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Editorial

Este número da Revista do IEB vem a público como o primeiro editado pela nova Comissão Editorial, à frente do periódico a partir do segundo semestre de 2015. Na história de nossa Revista, todas as comissões assumiram e cumpriram a missão de manter o rigor e a qualidade que a notabilizaram em sua longa trajetória. Sabemos que são árduos os desafios para nos mantermos nos trilhos de sempre e nos novos que surgem, resultantes de novas políticas e práticas da produção e da divulgação científica, as quais afetam diretamente a administração das revistas universitárias.

Os critérios para que as revistas acadêmicas recebam conceitos avaliativos elevados obrigam a uma gestão administrativa e editorial profissional. Exigem que os periódicos se relacionem ativa e efetivamente com a comunidade científica apresentando-se como um espaço importante de extroversão de pesquisas, de ideias, de discussões; como veículo de difusão do saber que não falhe em sua periodicidade, quantidade ideal e proporcionalidade das colaborações etc. Nada disso é simples na atual conjuntura, com sabemos.

No caso da Revista do IEB, seu caráter multidisciplinar demanda uma gestão editorial ainda mais complexa e sofisticada. Somos avaliados por diversas áreas do saber como Antropologia/Arqueologia; Arquitetura e Urbanismo; Artes e Música; Ciência Política e Relações Internacionais; Economia; Educação; Filosofia; Letras/Linguística; História; Geografia. Por essa razão, e diferentemente das revistas especializadas (disciplinares), precisamos ter sob controle um expressivo rol de critérios específicos de diferentes campos do saber, para garantir avaliações positivas das áreas que tradicionalmente encontram guarida em nossa Revista. Isso não é fácil e nem sempre é bem compreendido. Resistimos, convictos da importância das revistas que arriscam ser espaço de uma exposição de pesquisas originárias de diversas áreas nas humanidades. E que estimulam a produção de tramas multidisciplinares, que nos parecem imprescindíveis para ampliarmos os limites do conhecimento.

Um exemplo do que a Revista do IEB propõe e executa em sua política editorial é o que estamos lançando nesse número. Contando com a honrosa colaboração das professoras Wilma de Nazaré Coelho (IFCH/UFPA) e Mônica G. T. do Amaral (FE-USP), difundimos dossiê temático de grande importância para os debates sociais e culturais do Brasil e especialmente para o campo da educação básica do país. Trata-se do Dossiê História e Culturas Afro-brasileiras que nossas colegas produziram e coordenaram com grande competência, contando com a preciosa colaboração do Prof. Walter Garcia, pertencente à Comissão Editorial anterior. A relevância da matéria agora reunida pode ser atestada, de início, pela apresentação esclarecedora que as coordenadoras elaboraram. Sublinhamos a diversidade de abordagens nos artigos de grande potencial crítico, provenientes de tantas partes do país.

Este número coloca em evidência os 70 anos da morte do polígrafo modernista Mário de Andrade (1893-1945). A capa e o corpo da Revista divulgam matéria iconográfica de seu arquivo pessoal, no patrimônio do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. As imagens testemunham os caminhos do estudioso da cultura popular, buscando, em 1937, "recensear o que resta de essencialmente negro no samba rural dos negros paulistas", como afirma em "O samba rural paulista" (Aspectos da música brasileira), texto precursor da etnomusicologia brasileira. Ao tomar essas fotos como registro da festa e da "cultura", destacamos o espaço no qual vicejam o pensamento, a política, as composições alternativas do real que, não raramente, enredam as mais diversas forças - naturais, sociais, sobrenaturais (para ainda nos referirmos a esses supostos domínios, como se fossem autônomos ou exteriores entre si). Política e festa se engendram, se implicam, se potencializam mutuamente. Assim, nosso convite é por deitar olhos na realidade emaranhada, e não purificada em cantões.

As seções fixas da Revista, "Resenha" e "Documentação", presentificam igualmente o autor de Macunaíma. Cristiane Rodrigues de Souza mergulha nos complexos meandros da criação de Café, ficção inacabada de Mário de Andrade, cuja edição, preparada com admirável acuidade por Tatiana Longo Figueiredo, veio a lume em 2015. A organizadora da obra, membro da Equipe Mário de Andrade no IEB-USP, retomando as questões de sua tese de doutorado, orientada pela professora Telê Ancona Lopez, apresenta matéria inédita vinculada à elaboração do romance, à luz de substanciosas considerações interpretativas. Assim, o leitor, em face de manuscritos tocados pela dimensão estética, pode conhecer facetas do processo criativo do autor homenageado neste número.

A inquietude intelectual de Mário de Andrade e o seu modo de ver criticamente a realidade nacional encontram-se, portanto, em boa sintonia com as oportunas discussões sócio-culturais levantadas no Dossiê História e Culturas Afro-brasileiras.

