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Samba, sambas: uma encruzilhada de conflitos (1917-2017)

Samba, sambas: a crossroads of conflicts (1917-2017)

É um lugar-comum promover grandes celebrações em datas redondas. Mas, por ironia ou por correção do destino, o centenário (digamos, oficial) do samba foi celebrado, em 2017, quando havia se tornado evidente o esfacelamento da noção de “povo brasileiro” como horizonte e ideia reguladora dos mais diversos projetos políticos de desenvolvimento econômico e social3 3 É sem nenhuma pretensão de reduzir as causas desse esfacelamento a uma só dimensão que atentamos para alguns dos impasses vividos na esfera econômica e na social. Levando em conta a crítica de Robert Kurz emO colapso da modernização (KURZ, 1999), podemos inferir que as manifestações de 2013 e os seus desdobramentos reacionários nos anos seguintes, a atuação conservadora e violenta da mídia hegemônica desde então, bem como os acontecimentos jurídicos e políticos a partir de 2014 são saltos que respondem a um processo em marcha desde a década de 1980 e que o aceleram. Ao longo desse processo, na crítica de Paulo Eduardo Arantes, para ganhar tempo multiplicaram-se “saídas de emergência”, e “a engenharia social chamada ‘lulismo’ foi uma delas” (ARANTES, 2016, p. 7): a administração da economia e da sociedade “como uma convergência virtuosa de interesses”, o que se traduziu na busca de equilíbrio entre “lucros extraordinários e cesta básica, rentismo e crédito consignado”, concessão de “poder soberano” às megacorporações (ARANTES, 2007, p. 291) e “gestão das populações vulneráveis” por meio do incentivo às práticas culturais (ARANTES, 2014, p. 337). .

Ao iniciarmos a organização deste dossiê, não poderíamos adivinhar que esse problema acabaria configurando uma área de intersecção dos dez artigos aqui reunidos. Não terá sido, contudo, sem razão. Tratava-se (e ainda se trata) de um dos problemas que o momento colocava (e ainda coloca) para os estudos acadêmicos. No plano da cultura, ele pode ser entendido como uma encruzilhada de conflitos: de um lado, há a construção histórica de uma identidade nacional, a qual sempre buscou equacionar ou escamotear antagonismos de classe, de raça, de gênero, sufocando diferenças culturais; de outro, há a construção histórica de pertencimentos locais; e, de outro lado ainda, há a construção histórica de identidades étnicas supranacionais. E, embora muito da pluralidade dos temas e das abordagens presentes neste dossiê permaneça de fora dessa encruzilhada, uma formulação de Paulo Eduardo Arantes bem pode resumir a confluência a que nos referimos: “o Brasil, hoje, não é mais a sociedade nacional que nunca chegou a ser” (ARANTES, 2014_____. Em cena. In: ARANTES, P. E. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 331-339., p. 334-335).

O primeiro artigo, de Cláudia Neiva de Matos (UFF), estuda a combinação ambígua de prazer e de dor na obra de Bide e Marçal. Em alguma medida, a autora retoma e amplia seu livro Acertei no milhar: samba e malandragem no tempo de Getúlio - resultado de seu mestrado em literatura, uma das primeiras pesquisas que se fez, em profundidade, sobre a poética do samba, tendo como foco principal as obras de Wilson Batista e de Geraldo Pereira; como se sabe, o livro, publicado em 1982, permanece referência obrigatória para os estudos acadêmicos. No artigo, a análise de Matos nos conduz à reflexão sobre o samba como síntese de um duplo encontro do sujeito: “com as penas da vida, aquelas que traz dentro de si, mas também com a vida da comunidade à qual ele pertence e para cuja festa contribui”. Na sequência, o artigo de Amailton Magno Azevedo (PUC-SP) discute “o protagonismo negro do samba na cidade de São Paulo”. Em sua leitura a contrapelo do “mito da brasilidade paradisíaca”, Azevedo mobiliza tanto a ideia do “corpo como instrumento de resistência sociocultural e como agente emancipador da escravidão” quanto os estudos das “memórias negras” que inibem a maior visibilidade dada à presença italiana em São Paulo (sobretudo em relação à primeira metade do século XX) e, ao mesmo tempo, desautorizam “qualquer pretensão de afirmar que os negros daqui não sabiam nada de samba, de festa e de reza”.

