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O “modelo São Paulo”: uma descompactação antiurbanidade na gênese da metrópole

“São Paulo model”: an anti-urbanity decompression in the genesis of the metropolis

RESUMO

Procurando descrever o modelo de expansão da cidade de São Paulo no período compreendido entre a virada do século XIX e as primeiras décadas do século XX, o artigo interpreta esse processo tendo como referência uma dada história da urbanidade da cidade. Na interpretação destaca-se a identificação e descrição do que foi denominado como elementos urbanos dispersores (ou descompactadores) da cidade. Esses elementos participaram de um processo de produção de um vasto espaço urbano marcado pelas baixas densidades demográficas e pelo uso excessivamente homogêneo dos seus segmentos, logo podem ser designados como fatores constitutivos de uma urbanidade frouxa que caracteriza essa cidade até os dias atuais, fato esse com graves repercussões nas possibilidades de integração social que, em tese, os espaços urbanos devem fomentar.

PALAVRAS-CHAVE
Urbano; urbanidade; descompactação urbana; elementos dispersores; integração social

ABSTRACT

In aiming to describe São Paulo growth pattern in the period ranging from turning of 19th century to the first decades of twentieth century, this essay construes the process based on a given history of the city urbanity. The identification and description of what was denominated as urban dispersing (or decomposing) city elements stands out in this interpretation. These elements were components of a production process of a far-reaching urban space marked by low population densities, and an excessive homogenous use of its sectors. Thus, they can be designated as constitutive factors of a loose urbanity that defines this city until the current days, a fact that has serious repercussion son social integration possibilities that, in theory, urban areas must promote.

KEYWORDS:
Urban; urbanity; urban decompression; dispersing elements; social integration

Comecemos com uma importante percepção do filósofo Claude Lefort1 1 LEFORT, Claude. Éléments d’une critique de la bureaucratie. Genève: Librairie Droz, 1971. . Ele demanda que se reflita sobre os paradoxos de uma sociedade que não dispõe mais das representações de suas origens, de seus fins, de seus limites, e que é, ao mesmo tempo, assediada constantemente pela questão de seu desenvolvimento social, pelo seu projeto de transformação, pela conquista de seu autoengendramento. Como orientar socialmente nossas vidas sem algumas representações das referências fundantes da própria vida social? Modestamente, podemos trazer essa mesma dúvida para o caso da cidade, sobre a qual, entendemos, houve um esfumaçamento das representações sobre suas origens e suas finalidades. Afinal, se a cidade é a diminuição da distância entre os humanos e suas atividades e obras, essa condição não foi procurada para evitar os contatos e as relações que daí surgiriam, muito ao contrário. Aliás, como a história comprova facilmente, as relações e os contatos nas cidades aproximaram grupos de culturas diferentes.

Daí nossa aderência à representação de que as cidades contêm na essência uma vocação relacional, da multiplicação dos contatos entre as pessoas e de toda sua gama de produção objetal e de atividades. A realização plena dessa vocação, mesmo que haja nisso uma dimensão utópica, é o conteúdo da denominada urbanidade, algo que para início de conversa realiza-se mais razoavelmente em cidades marcadas por grande densidade demográfica e por rica diversidade social e de atividades na maior parte do seu espaço. Não pode haver característica do urbano que mereça a chancela da urbanidade se ela promove afastamentos, diminuição e seleção das relações sociais. Tomando como partida essa representação original, que evidentemente pode ser problematizada, orientaremos nossa avaliação sobre o desenvolvimento da cidade de São Paulo no período que vai do final do século XIX às primeiras quatro décadas do século XX. Período esse no qual a cidade viveu profundas modificações. Uma ideia para ser checada na conclusão da avaliação é a de que a cidade conheceu nesse período uma séria perturbação, que afinal se cristalizou, em relação a essa representação da cidade como espaço vocacionado para as relações, criando espaços e espacialidades pouco adequados para uma vida mais compartilhada socialmente.

UMA HISTÓRIA DE RUPTURA

Realidades históricas engendram culturas, culturas estas que por sua vez reagem estimulando a reprodução do presente no futuro. Mas não se trata de um beco sem saída, sem possibilidade de transcendência e de produção de um futuro realmente novo. Ocorrências históricas não têm origem apenas na história precedente e nem nas culturas dominantes. Outras escalas da vida podem trazer e produzir surpresas, além do que, culturas rebeldes costumam surgir contra os contextos. Situações dessa ordem podem ser identificadas nos processos históricos, e não é diferente na história das cidades, tampouco é diverso na história de São Paulo.

Após mais de 400 anos de história caracterizada por Roberto Pompeu de Toledo como a capital da solidão2 2 TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da solidão. Uma história de São Paulo, das origens a 1900. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, 417 p. , na virada do século XIX para o século XX a cidade de São Paulo passa a viver o começo daquilo que será uma incrível transformação. O geógrafo Pierre Monbeig3 3 MONBEIG, Pierre. Aspectos geográficos do crescimento de São Paulo. Boletim Paulista de Geografia, São Paulo, n. 16, março-abril de 1954, p. 3-29. , em artigo clássico, interpreta os processos que resultaram na radical transformação que São Paulo sofrerá no período mencionado. Ele descreve, antes, a capital da solidão, cuja evolução foi lenta, e ele vê nisso uma correspondência com a maturação progressiva das cidades europeias. Porém, ao tratar da mudança de rumos da cidade, a partir de 1870, ele dirá que o crescimento vertiginoso4 4 Não à toa, Roberto Pompeu de Toledo denomina sua continuação da história de São Paulo como A capital da vertigem. TOLEDO, Roberto Pompeu. A capital da vertigem. Uma história de São Paulo de 1900 a 1954. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015, 460 p. corresponde ao padrão de crescimento das cidades norte-americanas.

Ernani Silva Bruno5 5 BRUNO, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo. V. 3. São Paulo: Hucitec, 1984. destaca como a economia cafeeira foi fundamental no desenvolvimento econômico da província de São Paulo e será decisiva para o desenvolvimento da futura metrópole de São Paulo. Até, então, a cidade era uma modesta área comercial e composição social de classes médias e trabalhadores autônomos em ascensão. Moradores e atividades dividiam o mesmo espaço numa cidade concentrada. A maior fluidez da estrada de ferro6 6 Um dos fatores determinantes da dinamização de São Paulo foi a instalação das ferrovias na cidade. Em função da necessidade de escoamento da produção cafeeira no interior do estado de São Paulo, a capital paulista tornou-se um entroncamento ferroviário da São Paulo Railway (1867), da Estrada de Ferro Sorocabana (1875) e da Estrada de Ferro Dom Pedro II (1877), futura E. F. Central do Brasil. que escoava o café do interior trazia os fazendeiros para desfrutar periodicamente a vida urbana e fazer política (a cidade era a sede do governo), até que eles puderam se fixar, sem prejuízo dos seus negócios no interior da província. Assim percebe Pierre Monbeig,

[...] essa classe social em pleno progresso tinha novas necessidades e mentalidade nova. Já não era possível levar uma vida permanente no sítio e passar o fim de semana na cidade: foi preciso instaurar o regime contrário. Para tratar dos negócios financeiros e comerciais, para administrar as empresas em que aplicavam seus capitais, os chefes do movimento pioneiro eram obrigados a residir mais tempo na cidade, junto das repartições públicas e particulares, em contato com os organismos políticos; as demoras nos domínios rurais começavam a encurtar: a casa da cidade passava a ser a residência principal...7 7 MONBEIG, Pierre, op. cit. p. 23

Com os grandes cafeicultores na cidade, seus capitais passaram a moldar a cidade à sua feição. Mas onde esses fazendeiros foram morar? Foram se inserir na cidade existente, no seu núcleo central, com mistura de funções e pouco espaço? Não! Trataram de construir seus próprios bairros. Na parte oeste da cidade construiu-se o bairro dos Campos Elíseos, alusão parisiense apenas como símbolo de status e diferenciação, e não como modalidade de urbano, visto que os “nossos” Campos Elíseos tinham versão radicalmente distinta do original. Bairro afastado, com lotes enormes, baixa densidade demográfica e seletividade social. Tratava-se de um caso inaugural na cidade de São Paulo de autossegregação. Suas edificações, de alguma forma, abrandavam o choque da transição do rural para o urbano, afinal muitas residências eram, na verdade, chácaras, por vezes muito grandes8 8 É o caso da Chácara do Carvalho, residência do conselheiro Antonio Prado, primeiro prefeito do município de São Paulo. Segundo Roberto Pompeu de Toledo, “A Chácara do Carvalho, que o conselheiro herdou do avô, e onde morou de 1892 a 1927, ilustra o modo de vida de famílias abastadas no momento da transição do campo para a cidade. A chácara era um meio-termo. Antônio Prado mantinha na sua um haras em que apurava os puros-sangues. Até vacas criou ali. Em sua extensão máxima, a propriedade ia do caminho de Jundiaí, como era chamada a futura rua das Palmeiras, até os trilhos da ferrovia, no lugar brejoso conhecido como Barra Funda”. TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da vertigem, op. cit., p. 44. .

Instalado esse bairro de forma contígua a uma face da área de expansão da cidade, com seu “modelo urbano” ele passou a ser um impeditivo para que a cidade se expandisse com densidade e diversidade nessa direção. Essa será uma marca comum a várias outras áreas de expansão influenciadas por esses fazendeiros e os futuros industriais: baixa densidade demográfica e baixa diversidade de usos (uso homogêneo residencial, no caso).

São precisamente as condições e as características da expansão da cidade, que esse avanço para o lado oeste simboliza, que serão os alvos principais de nosso exame. Isso porque, entendemos, nessa expansão a cidade deixou para trás parte de sua urbanidade, que não apenas não foi mais recuperada, como o “modelo” encetado nesse contexto histórico permaneceu como referência para o desenvolvimento ulterior da cidade.

UMA DINÂMICA DEMOGRÁFICA ACELERADA

Na virada do século XIX São Paulo era uma pequena cidade em súbita ebulição. A riqueza da economia cafeeira passa a irrigar a cidade, e, atraídos pelo dinheiro, novos fluxos populacionais, inicialmente tímidos, mas depois decididos e volumosos, começam a aportar na cidade. A evolução numérica da população é mais enfática do que qualquer insistência em descrever o fenômeno.

Tabela 1
Evolução da população absoluta do município de São Paulo. Fonte: SÃO PAULO (Município), s/dSÃO PAULO (Município). Histórico demográfico do município de São Paulo. s/d. Disponível em: <http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico>. Acesso em: out. 2016.
http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/histori...

Tendo como marco o ano de 1872, ao abrir o século XX, a cidade viu sua população ser multiplicada por 7,5 vezes. Chegando quase à metade do século (1940) a população total já havia sido multiplicada 42 vezes. Esse destino hiperbólico de multiplicações populacionais incessantes manteve-se até os dias atuais.

O fluxo de imigrantes de outros países e de outras partes do Brasil, além do constante crescimento nesse movimento interior-capital, pressionou a ampliação e as transformações do comércio, da indústria e das feições, que eram embrionárias no final do século XIX e desabrocharam no século XX. Evidentemente que um crescimento dessa velocidade e magnitude pressionou intensamente para a produção de novos espaços. Isso é facilmente dedutível. Mas há um “modelo” de crescimento que vai se estabelecer, e ele já se deixa entrever no espalhamento da população em espaços bem mais amplos do que seria necessário. Esse fato é captado, a princípio, pela situação de rebaixamento da densidade demográfica que começa a se desenhar na época e que acompanhará a história da cidade, igualmente, até nossos dias. Uma curiosa e preciosa observação de um visitante estrangeiro dá uma ideia do perfil da densidade demográfica em 1920:

A cidade de S. Paulo vista por um pariziense

Vós todos conheceis o velho provérbio francez “la critique est facile, l’art est difficile”. Nada mais verdadeiro; e estou certo de que, para traduzir esse pensamento, todas as línguas possuem uma expressão adequada. Quando da minha chegada a São Paulo, uma coisa, entre mil outras, me impressionou particularmente: a immensa extensão da cidade - um quociente excessivo de kilometros quadrados para uma população de 550.000 habitantes. E se se considera o tempo que é preciso para ir do norte ao sul, de leste a oeste da cidade, fica-se simplesmente estupefacto - sobretudo com bondes que param a cada 40 metros. Quaes são os inconvenientes desta anormal extensão? 1º - horas preciosas perdidas para se ir do logar de residência ao escriptorio, aos negócios; 2º - enorme orçamento da cidade para fazer frente á manutenção de uma peripheria tão grande; 3º - impossibilidade, para os edis, de verificar o bom andamento de todos os bairros e mesmo de certos quarteirões bem próximos do centro; 4º - diversos outros inconvenientes em cuja enumeração eu me prohibo de entrar. O remédio para esta situação? Um só: recuperar em altura o que se perdeu em largura9 9 KESROUAN, conde Rochaid de. A cidade de S. Paulo vista por um pariziense. O Estado de S.Paulo, 2 de janeiro de 1920, p. 2. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19200102-14973-nac-0002-999-2-not>. Acesso em: out. 2016 . Foi mantida a grafia original de todos os artigos do acervo do jornal. .

