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A concisão modernista da Seresta nº 9 (Abril) de Villa-Lobos

Modernist Concision in the Villa-Lobos's Seresta nº 9 (Abril)

Resumos

Este artigo pretende analisar elementos da Seresta nº 9(Abril) composta por Villa-Lobos a partir de poema homônimo de Ribeiro Couto, propondo sua contextualização dentro do movimento modernista dos anos 1920 e discutindo sua influência na canção popular brasileira, especialmente em Antonio Carlos Jobim, cuja canção Chovendo na roseira cita uma frase poético-musical de Abril.

Modernismo; canção; música brasileira


This article aims to analyze the Seresta nº 9(Abril) composed by Villa-Lobos upon a poem written by Ribeiro Couto. The context of the Brazilian modernism from the 1920s surrounds this song, which influenced not only the Brazilian concert music but also the popular music, especially by Antonio Carlos Jobim, whose song Double Rainbow(Chovendo na roseira) quotes a phrase extracted from Abril.

Modernism; song; Brazilian music


Villa-Lobos, a nação e a canção

Heitor Villa-Lobos (1887-1959) está consagrado como o compositor erudito brasileiro mais representativo da história, a tal ponto que sua influência chega a ser importante também sobre a música popular. Ele conviveu com os chorões e seresteiros nas ruas do Rio de Janeiro na virada do século vinte, viajou para algumas regiões do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil, onde teve contato com cantadores, violeiros e outras manifestações culturais. Isso foi muitas vezes representado em sua música, gerando um modelo de estilização das figuras musicais de origem popular2 2 O relacionamento de Villa-Lobos com músicos populares é observável pelas dedicatórias de algumas obras, como o Choros nº 1 (1920) a Ernesto Nazareth e a Fuga das Bachianas Brasileiras nº 1 (1930) a Sátiro Bilhar; além disso, relatos como o de GONÇALVES PINTO, Alexandre (em O Choro, Rio de Janeiro: Funarte, 1936, pp. 191-2), mostram como o compositor era considerado "um exímio chorão", além de "dedicado amigo" do cantor e poeta Catullo da Paixão Cearense. Os biógrafos MARIZ, Vasco (Villa-Lobos, compositor brasileiro, Belo Horizonte: Itatiaia, 1989) e GUÉRIOS, Paulo (Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação. Rio de Janeiro: FGV, 2003) dedicam capítulos inteiros para tratar da interação de Villa-Lobos com os músicos populares. .

Além disso, como um dos responsáveis pelo projeto de educação musical de Getúlio Vargas, derivado do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), Villa-Lobos interviu de forma direta na orientação e estabelecimento de valores musicais que correspondessem às reformas "orientadas no sentido da produção" de uma "educação nova" que "não pode deixar de ser uma reação categórica, intencional e sistemática contra a velha estrutura do serviço educacional, artificial e verbalista, montada para uma concepção vencida".3 3 Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, Disponível em: http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb07a.htm. Acesso em: 5 março 2014. Dentre seus signatários estão: Fernando Azevedo, Afrânio Peixoto, Anísio Teixeira, Roquette Pinto, Noemy Silveira, Cecília Meirelles e Júlio de Mesquita Filho. Ver também: AZEVEDO, Fernando [et al.], Manifesto dos pioneiros da educação nova(1932) e dos educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. Mesmo não sendo aplicado na íntegra, o manifesto representa ideias que influenciaram as políticas implementadas para o recém-criado Ministério da Educação e Saúde (novembro de 1930) nas gestões de Francisco Campos (1930-1932) e Gustavo Capanema (1934-1945)4 4 Ver FAUSTO, Boris. História do Brasil, São Paulo: Edusp, 2008, p. 336-340. Anísio Teixeira, então secretário da Educação do Rio de Janeiro, convidou Villa-Lobos para "chefiar o Serviço de Música e Canto Orfeônico da capital da República" em fevereiro de 1932 (GUÉRIOS, Paulo. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação, p. 178). Em setembro de 1933, por decreto, Villa-Lobos passou a chefiar a Superintendência de Educação Musica e Artística (Sema) subordinada ao Departamento de Educação do Distrito Federal (ibidem, p. 185). .

