida cisão política do Atlântico em dois hemisférios, da qual – pleiteia o Nabuco monroísta – o Brasil devia tornar-se outro baluarte.
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    As visões contidas neste artigo são expressas a título pessoal e não buscam representar as do Ministério das Relações Exteriores. O autor agradece a Ricardo Benzaquen de Araújo (in memoriam), Evaldo Cabral de Mello, Christian Lynch, Mário Hélio Gomes de Lima, Fabiano Bastos Moraes, Bruno Simões e aos pareceristas anônimos pelas críticas e indicações, isentando-os todavia de qualquer responsabilidade pelo conteúdo deste artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2021
  • Revisado
    19 Dez 2021
  • Aceito
    26 Dez 2021
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