Outro documento igualmente interessante foi produzido pelo, também francês, geógrafo Pierre Monbeig. Esse, na época, professor da USP (membro de missão francesa) realizou vários estudos sobre o crescimento da cidade de São Paulo e nos legou alguns mapas demográficos10 10 Pertencente ao acervo Pierre Monbeig comprado pelo Banco Sudameris da viúva do geógrafo, Julieta Monbeig, e posteriormente doado à Universidade de São Paulo, onde foi incorporado ao acervo do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB/USP, em 1990. Algumas informações sobre o acervo: No Arquivo: Sigla: BR USP/IEB PM. , como o que segue:

Figura 1
Densidade populacional - município de São Paulo (1940). Fonte: Arquivo do IEB/USP, acervo Pierre Monbeig

O mapa de Pierre Monbeig utiliza a divisão distrital (distritos de paz) de 194011 11 SÃO PAULO (Estado). Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados – Seade. Departamento de Estatística. Linhas divisórias do município de São Paulo. São Paulo, setembro de 1942. 99 p. Disponível em: <http://produtos.seade.gov.br/produtos/bibliotecadigital/view/singlepage/index.php?pubcod=10013033&parte=1>. Acesso em: 1 set. 2014. , que totalizava 40 distritos. Ele deixa de fora os distritos de Ibirapuera, Santo Amaro e Capela do Socorro, que juntos formavam o antigo município de Santo Amaro, integrados ao município de São Paulo somente em 193512 12 DUTENKEFER, Eduardo; FONSECA, Fernanda Padovesi; OLIVA, Jaime Tadeu. A maestria de Monbeig. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 64, p. 344-351, ago. 2016. . O município tinha, em 1940, 1.326.261 habitantes. O padrão de espalhamento com baixa densidade constata-se observando que, nas áreas próximas do centro e também nas mais afastadas, a densidade demográfica cai bruscamente, de 20.000 habitantes por km2, para perto de 1.000 km2, indicando um espalhamento de baixa densidade.

O espalhamento de baixa densidade demográfica da população não é comum a todas as cidades, logo não é um processo natural. É um processo que tem historicidade própria, e no caso de São Paulo essa é constituída de elementos surpreendentes, com consequências perversas para quem pensa a cidade como espaço de integração, como espaço relacional.

A CIDADE QUE PERDEU SUA URBANIDADE QUANDO SE FEZ GRANDE

Há vasta bibliografia que reflete uma miríade de pesquisas sobre a história da cidade de São Paulo. As publicações não cessam e novas pesquisas permanecem ocorrendo. Há ainda muita documentação a ser pesquisada e interpretada. Além disso, há novos instrumentos de pesquisa, como a produção, no presente, de uma cartografia histórica digital (ou cartografia digital histórica)13 13 Ver: FONSECA, Fernanda Padovesi; DUTENKEFER, Eduardo; ZOBOLI, Luciano; OLIVA, Jaime Tadeu. Cartografia digital geo-histórica: mobilidade urbana de São Paulo de 1877 a 1930. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 64, p. 131-166, ago. 2016 , que oferece visualizações inéditas de vários aspectos materiais e imateriais que compuseram os espaços (e as espacialidades) do passado da cidade e, logo, permite reinterpretações das lógicas sociais e espaciais14 14 Lógicas espaciais são sempre sociais; lógicas sociais possuem uma dimensão espacial, daí ser dispensável a expressão socioespacial. . Indo mais além ainda: um objeto de tal complexidade, tal como uma realidade urbana da dimensão da cidade de São Paulo, sempre estará aberto a releituras, a ressignificações, com base, evidentemente, em novas preocupações e aportes teóricos construídos no presente. É justamente isso que este artigo procura realizar. A forma de exposição adotada combina conclusões e suas respectivas demonstrações, que compõem uma trama de releitura da cidade a partir da história de sua urbanidade, tal como foi previamente definido na introdução.

A trama ideal da vocação relacional (a urbanidade) de uma cidade combina elevada densidade demográfica mais diversidade de atividades (e objetal), que necessariamente se estruturam num espaço marcado pela compacidade. Essas condições propiciam práticas urbanas dentro da chamada escala humana. O livro do arquiteto dinamarquês Jan Gehl, Cidades para pessoas, explora vários aspectos da vida cotidiana dentro da escala humana, utilizando como exemplo situações reais onde essa escala é respeitada

O campo de visão social de cerca de 100 metros também se reflete no tamanho maior parte das praças de cidades antigas. A distância de 100 metros permite que os observadores fiquem em um canto e tenham uma visão geral do que acontece na praça. Ao caminhar alguns passos para dentro da praça, a 60-70 metros, já podem começar a reconhecer as pessoas e ver quem mais está lá. Muitas praças antigas da Europa estão dentro dessa faixa de dimensão15 15 GEHL, Jan. Cidades para pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 38. 262 p. .

A maior vantagem da escala humana numa cidade compacta é a produção de um regime de distâncias que torna coerente a marcha pedestre. Aliás, o urbanista americano Jeff Speck define que o poder caminhar, que ele chamará de caminhabilidade, é a maior vantagem da vida em cidade. Essa vantagem se traduz, inclusive, em vantagem econômica, como exemplifica Speck:

Muitos clientes me fazem a mesma pergunta: “Como podermos atrair empresas, cidadãos e, sobretudo, jovens talentos empresariais?” [...]. A resposta é óbvia: as cidades precisam garantir um tipo de ambiente que aquelas pessoas desejam. Levantamentos realizados mostram como a classe dos cidadãos criativos, especialmente a geração Y, prefere, em geral, comunidades com ruas vibrantes e cheias de vida, a cultura de pedestres que só pode vir com a caminhabilidade16 16 SPECK, Jeff. Cidade caminhável. São Paulo: Perspectiva, 2016, 229 p. .

Não são meramente condições formais ou técnicas, pois representam um contexto de estímulos aos contatos, às relações sociais, da formação de espaços públicos vigorosos, portanto, trata-se de algo situado no núcleo da vida social e da perspectiva de uma vida social marcada pela integração, pela coesão social e tudo que daí pode decorrer. Nesse sentido, a ideia de urbanidade ganha, inclusive, status existencial e filosófico.

Pois bem, nossa releitura da história de São Paulo, com foco no período especificado, identifica a produção de uma “urbanidade frouxa”, quase que uma “urbanidade perdida”. Todavia, não percebe essa frouxidão como resultante de carências, mas especialmente como um processo de escolhas mais ou menos conscientes e mais ou menos naturalizadas.

Uma síntese da leitura que será argumentada a seguir tem os seguintes elementos:

  1. O crescimento acelerado, marca do século XX, se deu negando a densidade e a diversidade concentrada e valorizando a dispersão demográfica combinada a uma lógica homogeneizante da produção e do uso dos espaços (monofuncionalismo), o que determinou uma cidade marcada pela perda da compacidade;

  2. A descompactação implicou na formação de espaços urbanos sem continuidade e contiguidade, gerando, ao inverso da compacidade, uma cidade dispersa e fragmentada;

  3. Uma consequência de grande importância foi a criação de um regime de distâncias, que, de certo modo, inutilizou parte da eficiência da escala humana e a “caminhabilidade”;

  4. A decorrência mais importante foi o exercício de um século (algo que se reforça ainda) de uma experiência urbana marcada por ambientes de baixa intensidade interacional, numa cidade em que situações de segregação ficaram naturalizadas como “bom urbanismo”. Esse é traço mais relevante do que denominamos “urbanidade frouxa”.

Essa descompactação começa a ser gestada e desenvolvida exatamente no período histórico que focamos e não ocorreu só por contingências históricas, ou por ausências, mas sim por ocorrências que de certo modo foram alvo de opção, como já frisado. Aqui chamaremos essas ocorrências de elementos dispersores, que podem ser rotulados, grosso modo, como obstáculos e cinturões que se estruturaram no entorno do núcleo histórico da cidade, que concentrava praticamente a totalidade da cidade até 1870. Esses elementos dispersores impediram que o padrão de expansão da cidade se desse mantendo a lógica de alta densidade demográfica, associada com a diversidade de atividades existente no centro, como foi comum em boa parte das cidades europeias, por exemplo.

Para melhor compreensão apresentamos uma identificação prévia desses elementos dispersores (descompactadores).

Quadro 1
Elementos dispersores. Fonte: criação dos autores

Esses elementos dispersores têm em si grande complexidade, mas, diante dos objetivos deste artigo e também por conta de seus limites, o elemento dispersor 4 (subúrbios-jardim) receberá um tratamento mais extenso e aprofundado, pois entendemos que, além de um poderoso dispersor físico, seu papel nessa ação foi superior, já que foi também propagador de uma ideologia antiurbanidade que ainda opera na cidade.

Elemento dispersor I - perda da multifuncionalidade do centro histórico

Com os novos fluxos imigratórios e os novos aportes dos capitais cafeeiros, a cidade será pressionada por mudanças e, para começar, terá que institucionalizar um poder público mais efetivo17 17 Até 1899 a cidade estava sob administração executiva do governador da província (do estado) e da Câmara dos Vereadores, mas nesse ano cria-se o cargo de prefeito da cidade, criando um governo próprio para essa escala. O primeiro será o conselheiro Antonio Prado. Assim o retrata Roberto Pompeu de Toledo: “no dia 7 de janeiro de 1899, essa figura venerável, a mais venerável de seu tempo e lugar – de respeitabilidade, em todo o Brasil, só comparável a Rui Barbosa e ao barão do Rio Branco, avaliou um historiador –, torna-se prefeito de São Paulo, o primeiro da história. Sob seu comando, terá início uma cadeia de reformas cujo objetivo será adequar a acanhada urbe oitocentista, em muitos aspectos ainda recoberta pelo mofo colonial, aos tempos de riqueza trazida pelo ‘ouro verde’ – apelido da miraculosa plantinha que produzia o miraculoso café”. TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da vertigem, op. cit., p. 22. . As transformações urbanas principiaram no próprio núcleo histórico. Foi um período de demolições, reformas e (re)construções. As ruas centrais e as edificações mais antigas foram sendo substituídas por outras de feição “mais europeia”, o que aconteceu, sobretudo, com alguns edifícios públicos de caráter monumental.

O centro, no início das grandes transformações urbanas da cidade, era multifuncional, associando os moradores diversos e as múltiplas atividades que a cidade continha18 18 Podemos dizer que nesse espaço, nesse tempo e um pouco mais adiante reinava certa urbanidade em construção, como mostra a profusão de teatros que São Paulo terá nesse período, nesse centro. No período compreendido entre 1850 e 1930 a cidade chegou a ter 172 teatros, número surpreendente apresentado na comunicação “Inventário da cena paulistana (1850-1930)”, pela professora Elisabeth Azevedo da ECA/USP, no Seminário de Pesquisa Cartografia do Desenvolvimento Urbano, Urbanização e Redes/Cartographie du Développement Urbain, Urbanisation et Réseaux. Organizado pela equipe do projeto “Dinâmicas de urbanização e representações espaciais: abordagem geo-histórica dos territórios com Sistemas de Informação Geográfica (SIG)” USP-Cofecub, 20 de agosto de 2015, na Cátedra Jaime Cortesão, Prédio da Geografia e História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP). . Com o crescimento econômico e demográfico, o núcleo histórico passa a sofrer pressão para ampliar sua concentração comercial e de sede de negócios. Mas havia resistências. Havia moradores no centro que, a princípio, não desejavam abrir mão de suas residências. Mas também havia certa tendência urbanística que influenciava a população e os poderes públicos para a manutenção de um dado perfil do centro. Essa tendência reivindicava a permanência de espaços livres (o Parque do Anhangabaú, por exemplo)19 19 Joseph Bouvard, arquiteto francês, chamado pelo conselheiro Antonio Prado para aconselhá-lo sobre controvérsia de políticos, proprietários de imóveis e urbanistas paulistas em torno de projetos de obras no Vale do Anhangabaú, produziu um relatório que, afinal, influenciou decisivamente essas obras, com o seguinte ponto de vista: “Em todas as disposições cumpre não esquecer a conservação e criação de espaços livres, centros de vegetação e reservatórios de ar”. TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo: três cidades em um século. São Paulo: Livraria Duas cidades, 1983. p. 100. . Contudo, as resistências não bastaram, e o centro foi se especializando, eliminando as moradias e boa parte desses espaços livres. O que surgiu daí foi um centro homogêneo marcado por grande concentração comercial, bancária e de sede de negócios, o que fez dessa área o grande bolsão de empregos da cidade.

Esse fato, descrito comumente de forma tão prosaica (o que revela sua naturalização), é de grande relevância para desvendarmos os segredos da urbanidade perdida em São Paulo. Por que essa especialização? Por que o centro não se expandiu com suas características originais? Quer dizer: por que não se ampliou sem perder compacidade, mantendo densidade demográfica alta e diversidade de atividades?

Mesmo sem ainda responder, é possível perceber o seguinte: no momento em que o centro foi perdendo diversidade, as áreas de expansão imediatamente contíguas foram se produzindo também sem diversidade. A lógica urbana do centro que influenciou o restante da cidade não foi aquela que operava enquanto ele era diverso e denso, e sim a lógica que passou a atuar quando ele se especializou. Parece que não se quis que a cidade se expandisse, mantendo uma diversidade de usos nas novas áreas. De nossa parte, e essa é uma hipótese que o artigo quer realçar, nos parece produtivo e plausível explorar o fato de que essas condições de urbanidade nunca foram valorizadas, e sua dissipação com o crescimento da cidade foi enxergada como natural e, quem sabe, como avanço modernizante20 20 Um sentido de ordem predominava nas discussões, e um centro compacto e diversificado como São Paulo era, na virada do século XIX para o XX, visto como um problema em si. Essa é uma hipótese forte, pois as discussões urbanísticas orientavam-se mais por questões estéticas, pelo problema do que fazer com as várzeas dos rios e riachos mais centrais – Tamanduateí e Anhangabaú –, pela presença ou não de áreas livres. Um ponto de vista que circulava, com certo prestígio, não era somente criar condições para se expandir, mas sim criar condições para a especialização espacial e para a “desdensificação”. É o que se pode deduzir das descrições das controvérsias urbanísticas da época, como, por exemplo, no livro de Benedito Lima de Toledo, São Paulo: três cidades em um século, ou então em A capital da vertigem, de Roberto Pompeu de Toledo. . E essa postura (não é uma elaboração explícita) ainda está plenamente incorporada na cultura urbana (ou será antiurbana?) de São Paulo.