Bem antes de seu envolvimento com Vargas, Villa-Lobos estava envolvido com uma agenda "modernista" que, se não era necessariamente de caráter político, ao menos buscava alternativas para as concepções musicais desgastadas e desvinculadas das tradições populares, bem como propunha algum tipo de renovação de ordem técnica e estética, inspirada na música moderna europeia, sobretudo em Claude Debussy. Dentro desse movimento estético que se organizava entre a classe artística brasileira, Villa-Lobos foi o único compositor convidado a participar da Semana de Arte Moderna realizada no Teatro Municipal de São Paulo em 1922. No ano seguinte fez sua primeira viagem a Paris, onde pôde apresentar suas obras, avaliar a acolhida dada a elas e traçar estratégias para novos projetos.

Villa-Lobos compôs entre 1923 e 1926 uma série de obras ousadas, onde os elementos nacionais passaram a assumir o plano de frente, juntamente com soluções composicionais peculiares, às vezes semelhantes a estratégias encontradas em obras importantes de Debussy, Stravinsky e outros compositores daquele período. Datam dessa época alguns dos Choros, obras camerísticas importantes como o Triopara oboé, clarineta e fagote, o Noneto, a Suíte para canto e violino, bem como expressivas composições para piano, como a suíte A Prole do Bebê nº 2, Rudepoema e as Cirandas, entre outras. Ele escreveu, em 1926, uma série de canções para voz com acompanhamento de piano com o título de Serestas. Essas canções foram definidas como:

Nova forma de composição que, embora em estilo elevado, lembra as tradicionais serenatas, as toadas dos músicos emboladores ambulantes e várias cantigas e pregões dos carreiros, boiadeiros, marceneiros, pedreiros, etc., oriundos desde os mais afastados sertões até a Capital Federal.5

A nota explicativa faz supor um estilo musical fortemente inspirado nas tradições culturais brasileiras, porém quero enfatizar a expressão "nova forma de composição", de onde se pode procurar pelos vínculos com o estilo moderno que ganhou força nas artes brasileiras, sobretudo depois da Semana de Arte Moderna de 1922. Com efeito, as 14 Serestas, das quais as doze primeiras são de 1926, sendo as duas demais acrescidas em 1943,6 6 A Editora Arthur Napoleão detém os direitos das Serestas de nº 1 a 12; a série completa, com os nos 13 e 14 foi publicada na França pela Editora Max Eschig. mesclam em proporções equilibradas elementos das tradições nacionais e certas tendências "modernistas".

Parece haver relação entre o caráter dos poemas e de seus autores com o estilo que Villa-Lobos adotou em cada canção. As canções nos 1 e 12 (Pobre cega e Realejo), sobre poemas de Álvaro Moreyra, são sóbrias, introspectivas, sofisticadas; nos 2 e 5 (O anjo da guarda e Modinha) com texto de Manuel Bandeira (Modinha foi escrita sob o pseudônimo "Manduca Piá") estão dentro de um espírito seresteiro, um "anjo moreno, violento e bom, brasileiro" como Bandeira descreve seu anjo da guarda; Saudades da minha vida (nº 4) e Redondilha (nº 11), sobre poemas de Dante Milano, refletem a agonia do texto em atmosfera estilizada e carregada; Canção da folha morta(Olegário Mariano, nº 3) e Na paz do outono (Ronald de Carvalho, nº 6) se aproximam do estilo popular urbano, lembrando o maxixe tradicional ou mesmo (antecipando) um samba de Caymmi; Cantiga do viúvo (Carlos Drummond de Andrade, nº 7) e Desejo (Guilherme de Almeida, nº 10), antecipam o caráter contrapontístico e o corte neoclássico das Bachianas Brasileiras (série que Villa-Lobos iniciou nos anos 1930); os poemas de Ribeiro Couto (Canção do carreiro nº 8 e Abril nº 9), um dos pioneiros da poesia modernista brasileira, foram tratados no limite entre o despojamento "moderno" e a estilização de elementos de música nacional.

