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Escola de editores (autodidatas)

No Editorial do próximo número da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, em agosto de 2017, o leitor encontrará a assinatura de novos(as) editores(as). Em muitos periódicos acadêmicos, os editores cumprem um mandato definido pelo colegiado ao qual pertencem. No caso da RIEB, respondem pela empreitada por dois anos, designados pela Câmara Científica (CaC) do IEB, composta de professores e de professoras de diferentes áreas das Humanidades e das Artes vinculados ao Instituto.

Sem uma prévia formação para atuar à frente de um periódico científico indexado em portais de abrangência internacional e avaliado pelo Qualis Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Capes, esses professores universitários descobrem um "admirável mundo novo". Em exíguo espaço de tempo, precisam conhecer, em profundidade, a engrenagem da plataforma eletrônica da revista, atender às rigorosas exigências de seu funcionamento, conhecer as normativas intelectuais, legais e éticas que a regem, manejar instrumentais tecnológicos de alta complexidade, para os quais não foram preparados. Defrontam-se, no início de suas atividades, com siglas e codificações sibilinas, nomeando indexadores e programas computacionais inerentes à prática editorial.

Colocando-se (ativamente) nos bastidores da circulação de conhecimentos no território científico, em face das colaborações acolhidas na plataforma da publicação, os seus responsáveis orquestram intrincadas etapas de trabalho: avaliam a pertinência dos textos recebidos, considerando o perfil do periódico pelo qual respondem; refletem sobre as dimensões tensionadoras do saber, determinando nomes de pareceristas que podem dialogar produtivamente com os temas dos artigos; defrontam-se, nessa fase, comumente, com a indisponibilidade de avaliadores, assoberbados de tarefas profissionais. De posse das apreciações recebidas, os editores elaboram súmulas, a partir de julgamentos muitas vezes divergentes (reflexo natural da pluralidade de pontos de vista nas Humanidades, nas Artes, nas Ciências Naturais e Exatas), que, na sequência, serão dirigidas aos autores. Acompanham a reformulação dos artigos, a sua normatização (biblio)gráfica, a difusão e a acolhida entre os leitores, nos índices de consulta. Se podem propiciar fecundo diálogo entre pares, resguardados pelo anonimato, também têm a responsabilidade de anunciar rejeições de textos, pesando sobre os editores a frustração de autores, alguns deles reagindo de maneira destemperada. Mais afazeres: submeter projetos para a obtenção de verbas em editais de publicação, avaliar (e questionar) a realidade das classificações institucionais de periódicos, participar de fóruns, representar a revista nas reuniões de editores etc. Prazos cerrados para o cumprimento da periodicidade. Demandas, tantas, sincopadas, cotidianas.

Entre as habilidades esperadas em um editor de periódico científico, contam-se: disposição para conhecer, amplamente, o campo intelectual, suas variadas frentes e perspectivas hermenêuticas (para que os artigos submetidos possam ser adequadamente avaliados); compromisso de familiarizar-se com o aparelho tecnológico especializado de produção da revista, atualizando-se sempre (para atender, com agilidade, às muitas exigências técnicas); postura de administrador proativo, sabendo conduzir harmonicamente a sua equipe (gestores, colaboradores, preparadores de texto, revisores, diagramadores); protagonismo no processo editorial; posição crítica, recusando a automação mecânica dos processos, visto que o conhecimento exige maturação, reflexão, desabrochamento, cogitação. E, cela va de soi: respeito ao trabalho intelectual, abertura para as divergências críticas, habilidade para a arbitragem de tensões, engajamento no progresso do saber. Tudo isso em azeitada marcha - o trabalho e os dias -, o quanto de sua própria produção intelectual os editores não deixaram de avançar como poderiam em razão do compromisso na difusão das pesquisas de seus pares? Caberia indagar se as comissões de avaliação de regime de trabalho das universidades dimensionam favoravelmente o exercício profissional dos editores (que são também professores, pesquisadores e orientadores).

De um lado, os editores vivem uma experiência intelectual enriquecedoramente singular; de outro, sobre eles pesa o ônus de sua dedicação, na extensa ampliação de sua jornada profissional. De todo modo, um periódico científico pode ser considerado uma escola (autodidata) de editores.

Os artigos reunidos neste número, seguindo a linha editorial da RIEB, procuram colocar em evidência perspectivas críticas interdisciplinares, com sua diversidade de instrumental teórico e analítico. A abrangência de assuntos abordados nos textos reflete a dimensão multifária da realidade dos saberes interseccionados. Os dois primeiros artigos, aprovados pelos editores, situam-se na confluência de áreas. "The superstars of contemporary art: a sociological analysis of fame and consecration in the visual arts through indigenous rankings of the 'Top Artists in the World'", de Alain Quemin, professor da Universidade de Paris 8 e diretor adjunto do Institut d'Études Européenes, ‎propõe uma questão candente no campo da sociologia da arte, analisando o modo como são construídos os principais rankings mobilizados pelo mundo da arte atual para hierarquizar (e consagrar) os artistas contemporâneos no mundo. "Representações da fome: carestia e racialização na obra Pedaços da fome, de Carolina Maria de Jesus", de Fernando Cauduro Pureza, doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, propicia o encontro da literatura, da sociologia e da história econômica, para mostrar "a força e a atualidade da [...] produção literária" da conhecida autora de Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960); nesta oportunidade a RIEB quer lançar luz sobre os 40 anos da morte de Carolina, escritora sempre viva.