Mas o fato é que a função residencial passa a ser realizada nos novos bairros dos ricos fazendeiros (o já destacado bairro dos Campos Elíseos) e também dos comerciantes ricos que viviam anteriormente no centro. E foram embalados pela busca de lugares tidos como mais agradáveis do que o centro compacto. Outros segmentos sociais, como uma classe média que se formava, também quiseram se afastar das vizinhanças de estações, dos estabelecimentos comerciais, das primeiras fábricas e das proximidades das várzeas e com isso também fomentaram a formação de novos e especializados bairros residenciais. O caminho desses novos bairros foi o oeste. A urbanização avança em direção à Consolação, confluindo para a Vila Buarque, Higienópolis e finalmente para a Paulista (completando uma onda que vinha dos Campos Elíseos). E para os imigrantes e trabalhadores pobres restaram as periferias longínquas, que começavam se desenhar com a perda da multifuncionalidade do centro e a incapacidade de reprodução ampliada de seu modelo anterior.

Esse retrato de um centro que perde sua multifuncionalidade e que trouxe consequências enormes para o ulterior desenvolvimento da cidade fez com que essa região da cidade perdesse, desde aquele tempo, urbanidade21 21 “A separação trabalho-residência, as intervenções urbanísticas, a especulação imobiliária etc. são agentes degradadores dos centros tradicionais, cuja manifestação mais evidente é a transformação desses centros em distritos centrais de negócios (CBDs – Central Business Districts). Com instalações exclusivas para o trabalho, tornam-se desertos fora dos horários comerciais.” OLIVA, Jaime Tadeu. A cidade sob quatro rodas. Tese (Doutorado em Geografia). Programa de Pós-graduação em Geografia Humana, Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2004, p. 155. . No decorrer do século XX essa perda de vitalidade será fatal para o centro. As funções comerciais e de gerência de negócios serão desenvolvidas segundo outro modelo e em outras localidades, e o centro monofuncional vai decair e ficar, após os anos 1960, praticamente inutilizado, ocupando um papel marginal da vida da cidade.

Elemento dispersor 2 - urbanização tardia nas várzeas dos rios urbanos

O curioso dessa afirmação sobre a urbanização tardia dos rios urbanos como um elemento desagregador da cidade de São Paulo, na medida em que isso vai interferir no padrão de expansão da cidade, é que o núcleo histórico da cidade fica entre o rio Tietê e seu afluente Tamanduateí. Condição essa do sítio que, se em períodos remotos protegia a área densa da cidade, posteriormente a aprisionava. As palavras de Pierre Monbeig ilustram bem essa condição

[...] mas se convinha à aldeia dos primeiros tempos, se depois contribuiu para concentrar as habitações da cidadezinha colonial, esse sítio já não tem, hoje, o mesmo valor. Sem dúvida confere à metrópole moderna um tom particular: a paisagem urbana paulista muito deve à topografia das colinas, dos barrancos e das várzeas. Mas tal relevo corresponde mal às necessidades de uma grande cidade. O dispositivo topográfico deixou de ser um fator favorável desde o dia em que as condições históricas mudaram profundamente: tornou-se um obstáculo22 22 MONBEIG, Pierre, op. cit., p. 6-7. .

E aprisionava porque a cidade não foi capaz de urbanizar os vales dos rios com uma “cidade integral”, mantendo ao longo das várzeas formas precárias de urbanização, com apenas alguns usos parciais e problemáticos (leito de ferrovia, galpões, algumas fábricas, chácaras, lixões e outras formas improvisadas de saneamento da cidade). Com isso, esses espaços estiveram sempre caracterizados por situações de baixa densidade demográfica e pequena diversidade de atividades. Essa é uma questão ainda remanescente na cidade.

Tendo em vista o período retratado, a expansão urbana de São Paulo chegou até os baixos terraços do vale do Tietê, utilizando as várzeas timidamente, e, antes que a urbanização se consolidasse nesse tipo de terreno, a cidade já o havia saltado. Esse fato obrigou que a expansão da cidade na direção norte, em especial, deixasse um enorme hiato urbano para reiniciar a urbanização já numa área bem distante na outra margem do rio.

Nas várzeas desses rios, esse uso tímido, tendo uma urbanização completa como referência, resultou de uma combinação de via férrea com galpões de fábricas e armazéns que caracterizaram as franjas varzeanas dos bairros da Lapa, Barra Funda, Bom Retiro, Pari, Brás, Mooca e Ipiranga, chegando às portas do ABC. E criou nessa área um pequeno cinturão industrial. Tudo muito próximo do núcleo histórico e denso da cidade. As moradias dos trabalhadores operários, que induziam, com limites, uma urbanização um pouco mais densa e completa, estruturavam-se nos terraços mais elevados do vale.

Até meados do século XX esse padrão de urbanização das várzeas permaneceu, como já foi apontado. E foi com esse tipo de uso que os dois grandes rios (Pinheiros, no sudoeste, e o Tietê) começaram a ser retificados e tiveram suas várzeas drenadas23 23 O Rio Pinheiros, a partir de 1926, ainda abrigava em suas margens clubes esportivos, com provas de travessia a nado e regatas náuticas. Estações elevatórias geravam energia barata em abundância, capaz de prover a industrialização do estado. A partir de 1928, foram iniciadas as obras de retificação do rio Pinheiros, que se estenderiam até os anos 1950 e foram realizadas pela Light and Power. O objetivo dessas obras era acabar com as inundações, canalizar as águas e direcioná-las para a Represa Billings, invertendo o sentido do rio, com a Usina Elevatória de Traição. O Rio Tietê, por sua vez, teve seu curso na área urbana da cidade de São Paulo regularizado e retificado de forma mais lenta e descontínua, apesar de existirem estudos desde o século XIX. As obras se realizam no século XX e terminam se completando com a instalação de rodovias marginais nas áreas imediatamente inundáveis. Ver: SEABRA, Odette C. de Lima. Os meandros dos rios nos meandros do poder. Tietê e Pinheiros: valorização dos rios e das várzeas na cidade de Paulo. Tese (Doutorado). Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1986; CUSTÓDIO, Vanderli. A persistência das inundações na Grande São Paulo. Tese (Doutorado em Geografia Humana). Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2002. . Mas, quando isso deu, a cidade já não urbanizava mais essas várzeas com uma cidade integral e compacta, compensando o que não foi feito anteriormente. Ao contrário, o tipo de urbanização que aí vai se instalar vincula vias expressas, grandes shoppings centers e condomínios fechados. É impressionante a grande disponibilidade de vastos terrenos ainda existentes nessas várzeas de rios que estão próximos das áreas centrais da cidade, o que reforça a imagem, apresentada antes, de hiato urbano gerado nas várzeas dos rios urbanos.

Pode-se alegar que esse hiato urbano nas áreas dos rios, em especial sob climas tropicais sujeitos a situações de inundações, resulta de consequências naturais fora do controle da ação humana. Todavia, tendo em vista os diversos exemplos de urbanização das áreas de várzeas de rios urbanos em outras cidades, exemplos de obras de grande monta que ocorreram ainda no século XIX24 24 Há várias ocorrências de obras de grande porte no século XIX que canalizaram águas limpas, drenaram várzeas, aterraram pântanos, sanearam rios e várzeas, redirecionaram e retificaram os canais, tudo em benefício de uma urbanização completa nas várzeas de rios urbanos. Paris, Nova York e Londres (para ficarmos nas muito conhecidas) são algumas cidades que se beneficiaram de ações desse tipo. No caso de Londres, Steven Johnson descreve um panorama do saneamento londrino vinculado ao Rio Tâmisa que impressiona pela precariedade e pela situação das várzeas do rio. JOHNSON, Steven. O mapa fantasma. Como a luta de dois homens contra o cólera mudou o destino de nossas metrópoles. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. Tudo parecia insolúvel, no entanto, ainda no final do século XIX a questão foi solucionada com grandes obras, a cidade levou sua urbanização para as várzeas e, com isso, apropriou-se do rio para benefício do rio e da cidade. Ver: BRYNSON, Bill. Em casa. Uma breve história doméstica. São Paulo: Cia. das Letras, 2011; RECLUS, Élisée; BAEDEKER, Karl. Estações, fiacres, termas e esgotos. In: CHARLOT, Monica; MARX, Roland (Org.). Londres, 1851-1901. A era vitoriana ou o triunfo das desigualdades. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 30, por exemplo. , cai por terra esse argumento naturalizado de que rios e várzeas funcionam como barreiras naturais que impedem a produção de espaços urbanos, quando, na verdade, a própria condição de artificialidade desses espaços desmente esse tipo de argumento. Nada justifica, desse ponto de vista, que São Paulo mantivesse até nossos dias as várzeas dos seus rios urbanos com urbanização precária. Ou, pior, com uma urbanização antiurbanidade, pois marcada pela baixa densidade demográfica, pela baixa diversidade social e de atividades, áreas onde a forma pedestre de apropriação dos espaços urbanos é impossível de ser praticada.

Elemento dispersor 3 - cinturão fabril muito próximo ao centro

Na zona de expansão leste da cidade, quase que imediatamente contígua ao núcleo histórico, porém separada pelas várzeas do Rio Tamanduateí, que foi retificado entre 1895-1915, começa se estruturar a área industrial da cidade. Os novos terrenos que surgem com a retificação tornam mais eficiente a ferrovia que escoava café para o porto de Santos, e isso intensificou seu uso. Atraídas por esses trilhos e pelos vastos terrenos disponíveis, planos e baratos, várias instalações fabris passam a produzir um novo espaço nessa área: um verdadeiro cinturão fabril. Um pouco depois, esse mesmo processo penetra as várzeas do Rio Tietê, estendendo para esse vale, também muito próximo do centro da cidade, outro cinturão industrial. Assim, soma-se nesses vales: urbanização precária das várzeas mais cinturões industriais.

A zona fabril, imediatamente contígua ao Rio Tamanduateí, na parte leste, com o crescimento demográfico e econômico da cidade, logo irá se encorpar, ampliando-se para além das várzeas. Com isso, os bairros a leste foram ressignificados, e Brás, Belenzinho e Mooca tornaram-se bairros proletários, por excelência. Mas é bom notar que essa modalidade de espaço urbano, o bairro proletário, gera vários efeitos na constituição da urbanidade de uma cidade. São bairros, diferentemente do que supõe o senso comum, de baixa densidade demográfica e de baixa diversidade social e de atividades25 25 Aqui não se ignora que mesmo nessas condições os moradores, ainda assim, produzem sociabilidades e culturas interessantes, mas, certamente, com mais dificuldades para praticá-las e integrá-las no conjunto da cidade do que se estivessem em bairros com mais urbanidade. . São tomados por uma grande viscosidade urbana26 26 Sob esse termo incluem-se todos os impactos pela agressividade no ambiente das edificações e atividades fabris, como, por exemplo, as diversas formas de poluição que tornam extremamente desagradáveis os ambientes de moradia e de convivência. Além do que, em situações desse tipo, poucas áreas são reservadas para moradia. , logo são incapazes de constituir uma urbanização integral. Por essa razão, esse cinturão fabril é considerado por nós como uma espécie de elemento dispersor (um enclave), ou obstáculo, que inibe a expansão da cidade com densidade e diversidade. Isso porque, além dos seus problemas internos, essa área monofuncional, ao se estabilizar tão próxima ao centro, num momento em que a cidade crescia exponencialmente, obrigou que a nova urbanização da cidade a saltasse e fosse retomada de forma dispersa numa área mais profunda da zona leste, criando o que também designamos como um hiato urbano. Um hiato urbano industrial.

O interessante é que se percebia, na virada do século XIX, que o vale do Rio Tamanduateí precisaria de alguma urbanização que viabilizasse a integração do centro com a parte leste da cidade. Na gestão de João Theodoro27 27 Governador da província, antes que o município passasse a ter como principal gestor o prefeito, cargo criado em 1899. - no final do século XIX - procurou-se essa integração com o leste (o Brás) para desafogar o centro histórico. Um ato importante foi a conexão das estações ferroviárias da Luz e do Brás e a inauguração dos serviços de iluminação pública a gás e dos bondes puxados a tração animal, fazendo essa conexão. Outras ações se deram diretamente na várzea do Rio Tamanduateí com o aterro dos pântanos do Carmo e com a criação da Ilha dos Amores. Porém, essas ações não conseguiram a integração buscada. E a razão foi o processo descrito de criação de um cinturão industrial, quer dizer: a retificação do Rio Tamanduateí menos integrou os dois lados da cidade do que produziu uma cisão. Rompeu certa continuidade que vinha se dando de um Brás mais colonial com o centro histórico, com as ações integradoras no governo João Theodoro. Segundo Pasquale Petrone, a cidade estava dividida em dois blocos na primeira década do século XX:

A documentação cartográfica da época e as obras que pudemos consultar fornecem-nos elementos suficientes para que possamos fixar a área urbana, na primeira década do século atual. Dois importantes blocos constituíam a cidade e o divisor entre ambas era representado pela várzea do Tamanduateí. Tal separação apresentava-se, com maior nitidez, entre o Cambuci e a Mooca e na chamada Várzea do Carmo (atual Parque Dom Pedro II). As duas áreas interpenetravam-se, porém, no Pari e na Luz, embora através de número reduzido de ruas28 28 PETRONE, Pasquale. A cidade de São Paulo no século XX. Revista de História, v. 10, n. 21-22, p. 127-170, 1955, p. 136. .