Em Abril vemos uma realização modernista que do ponto de vista do tratamento harmônico e melódico é latente para o desenvolvimento das possibilidades da canção brasileira com texto em português. Certas características de estilo associadas à interação entre música e poesia antecipam em mais de trinta anos certas características e valores estéticos posteriormente assimilados pela canção popular brasileira. Todo o ciclo das Serestas contradiz a impressão geral que diz que o nacionalismo de Villa-Lobos é expresso por exageros, buscando grandiosidade:

[...] Villa-Lobos encarna uma expectativa, uma latência: sua música põe em vigor imagens concretas, palpáveis, realizadas, da ideologia de um país imaginado como um abrir de comportas, a avassaladora imagem dos reservatórios rompendo-se prodigiosamente, liberando ritmos, ruídos, intensidades, atritos e pacificações grandiosas: representações de uma natureza muitas vezes projetada segundo o desejo de um imenso Brasil selvagem e floral.7

Se essa caracterização é muitas vezes adequada para definir obras villalobianas, especialmente as sinfônicas, quando nos deparamos com o estilo aforístico do compositor temos de repensar e ampliar a definição de seu projeto estético. Abrilsintetiza primorosamente aspectos da poética villalobiana que configuram não só o elogio à paisagem idealizada como também o desejo de modernização, que não é obtido a golpes de machado nem provoca cataclismos "abrindo comportas"; sua estilização se caracteriza por seleção criteriosa de elementos, pelo gotejamento de sonoridades, os quais se integram à vastidão da paisagem acolhedora. Isso já parte da escolha do poema, escrito por Ribeiro Couto:

Depois da chuvarada súbita Que inundou os campos e morros O céu azula, fogem nuvens...

Vem das verdes matas molhadas Uma frescura acariciante A frescura das bocas úmidas

E, docemente, sobre a vila A tarde cai, em tons de rosa Como anúncio de bom tempo.8

O tom coloquial do poema, evitando qualquer afetação parnasiana ou penumbrismo simbolista, descreve uma cena absolutamente despretensiosa, cotidiana nos trópicos. A natureza é expressa no entorno do poema: "campos e morros", "verdes matas", situando a "chuvarada" em seu contexto tropical. A breve alusão à "vila" reforça a ambientação do poema na série O chalé na montanha (1922-1923), a qual faz alusão direta a Campos do Jordão: começando com o poema Primavera de Campos do Jordão e mencionando certos pontos bem conhecidos da cidade: Geada no Capivari, ou O noturno da Vila Abernéssia 9 9 Natural de Santos, SP, Ribeiro Couto (1898-1963) participou da Semana de Arte Moderna em 1922 e até 1925 viveu em cidades como Campos de Jordão, São Bento do Sapucaí e São José do Barreiro, aparentemente por questões de saúde, já que todas são estâncias climáticas situadas no estado de São Paulo. Conferir seu perfil biográfico no sítio da Academia Brasileira de Letras. Disponível em: http://www.machadodeassis.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=242&sid=263. Acesso em: 6 mar 2014. .

Villa-Lobos e Ribeiro Couto

A escolha desse poema por Villa-Lobos parece tirar partido de suas alusões à natureza, que se enquadram na idealização nacionalista: "chuvarada", representando abundância e força dos elementos; "frescura acariciante", sugerindo prazer e bem estar; "frescura das bocas úmidas", ampliando a noção sensorial de prazer com a alusão à sensualidade; e os "tons de rosa" que anunciam "bom tempo". Todavia, a sobriedade e economia de meios instiga a realização da canção com recursos igualmente parcimoniosos.

O piano concentra sua ação basicamente em dois gestos, o da introdução, que representa a "chuvarada" - que apesar da amplitude - partindo da turbulência do registro grave à calmaria das notas mais agudas - e dramaticidade, limita-se a nove compassos; depois se dedica ao gestual de acompanhamento, que sugere a diminuição (progressiva) da intensidade da chuva, representada pela redução da intensidade e sentido descendente da tessitura. As descidas de registro são sinalizadas nos compassos 20 e 29 por figurações descendentes no teclado, as quais remetem à introdução e podem, poeticamente, aludir a eventuais oscilações da "chuva".

