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Mário, Sábato

Mário, Sábato


Ao receber poemas de Lira Paulistana, ainda inéditos, que lhe foram entregues por Sábato Magaldi, a pedido de Mário de Andrade, a escritora mineira Henriqueta Lisboa compõe, na carta ao amigo paulistano, em 22 de outubro de 1944, o perfil intelectual do jovem que batera à sua porta em Belo Horizonte: “Esse que veio à minha casa e tem dezessete anos já devorou todo ou quase todo o Gide!”1 1 Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 22 out. 1944. SOUZA, Eneida Maria de (Organização, introdução e notas); PALU, Pe. Lauro (Notas); BARSALINI, Maria Sílvia Ianni (Estabelecimento de texto das cartas). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo: Edusp/IEB/Peirópolis, 2010, p. 301. .

Mário de Andrade foi apresentado a Sábato Magaldi em meados de setembro desse mesmo ano, em sua quarta viagem à capital mineira, que, em 1924, lhe inspirara os versos de “Noturno de Belo Horizonte”. Pretendia ir “pra abraçar e conversar amigos”2 2 Carta a Otávio Dias Leite, 13 ago. 1944. MORAES, Marcos Antonio (Organização, introdução e notas). Mário, Otávio – cartas de Mário de Andrade a Otávio Dias Leite (1936-1944). São Paulo, IEB/USP-Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes-Imprensa Oficial, 2006, p. 100-101. , como os que fizera em novembro de 1939, entre eles, Murilo Rubião, João Etienne Filho e Otávio Dias Leite. Descompromissado, viajava por conta própria; avisou a Otávio: não desejava “anúncio no jornal, nem aproximação com personagens oficiais nem entrevista (vá à merda!)”3 3 Ibidem, p. 101. . Tencionava ver de perto “essa maravilha”, a Pampulha4 4 Ibidem. , com o “Iate Clube, Sala de Baile, Cassino, a igreja quase terminada, e em andamento o Grande Hotel. Tudo da arquitetura mais moderna do mundo”5 5 Carta a Paulo Duarte, 30 set. 1944. DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. 2. ed. São Paulo: Hucitec/Prefeitura do Município de São Paulo/Secretaria Municipal de Cultura, 1985, p. 280. .

Os dias vividos em Belo Horizonte, entre moços, são lembrados em carta a Paulo Duarte, em 30 de setembro, em que reitera a sua percepção da “inteligência mineira” como “a mais completa e harmoniosa do Brasil”6 6 Ibidem, p. 280. . Desenha o espectro do grupo que o acolhera calorosamente, incitando nele gestos de solidariedade:


Encontrei lá um grupo de novos extraordinário [...]. Tive que cortar um doze danado, tantas perguntas, e tantas preocupações graves e nobres, eu me fazendo participante de tudo, e... foi assim como se eu tivesse me esquecido de mim, inteiramente entregue ao estudo e ajuda daqueles espíritos graves e torturados pelo mundo. Sim, foi maravilhoso, não tem dúvida, uma vida densa e intensa da manhã à noite, ou melhor, madrugada, por quinze dias7 7 Ibidem, 280.. .

De volta à rua Lopes Chaves, 546, permaneceu em Mário de Andrade a “preocupação com aquela gentinha”8 8 Ibidem, p. 281 querida e, como “professor”, sentia a “necessidade de lhes dizer certas coisas mais duras a respeito deles mesmos, de dar coragem para eles se retemperarem em maior firmeza”9 9 Ibidem. . A atuação engajada do escritor modernista, em tempos de conflito mundial e de autoritarismo do Estado Novo, passava a exigir dos intelectuais posturas incisivas, inconformistas. Os versos de Lira paulistana, ciculando na mãos dos moços mineiros, traziam o germe político. De modo ambivalente, contudo, ressentia-se de que esses rapazes não pudessem viver despreocupados da realidade social, como ele próprio, em sua juventude.


Ao escrever, em primeiro lugar a Otto Lara Resende, em 24 de setembro, uma semana depois de sua chegada, Mário fixa um retrato abrangente das gerações que se sucediam, instituindo vínculos. Traz à memória os nomes de Hélio Pelegrino, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Wilson Figueiredo (o “Figueiró”), Emílio Moura, os irmãos José Geraldo e José Renato Santos Vieira, Alphonsus de Guimarães Fiho, Murilo Rubião e Sábato Magaldi:

[...] vocês formam um grupo extraordinário dentre os grupos de moços que conheço no Brasil. Falo exatamente do que me pareceu ser o grupo, você, o Hélio, o Paulo, o Fernando, não sei até que ponto do Figueiró, e com a presença perfeita, a antepresença do Emílio. Os outros são muito moços, sensivelmente “outra geração”, menos na idade que pelo deslumbramento em que ainda vivem no aprendizado da vida, o Sábato, o Frederico, Geraldo, Renato etc. E há também os outros, como um Alphonsus, por exemplo, que são, em relação ao grupo, distantes. E há o Murilo10 10 Carta Aberta/De Mário para Otto. Carta de Mário de Andrade a Otto Lara Resende, São Paulo, 24 set. 1944. Serrote, n. 1, São Paulo, mar. 2009, p. 216. Disponível em: <www.revistaserrote.com.br/2011/06/de-mario-para-otto>. Acesso em: 13 nov. 2017. .