Esses dois blocos formavam duas cidades distintas, como se fossem duas cidades gêmeas. De um lado, apareciam o velho centro e os bairros das zonas oeste, sudoeste e sul; de outro lado, o Brás e seus prolongamentos no rumo de leste, que se dava principalmente pela Avenida Celso Garcia, que ia até o santuário da Penha. E foi por esse caminho que se espalhou uma urbanização de frágil densidade demográfica e de baixa diversidade, depois de superado o cinturão industrial, o hiato urbano diagnosticado como dispersor de uma expansão da cidade, mantendo, pelo menos em parte, a urbanidade do centro.

Elemento dispersor 4 - subúrbios-jardim na gênese de São Paulo

Com a chegada dos fazendeiros e a progressiva inabilitação do centro como moradia, novos bairros residenciais começaram a ser construídos na Luz e no oeste da cidade. O destaque foi o bairro dos Campos Elíseos, mas logo seguido de outros, como Higienópolis e, posteriormente, o bairro de Cerqueira César, dominado pela Avenida Paulista29 29 Está localizada no limite entre as zonas centro-sul, central e oeste, e em uma das regiões mais elevadas da cidade, chamada, a posteriori, de Espigão da Paulista, num caso incomum de obras humanas nominando formas de relevo, antes anônimas. A avenida foi criada no final do século XIX, a partir do desejo de paulistas de expandir, na cidade, novas áreas residenciais que não estivessem localizadas imediatamente próximas às mais movimentadas “centralidades” (a urbanidade) da época. A Avenida Paulista foi inaugurada no dia 8 de dezembro de 1891 por iniciativa do engenheiro Joaquim Eugênio de Lima e de Clementino de Souza e Castro. . Esses bairros foram habitados pelos fazendeiros e os industriais bem-sucedidos que estavam se multiplicando na cidade.

Os bairros novos foram ação de empreendedores como o alemão Victor Nothmann e o suíço Alfredo Glete nas cercanias do bairro da Luz, que estabeleceram uma linha de bonde da Estação da Luz até a Sé. Criaram um mundo residencial (boulevard com mansões), afastado do centro denso, naturalizando a separação, algo que pode ser interpretado como um precursor dos subúrbios-jardim que a Cia. São Paulo City iria construir logo a seguir, na continuidade dessa área. Quer dizer: quando o modelo subúrbio-jardim começa a se implantar em São Paulo, ele entra em harmonia com o que já se delineava na cidade.

Em 1912 começa operar em São Paulo a chamada São Paulo City ou, mais informalmente, Cia. City, empresa fundada em Londres por iniciativa de alguns brasileiros que foram à Europa buscar capitais e associados30 30 “Édouard Fontaine de Laveleye, associado a investidores europeus e paulistanos, constituiu em 1911 a City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited, empresa que gerou seu capital inicial para a compra das terras com a emissão de papéis garantidos pela hipoteca dos próprios terrenos.” WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Jardim América. São Paulo: Edusp, 2015, p. 83. . A estadia dos associados em Londres os atraiu para algumas modalidades de empreendimentos que ocorriam na grande cidade europeia, e foi nesse contexto que eles tomaram contato com um gênero de urbanismo que ganhava terreno na Inglaterra: os subúrbios-jardim, que por sua vez eram o derivado que vingou do movimento filosófico-urbanístico Garden City, cujo mentor principal foi Ebenezer Howard (1850-1928).

As operações dessa empresa em São Paulo iniciam-se com uma vasta aquisição de terrenos na face oeste do espigão da Paulista em direção ao vale do Rio Pinheiros, localidade onde seriam construídos os célebres Jardins e no bairro do Pacaembu. Em 1912, a empresa adquire 37% dos terrenos do perímetro urbano do município31 31 “A empresa, com escritórios em Londres, Paris e São Paulo, adquiriu 12.380.098 metros quadrados de terrenos na cidade, o que correspondia em 1912 a 37%, mais de um terço, do perímetro urbano de São Paulo.” Ibidem. , o que por si só justifica plenamente a designação que lhe atribuímos de elemento dispersor. Esses estoques de terrenos serviram para a implementação de seus projetos, mas ela também os comercializou.

É importante notar que suas principais glebas encontravam-se na área de expansão imediata ao núcleo histórico denso da cidade, como as diversas publicidades da época assinalavam. No lado do espigão, entre os terrenos da Cia. São Paulo City e o centro havia apenas o bairro do Bexiga.

O poderio dessa empresa logo se equivaleu à força de uma outra sociedade internacional que atuava na área de geração de energia e transportes, que era a Light and Power, e de certo modo as duas estabeleceram vínculos32 32 “Já para a seleção das terras houve uma peculiar conjugação de interesses e de conhecimento do potencial desenvolvimento da cidade. Os principais personagens do início da atuação da City em São Paulo e que compuseram sua diretoria foram: o diretor de Obras Públicas da prefeitura, Victor da Silva Freire; o arquiteto francês que trabalhara nas grandes remodelações de Paris e que exercia o papel de consultor e propositor de projetos de urbanização na cidade, Joseph Bouvard; o banqueiro europeu em busca de investimentos, Édouard Fontaine de Laveleye; Horácio Belfort Sabino (nomeado procurador da companhia) e Cincinato Braga, membros da elite local que vinham loteando áreas contiguas à avenida Paulista, em bairros chamados Vila América e Vila Nova Tupi; e ainda Lord Balfour, governador do Banco da Escócia e presidente da São Paulo Railway, além de outros diretores da mesma companhia, de bancos e da Light and Power, empresa concessionária de serviços de bonde e de eletricidade em São Paulo.” Ibidem, p. 84. . Para implementar o modelo urbanístico no qual apostava, ela trabalhou e conseguiu uma mudança na legislação da cidade que se ajustou aos seus projetos. Logo, são projetados o Jardim América, o Jardim Paulista, o Alto da Lapa, o Pacaembu, todos seguindo o modelo subúrbio-jardim.

Que modelo é esse e que impacto ele trará para a cidade? James Holston, antropólogo americano, no seu importante estudo sobre Brasília faz uma anedota dizendo que Brasília tem pedigree33 33 “Brasília é uma cidade dos CIAM [Congrès Internationaux d’Architecture Moderne]. Na verdade, é o exemplo mais completo já construído das doutrinas arquitetônicas e urbanísticas apresentadas pelos manifestos dos CIAM [...]. Em seu manifesto mais significativo, A Carta de Atenas, os objetivos do planejamento urbano são definidos a partir de quatro funções: ‘As chaves para o planejamento urbano estão nas quatro funções: moradia, trabalho, lazer, circulação’ [Le Corbusier, 1957, art. 77].” HOLSTON, James. A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo: Cia. das Letras, 1993, p. 37. . Ela é a espécie mais pura e acabada do urbanismo modernista (funcionalista) de Le Corbusier. Já São Paulo, em comparação, parece o avesso de tudo isso. Em São Paulo, desde o início habitou o caos, que jamais foi informado sobre teses urbanísticas e, se foi, não as absorveu. Mas, para contrariedade do senso comum, não é que São Paulo tem também um pedigree? E trata-se de uma filiação tão célebre quanto o funcionalismo corbusieriano de Brasília. Certo que não é um pedigree puro, o que pode ser até ilógico, mas vale a pena açular o senso comum. Trata-se do movimento Garden City, cujos membros principais eram: Ebenezer Howard, Barry Parker e Raymond Unwin. Esse movimento deixou uma ressonância nada desprezível, embora suas repercussões sejam até hoje subestimadas na história da cidade e na sua cultura urbana. Foram obras marcantes do movimento Garden City: Letchworth (uma verdadeira cidade-jardim), New Earswick e Hampstead (dois subúrbios-jardim). Todos esses projetos resultaram da parceria de Raymond Unwin e Barry Parker, mas o mentor mais importante do movimento, como já assinalado, era Ebenezer Howard34 34 Os princípios desse movimento foram publicados no único livro escrito por Howard ao longo de seus 78 anos de vida. Publicado em 1898 com o título de To-morrow: a peaceful path to real reform [Amanhã: um caminho tranquilo para a refoma autêntica], ganhou nova edição em 1902 com o título Garden cities of to-morrow. HALL, Peter. Cidades do amanhã. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 104. .

Ebenezer Howard foi um personagem fortemente marcado pelo turbilhão de acontecimentos que caracterizam as transformações sociais do final do século XIX e que ressoavam de forma impactante nas cidades, em especial em Londres. Não havia segurança alguma quanto ao futuro, e viabilidade de tudo o que estava surgindo era para lá de duvidosa. A industrialização, os movimentos migratórios campo-cidade, a enorme urbanização acelerada, a multidão de desamparados, crianças inclusive, tudo assombrava. Era normal que jovens idealistas pensassem em alternativas, em outros modelos de vida, e que se arriscassem em aventuras para colocar em prática o que concebiam35 35 Uma geração antes de Ebenezer Howard já havia uma linhagem de célebres militantes de mundos alternativos, denominados socialistas utópicos, como Saint-Simon, Charles Fourier, Louis Blanc e Robert Owen, esse último um industrial que usa seu capital em experimentos cooperativistas. . Ebenezer Howard foi um desses36 36 HALL, Peter. A cidade no jardim. A solução cidade-jardim: Londres, Paris, Berlim, Nova York (1900-1940) In: _____. Cidades do amanhã. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 104. . Influenciado pelas teses anarquistas de Kropotkin37 37 Piotr Alexeyevich Kropotkin (1842- 1921), geógrafo, escritor e ativista político russo, foi um dos principais pensadores políticos do anarquismo no fim do século XIX, considerado também o fundador da vertente anarco-comunista. , aventurou-se nos EUA e conheceu em Chicago os projetos urbanísticos de Frederick Law Olmsted38 38 “Ele deve ter visto o novo subúrbio-jardim Riverside, projetado pelo grande arquiteto-paisagista Frederick Law Olmsted, erguer-se às margens do Rio Des Plaines, a uma distância de 9 milhas da cidade.” HALL, Peter, op. cit., p. 106. Olmestd também criou o Central Park em Nova York, o Parque do Mont Royal em Montreal, a reserva natural de Niágara, nas Cataratas do Niágara, no estado de Nova York, e vários outros projetos. , pelos quais se encantou.

De volta à Inglaterra, exasperado pelo encortiçamento de Londres, pelas lamentáveis condições sanitárias da cidade39 39 Ver nota 25, sobre as condições sanitárias de Londres. , pela pobreza e decorrente degradação moral da população (aos seus olhos), ele conclui pela impossibilidade de uma vida decente numa cidade de geografia impossível como ele entendia a Londres de seu tempo. Numa atmosfera desse tipo é que ele concebe a alternativa de cidades-jardim, que seriam redutos espaciais menores sobre os quais se poderia exercer um controle necessário para obtenção de uma outra vida40 40 “A cidade-jardim teria um limite fixo – Howard sugeriu 32.000 habitantes para 1.000 acres de terra, perto de uma vez e meia mais que a cidade histórico-medieval de Londres. A seu redor, uma área muito mais larga de cinturão verde perene, também de propriedade da companhia – Howard propôs 5.000 acres –, conteria não só granjas, mas também toda espécie de instituições urbanas, tais como reformatórios e casas de repouso, que só teriam a ganhar com uma localização rural.” HALL, Peter, op. cit., p. 109. . Sua solução pouco pôde ser colocada em prática, apenas um “filhote” incompleto e híbrido, o subúrbio-jardim, é que de fato vingou. Os grandes divulgadores e implementadores dos subúrbios-jardim e, de certo modo, responsáveis pela confusão entre cidade-jardim e subúrbio-jardim foram Raymond Unwin e Barry Parker41 41 “R. Unwin nasceu em 1863, Barry Parker em 1867, ambos no norte da Inglaterra. Nenhum deles foi formalmente treinado para arquiteto; Unwin começou como engenheiro, Parker como decorador de interiores. Ambos se desenvolveram dentro de uma intensa fermentação de ideias, decorrente em parte do pensamento de William Morris (um socialista) que os iria influenciar em todos os seus trabalhos subsequentes.” HALL, Peter, op. cit., p. 115. . Esses dois personagens é que de fato tentaram como projetistas tirar do papel as cidades-jardim e conceberam os subúrbios-jardim, que adaptava alguns princípios da cidade-jardim, porém sem romper o convívio e a dependência com a grande cidade: Londres. Foi assim que eles projetaram o bairro de Hampstead no ano de 1906 e depois vários outros, inclusive em... São Paulo. É importante assinalar que Unwin e Parker, mais moços que Howard, eram também jovens idealistas empolgados com os mesmos princípios ideológicos do seu mentor, e por ironia as obras que conceberam ficaram concretamente vinculadas a segmentos de alta renda nos vários lugares onde foram construídas.