Duas figurações rítmicas tocadas pelo piano caracterizam esses dois gestos, sendo as demais variantes de suas possibilidades. A introdução, que caracteriza a "chuvarada" (Figura 1), é marcada pelos trêmulos em sentido contrário: descendente na pauta superior, ascendente na inferior. Até o compasso 7 essa ação se passa na região grave do instrumento, como se sugerisse a turbulência e fúria dos elementos: ventos, trovoadas, corredeiras; depois, a partir desse ponto, essa ação se torna mais lenta e volta-se para a região aguda, indicando que "a chuva passou". Mesmo o leitor não familiarizado com a notação musical pode perceber e reconhecer a direcionalidade e convulsão dos sinais gráficos, as indicações sfffz (sforzato, expressão italiana que indica acentuação dinâmica exagerada), como índices dessa agitação atmosférica. Nos últimos dois compassos (os espaços gráficos demarcados por linhas verticais, as barras de compasso) da figura, os signos ficam mais esparsos, indicando o abrandamento de toda aquela energia furiosa inicial.

Figura 1.
Introdução de Abril, compassos 1-8.

A outra figuração é apresentada após fermata no compasso 9, tão logo a energia inicial se arrefece. Trata-se de um padrão melódico--harmônico repetitivo no registro agudo do teclado, o qual inicialmente complementa a violência da imagem anterior, soando como se fossem gotículas de chuva após a tempestade; porém, quando o ouvido se ajusta à nova textura musical, percebe-se que além da sugestão feita pelo timbre há também outra referência embutida nessa figura, que reproduz um padrão derivado do samba ou do maxixe (Figura 2). Essa é a deixa para a entrada da voz ("Depois da chuvarada..."), no final do compasso 11.

Figura 2.
Melodia e acompanhamento em Abril, c. 10-16.

Villa-Lobos usou um padrão rítmico bem semelhante em obras de caráter grandioso e primitivista como o Noneto (1923) ou o Choros nº 10 (1926), onde a orquestração suntuosa, reforçada por instrumentos de percussão, evoca um desfile de um bloco carnavalesco; porém em Abril a mesma figuração assume um caráter muito mais intimista, caracterizado pela baixa densidade do acompanhamento (relacionada à quantidade de notas), ao registro e intensidade dinâmica do piano, e ao estatismo da harmonia, que não oferece uma progressão tradicional de acordes, mas uma sucessão de patamares de registros que descendem ao longo do texto cantado. Na Seresta nº 8 - a Canção do carreiro (Figura 3), também sobre poema de Ribeiro Couto - uma figuração rítmica muito semelhante assume o caráter de marcha triunfante, de modo semelhante à seção central do Choros nº 5 para piano, o famoso Alma brasileira (1925).

Figura 3.
Introdução da Canção do carreiro (Seresta nº 8).

A distinção de tratamento entre as duas serestas é sutil em termos técnico-composicionais, mas bastante evidente quanto ao resultado sonoro. Na Canção do carreiro, as imagens fortes do poema de Ribeiro Couto são enfatizadas pela figuração de marcha, que assume o papel de ostinato sobre um único acorde, provocando a sensação de frenesi, quase como em um transe místico onde o piano evoca o som de tambores de terreiro10 10 Não é à toa que o subtítulo dado por Villa-Lobos à Seresta nº 8 é "Sobre temas selvagens dos boiadeiros e carreiros, entre os índios e mamelucos do Brasil". ; já em Abril, o piano evoca ao menos dois elementos: um é concreto, expresso claramente no texto, a chuva, o gotejamento, o outro é mais indiretamente relacionado ao(s) sentido(s) proposto(s) pelo poema: a ideia de "queda", inicialmente da chuva, depois da tarde, "em tons de rosa". Pode-se dizer que os acordes repetidos do piano também assumem um caráter percussivo, porém mais com a suavidade de uma marimba. Embora praticamente estática, a harmonia se estabiliza em patamares que são direcionados do agudo para o grave.

Abril é estruturada em três camadas: uma delas, obviamente, é a melodia entoada pela voz. Seu enunciado melódico faz uso frequente de notas repetidas, como um recitativo de ópera, quase como se a cantora "declamasse" o texto. Percebe-se que Villa-Lobos procurou imprimir a maior naturalidade possível a essa melodia, sem sobrecarregar o poema, tão naturalmente desprovido de ornamentos. O primeiro desses patamares melódicos está na primeira intervenção da voz, sobre a nota Fá#, nos compassos 11 e 12; o patamar seguinte está entre os compassos 22 e 25, sobre a nota Si; o terceiro entre os compassos 28 e 31, em Mi (Figura 4). O patamar em Mi ainda é repetido próximo do fim, em "como um anúncio de bom tempo" (c. 41), sugerindo um estado de estabilidade.

