Acessibilidade / Reportar erro

Sobre anjos e irmãos: cinquenta anos de expressão política do "crime" numa tradição musical das periferias

About angels and brothers: fifty years of political expression of "crime" in the musical tradition of the peripheries

Resumos

A bibliografia sobre as periferias urbanas, sobretudo em São Paulo, enfatizou sucessivamente a ação política dos movimentos de trabalhadores (anos 1970-1980) e a "violência urbana" (anos 1990-2000). A relação entre "política" e "violência" foi, entretanto, muito pouco discutida, como se "trabalhadores" e "bandidos" não coexistissem no tempo e no espaço e não construíssem mutuamente suas histórias de vida. Este ensaio se dedica a pensar essa relação, tomando como objeto heurístico a recuperação de fragmento da letra da canção "Charles Junior", de Jorge Ben (1970), na abertura do álbum Nada como um dia após o outro dia dos Racionais MC's (2002). Estudando a tradição expressiva condensada nessa citação, discuto as últimas cinco décadas de construção social do "crime" como guardião legitimado de valores políticos como paz, justiça, liberdade e igualdade em territórios das periferias urbanas.

Periferia; música; crime; política; etnografia


The literature on urban peripheries, especially in São Paulo, successively emphasized the political action of workers' movement (years 1970-1980) and the "urban violence" (years 1990-2000). The relationship between "politics" and "violence" was, however, hardly discussed, as if "workers" and "outlaws" did not coexist in time and space and did not mutually construct their life stories. This essay is dedicated to think about this relationship, taking as heuristic object the fragment recovery of song lyrics "Charles Junior" by Jorge Ben (1970), in the opening of the album Nada como um dia após o outro dia (Nothing like a day after another day) of Racionais MC's (2002). Studying the expressive tradition condensed in this quotation, I discuss the last five decades of social construction of "crime" as legitimized guardian of political values such as peace, justice, freedom and equality in territories of urban peripheries.