Concluímos, dessa forma, que evidentemente esses personagens (e o movimento que eles capitanearam) não tiveram como perceber, na grande cidade que se estruturava, viabilidade, virtudes sociais e econômicas produzidas pela escala de suas populações e de seu tamanho, pela miríade de atividades, pela multiplicação exponencial das relações sociais entre atores sociais distintos. Ao contrário, eles abjuraram tudo isso. Uma visão severa, em relação a eles, como a de Jane Jacobs, os inscreve, por conta de tudo isso, entre aqueles “urbanistas que odiavam as cidades”:

A vertente mais importante dessa influência começa mais ou menos com Ebenezer Howard, repórter britânico de tribunais, cujo passatempo era o urbanismo [...]. Ele detestava não só os erros e os equívocos da cidade (Londres), mas a própria cidade, e considerava uma desgraça completa e uma afronta à natureza o fato de tantas pessoas terem de conviver aglomeradas. Sua receita para a salvação das pessoas era acabar com a cidade. Ele propôs [...] repovoar a zona rural [...] construindo um novo tipo de cidade, a Cidade-Jardim, onde os pobres da cidade poderiam voltar a viver em contato com a natureza [...] sua meta era criar cidadezinhas autossuficientes [...]42 42 JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 17. .

E, de fato, é o que aqui nos interessa, eles conceberam intervenções no urbano que se caracterizam por bairros de baixa densidade demográfica, pela especialização dos usos (uso exclusivamente residencial) e elitização social, que, se na época não era tão evidente, depois se tornará, pela própria valorização desses bairros, que será também um fator de enriquecimento de quem comprou essas casas nos bairros projetados por eles, tanto em cidades inglesas, quanto em São Paulo.

É muito curiosa a história que resultou na construção de subúrbios-jardim em São Paulo, e por essa razão várias pesquisas e publicações já foram realizadas. Porém, há algo que talvez ainda não tenha sido enfatizado suficientemente. A construção de subúrbios-jardim em São Paulo carece das mesmas justificativas ideológicas que davam sentido a essa “espécie urbana “ (ou “antiurbana”?) em Londres. Observemos uma comparação: enquanto São Paulo, nos anos 1920, quando começa a construção dos subúrbios-jardim, não tinha chegado a 600 mil habitantes, Londres apresentava um quadro demográfico radicalmente distinto.

Tabela 2
Evolução da população de Londres 1901-1931. Fonte: Urban Networks, 2016URBAN NETWORKS. El modelo original de la ciudad-jardín (garden city). 13 Feb. 2016. Disponível em: <Disponível em: http://urban-networks.blogspot.com.br/2016/02/el-modelo-original-de-la-ciudad-jardin.html >. Acesso em: out. 2016.
http://urban-networks.blogspot.com.br/20...

A cidade já era quadrimilionária desde a virada do século XIX para o século XX. E era apenas um pouco menor na juventude de Ebenezer Howard. Assim, compreende-se a concentração de “problemas” que inspirou diversos anarquistas e outras associações a vidas alternativas, Howard incluso. Mas como São Paulo, uma realidade urbana totalmente distinta, num inesperado país tropical, adere ao modelo urbanístico dos subúrbios-jardim? E mais, incorporando nesses projetos as mesmas ideologias e os mesmos projetistas dos subúrbios-jardim de Londres? Essa é uma história tão inesperada que a literatura internacional sobre o movimento Garden City e seus frutos praticamente não registra a vasta construção de bairros londrinos em São Paulo, bairros esses que inflexionaram sua urbanidade.

A tabela 3 indica nosso entendimento. Se, para os londrinos, subúrbios-jardim representam uma recusa à modernização, uma saída de uma urbanização vista por eles como impossível, em São Paulo, de forma inversa, esse modelo foi recepcionado com um prestígio típico de quem quer se modernizar segundo padrões vistos como mais avançados. E isso é incrível e merece todo destaque. Nem de longe convinham, em São Paulo, os discursos justificadores de Londres. A cidade até que era bem razoável, sem os problemas que Londres conheceu na época da gestação do movimento Garden City. Desse modo, os discursos londrinos acabaram operando por aqui como discursos fora do lugar. Fora do lugar, mas eficientes para se incorporar na cultura urbana de São Paulo.

Tabela 3
Subúrbios-jardim: uma comparação entre Londres e São Paulo. Fonte: criação dos autores

Tínhamos indicado que os terrenos comprados pela Cia. São Paulo City, em razão de sua extensão e posicionamento na área de expansão da cidade, impediram que o padrão de cidade, até então existente, se reproduzisse nessa contiguidade colonizada pela companhia imobiliária. Mas podemos dar mais uma volta nesse argumento: não só um elemento dispersor, um obstáculo que tinha que ser saltado, mas também um obstáculo ideológico, pois a City foi portadora de um modelo de cidade e de “qualidade de vida” que marcou época, e é isso que participou da cultura urbana dessa cidade ou, talvez, seja melhor se referir a uma cultura antiurbana, que, pelos motivos explicados, o movimento de Ebenezer Howard continha. Por isso, achamos pertinente expor diretamente o discurso da Cia. São Paulo City. Ninguém fala melhor pela companhia do que ela própria. Vamos seguir o percurso de sua ação e de seu discurso no rastro de suas peças publicitárias da época. Na figura 2, pode ser observado o projeto do Jardim América feito por Barry Parker43 43 O primeiro projeto de subúrbio-jardim desenvolvido e implementado pela Cia. City foi de autoria de Barry Parker, o que reforça a ideia de pedigree autêntico, afinal um dos três principais mentores deslocou-se até o Brasil para trabalhar na São Paulo City. Jardim América e Alto da Lapa são seus projetos pessoais, e não só o urbanismo dos bairros, como vários projetos de casas. Ele deixou sua experiência registrada em: “Two years in Brazil” (The Garden Cities and Town Planning Magazine, v. 9, n. 8, p. 145, ago. 1919). WOLFF, Silvia Ferreira Santos, op. cit., p. 72. . Com um arruamento peculiar combinado com lotes de grandes proporções e arborização44 44 Originalmente o projeto do Jardim América era de R. Unwin e Barry Parker. Eles o elaboraram em Londres. “Barry Parker, contratado para vir estudar localmente as soluções urbanísticas ideais para o aproveitamento dos terrenos de relevo irregular e pantanoso, ao conhecer a realidade paulistana em 1917, optou por rever o projeto do Jardim América. Restringiu as categorias de uso ao predomínio quase exclusivo da função residencial para as classes altas, eliminando a praça e seus prédios públicos. Reforçou-se assim a ideia do loteamento como um bairro em extensão à cidade existente e dependente das atividades nela desenvolvidas.” Ibidem, p. 140. , o projeto foi admiradíssimo e passou a ser modelo de bairro, modelo de cidade.

Figura 2
Projeto do Jardim América elaborado por Barry Parker. Fonte: WOLFF, 2015WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Jardim América. São Paulo: Edusp, 2015., p. 139

Na figura 3 temos o anúncio de outro projeto célebre de Barry Parker, o do Alto da Lapa, agora publicado em jornal acompanhado de um longo discurso, cujas passagens mais importantes realçam as características da parte residencial, tais como proximidade com a natureza, embelezamento, horizontes e vistas45 45 Esse projeto é realmente magnífico, pois na Lapa de Baixo Barry Parker projetou uma área industrial e comercial. Porém, completamente separados. . Como se pode ver, o traçado das ruas é totalmente sinuoso, por vezes labiríntico. Radicaliza o que Parker havia feito no Jardim América. E tanto o Alto da Lapa quanto o Jardim América se assemelham muito ao bairro de Hampstead, em Londres. E aqui vale a pena mencionar o que esse gênero urbano representava no movimento Garden City segundo Peter Hall:

Hampstead significou uma guinada decisiva, tanto para o movimento inglês da cidade-jardim quanto para R. Unwin em particular, pois propunha-se a si mesma não como cidade-jardim, mas como subúrbio-jardim; não tinha indústria e, para os serviços, dependia por completo de uma estação de metrô adjacente, inaugurada exatamente na época em que ela, Hampstead, estava sendo planejada46 46 HALL, Peter, op. cit., p. 117. .

Figura 3
A construção de um discurso. Anúncio sobre o empreendimento Alto da Lapa, com projeto de Barry Parker, publicado em O Estado de S. Paulo, 4 de outubro de 1921, p. 1. Acervo Estadão. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19211004-15604-nac-0001-999-1-not>

O uso exclusivamente residencial e a “paz” obtida com distanciamento em relação ao movimento e à diversidade da cidade não eram apenas substância dos projetos, mas eram elementos vivamente realçados como discurso nas publicidades, e isso impregnou a cultura urbana de São Paulo. A figura 4 é um bom exemplo desse discurso e fala por si só, mas é irresistível destacar que, ao condenar a diversidade (negócios que podem eventualmente se instalar na vizinhança), faz-se referência à “bôa vizinhança”. Quer dizer: outros elementos e personagens urbanos são desagradáveis e não podem compor uma boa vizinhança. Assim, sem mediações, a diversidade é condenada.

Figura 4
Anúncio publicado na Revista Architectura e Construcções, em 1930, propõe que se evite a diversidade. Fonte: SEGAWA, Hugo, 2000SEGAWA, Hugo. Prelúdio da metrópole: arquitetura e urbanismo em São Paulo na passagem do século XIX ao XX. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000., p. 114

Contudo, a Cia. São Paulo City não se limitava a praticar a homogeneização dos espaços, ela militava pela “causa”, como atesta a figura 5, que retrata uma peça publicitária com uma figura gráfica e um longo texto argumentativo sobre as vantagens de se estabelecer na cidade uma legislação que setorize as atividades urbanas, uma legislação do zoning. No texto se diz que:

O livro do dr. Luiz Anhaia47 47 Foi prefeito da cidade de São Paulo em dois períodos, de 6 de dezembro de 1930 a 25 de julho de 1931 e de 14 de novembro a 4 de dezembro de 1931. Professor emérito da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, foi um dos fundadores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, lecionou estética, composição e urbanismo e, como se vê, foi defensor de uma ordem antidiversidade e protagonista de publicidade da Cia. São Paulo City. sobre urbanismo, de que hontem demos notícia, traz interessantes soluções ao problema de organização das cidades, de que até agora temos prescindido. Entre essas soluções, uma das que merecem maior atenção do legislador moderno é o da legislação do “zoning”, que é, numa cidade organizada: “Um padrão differencial, uma regulamentação que divide a cidade em districtos, impondo, sobre a propriedade privada de cada um desses districtos, restricções uniformes mas variáveis de um para outro”. Diz o distincto urbanista em seu valioso estudo: “em cidades onde não há “zoning”, o cidadão que, à custa de sacrifícios, muitas vezes, edifica a sua residência, não sabe qual será o seu vizinho, se outra residência como a sua, que não a desvalorize, portanto, ou uma garagem barulhenta, um armazém, um prédio altíssimo de apartamentos, por exemplo, com um muro de oitão de divisa, que roube de seu modesto lar a luz, o ar, o valor”. É um aspecto facilmente encontradiço, em nossa cidade esse da desordem de distribuição dos edifícios e da irregularidade das construcções48 48 Texto original de publicidade publicada pela Cia. São Paulo City no jornal O Estado de S. Paulo, 9 de junho de 1929, p. 3. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19290609-18258-nac-0003-999-3-not>. Acesso em: out. 2016. .

Figura 5
Anúncio da Cia. São Paulo City - diversidade encarada como ameaça. Fonte: O Estado de S. Paulo, 9 de junho de 1929, p. 3. Acervo Estadão. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19290609-18258-nac-0003-999-3-not>

No livro citado do urbanista Luiz Anhaia, o artigo/publicidade lembra que o urbanista recorre a outro urbanista, americano, para listar as vantagens do “zoning”:

São as seguintes as vantagens do “zoning” resumidas pelo notável urbanista norte-americano Morris Knowles, citado pelo dr. Luiz Anhaia:

1) Estimula um desenvolvimento urbano próspero e bem organizado;

2) Torna possível um programma prático de traçado e desenvolvimento do systema de vias de comunicação e de todos os serviços collectivos, porque determina com antecedência o uso e as necessidades dos disctritos;

3) Impede a mudança rápida e prematura do carácter desses districtos;

4) Impede a intromissão de edifícios impróprios ou de usos impróprios de edifícios naquelas situações em que seriam prejudiciais;

5) Estabiliza e protege valores e capitaes determinando de antemão o caracter das propriedades;

6) Simplifica resolve o problema da circulação, regulando altura e volume dos edifícios e portanto o congestionamento das ruas;

7) Assegura afinal melhores condições de hygiene e esthetica para o bem geral49 49 Ibidem. .

A lei de zoneamento que no futuro será promulgada virá beneficiar os subúrbios-jardim e terminará tendo a lógica antidiversidade que precocemente a Cia. São Paulo City defendia junto com nossos urbanistas. Não somente como meio de valorização dos seus negócios, mas também como ressonância do movimento Garden City que de fato entendia a diversidade, tão prezada na constituição da urbanidade, não como um tipo de ordem, mas como a desordem que deve ser combatida como irracionalidade e ameaça ao patrimônio e à vida das pessoas. A setorização, que também será cara ao modernismo funcionalista, aparece como sinônimo de razão, de ordem.