Figura 4.
"patamares" formados por notas repetidas na linha vocal de Abril.

As demais camadas que estruturam Abril são confiadas ao piano. Uma delas já foi comentada acima, trata-se da estrutura rítmica repetitiva, marcha e gotejamento a um só tempo; outra camada é a descida harmônica, correspondente ao esmorecimento da "chuva" do poema. Assim como a melodia se apoia em notas repetidas, há também três acordes que dão sentido harmônico à melodia (Figura 5). Esses acordes se definem a partir do "segundo patamar harmônico": Lá maior, Ré maior e Sol maior, todos com sétima maior (ver compassos 21 e 30)11 11 Uma característica importante do estilo villalobiano é sua predileção por estruturas simétricas; os acordes maiores com sétima maior, por exemplo, apresentam superposição de terças maiores, as quais resultam em simetria intervalar estabelecendo um eixo que divide igualmente o universo das doze notas da escala cromática, uma propriedade que, de acordo com certas constânciase funcionalidade harmônicas presentes em sua música, é análoga ao conceito de consonância da harmonia tradicional. Para maiores detalhes sobre como interpreto a técnica composicional de Villa-Lobos sugiro: SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: processos composicionais. Campinas: Editora Unicamp, 2009. . O segundo e o terceiro patamares são anunciados por gestos descendentes (escalas), que remetem à introdução (compassos 20 e 29).

Figura 5.
Patamares harmônicos de Abril.

Os patamares melódico e harmônico são praticamente coincidentes entre si e também com as três estrofes do poema. Assim como a melodia se baseia em três enunciados com notas repetidas, os patamares harmônicos são demarcados por notas com valores mais longos (notas brancas, na notação musical tradicional): Si, Mi e Lá. Essa sequência de quintas descendentes é análoga às "quedas" contidas no poema: a chuvarada súbita, as gotas, a própria tarde que cai.

Diante de tantas sutilezas, é surpreendente como o "samba" (ou "maxixe") que soa como acompanhamento para a voz se encaixe com tamanha naturalidade em um projeto composicional tão despojadamente moderno. Longe de expressar uma euforia nacionalista, a "batucada" tocada pelo piano atua como um comentário expressivo das sugestões imagéticas do poema, cuja entoação é realizada de forma quase impessoal. O acompanhamento é tão orgânico quanto as figurações encontradas nos lieder de Schubert, onde o piano cria uma atmosfera que complementa o sentido expressivo e psicológico do texto cantado.

Tom Jobim e Villa-Lobos

É significativo que na obra de Tom Jobim a influência de Villa-Lobos apareça na conformação de um estilo moderno de música popular que se alinhava com as expectativas de modernização do país nos anos 1950. Sua irmã, Helena Jobim lembra uma entrevista em que ele afirmou:

O Villa-Lobos, eu queria falar do Villa-Lobos. Acho que foi um gênio. Estive na sua casa três vezes, naquele edifício onde ficava o "Vermelhinho", um bar muito conhecido, em frente ao prédio da ABI. Conheço bem a obra do Villa-Lobos e fui lá num aniversário, levado pelo Léo Peracchi. Lá estava dona Arminda, fazendo todo mundo ficar à distância regulamentar. Não podia pisar a linha demarcatória que ela, a segunda mulher de Villa-Lobos, havia estabelecido. O Léo Peracchi orquestrava muita coisa para o maestro que, então com 70 anos, não tinha mais resistência nem tempo para realizar. No apartamento pequeno, encontrei uma pequena orquestra tocando uma sinfonia do compositor, uma soprano berrando a plenos pulmões. Num canto da sala, pessoas conversavam e um rádio tocava alto. O grande maestro, sentado ao piano, escrevia uma partitura. Cheguei perto do Villa-Lobos, envolvido na fumaça do seu charuto, e perguntei se tudo aquilo não o incomodava: "Meu filho", respondeu ele, "o ouvido de fora nada tem a haver com o ouvido de dentro". Fiquei com a frase na cabeça durante muito tempo.12

Em outro momento, Jobim admitiu que "Villa-Lobos e Debussy são influências profundas na minha cabeça".13 13 CHEDIAK, Almir. Songbook Tom Jobim, v. 2. Rio de Janeiro: Lumiar, 1990, p. 14. Nesse sentido, pode-se compreender como a obra de Villa-Lobos é referencial tanto para a música erudita como para a canção popular brasileira, dada a importância de Jobim nesse cenário a partir dos anos 1960.