Periphery; music; crime; politics; ethnography


  • 3 "Aquele que recusamos contar como pertencente à comunidade política, recusamos primeiramente ouvi-lo como ser falante. Ouvimos apenas ruído no que ele diz." (RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise da razão São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 373)
  • 4 VIANNA, Hermano. O mistério do samba, Rio de Janeiro: Zahar/UFRJ, 1995.
  • 5 MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. Política social: o dilema da democratização brasileira. Texto apresentado no seminário Cidade, democracia e justiça social, Rio de Janeiro: FASE/Fundação Rosa Luxemburg, 2003.
  • 6 MISSE, Michel. Sobre uma sociabilidade violenta. In: MISSE, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo: estudos de sociologia do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
  • 7 BEN, Jorge. Força bruta, Universal Records, 1970.
  • 8 RACIONAIS, MC'S. Nada como um dia após o outro dia São Paulo: Cosa Nostra, 2002.
  • 9 TELLES, Vera da Silva; CABANES, Robert (Orgs.). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial Humanitas/IRD, 2006;
  • TELLES, Vera da Silva. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. São Paulo: Argvmentvm/USP, 2011;
  • FELTRAN, Gabriel de Santis. Periferias, direito e diferença: notas de uma etnografia urbana. Revista de Antropologia, v. 53, n. 2, 2010;
  • ________. Crime e castigo na cidade: os repertórios da justiça e a questão do homicídio nas periferias de São Paulo. Cadernos CRH Salvador, v. 23, n. 58, p. 59-73, Jan./Abr. 2010;
  • HIRATA, Daniel Veloso. Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida. Tese (Doutorado em Sociologia), - Programa de Pós-graduação em Sociologia, Universidade de São Paulo, 2010.
  • 10 "Amo minha raça/ Luto pela cor/ O que quer que eu faça é por nós/ Por amor" (RACIONAIS. Nada como um dia após o outro dia, op. cit.). Cf. ALVES, Jaime Amparo. Macabre Spatialities: The Politics of Race, Gender and Violence in a Neoliberal City. Tese (Doutorado em Antropologia) - Austin, University of Texas, 2012.
  • 11 CALDEIRA, Teresa P. R. "I came to sabotage your reasoning!: violence and resignifications of justice in Brazil.". In: COMAROFF, Jean; COMAROFF, John (eds.). Law and disorder in the postcolony. Chicago: University of Chicago Press, 2006;
  • HIRATA, Daniel Veloso. Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida, op. cit.; GIMENO, Patrícia Curi. Poética versão: a construção da periferia no rap Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) -, Universidade Estadual de Campinas, 2009;
  • TAKAHASHI, H. Y. Capítulo 4, versículo 3: o "crime" numa teologia dos Racionais MC's. Trabalho apresentado no seminário Território, crime e ordenamento social (CEM/CEBRAP), 2012.
  • 12 BERTELLI, G. B. Errâncias racionais: a periferia, o rap e a política. Sociologias (UFRGS, impresso), v. 14, p. 214-237, 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-45222012000300010&lng=pt&nrm=iso Acesso em: abr. 2013. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222012000300010
  • 13 Mudanças notáveis em: MARQUES, Eduardo; TORRES, Haroldo (Orgs.). São Paulo: Segregação, pobreza e desigualdades sociais São Paulo: Senac, 2005;
  • KOWARICK, Lucio; MARQUES, Eduardo Cesar Leão. São Paulo: novos percursos e atores: sociedade, cultura e política. 1. ed. São Paulo: 34, v. 1, 2011;
  • 15 CANDIDO, Antonio. Introdução. In: _______. A formação da literatura brasileira (1959). Belo Horizonte: Itatiaia, 1981;
  • _______. Crítica e sociologia. In: Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 9. ed. 2006.
  • 17 MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. Violência urbana: representação de uma ordem social. In: NASCIMENTO, E. P.; BARREIRA, Irlys (Orgs.). Brasil urbano: cenários da ordem e da desordem. Rio de Janeiro: Notrya, 1993;
  • MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. Sociabilidade violenta: por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano. Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 1, 2004.
  • 18 FELTRAN, Gabriel de Santis. Crime e castigo na cidade: os repertórios da justiça e a questão do homicídio nas periferias de São Paulo, op. cit; ________. Governo que produz crime, crime que produz governo: o dispositivo de gestão do homicídio em São Paulo (1992-2011). Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 6, n. 2, 2012.
  • 20 FELTRAN, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Unesp/CEM, 2011.
  • 21 MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: acumulação social da violência no Rio de Janeiro. 1999. xi, 416f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.
  • 25 SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
  • 26 ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985.
  • 29 BEN, Jorge. O homem que matou o homem que matou o homem mau, Big Ben, Universal Records. 1965.
  • 30 BIONDI, Karina. Junto e misturado: uma etnografia do PCC. São Paulo: Terceiro Nome/Fapesp, 2010;
  • HIRATA, Daniel Veloso. Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida, op. cit.; TELLES, Vera da Silva; HIRATA, Daniel Veloso. Cidades e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. Estudos Avançados, "Dossiê Crime Organizado", São Paulo, n. 61, 2007;
  • FELTRAN, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo, op. cit.; MALVASI, Paulo Artur. Interfaces da Vida Loka: um estudo sobre jovens, tráfico de drogas e violência em São Paulo. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Universidade de São Paulo, 2012;