O artigo "Onde andarão Castana, Matilde, Sérgio, Domingos, Ariosto...? Os desaparecidos como princípio formal dos romances de Chico Buarque", de Juliane Vargas Welter, professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, explora "as relações entre literatura e sociedade"; sublinha que os romances abordados, "no melhor estilo freudiano, recordam e repetem uma memória recalcada da e na sociedade" brasileira, fazendo ecoar os anos de ditadura civil-militar, de 1964 a 1985. "A biblioteca de Osman Lins no IEB/USP e na Fundação Casa de Rui Barbosa", de Eder Rodrigues Pereira, pós-doutorando do IEB-USP, apoiado nas reflexões dos estudos de bibliotecas de escritores, mostra a potência da intertextualidade na investigação dos processos criativos do autor de Avalovara (1973).

"Evolução do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal", artigo em coautoria de Natália Rodrigues de Mello, mestranda do Instituto de Energia e Ambiente da USP, e do professor Paulo Artaxo, do Instituto de Física da USP, realiza a análise da implementação de um projeto do governo brasileiro, cumprido em três fases, de 2004 a 2015, visando à redução do desmatamento da floresta amazônica. O artigo "Singularidade e identidade nas manifestações de 2013", de Ricardo Fabrino Mendonça, professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, considerando "o paradoxal fortalecimento de processos individualizantes na contemporaneidade", coloca uma lupa nos relatos testemunhais de 20 manifestantes das "Jornadas de Junho de 2013" em Belo Horizonte, vigorosa movimentação política vivenciada igualmente em muitas outras cidades do país.

Importantes experiências musicais brasileira do século XX oferecem elementos para uma densa reflexão sobre processos sociais e procedimentos criativos. O artigo "'Três apitos': lirismo e violência em Noel Rosa", de Guto Leite, professor do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, detecta, nas camadas mais profundas de uma conhecida canção romântica, "os signos da violência" de classe. Em "Nara Leão: entre a bossa nova e a canção engajada", de Ismael de Oliveira Gerolamo, doutorando em Música na Universidade Estadual de Campinas, ao se voltar para o primeiro álbum de Nara Leão, de 1964, flagra uma "guinada estética em relação à bossa nova", no sentido de "um novo universo de questões artísticas e políticas", espelhando as transformações da canção popular da época. "Um coração futurista: a construção da sonoridade de Egberto Gismonti no início de sua trajetória (1969-1976)", de Maria Beatriz Cyrino Moreira, professora do curso de Música da Universidade Federal da Integração Latino-americana, enseja a apreensão de "estruturas mais profundas [das] construções composicionais e [das] intenções musicais" do criador de "O sonho", em seus primeiros álbuns, vincados pela força do experimentalismo.

Finalmente, o artigo "A formação da metrópole paulista: um diálogo entre Richard Morse e Antonio Candido", de Ana Claudia Veiga de Castro, professora de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, busca deslindar os nexos entre as percepções críticas do historiador estadunidense e as do autor da Formação da literatura brasileira.

Duas resenhas, tangenciado temas no horizonte de um instituto de pesquisa que abriga acervos pessoais e fomenta investigações interdisciplinares, integram também este número da RIEB: Cleber Araújo Cabral, pós-doutorando no Acervo de Escritores Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais, debruça-se sobre o livro Arquivos literários - teorias, histórias, desafios, do professor Reinaldo Marques. O mestre em Culturas e Identidades Brasileiras, do IEB, Eduardo Tadafumi Sato, focaliza Música & Ciências Sociais: para além do descompasso entre arte e ciência, organizado por Dmitri C. Fernandes e Carlos Sandroni.

Na seção "Documentação", Thiago Mio Salla, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, que vem divulgando, com Ieda Lebensztayn, produção inédita de Graciliano Ramos, nos oferece três escritos não integrados nos livros do escritor alagoano, estampados em periódicos entre 1945 e 1951. A apresentação dos textos, acompanhados de farta anotação contextualizadora, constitui-se como modelo frutífero de prática editorial. Além da reprodução fac-similar dos textos jornalísticos do criador de São Bernardo, a RIEB estampa, em outras de suas páginas, matéria iconográfica pertencente ao Fundo Graciliano Ramos no setor de Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros, tarefa de seleção realizada por Elisabete Marin Ribas, supervisora técnica do Arquivo IEB, e Flávio Alves Machado, diagramador de nossa revista. Os editores agradecem especialmente à Família Graciliano Ramos.

Se há expectativas em relação ao trabalho de editores, elas não se cumprem inteiramente sem o suporte de uma equipe de apoio afinada. Agradecemos à excelente equipe técnica da RIEB, moldada por Pérola R. Ciccone, com discernimento administrativo, na Divisão Científico-Cultural do IEB: Cleusa Conte Machado, Flávio Alves Machado e Pedro Bolle.

O agradecimento estende-se aos editores que nos antecederam, Walter Garcia e Jaime Tadeu Oliva, pela boa camaradagem intelectual e pelo sentido de engajamento institucional na produção da revista. Com esse mesmo compromisso, agora, depois de cumprida a tarefa que nos foi confiada, passaremos o bastão para os futuros editores, que seguirão conduzindo uma prestigiosa revista com mais de 50 anos de história.

Boa leitura!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017
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