O exame de rascunhos manuscritos do próprio Tom Jobim faz supor que a citação da canção villalobiana tenha sido de fato o mote para a composição de Chovendo na roseira. Um dos rascunhos disponíveis, infelizmente não datado, sugere um estágio embrionário da composição, intitulada como Chove na rosa. As duas páginas disponíveis apresentam a versão inicial, onde se percebe o que foi apagado e reescrito no compasso seguinte (Figura 6a) e outra, com esse acréscimo incorporado ("botei + um compasso"), indicando o adiamento da imitação da melodia principal e a afirmação do compositor: "esta é a boa!", celebrando o achado de uma boa solução. A segunda versão já apresenta o título definitivo, embora abreviado: Ch. na roseira (Figura 6b). Os dois esboços partem da citação (não mencionada) de Abril.

Figura 6a.
Manuscrito de Tom Jobim, esboço de Chovendo na roseira, sem data. Figura 6b. manuscrito de Tom Jobim, esboço de Chovendo na roseira, com acréscimos em relação à versão anterior14.

Figura 7.
Chovendo na roseira, de Tom Jobim, citação de Abril de Villa-Lobos/Ribeiro Couto.

A naturalidade dos enunciados melódicos encontrados em Abril provavelmente foi o que despertou a atenção de Antonio Carlos Jobim, levando-o a citar quase literalmente essa canção, onde além da "frescura das gotas úmidas" - uma sutil alteração no texto, percebe-se na versão final da canção o plano direcional da arquitetura melódica movendo-se de modo semelhante ao empregado por Villa-Lobos em Abril. As notas de apoio (mais longas) da melodia seguem a sequência intervalar de quartas descendentes, Láb, Mib e Sib:

Tais caracteres se adequam justamente a algumas propostas estéticas valorizadas naquela época, como a oposição "aos estertores sentimentais do bolero e aos campeonatos de agudos vocais" conforme Augusto de Campos descreve em um capítulo de Balanço da bossa 15 15 CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa [1966] 1993, p. 53. Walter Garcia comenta que "a modernidade da bossa nova foi vinculada à substituição de importações, à multiplicação de oportunidades de investimento para o empresariado e de emprego para a classe média [...], ao crescimento urbano, ao consumo de grandes marcas estadunidenses ou europeias [...] (Walter Garcia, "Cordialidade, melancolia, modernidade", in: GARCIA, W. (org.). João Gilberto. São Paulo: Cosac Naify, p. 216.). Assim, o momento vivido por Tom Jobim corresponderia a uma segunda onda de modernização no Brasil, como aquela vivida por Villa-Lobos entre a Semana de 22 e o despontar da era Vargas. . De maneira análoga aos modernistas dos anos 1920, que se opuseram ao estilo operístico romântico-italianizado de Carlos Gomes, a canção popular moderna a partir dos anos 1950, no Brasil, também buscava uma "atualização" que passava talvez inicialmente pelo modo de cantar, mas que em Tom Jobim era uma preocupação de escritura musical, baseada em seus estudos da música moderna do início do século XX, associadas à tradição popular brasileira que ele conheceu e praticou como arranjador e pianista, antes mesmo de se firmar como compositor. Chovendo na roseira é portanto resultado do processo de amadurecimento desse programa estético, e da assimilação dessas influências, obra de um compositor popular amadurecido e já experiente, no início da década de 1970. É curiosa a referência a Villa-Lobos, passadas então quase duas décadas de sua morte.