  • AZAIS, C.; KESSLER, G.; TELLES, V. S. Illegalismos, cidade e política 1. ed. Belo Horizonte: Fino traço, v. 1, 2012.
  • 32 Em pesquisa de campo, ouvi recorrentemente de militantes: "Se eu dancei uma vez, sou dançarina? Por que é, então, que se eu trafiquei uma vez eu sou traficante?". Sabotage usaria a mesma metáfora em seu rap: "Não sou chinês/ Às vezes fumei/ Sou fumante?" (Sabotagem no álbum Rap é compromisso São Paulo: Cosa Nostra, 2000). Sobre o tema, cf.: MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria "bandido". Lua Nova - Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 79, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452010000100003&lng=pt&nrm=iso Acesso em: abr. 2013. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64452010000100003
  • 34
    34 MARQUES, Adalton José. "Dar um psicológico": estratégias de produção de verdade no tribunal do crime. Anais da VII Reunião de Antropologia do Mercosul, Porto Alegre, 2007.
  • 37 GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história (1966). 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
  • 42 MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: a acumulação social da violência no Rio de Janeiro, op. cit.; ZALUAR, Alba. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: FGV, 2004;
  • MACHADO DA SILVA, L. A. (Org.). Vida sob Cerco: Violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira / Faperj, 2008.
  • 44 BEAUD, Stéphane; PIALOUX, Michel. Violences urbaines, violence sociale: genèse des nouvelles classes dangereuses. Paris: Fayard, 2003.
  • 47 LYRA, Diogo. A república dos meninos: juventude, tráfico e virtude. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2013.
  • 50 BIONDI, Karina. Junto e misturado: uma etnografia do PCC, op. cit.; DIAS, Camila N. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação da dominação do PCC no sistema carcerário paulista 2011. 386f., (Doutorado em Sociologia) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • 51 CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado São Paulo: Cosac Naify, 2003.
  • 52 MARQUES, Adalton José. Liderança, proceder e igualdade: uma etnografia das relações políticas no Primeiro Comando da Capital. Etnográfica, Lisboa, v. 14, p. 311-335, 2010.
  • 55 BIONDI, Karina. Junto e misturado: uma etnografia do PCC, op. cit.; ________.; MARQUES, Adalton. Memória e historicidade em dois "comandos" prisionais. Lua Nova, São Paulo, v. 79, p. 39-70, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452010000100004&lng=pt&nrm=iso Acesso em: abr. 2013. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64452010000100004
  • 57 SALLA, Fernando. Os impasses da democracia brasileira: o balanço de uma década de políticas para as prisões no Brasil. Lusotopie, Bordeaux, p. 419-435, 2003.
  • 60 ADORNO, Sérgio; SALLA, Fernando. Criminalidade organizada nas prisões e os ataques do PCC. Estudos Avançados - Dossiê Crime Organizado, n. 61. São Paulo, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142007000300002&lng=pt&nrm=iso Acesso em: abr. 2013. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142007000300002
  • 63 WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 2002;
  • BOURGOIS, Philippe. En Quête de respect: le crack à Nova Iorque. Paris: Seuil, 2001;
  • _______. Pensando la pobreza en el gueto: resistencia y autodestrucción en el apartheid norteamericano. Etnografias Contemporâneas, a. 2, n. 2, 2006;
  • JENSEN, Steffen. Gangs, Politics and Dignity in Cape Town Chicago: University of Chicago, 2008;
  • FRÚGOLI JR., H.; SPAGGIARI, E. Da cracolândia aos nóias: percursos etnográficos no bairro da Luz. Ponto.Urbe (USP), a. 4, p. 1-23, 2010;
  • RUI, Taniele. Corpos abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio de crack. Tese (Doutorado em Antropologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2012;
  • ALMEIDA, Ronaldo; D'ANDREA, Tiaraju; DE LUCCA, Daniel. Situações periféricas: etnografia comparada de pobrezas urbanas. Novos Estudos Cebrap, n. 82, São Paulo: nov. 2008.
  • 64 TELLES, Vera da Silva, Pobreza e cidadania São Paulo: Editora 34, 2001.
  • 65 DAGNINO et all. Cultura democrática e cidadania. Opinião Pública, Campinas: 1995,
  • 66 VIANNA, Adriana R. B. Direitos, moralidades e desigualdades: considerações a partir de processos de guarda de crianças. In: Lima, Roberto Kant (Org.). Antropologia e Direitos Humanos Niterói: EdUFF, 2005, p. 13-68. 2005;
  • WERNECK, Alexandre. A desculpa Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013;
  • MARQUES, Ana Claudia. Intrigas e questões: vingança de família e tramas sociais no sertão de Pernambuco. 1. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, v. 1, 2002.
  • 67 AQUINO, J. P. Príncipes e castelos de areia: um estudo da performance em grandes roubos. São Paulo: Biblioteca 24x7, 2010.
  • 70 ABRAMS Philip. Notes on the Difficulty of Studying the State. In: SHARMA, Aradhana; GUPTA, Akhil (Orgs.). The Anthropology of the State: a Reader. Oxford: Blackwell, 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Fev 2014
  • Data do Fascículo
    Jun 2013

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2013
  • Aceito
    29 Abr 2013
Instituto de Estudos Brasileiros Espaço Brasiliana, Av. Prof. Luciano Gualberto, 78 - Cidade Universitária, 05508-010 São Paulo/SP Brasil, Tel. (55 11) 3091-1149 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaieb@usp.br