Apresentação do Dossiê História e Culturas Afro-brasileiras

Problematizar e discutir a aspectos da cultura afro-brasileira é pauta contemporânea, especialmente se a pensamos na construção de uma sociedade plural e democrática. Questão para a qual este número especial da Revista do IEB pretende contribuir, além de colaborar para o atendimento à demanda das escolas para o cumprimento da Lei no10. 639/2003, que torna obrigatória a inclusão da história da África e das culturas afro-brasileiras no currículo das escolas públicas e privadas de Educação Básica. Embora a recomendação de sua inclusão nos currículos da Educação Básica tenha sido feita há mais de uma década, até hoje enfrenta percalços de toda ordem para a sua implementação, tanto na Escola Básica, quanto no Ensino Superior. Herdeiras de uma concepção de História e de Cultura formuladas a partir da Europa e para ela orientadas, as instituições de ensino (e os seus agentes) encontram imensa dificuldade em incluir as temáticas da História e da Cultura Afro-brasileira em sua agenda.

Trata-se de problema grave se considerarmos que a inclusão das temáticas em referência constitui conquistas de movimentos sociais e consubstanciam uma inflexão importante das noções de direitos civis e de cidadania. Em uma sociedade que se pretende democrática, diversa e inclusiva, ampliar o escopo da memória histórica, incorporando outras heranças que não apenas aquela formulada em um contexto excludente, voltada para a valorização de um único segmento da população e instituidora de uma hierarquia que buscava subordinar parcelas significativas do povo brasileiro, é pauta cidadã. Para tanto, é fundamental subsidiar aqueles envolvidos com a Escola Básica e com as Licenciaturas de discussões que problematizem a temática sob diversas perspectivas.

Com esse intuito, convidamos pesquisadores, representantes do movimento negro e demais associações de cultura popular negra a expor pesquisas e ensaios que envolvessem propostas em educação, orientada por uma perspectiva multicultural voltada para a diversidade étnica e cultural de nosso país.

O dossiê que ora apresentamos se inicia, não por acaso, pelo artigo de Kabengele Munanga, referência obrigatória nos estudos sobre as temáticas relacionadas às questões do dossiê, que debate o ensino de história da África e do negro no Brasil contemporâneo. Munanga aponta a importância de uma Educação multicultural como meio de garantir que a diversidade que nos constitui como povo e nação se faça presente na formação oferecida em nossas escolas.

A seguir, o dossiê é brindado com um grupo de estudos que visitam a cultura afro-brasileira. Mariana Leal de Barros e José Francisco Miguel Henriques Bairrão analisam as configurações de gênero na Umbanda. Miguel Jost aborda a atuação dos primeiros sambistas, de forma a demonstrar o protagonismo desses agentes no espaço cultural de seu tempo. Mônica G. T. do Amaral e Valdenor S. dos Santos realizam estudo análogo, evidenciando a importância da Capoeira como fator de cultura e de transmissão de elementos da memória e da cultura afro-brasileira.

Na sequência, o dossiê se volta para a análise daquela cultura e memória em espaços institucionais, como a Escola e a Justiça. Maria Alice Rezende Gonçalves e Vinícius Oliveira Pereira consideram as formas pelas quais a Capoeira é incorporada no sistema escolar. Tânia Mara Pedroso Müller sopesa a produção acadêmica relativa ao tema, apresentando um panorama das pesquisas e trabalhos acerca das relações étnico-raciais. Eliane Silvia Costa enfrenta o tema do Racismo, a partir de aporte conceitual inovador e do estabelecimento de espaços de enfrentamento e combate ao Racismo. Wilma de Nazaré Baía Coelho e Mauro Cezar Coelho abordam o mesmo tema a partir das práticas discriminatórias de adolescentes da periferia, evidenciando o quanto elas permeiam as sociabilidades juvenis. O racismo é, também, a preocupação de Gislene Aparecida dos Santos que o analisa a partir da atuação do judiciário, evidenciando os limites e as contradições que demarcam o enfrentamento deste instituto pernicioso da cultura brasileira. Por fim, Ana Silva A. da Fonseca considera o quanto o rap, uma manifestação cultural relacionada à cultura afro-brasileira, é desprestigiada pelo sistema de ensino.

Os trabalhos aqui reunidos congregam pesquisadores de diversas regiões do país. Eles dão conta de dois aspectos que merecem destaque. De um lado, apontam uma convergência. A questão racial suscita reflexões e questionamentos, não importa para que parte do país se volte o olhar. Ela guarda um conjunto de problemas e desafios que só serão enfrentados e, em certa medida, solucionados a partir da reflexão e de pesquisas sucessivas, que indiquem caminhos, rumos, percursos orientados pela disposição de suprimir (no sentido de Aufheben) o racismo de nossas vidas. De outro lado, deparamo-nos com a diversidade inerente à singularidade dos fenômenos pesquisados. Os artigos aqui reunidos apontam, nesse sentido, como a questão étnico-racial é vivida e dimensionada de modo distinto nos diversos espaços (regionais ou institucionais), em que pese a persistência dos sinais negativos frequentemente atribuídos a negros, indígenas, pardos (mas, não só...).

O debate apresentado, é importante destacar, invariavelmente inspirado em pesquisas que ampliam, muitas vezes, o escopo usual da investigação acadêmica, tem o mérito de permitir a formação da massa crítica necessária à formulação de encaminhamentos que pautem novos paradigmas na Educação e uma nova relação cidadã.

Boa leitura!!!

Wilma de Nazaré Coelho (IFCH/UFPA)

Mônica G.T. do Amaral (FEUSP)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015
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