Considerações finais

Composta em meados dos anos 1920, Abril é uma excelente representação poético-musical do projeto estético do modernismo brasileiro, conjugando elementos autóctones com informações recentes do "estado da arte" nos grandes centros. Mario de Andrade, antes de cortar relações com Villa-Lobos por causa da revolução de 1930, afirmou em seu Ensaio sobre a música brasileira:

[...] Se o compositor brasileiro pode empregar a síncopa, constância nossa, pode principalmente empregar movimentos melódicos sincopados, porém desprovidos de acento, respeitosos da prosódia, ou musicalmente fantasistas, livres de remelexo maxixeiro, movimentos enfim inteiramente pra fora do compasso ou do ritmo em que a peça vai. Efeitos que além de requintados podem, que nem no populário, se tornar maravilhosamente expressivos e bonitos. Mas isso depende do que o compositor tiver pra nos contar... [...] O que carece pois é que o músico artista assunte bem a realidade da execução popular e a desenvolva. Mais uma feita lembro Villa-Lobos. É principalmente na obra dele que a gente encontra já uma variedade maior de sincopado. E sobretudo o desenvolvimento da manifestação popular [...].16

Se pensarmos na forma como Villa-Lobos inseriu a rítmica do samba/maxixe em Abril, mimetizada na representação sonora da chuva, reforçando o sentido do poema, temos um exemplo concreto de uma dessas possíveis idealizações de desenvolvimento das possibilidades do emprego de materiais oriundos da música popular. Mais adiante, Andrade demonstra já ter conhecimento das Serestas quando escreveu seu Ensaio, de 1928:

A melódica das nossas modinhas principalmente, é torturadíssima e isso é uma constância. Na cantiga praceana o brasileiro gosta dos saltos melódicos de sétima, de oitava [...] e até de nona [...]. Na segunda parte deste livro é fácil de assuntar isso, e Villa-Lobos na Modinha (Seresta nº 5, ed. C. Arthur Napoleão) mostra também um exemplo cheio de espírito.17

Como já foi observado acima, Villa-Lobos deu a cada poema um estilo peculiar de canção. A Modinha torturada de "Manduca Piá", pertence a outro universo poético do de Abril, que é dominado pelo coloquialismo, pela apreciação da beleza natural das coisas. Se em Modinha as "constâncias" são exploradas e postas em evidência em relação ao caráter do poema, em Abril, Villa-Lobos precisou pensar como recolocar essas mesmas constâncias em outro plano discursivo-musical. Podemos assim considerara Seresta nº 9 como um exemplar típico da moderna canção brasileira, cujos frutos se manifestaram tanto no terreno da canção de câmara erudita como na moderna canção popular, que Tom Jobim ajudou a definir em canções lapidares como Chovendo na roseira.