Não era apenas a diversidade que a Cia. São Paulo City combatia. A densidade demográfica, a aglomeração, que é justamente o que define o que é uma cidade (realidade social que busca a copresença na menor distância possível), também era seu alvo. A figura 5 é um clássico de sua publicidade e traz um discurso que é recuperado pelos empreendedores que atuam na cidade nos dias de hoje. O texto é precioso para se entender a “ideologia city” dos subúrbios-jardim. Observem:

VIDA DE CAMPO - USUFRUEM-SE - plenamente as delícias da vida de campo, tranquila e sadia, em plena capital e com todo conforto das grandes metrópoles, no inconfundível bairro modelo - JARDIM AMÉRICA - ou em qualquer outro bairro da Companhia City50 50 O Estado de S. Paulo, 1o de setembro de 1929. Transcrevemos por não ser legível na figura. .

Extraordinário exemplo de apologia da vida de campo51 51 Uma famosa canção popular, “Casa no campo”, composta por Zé Rodrix, tem por trás uma história que é quase uma anedota. Zé Rodrix morava no Pacaembu, um subúrbio-jardim da Cia. São Paulo City, e essa era a casa no campo que ela amava e cantou, segundo o depoimento do seu parceiro Luiz Carlos Sá numa entrevista à Rádio USP no mês de outubro de 2016. no coração da metrópole (um incrível oximoro). Assim temos uma configuração suburbana, de baixíssima densidade, caso contrário não haveria onde situar esse “campo”, dificultando o desenvolvimento de uma cidade compacta e diversa, portanto, comprometendo o desenvolvimento da metrópole, e se referindo a todo conforto da metrópole que esse tipo de bairro parasita. É o típico caso de esquizofrenia urbana, de que fala Jacques Lévy: querer a cidade sem estar nela, sem pagar o preço de a cidade ser cidade52 52 É notável como esse discurso ainda está presente quando se trata de preservar os subúrbios-jardim e vem pela voz de mais um arquiteto e urbanista, professor emérito da FAU/USP, seguindo a linhagem dessa escola que parece não prezar a urbanidade. Trata-se de Cândido Malta Campos Filho, um importante estudioso da cidade de São Paulo, que diz: “O direito de morar tranquilo é fundamental. O administrador de toda cidade civilizada deve assegurar o direito de ir e vir associado ao de morar bem. Em São Paulo, há poucas ilhas de tranquilidade, bairros que são unidades de vizinhança poupadas do caos urbano que impera. O projeto de zoneamento anunciado pelo prefeito Fernando Haddad [...] coloca em risco essas ilhas. Se a proposta for aprovada, bairros residenciais como os Jardins – América, Europa, Paulista, Paulistano, da Saúde, Previdência, São Bento, Boaçava, Lusitânia, Pacaembu, Morumbi, Alto de Pinheiros, Sumaré, Alto da Lapa, Alto da Boa Vista, entre outros – estarão seriamente ameaçados. Os Jardins América, Europa, Paulista e Paulistano são a região mais arborizada da cidade, uma ilha verde em meio a um mar de prédios, e prestam um serviço ambiental à cidade no Centro Expandido”. CAMPOS FILHO, Cândido Malta. Pelo direito de morar tranquilo. Folha de S. Paulo, 3/6/2015, p. 3. Irresistível não destacar que fora dessa “vida no campo”, agora uma ilha, reina o caos, pois essa é a visão do professor a respeito da cidade que cerca as tais ilhas de tranquilidade, tal como na remota publicidade da Cia. City. . Por fim, a família exposta na publicidade, com seus traços físicos e a presença precoce de um automóvel estacionado na frente da casa, indica que naquele momento, morar num bairro city já era coisa para pessoas de maior renda. A peça publicitária prenuncia como esse tipo de bairro será indutor do uso do automóvel particular na cidade.

Figura 6
Anúncio divulga a “ideologia city”. Fonte: O Estado de S. Paulo, 1o de setembro de 1929, p. 7. Acervo Estadão. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19290901-18330-nac-0007-999-7-not/tela/fullscreen>

Outra face da postura antiurbanidade promovida pela Cia. São Paulo City foi a ideologia da patrimonialização, que tem como contrapartida a demonização do aluguel, figura cultural muito conhecida em nossa vida urbana. Evidente que, como companhia imobiliária, ela queria vender seus imóveis, mas para tal jogava pesado contra o aluguel, meio de acesso à moradia essencial para o desfrute da urbanidade da cidade. Peças publicitárias dos anos 1920 perguntavam: por que pagar aluguel? E ordenavam: não pague a casa de outro. Compre a sua. E a City concebeu, de fato, subúrbios-jardim na cidade de São Paulo onde praticamente nenhum dos moradores paga aluguel. Fato que reforça o caráter de elite, como a figura 7 mostra sem a cerimônia que hoje, talvez, existisse.

Figura 7
Modelo city passa a ser praticado por outros empreendedores. Fonte: O Estado de S. Paulo, 11 de novembro de 1928, p. 2. Acervo Estadão. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19281111-18081-nac-0002-999-2-not>

O bairro do Jardim Europa não foi um subúrbio-jardim construído pela Cia. São Paulo City, mas sim por Manoel Garcia da Silva, que era proprietário da Loja do Japão no centro da cidade. Não é da City, mas emula seu modelo, o que aponta mais um traço desse tipo na cidade de São Paulo. Ele passa a ser praticado por outros empreendedores. Bairro de elite, ele apresenta um croqui mostrando a conexão e a acessibilidade que o morador do Jardim Europa terá em relação ao centro: 8 minutos pelos bondes da Light. Isso em 1928. Os anúncios contemporâneos de empreendimentos também “escondem” as distâncias em quilômetros e passam a indicá-la com a métrica-tempo. Na verdade, os Jardins representavam em relação à cidade preexistente uma ruptura do regime de distância, um rompimento da compacidade, da escala métrica do pedestre, da escala humana. Numa cidade que não teria problema algum para manter um crescimento com compacidade, essa ruptura e todas as consequências que daí derivarão foram escolhidas.

Para finalizar esse percurso pela ideologia dos subúrbios-jardim, outra ressonância importante e grave da cultura antiurbanidade gestada no seio do movimento Garden City: a demonização das ruas, objeto urbano fundamental da vida urbana numa cidade com urbanidade. Isso fica patente na figura 8.

Figura 8
Cultura antiurbanidade gestada no movimento Garden City “demoniza” as ruas. Fonte: O Estado de S. Paulo, 18 de setembro de 1929, p. 3. Acervo Estadão. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19270918-17723-nac-0003-999-3-not/tela/fullscreen>

O texto é um primor da relação tida como negativa entre a criança e a cidade. Alguns argumentos clamam pelo bom senso dos pais, que certamente sabem a importância de a criança crescer ao ar livre. Mas muitos pais não deixam seus filhos usufruírem essa vida ao ar livre porque sabem, em 1927, que as ruas da cidade de São Paulo são muito perigosas. Qualquer rua, aliás, a rua como realidade urbana. Por isso, estimulam os pais a se mudarem para os subúrbios-jardim, pois lá seus filhos poderão ser criados em espaços protegidos. O papel precursor da Cia. São Paulo City com relação a muitas de nossas práticas atuais não pode ser subestimado. É difícil acreditar que a cidade fosse nessa época um reduto de perigos, mas a ideologia city dos subúrbios-jardim, no afã de valorizar seu modelo e talvez, ecoando a Londres do século XIX, não media consequências em desabonar a vida de uma cidade comum, compacta e com diversidade, inventando-a como um espaço perigoso. Aliás, o movimento que a inspirava a autorizava filosoficamente a fazer isso.

São esses elementos expostos na voz do próprio ator responsável que nos levam a afirmar que o modelo subúrbio-jardim, cujo maior protagonista foi a Cia. São Paulo City, foi um elemento dispersor da compacidade da cidade e um elemento antiurbanidade, tanto por razões de ordem física, como por razões vinculadas à concepção de cidade que esse modelo portava.

Atualmente, por causa da escala que a cidade adquiriu, com todos os impulsos sociais e econômicos para o seu crescimento, esse elemento dispersor de bairros da Cia. São Paulo City (e de outros empreendedores) passou a ser muito pressionado. No entanto, ele foi sempre “bem protegido” contra o avanço da “cidade normal” por uma série de mecanismos legais, como a legislação inicial que o autorizou, a lei do zoneamento e o recente tombamento53 53 Criadas pela lei do zoneamento de 1972, as Z1 (áreas de uso estritamente residencial, destinadas somente a casas, em que é proibida a verticalização) representam, hoje, 4,8% do total de São Paulo (o que corresponde a 29 milhões de m2), conforme a Secretaria Municipal de Planejamento Urbano. É bom saber que, se a conta for somente o que está entre os dois rios, a área dos bairros city sobe para mais de 15%, o que não é nada desprezível. Além de protegidos pela Lei de Zoneamento os bairros city foram tombados em 25/1/1986, com o argumento do seu pedigree e da questão ambientalista... além, é claro, da força política dos atores envolvidos. . A Folha de S. Paulo publicou uma reportagem a respeito desses bairros cujo título já suscita uma análise: “‘Oásis’ residenciais ocupam 4,8% de SP”. O subtítulo: “Sobra qualidade de vida nas Z1”54 54 DINIZ, Tatiana. “Oásis” residenciais ocupam 4,8% de SP. Folha de S. Paulo, 14 de janeiro de 2001, caderno Imóveis. . Os bairros situados na Zona 1 são quase todos “modelo subúrbio-jardim”. A manutenção do discurso desabonador da cidade permanece: se os subúrbios-jardim são oásis, então a cidade que os cerca seria o quê? Trata-se de um discurso, naturalizado, que continua alimentando uma cultura antiurbana.

O curioso é que, com a evolução da cidade, esses subúrbios-jardim construídos à sua época nas franjas da cidade em expansão agora são enclaves (daí a ideia de oásis ou de ilhas) no coração de uma cidade imensa que os transcendeu. Sua história e o que eles resultaram constituem-se num irônico oximoro urbano: são subúrbios, áreas (sub)urbanas, que em países como os EUA distam bastante dos núcleos densos, que estão dentro da cidade: são subúrbios internos. Além de oximoros do ponto de vista da organização comum das cidades, submetidos ao crivo da crítica social, eles podem ser considerados “bairros guetificados”, “guetos de ricos”. Bairros de forte homogeneidade social, com limites bem marcados, por vezes materialmente, com valorização positiva dos atores sociais (que em geral pagaram por isso e têm renda elevada) e legitimação disfarçada das instituições políticas, que os valorizam e os protegem nessa aventura de separação do conjunto da cidade. Trata-se de uma segregação positiva, desejada pelos seus moradores, ou “gulags dourados”, como se diz nos EUA, ou lugares de “primeiro mundo”, como se gosta de dizer em nossas cidades.

Que fique claro que esses elementos dispersores não foram e nem são absolutos. Foram obstáculos, dificultadores de certo tipo de expansão. Participaram da inflexão de um dado padrão preexistente no núcleo histórico e contribuíram para deformar sua reprodução na extensão da cidade, quando do seu exponencial crescimento. Mas, como imagem descritiva que entendemos produtiva, pode-se dizer que a expansão da cidade se deu aos saltos, espraiando-se para além do necessário em razão desses elementos dispersores. Nas áreas onde ela se expandiu, vários elementos da “centralidade” (a urbanidade que estava concentrada no centro) não puderam ser reproduzidos nem minimamente. Essa, precocemente, foi caracterizada por uma “periferização” problemática de bairros populares, exclusivamente residenciais, com pouquíssimo comércio - sem economia urbana -, distâncias enormes em relação ao centro (chamado, justamente, de cidade) com um modelo radial de conexões precárias (sem interacessibilidade tangencial dos lugares) que veio dar origem a uma rede de imensas avenidas que faziam o papel de saltar esse entorno do núcleo histórico, e de conduzir o crescimento da cidade para periferias desoladas55 55 Esse modelo alçou o fenômeno do rodoviarismo (ônibus em primeiro lugar) à condição de monopólio da circulação, que resultará posteriormente na cidade mais automobilizada do planeta. OLIVA, Jaime Tadeu, op. cit. . Assim, desenhou-se uma cidade de concentração especializada no centro e uma dispersão de espaços homogêneos.

MODELO SÃO PAULO: UMA CULTURA ANTIDENSIDADE E ANTIDIVERSIDADE

Vimos que na virada do século XIX para o XX serão geradas as condições para a modalidade de crescimento urbano que a cidade sofrerá no século XX. Modalidade remete a “modelo”, e pode soar estranho que isso seja mencionado em relação a uma cidade que é, conforme o senso comum já ressaltado por nós, um emblema maior do caos urbano, o que é um epíteto que acompanha a história do mundo urbano, em geral, e de São Paulo, em particular.