Do estudioso Sábato, que tanto impressionou Henriqueta Lisboa, Mário trouxe consigo “versos” para comentar, como parece sugerir a carta a ele remetida em 3 de outubro. A verve criativa do rapaz ainda se espraiava na prosa de ficção. O criador de Macunaíma, escrevendo a Hélio Pelegrino, em 22 de novembro, coloca em pauta o julgamento negativo do destinatário acerca de um “conto” de autoria de Magaldi, que considerava “pura gratuidade [...] política”11 11 Carta de Mário de Andrade a Hélio Pelegrino, 22 nov. 1944. Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro. e portanto infecundo na luta contra os donos da vida. Mário sai em defesa do autor: “Que mal há que ele exerça suas armas intelectuais e prepare sua técnica futura de escritor em contos gratuitos, e mesmo experimente isso pela publicação?”12 12 Ibidem. . Nessa formulação, aparentemente contraditória em relação ao pensamento político de Mário de Andrade, avesso a “gratuidades”, vislumbra-se um procedimento pedagógico que prevê etapas, entre as quais a plena conquista da expressão, a partir do qual o criador passaria a exigir, cada vez mais, uma consciência crítica de si e, assim, tomar a sua arte como desassossegado exercício de participação social.

Mário de Andrade, no final de 1944, esforçava-se por superar o abatimento (“estado de gaveta”), confessado na carta a Sábato, mergulhando em suas múltiplas atividades, a correspondência uma delas. Refere-se à sua atuação (engajada) na coluna Mundo Musical, na Folha da Manhã, de São Paulo, e à escrita da monografia sobre o padre Jesuíno de Monte Carmelo, pesquisa devida ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), do qual, em 1936, vale lembrar, fora o autor do anteprojeto.

O diálogo com Sábato - o “Babá” dos amigos mais próximos - estava aberto, Mário de Andrade oferecendo a ele seus versos ainda em manuscritos, tornando-o um privilegiado agente de difusão de seus escritos, e com ele partilhando o impulso criativo que, a 30 de novembro, o levaria à escritura de “A meditação sobre o Tietê”, o seu testamento poético. Com a morte de Mário, em 25 de fevereiro de 1945, as parcas interromperiam uma auspiciosa correspondência que mal se iniciava.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ARQUIVO-Museu de Literatura Brasileira, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.
  • CARTA ABERTA/De Mário para Otto. Carta de Mário de Andrade a Otto Lara Resende, São Paulo, 24 set. 1944. Serrote, n. 1, São Paulo, mar. 2009, p. 216. Disponível em: <www.revistaserrote.com.br/2011/06/de-mario-para-otto>. Acesso em: 13 nov. 2017.
    » www.revistaserrote.com.br/2011/06/de-mario-para-otto
  • DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. 2. ed. São Paulo: Hucitec/ Prefeitura do Município de São Paulo/ Secretaria Municipal de Cultura, 1985.
  • MORAES, Marcos Antonio (Organização, introdução e notas). Mário, Otávio: Cartas de Mário de Andrade a Otávio Dias Leite (1936-1944). São Paulo, IEB/USP-Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes-Imprensa Oficial, 2006.
  • SOUZA, Eneida Maria de (Organização, introdução e notas); PALU, Pe. Lauro (Notas); BARSALINI, Maria Sílvia Ianni (Estabelecimento de texto das cartas). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo: Edusp/IEB/Peirópolis, 2010.
  • 1
    Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade, 22 out. 1944. SOUZA, Eneida Maria de (Organização, introdução e notas); PALU, Pe. Lauro (Notas); BARSALINI, Maria Sílvia Ianni (Estabelecimento de texto das cartas). Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo: Edusp/IEB/Peirópolis, 2010, p. 301.
  • 2
    Carta a Otávio Dias Leite, 13 ago. 1944. MORAES, Marcos Antonio (Organização, introdução e notas). Mário, Otávio – cartas de Mário de Andrade a Otávio Dias Leite (1936-1944). São Paulo, IEB/USP-Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes-Imprensa Oficial, 2006, p. 100-101.
  • 3
    Ibidem, p. 101.
  • 4
    Ibidem.
  • 5
    Carta a Paulo Duarte, 30 set. 1944. DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. 2. ed. São Paulo: Hucitec/Prefeitura do Município de São Paulo/Secretaria Municipal de Cultura, 1985, p. 280.
  • 6
    Ibidem, p. 280.
  • 7
    Ibidem, 280..
  • 8
    Ibidem, p. 281
  • 9
    Ibidem.
  • 10
    Carta Aberta/De Mário para Otto. Carta de Mário de Andrade a Otto Lara Resende, São Paulo, 24 set. 1944. Serrote, n. 1, São Paulo, mar. 2009, p. 216. Disponível em: <www.revistaserrote.com.br/2011/06/de-mario-para-otto>. Acesso em: 13 nov. 2017.
  • 11
    Carta de Mário de Andrade a Hélio Pelegrino, 22 nov. 1944. Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.
  • 12
    Ibidem.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017
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