  • 2
    O relacionamento de Villa-Lobos com músicos populares é observável pelas dedicatórias de algumas obras, como o Choros nº 1 (1920) a Ernesto Nazareth e a Fuga das Bachianas Brasileiras nº 1 (1930) a Sátiro Bilhar; além disso, relatos como o de GONÇALVES PINTO, Alexandre (em O Choro, Rio de Janeiro: Funarte, 1936, pp. 191-2), mostram como o compositor era considerado "um exímio chorão", além de "dedicado amigo" do cantor e poeta Catullo da Paixão Cearense. Os biógrafos MARIZ, Vasco (Villa-Lobos, compositor brasileiro, Belo Horizonte: Itatiaia, 1989) e GUÉRIOS, Paulo (Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação. Rio de Janeiro: FGV, 2003) dedicam capítulos inteiros para tratar da interação de Villa-Lobos com os músicos populares.
  • 3
    Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, Disponível em: http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb07a.htm. Acesso em: 5 março 2014. Dentre seus signatários estão: Fernando Azevedo, Afrânio Peixoto, Anísio Teixeira, Roquette Pinto, Noemy Silveira, Cecília Meirelles e Júlio de Mesquita Filho. Ver também: AZEVEDO, Fernando [et al.], Manifesto dos pioneiros da educação nova(1932) e dos educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.
  • 4
    Ver FAUSTO, Boris. História do Brasil, São Paulo: Edusp, 2008, p. 336-340. Anísio Teixeira, então secretário da Educação do Rio de Janeiro, convidou Villa-Lobos para "chefiar o Serviço de Música e Canto Orfeônico da capital da República" em fevereiro de 1932 (GUÉRIOS, Paulo. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação, p. 178). Em setembro de 1933, por decreto, Villa-Lobos passou a chefiar a Superintendência de Educação Musica e Artística (Sema) subordinada ao Departamento de Educação do Distrito Federal (ibidem, p. 185).
  • 5
    Villa-Lobos, sua obra, Museu Villa-Lobos, 1972, p. 236. A autoria dos textos dessa edição de Villa-Lobos sua obra é incerta, alguns podem ser atribuídos ao próprio compositor, outros a seus colaboradores. A terceira edição, publicada em 2009 pelo Museu Villa-Lobos, retirou as notas explicativas das obras (bem como a numeração de páginas), mantendo apenas informações sobre data e local de composição e estreia, além de outros detalhes sobre cada obra musical específica.
  • 6
    A Editora Arthur Napoleão detém os direitos das Serestas de nº 1 a 12; a série completa, com os nos 13 e 14 foi publicada na França pela Editora Max Eschig.
  • 7
    WISNIK, José Miguel. O coro dos contrários, a música em torno da semana de 22. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 170.
  • 8
    COUTO, Ribeiro. Um homem na multidão. Rio de Janeiro: Paulo, Pongetti & Cia., 1926. Abril faz parte de O chalé na montanha (1922-1923), série de poemas ambientado em Campos do Jordão. Reeditado em: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1960, pp. 105-157. A alteração da palavra "mansamente" na versão original de Ribeiro Couto, por "docemente", pode ser atribuída a Dora Vasconcellos, segundo Villa-Lobos, sua obra, 2009.
  • 9
    Natural de Santos, SP, Ribeiro Couto (1898-1963) participou da Semana de Arte Moderna em 1922 e até 1925 viveu em cidades como Campos de Jordão, São Bento do Sapucaí e São José do Barreiro, aparentemente por questões de saúde, já que todas são estâncias climáticas situadas no estado de São Paulo. Conferir seu perfil biográfico no sítio da Academia Brasileira de Letras. Disponível em: http://www.machadodeassis.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=242&sid=263. Acesso em: 6 mar 2014.
  • 10
    Não é à toa que o subtítulo dado por Villa-Lobos à Seresta nº 8 é "Sobre temas selvagens dos boiadeiros e carreiros, entre os índios e mamelucos do Brasil".
  • 11
    Uma característica importante do estilo villalobiano é sua predileção por estruturas simétricas; os acordes maiores com sétima maior, por exemplo, apresentam superposição de terças maiores, as quais resultam em simetria intervalar estabelecendo um eixo que divide igualmente o universo das doze notas da escala cromática, uma propriedade que, de acordo com certas constânciase funcionalidade harmônicas presentes em sua música, é análoga ao conceito de consonância da harmonia tradicional. Para maiores detalhes sobre como interpreto a técnica composicional de Villa-Lobos sugiro: SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: processos composicionais. Campinas: Editora Unicamp, 2009.
  • 12
    JOBIM, Helena. Antonio Carlos Jobim, um homem iluminado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 209-210.
  • 13
    CHEDIAK, Almir. Songbook Tom Jobim, v. 2. Rio de Janeiro: Lumiar, 1990, p. 14.
  • 14
    Os manuscritos de Antonio Carlos Jobim foram obtidos no sítio do Instituto Antonio Carlos Jobim. Disponível em: http://www.jobim.org/jobim/handle/2010/26/browse?order=DESC&rpp=20&sort_by=5&etal=-1&offset=140&type=hitcount. Acesso em: mar 2014. Entre os rascunhos disponíveis da canção Chovendo na roseira, a datação mais antiga é de 1970, assim como a primeira gravação, no LP Stone Flower, com o título "Children's Games".
  • 15
    CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa [1966] 1993, p. 53. Walter Garcia comenta que "a modernidade da bossa nova foi vinculada à substituição de importações, à multiplicação de oportunidades de investimento para o empresariado e de emprego para a classe média [...], ao crescimento urbano, ao consumo de grandes marcas estadunidenses ou europeias [...] (Walter Garcia, "Cordialidade, melancolia, modernidade", in: GARCIA, W. (org.). João Gilberto. São Paulo: Cosac Naify, p. 216.). Assim, o momento vivido por Tom Jobim corresponderia a uma segunda onda de modernização no Brasil, como aquela vivida por Villa-Lobos entre a Semana de 22 e o despontar da era Vargas.
  • 16
    ANDRADE, Mario de. Ensaio sobre a música brasileira [1928], 4ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006, p. 29-30.
  • 17
    Ibidem, p. 36.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2014
  • Aceito
    19 Jun 2014
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