O “modelo São Paulo” não é uma extração pura como a cidade modernista que é Brasília, mas na sua hibridez é possível encontrar traços comuns às várias iniciativas urbanísticas do poder público e também da iniciativa privada, e o maior exemplo é a urbanização com base nos subúrbios-jardim. Estamos insistindo na ideia de “modelo São Paulo” porque certas convergências do período tratado permanecem e são referências para a urbanização de outras cidades brasileiras, que é justamente o que faz um modelo de prestígio. Sendo assim, torna-se forçoso resumir os traços de tal modelo ainda reinantes nos dias atuais. São eles:

  1. Preocupação difusa e apenas funcional com a integração dos segmentos (também funcionais) das cidades, mesmo assim fortemente marcada pela desigualdade de tratamento nesses propósitos integradores;

  2. Ausência de preocupação com as formas e as necessidades de integração social; essa preocupação não estava - não está - no horizonte da “engenharia urbanística”. O funcionalismo técnico sufocou a dimensão propriamente social;

  3. Um sentido de ordem, difuso certamente e praticado improvisadamente, mas dominante de classificação funcional, tal como no modernismo de Le Corbusier, que tem respaldo cultural profundo, vinculado à ideia de organização. Desse modo, como mostrado anteriormente, a cidade (sua sociedade, seus homens e órgãos públicos, sua lógica econômica) aderiu à concepção de uma cidade separada em setores (e a naturalizou), algo que nunca foi muito elaborado, mas bastou e basta para negar configurações urbanas com mistura de funções e de grupos sociais. Logo, pode-se notar o triunfo de uma cultura urbana antidiversidade e antidensidade. Esse processo ainda está em marcha. Isso quer dizer que num século inteiro esse “modelo” não encontrou resistência, o que reforça a ideia da aderência social;

  4. A radicalização da ideia de ordem como setorização deslizou perigosamente para a ideia de separação e de segregação legítima. Diferentemente do discurso corrente sobre a atual acumulação capitalista, que seria a força segregadora por definição, no caso de São Paulo, trata-se de uma cultura urbana - antiurbana? - naturalizada, fundadora dessa realidade. Trata-se de uma cidade onde se tomba a segregação (o caso dos subúrbios-jardim), constituindo-a em patrimônio material a ser preservado e transmitido às próximas gerações. Herança essa que tem sido honrada.

Com essa urbanidade frouxa intrínseca ao “modelo São Paulo”, certo espírito da cidade fica perdido. Como diz o filósofo Thierry Paquot,

Com efeito, se a cidade é entendida como uma reunião incontrolada de indivíduos livres em endereço aberto a todos, que se pode caracterizar ao menos por duas qualidades, a acessibilidade e a gratuidade (em todos os sentidos do termo), assim toda seleção, toda verificação, toda interdição, toda seleção “da nata da sociedade” de cidadãos vêm contradizer esses princípios56 56 PAQUOT, Thierry. Ghettos de riches.Tour du monde des enclaves résidentielles sécurisées. Paris: Perrin, 2009, p. 7. .

Como, então, explicar a manutenção dessa ordem antidiversidade e antidensidade tão naturalizada em São Paulo? O geógrafo Jacques Lévy apresenta uma interpretação teórica bastante estimulante para a naturalização da setorização e que talvez possa ser útil para entender o “modelo São Paulo”. Ele imputa essa ocorrência aos tempos (recentes) nos quais urbanização e industrialização eram fortemente identificadas, algo que já não ocorre mais em nossos dias com o declínio da atividade industrial e com a crise das grandes aglomerações urbanas. Essa nova realidade obriga-nos a mudar de perspectiva. O movimento modernista, de Le Corbusier, que leva ao extremo a setorização e o espalhamento, é criticado por representar a cidade como uma indústria, cuja eficácia seria tanto maior quanto fosse a separação analítica de seus componentes e de suas funções. No entanto, verificou-se que a grande indústria entra em conflito com a densidade e a diversidade urbana, tal como descrito no cinturão fabril que se formou a leste do centro de São Paulo. A indústria consome muito espaço nas cidades e o consagra a uma única atividade, o que tende a organizar enclaves, não somente econômicos, mas também sociológicos. Enclave quer dizer: fragmento de difícil integração com o conjunto da cidade. Outra constatação importante: as cidades que já eram maduras antes da industrialização agora fazem boa figura no sistema produtivo contemporâneo, enquanto as nascidas com a industrialização ainda estão procurando meios para sair da crise profunda na qual se instalaram com o declínio industrial. Assim, um novo consenso emergiu nos estudos urbanos: é, justamente, a mistura de funções e de atividades e de população diversificada que cria a qualidade urbana e que define vantagens comparativas da cidade face a outras configurações espaciais57 57 Cf. LÉVY, Jacques. Le développement urbain durable entre consensus et controverse. L’Information Géographique, v. 74, n. 3, p. 39-50, 2010. . Dito de outro modo: é a urbanidade que pode fazer a diferença, é a urbanidade que deve ser buscada e para tal entendemos ser necessário desconstruir o “modelo São Paulo”.

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  • 1
    LEFORT, Claude. Éléments d’une critique de la bureaucratie. Genève: Librairie Droz, 1971.
  • 2
    TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da solidão. Uma história de São Paulo, das origens a 1900. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, 417 p.
  • 3
    MONBEIG, Pierre. Aspectos geográficos do crescimento de São Paulo. Boletim Paulista de Geografia, São Paulo, n. 16, março-abril de 1954, p. 3-29.
  • 4
    Não à toa, Roberto Pompeu de Toledo denomina sua continuação da história de São Paulo como A capital da vertigem. TOLEDO, Roberto Pompeu. A capital da vertigem. Uma história de São Paulo de 1900 a 1954. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015, 460 p.
  • 5
    BRUNO, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo. V. 3. São Paulo: Hucitec, 1984.
  • 6
    Um dos fatores determinantes da dinamização de São Paulo foi a instalação das ferrovias na cidade. Em função da necessidade de escoamento da produção cafeeira no interior do estado de São Paulo, a capital paulista tornou-se um entroncamento ferroviário da São Paulo Railway (1867), da Estrada de Ferro Sorocabana (1875) e da Estrada de Ferro Dom Pedro II (1877), futura E. F. Central do Brasil.
  • 7
    MONBEIG, Pierre, op. cit. p. 23
  • 8
    É o caso da Chácara do Carvalho, residência do conselheiro Antonio Prado, primeiro prefeito do município de São Paulo. Segundo Roberto Pompeu de Toledo, “A Chácara do Carvalho, que o conselheiro herdou do avô, e onde morou de 1892 a 1927, ilustra o modo de vida de famílias abastadas no momento da transição do campo para a cidade. A chácara era um meio-termo. Antônio Prado mantinha na sua um haras em que apurava os puros-sangues. Até vacas criou ali. Em sua extensão máxima, a propriedade ia do caminho de Jundiaí, como era chamada a futura rua das Palmeiras, até os trilhos da ferrovia, no lugar brejoso conhecido como Barra Funda”. TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da vertigem, op. cit., p. 44.
  • 9
    KESROUAN, conde Rochaid de. A cidade de S. Paulo vista por um pariziense. O Estado de S.Paulo, 2 de janeiro de 1920, p. 2. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19200102-14973-nac-0002-999-2-not>. Acesso em: out. 2016 . Foi mantida a grafia original de todos os artigos do acervo do jornal.
  • 10
    Pertencente ao acervo Pierre Monbeig comprado pelo Banco Sudameris da viúva do geógrafo, Julieta Monbeig, e posteriormente doado à Universidade de São Paulo, onde foi incorporado ao acervo do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB/USP, em 1990. Algumas informações sobre o acervo: No Arquivo: Sigla: BR USP/IEB PM.
  • 11
    SÃO PAULO (Estado). Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados – Seade. Departamento de Estatística. Linhas divisórias do município de São Paulo. São Paulo, setembro de 1942. 99 p. Disponível em: <http://produtos.seade.gov.br/produtos/bibliotecadigital/view/singlepage/index.php?pubcod=10013033&parte=1>. Acesso em: 1 set. 2014.
  • 12
    DUTENKEFER, Eduardo; FONSECA, Fernanda Padovesi; OLIVA, Jaime Tadeu. A maestria de Monbeig. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 64, p. 344-351, ago. 2016.
  • 13
    Ver: FONSECA, Fernanda Padovesi; DUTENKEFER, Eduardo; ZOBOLI, Luciano; OLIVA, Jaime Tadeu. Cartografia digital geo-histórica: mobilidade urbana de São Paulo de 1877 a 1930. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 64, p. 131-166, ago. 2016
  • 14
    Lógicas espaciais são sempre sociais; lógicas sociais possuem uma dimensão espacial, daí ser dispensável a expressão socioespacial.
  • 15
    GEHL, Jan. Cidades para pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 38. 262 p.
  • 16
    SPECK, Jeff. Cidade caminhável. São Paulo: Perspectiva, 2016, 229 p.
  • 17
    Até 1899 a cidade estava sob administração executiva do governador da província (do estado) e da Câmara dos Vereadores, mas nesse ano cria-se o cargo de prefeito da cidade, criando um governo próprio para essa escala. O primeiro será o conselheiro Antonio Prado. Assim o retrata Roberto Pompeu de Toledo: “no dia 7 de janeiro de 1899, essa figura venerável, a mais venerável de seu tempo e lugar – de respeitabilidade, em todo o Brasil, só comparável a Rui Barbosa e ao barão do Rio Branco, avaliou um historiador –, torna-se prefeito de São Paulo, o primeiro da história. Sob seu comando, terá início uma cadeia de reformas cujo objetivo será adequar a acanhada urbe oitocentista, em muitos aspectos ainda recoberta pelo mofo colonial, aos tempos de riqueza trazida pelo ‘ouro verde’ – apelido da miraculosa plantinha que produzia o miraculoso café”. TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da vertigem, op. cit., p. 22.
  • 18
    Podemos dizer que nesse espaço, nesse tempo e um pouco mais adiante reinava certa urbanidade em construção, como mostra a profusão de teatros que São Paulo terá nesse período, nesse centro. No período compreendido entre 1850 e 1930 a cidade chegou a ter 172 teatros, número surpreendente apresentado na comunicação “Inventário da cena paulistana (1850-1930)”, pela professora Elisabeth Azevedo da ECA/USP, no Seminário de Pesquisa Cartografia do Desenvolvimento Urbano, Urbanização e Redes/Cartographie du Développement Urbain, Urbanisation et Réseaux. Organizado pela equipe do projeto “Dinâmicas de urbanização e representações espaciais: abordagem geo-histórica dos territórios com Sistemas de Informação Geográfica (SIG)” USP-Cofecub, 20 de agosto de 2015, na Cátedra Jaime Cortesão, Prédio da Geografia e História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP).
  • 19
    Joseph Bouvard, arquiteto francês, chamado pelo conselheiro Antonio Prado para aconselhá-lo sobre controvérsia de políticos, proprietários de imóveis e urbanistas paulistas em torno de projetos de obras no Vale do Anhangabaú, produziu um relatório que, afinal, influenciou decisivamente essas obras, com o seguinte ponto de vista: “Em todas as disposições cumpre não esquecer a conservação e criação de espaços livres, centros de vegetação e reservatórios de ar”. TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo: três cidades em um século. São Paulo: Livraria Duas cidades, 1983. p. 100.
  • 20
    Um sentido de ordem predominava nas discussões, e um centro compacto e diversificado como São Paulo era, na virada do século XIX para o XX, visto como um problema em si. Essa é uma hipótese forte, pois as discussões urbanísticas orientavam-se mais por questões estéticas, pelo problema do que fazer com as várzeas dos rios e riachos mais centrais Tamanduateí e Anhangabaú , pela presença ou não de áreas livres. Um ponto de vista que circulava, com certo prestígio, não era somente criar condições para se expandir, mas sim criar condições para a especialização espacial e para a “desdensificação”. É o que se pode deduzir das descrições das controvérsias urbanísticas da época, como, por exemplo, no livro de Benedito Lima de Toledo, São Paulo: três cidades em um século, ou então em A capital da vertigem, de Roberto Pompeu de Toledo.
  • 21
    “A separação trabalho-residência, as intervenções urbanísticas, a especulação imobiliária etc. são agentes degradadores dos centros tradicionais, cuja manifestação mais evidente é a transformação desses centros em distritos centrais de negócios (CBDs – Central Business Districts). Com instalações exclusivas para o trabalho, tornam-se desertos fora dos horários comerciais.” OLIVA, Jaime Tadeu. A cidade sob quatro rodas. Tese (Doutorado em Geografia). Programa de Pós-graduação em Geografia Humana, Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2004, p. 155.
  • 22
    MONBEIG, Pierre, op. cit., p. 6-7.
  • 23
    O Rio Pinheiros, a partir de 1926, ainda abrigava em suas margens clubes esportivos, com provas de travessia a nado e regatas náuticas. Estações elevatórias geravam energia barata em abundância, capaz de prover a industrialização do estado. A partir de 1928, foram iniciadas as obras de retificação do rio Pinheiros, que se estenderiam até os anos 1950 e foram realizadas pela Light and Power. O objetivo dessas obras era acabar com as inundações, canalizar as águas e direcioná-las para a Represa Billings, invertendo o sentido do rio, com a Usina Elevatória de Traição. O Rio Tietê, por sua vez, teve seu curso na área urbana da cidade de São Paulo regularizado e retificado de forma mais lenta e descontínua, apesar de existirem estudos desde o século XIX. As obras se realizam no século XX e terminam se completando com a instalação de rodovias marginais nas áreas imediatamente inundáveis. Ver: SEABRA, Odette C. de Lima. Os meandros dos rios nos meandros do poder. Tietê e Pinheiros: valorização dos rios e das várzeas na cidade de Paulo. Tese (Doutorado). Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1986; CUSTÓDIO, Vanderli. A persistência das inundações na Grande São Paulo. Tese (Doutorado em Geografia Humana). Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2002.
  • 24
    Há várias ocorrências de obras de grande porte no século XIX que canalizaram águas limpas, drenaram várzeas, aterraram pântanos, sanearam rios e várzeas, redirecionaram e retificaram os canais, tudo em benefício de uma urbanização completa nas várzeas de rios urbanos. Paris, Nova York e Londres (para ficarmos nas muito conhecidas) são algumas cidades que se beneficiaram de ações desse tipo. No caso de Londres, Steven Johnson descreve um panorama do saneamento londrino vinculado ao Rio Tâmisa que impressiona pela precariedade e pela situação das várzeas do rio. JOHNSON, Steven. O mapa fantasma. Como a luta de dois homens contra o cólera mudou o destino de nossas metrópoles. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. Tudo parecia insolúvel, no entanto, ainda no final do século XIX a questão foi solucionada com grandes obras, a cidade levou sua urbanização para as várzeas e, com isso, apropriou-se do rio para benefício do rio e da cidade. Ver: BRYNSON, Bill. Em casa. Uma breve história doméstica. São Paulo: Cia. das Letras, 2011; RECLUS, Élisée; BAEDEKER, Karl. Estações, fiacres, termas e esgotos. In: CHARLOT, Monica; MARX, Roland (Org.). Londres, 1851-1901. A era vitoriana ou o triunfo das desigualdades. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 30, por exemplo.
  • 25
    Aqui não se ignora que mesmo nessas condições os moradores, ainda assim, produzem sociabilidades e culturas interessantes, mas, certamente, com mais dificuldades para praticá-las e integrá-las no conjunto da cidade do que se estivessem em bairros com mais urbanidade.
  • 26
    Sob esse termo incluem-se todos os impactos pela agressividade no ambiente das edificações e atividades fabris, como, por exemplo, as diversas formas de poluição que tornam extremamente desagradáveis os ambientes de moradia e de convivência. Além do que, em situações desse tipo, poucas áreas são reservadas para moradia.
  • 27
    Governador da província, antes que o município passasse a ter como principal gestor o prefeito, cargo criado em 1899.
  • 28
    PETRONE, Pasquale. A cidade de São Paulo no século XX. Revista de História, v. 10, n. 21-22, p. 127-170, 1955, p. 136.
  • 29
    Está localizada no limite entre as zonas centro-sul, central e oeste, e em uma das regiões mais elevadas da cidade, chamada, a posteriori, de Espigão da Paulista, num caso incomum de obras humanas nominando formas de relevo, antes anônimas. A avenida foi criada no final do século XIX, a partir do desejo de paulistas de expandir, na cidade, novas áreas residenciais que não estivessem localizadas imediatamente próximas às mais movimentadas “centralidades” (a urbanidade) da época. A Avenida Paulista foi inaugurada no dia 8 de dezembro de 1891 por iniciativa do engenheiro Joaquim Eugênio de Lima e de Clementino de Souza e Castro.
  • 30
    “Édouard Fontaine de Laveleye, associado a investidores europeus e paulistanos, constituiu em 1911 a City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited, empresa que gerou seu capital inicial para a compra das terras com a emissão de papéis garantidos pela hipoteca dos próprios terrenos.” WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Jardim América. São Paulo: Edusp, 2015, p. 83.
  • 31
    “A empresa, com escritórios em Londres, Paris e São Paulo, adquiriu 12.380.098 metros quadrados de terrenos na cidade, o que correspondia em 1912 a 37%, mais de um terço, do perímetro urbano de São Paulo.” Ibidem.
  • 32
    “Já para a seleção das terras houve uma peculiar conjugação de interesses e de conhecimento do potencial desenvolvimento da cidade. Os principais personagens do início da atuação da City em São Paulo e que compuseram sua diretoria foram: o diretor de Obras Públicas da prefeitura, Victor da Silva Freire; o arquiteto francês que trabalhara nas grandes remodelações de Paris e que exercia o papel de consultor e propositor de projetos de urbanização na cidade, Joseph Bouvard; o banqueiro europeu em busca de investimentos, Édouard Fontaine de Laveleye; Horácio Belfort Sabino (nomeado procurador da companhia) e Cincinato Braga, membros da elite local que vinham loteando áreas contiguas à avenida Paulista, em bairros chamados Vila América e Vila Nova Tupi; e ainda Lord Balfour, governador do Banco da Escócia e presidente da São Paulo Railway, além de outros diretores da mesma companhia, de bancos e da Light and Power, empresa concessionária de serviços de bonde e de eletricidade em São Paulo.” Ibidem, p. 84.
  • 33
    “Brasília é uma cidade dos CIAM [Congrès Internationaux d’Architecture Moderne]. Na verdade, é o exemplo mais completo já construído das doutrinas arquitetônicas e urbanísticas apresentadas pelos manifestos dos CIAM [...]. Em seu manifesto mais significativo, A Carta de Atenas, os objetivos do planejamento urbano são definidos a partir de quatro funções: ‘As chaves para o planejamento urbano estão nas quatro funções: moradia, trabalho, lazer, circulação’ [Le Corbusier, 1957, art. 77].” HOLSTON, James. A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo: Cia. das Letras, 1993, p. 37.
  • 34
    Os princípios desse movimento foram publicados no único livro escrito por Howard ao longo de seus 78 anos de vida. Publicado em 1898 com o título de To-morrow: a peaceful path to real reform [Amanhã: um caminho tranquilo para a refoma autêntica], ganhou nova edição em 1902 com o título Garden cities of to-morrow. HALL, Peter. Cidades do amanhã. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 104.
  • 35
    Uma geração antes de Ebenezer Howard já havia uma linhagem de célebres militantes de mundos alternativos, denominados socialistas utópicos, como Saint-Simon, Charles Fourier, Louis Blanc e Robert Owen, esse último um industrial que usa seu capital em experimentos cooperativistas.
  • 36
    HALL, Peter. A cidade no jardim. A solução cidade-jardim: Londres, Paris, Berlim, Nova York (1900-1940) In: _____. Cidades do amanhã. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 104.
  • 37
    Piotr Alexeyevich Kropotkin (1842- 1921), geógrafo, escritor e ativista político russo, foi um dos principais pensadores políticos do anarquismo no fim do século XIX, considerado também o fundador da vertente anarco-comunista.
  • 38
    “Ele deve ter visto o novo subúrbio-jardim Riverside, projetado pelo grande arquiteto-paisagista Frederick Law Olmsted, erguer-se às margens do Rio Des Plaines, a uma distância de 9 milhas da cidade.” HALL, Peter, op. cit., p. 106. Olmestd também criou o Central Park em Nova York, o Parque do Mont Royal em Montreal, a reserva natural de Niágara, nas Cataratas do Niágara, no estado de Nova York, e vários outros projetos.
  • 39
    Ver nota 25, sobre as condições sanitárias de Londres.
  • 40
    “A cidade-jardim teria um limite fixo – Howard sugeriu 32.000 habitantes para 1.000 acres de terra, perto de uma vez e meia mais que a cidade histórico-medieval de Londres. A seu redor, uma área muito mais larga de cinturão verde perene, também de propriedade da companhia – Howard propôs 5.000 acres –, conteria não só granjas, mas também toda espécie de instituições urbanas, tais como reformatórios e casas de repouso, que só teriam a ganhar com uma localização rural.” HALL, Peter, op. cit., p. 109.
  • 41
    “R. Unwin nasceu em 1863, Barry Parker em 1867, ambos no norte da Inglaterra. Nenhum deles foi formalmente treinado para arquiteto; Unwin começou como engenheiro, Parker como decorador de interiores. Ambos se desenvolveram dentro de uma intensa fermentação de ideias, decorrente em parte do pensamento de William Morris (um socialista) que os iria influenciar em todos os seus trabalhos subsequentes.” HALL, Peter, op. cit., p. 115.
  • 42
    JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 17.
  • 43
    O primeiro projeto de subúrbio-jardim desenvolvido e implementado pela Cia. City foi de autoria de Barry Parker, o que reforça a ideia de pedigree autêntico, afinal um dos três principais mentores deslocou-se até o Brasil para trabalhar na São Paulo City. Jardim América e Alto da Lapa são seus projetos pessoais, e não só o urbanismo dos bairros, como vários projetos de casas. Ele deixou sua experiência registrada em: “Two years in Brazil” (The Garden Cities and Town Planning Magazine, v. 9, n. 8, p. 145, ago. 1919). WOLFF, Silvia Ferreira Santos, op. cit., p. 72.
  • 44
    Originalmente o projeto do Jardim América era de R. Unwin e Barry Parker. Eles o elaboraram em Londres. “Barry Parker, contratado para vir estudar localmente as soluções urbanísticas ideais para o aproveitamento dos terrenos de relevo irregular e pantanoso, ao conhecer a realidade paulistana em 1917, optou por rever o projeto do Jardim América. Restringiu as categorias de uso ao predomínio quase exclusivo da função residencial para as classes altas, eliminando a praça e seus prédios públicos. Reforçou-se assim a ideia do loteamento como um bairro em extensão à cidade existente e dependente das atividades nela desenvolvidas.” Ibidem, p. 140.
  • 45
    Esse projeto é realmente magnífico, pois na Lapa de Baixo Barry Parker projetou uma área industrial e comercial. Porém, completamente separados.
  • 46
    HALL, Peter, op. cit., p. 117.
  • 47
    Foi prefeito da cidade de São Paulo em dois períodos, de 6 de dezembro de 1930 a 25 de julho de 1931 e de 14 de novembro a 4 de dezembro de 1931. Professor emérito da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, foi um dos fundadores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, lecionou estética, composição e urbanismo e, como se vê, foi defensor de uma ordem antidiversidade e protagonista de publicidade da Cia. São Paulo City.
  • 48
    Texto original de publicidade publicada pela Cia. São Paulo City no jornal O Estado de S. Paulo, 9 de junho de 1929, p. 3. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19290609-18258-nac-0003-999-3-not>. Acesso em: out. 2016.
  • 49
    Ibidem.
  • 50
    O Estado de S. Paulo, 1o de setembro de 1929. Transcrevemos por não ser legível na figura.
  • 51
    Uma famosa canção popular, “Casa no campo”, composta por Zé Rodrix, tem por trás uma história que é quase uma anedota. Zé Rodrix morava no Pacaembu, um subúrbio-jardim da Cia. São Paulo City, e essa era a casa no campo que ela amava e cantou, segundo o depoimento do seu parceiro Luiz Carlos Sá numa entrevista à Rádio USP no mês de outubro de 2016.
  • 52
    É notável como esse discurso ainda está presente quando se trata de preservar os subúrbios-jardim e vem pela voz de mais um arquiteto e urbanista, professor emérito da FAU/USP, seguindo a linhagem dessa escola que parece não prezar a urbanidade. Trata-se de Cândido Malta Campos Filho, um importante estudioso da cidade de São Paulo, que diz: “O direito de morar tranquilo é fundamental. O administrador de toda cidade civilizada deve assegurar o direito de ir e vir associado ao de morar bem. Em São Paulo, há poucas ilhas de tranquilidade, bairros que são unidades de vizinhança poupadas do caos urbano que impera. O projeto de zoneamento anunciado pelo prefeito Fernando Haddad [...] coloca em risco essas ilhas. Se a proposta for aprovada, bairros residenciais como os Jardins – América, Europa, Paulista, Paulistano, da Saúde, Previdência, São Bento, Boaçava, Lusitânia, Pacaembu, Morumbi, Alto de Pinheiros, Sumaré, Alto da Lapa, Alto da Boa Vista, entre outros – estarão seriamente ameaçados. Os Jardins América, Europa, Paulista e Paulistano são a região mais arborizada da cidade, uma ilha verde em meio a um mar de prédios, e prestam um serviço ambiental à cidade no Centro Expandido”. CAMPOS FILHO, Cândido Malta. Pelo direito de morar tranquilo. Folha de S. Paulo, 3/6/2015, p. 3. Irresistível não destacar que fora dessa “vida no campo”, agora uma ilha, reina o caos, pois essa é a visão do professor a respeito da cidade que cerca as tais ilhas de tranquilidade, tal como na remota publicidade da Cia. City.
  • 53
    Criadas pela lei do zoneamento de 1972, as Z1 (áreas de uso estritamente residencial, destinadas somente a casas, em que é proibida a verticalização) representam, hoje, 4,8% do total de São Paulo (o que corresponde a 29 milhões de m2), conforme a Secretaria Municipal de Planejamento Urbano. É bom saber que, se a conta for somente o que está entre os dois rios, a área dos bairros city sobe para mais de 15%, o que não é nada desprezível. Além de protegidos pela Lei de Zoneamento os bairros city foram tombados em 25/1/1986, com o argumento do seu pedigree e da questão ambientalista... além, é claro, da força política dos atores envolvidos.
  • 54
    DINIZ, Tatiana. “Oásis” residenciais ocupam 4,8% de SP. Folha de S. Paulo, 14 de janeiro de 2001, caderno Imóveis.
  • 55
    Esse modelo alçou o fenômeno do rodoviarismo (ônibus em primeiro lugar) à condição de monopólio da circulação, que resultará posteriormente na cidade mais automobilizada do planeta. OLIVA, Jaime Tadeu, op. cit.
  • 56
    PAQUOT, Thierry. Ghettos de riches.Tour du monde des enclaves résidentielles sécurisées. Paris: Perrin, 2009, p. 7.
  • 57
    Cf. LÉVY, Jacques. Le développement urbain durable entre consensus et controverse. L’Information Géographique, v. 74, n. 3, p. 39-50, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2016
  • Aceito
    22 Nov 2016
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