Leandro Barsalini (Unicamp) recupera aspectos do processo de difusão da bateria (instrumento criado no universo jazzístico estadunidense) pela via do samba na música brasileira. Em 1917, mesmo ano da primeira gravação de “Pelo telefone”, o instrumento (ou uma versão dele) já era noticiado pela imprensa carioca. Mas é somente a partir da década de 1930, quando o samba já sedimentara os padrões de seu naipe característico, embalados pela ideia reguladora de “povo brasileiro”, que bateristas começam a adaptar a execução coletiva dos instrumentos “rústicos” e, ao mesmo tempo, a definir estilos e padrões estéticos do samba. Ao contar essa história, Barsalini abre diversas janelas pelas quais se podem divisar, em diferentes âmbitos da vida musical, tensões e conflitos que emanaram do andamento histórico-social da então capital do país. A seguir, Enrique Valarelli Menezes (Unicamp) aborda “transformações de padrões centro-africanos (linhas-guia em particular) no samba urbano do sudeste brasileiro”. O artigo reúne, articulando-os com rigor, saberes da prática artística, análises musicológicas e pesquisas historiográficas. Além de fazer a revisão da literatura, Menezes amplia o conhecimento de diversos traços africanos na música brasileira, examina a estrutura rítmica do samba e contribui para a discussão das diferentes Áfricas que, desde o horrendo ambiente cultural da escravidão”, aqui se encontraram e se comunicaram, “conectando tradições e percepções milenares que os deportados carregavam consigo”.

Marina Bonatto Malka (UFRGS) e Carlos Augusto Bonifácio Leite (UFRGS) analisam canções compostas, em 1956, por Tom Jobim e Vinicius de Moraes para a peça Orfeu da Conceição, e por ambos os compositores e também Luiz Bonfá e Antônio Maria, em 1959, para o filme Orfeu negro, direção de Marcel Camus. A autora e o autor argumentam que a “repercussão mundial da bossa nova”, da qual aquelas canções fizeram parte, não teria beneficiado somente esse movimento modernizador, mas também o “samba tradicional”. Ofereceu-se ao mundo, assim, uma “síntese entre um país que se modernizava e suas tradições”. Esse caráter sintético atribuído ao surgimento da bossa nova é problematizado no artigo de Gabriel Lima Rezende (Unila). A partir de uma leitura sociológica do texto musical de “Chega de saudade”, o autor argumenta que Jobim assume como problema composicional uma tarefa impossível: transformar o passado tradicional em presente moderno sem descontinuidades ou rupturas. Assim, a “promessa de felicidade” da bossa nova (segundo a formulação de Lorenzo Mammì) se fundaria no ocultamento daquela impossibilidade por uma conciliação aparente. E no tempo presente, diante da crise da conciliação como força motriz da modernização socioeconômica, “Chega de saudade” revelaria sua significação latente para a história do país.

Os dois artigos seguintes abordam processos situados na década de 1970, ou nela iniciados, sob a ótica de dois pesquisadores não brasileiros. Christopher Dunn (Tulane University) investiga experimentos que Tom Zé fez com certos parâmetros do samba, em três discos: o ritmo em Estudando o samba (1976), a harmonia em Estudando o pagode (2005) e a performance em Estudando a bossa (2008). As desmontagens da canção empreendidas por Tom Zé nesses três estudos estiveram pautadas, segundo o autor, pela combinação de “inovação musical com crítica social”. Já David Treece (King’s College London) busca reavaliar a experiência do Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, fundado pelo compositor e cantor Candeia em 1975, no Rio de Janeiro. Ao considerar a possibilidade de um resgate do “conteúdo histórico vivo das tradições culturais negras” transformar-se “em formas de recusa capazes de intervir ideológica e materialmente no presente, e assim de transbordar para a prática política”, o autor salienta uma forma de resistência ao regime de exceção ainda pouco visitada pelos estudos em música popular.

A análise de Treece se relaciona, em alguma medida, com o tema do artigo de Ana Paula Alves Ribeiro (UERJ). Antropóloga e professora na área da Educação, Ribeiro descreve como “as escolas de samba mirins tentam inserir-se nas políticas sociais para a juventude, para a promoção da cidadania e a revitalização do sentido de comunidade” no século XXI, no Rio de Janeiro. Fechando o dossiê, o artigo de Walter Garcia (USP) também pesquisa as décadas mais recentes, mas volta a atenção para as periferias de São Paulo. Em chave interdisciplinar, Garcia apresenta e discute sete formas de relação que o rap (gênero musical que se afirmou, desde 1990, como a principal fonte de construção da identidade negra periférica na cidade) estabelece com o samba. O autor busca captar um processo em andamento, “marcado por alianças e tensões”. E o seu trabalho, desde o ângulo em que se situa ante o samba, assinala a presença latente daquela encruzilhada de conflitos à qual nos referimos.

Advirta-se que os dez artigos expressam pontos de vista e enfoques metodológicos de cada autor e autora, portanto, não os dos organizadores. E também que o conjunto heterogêneo permite uma visão panorâmica, mas não integral, da diversidade que as pesquisas sobre o samba apresentam atualmente. Nesse sentido, nem sempre os textos serão convergentes em seus princípios, procedimentos e conclusões. Oxalá essa característica possa contribuir para o cultivo do pensamento crítico e do diálogo, práticas desejáveis em uma sociedade que se imagina democrática - mas cujo dia a dia é pautado por variações, sempre autoritárias, ou da relação “de ‘parentesco’” entre “os que se julgam iguais”, ou da “relação mando-obediência” entre vencedores e perdedores (CHAUI, 2016CHAUI, Marilena. A nova classe trabalhadora brasileira e a ascensão do conservadorismo. In: JINKINGS, Ivana; DORIA, Kim; CLETO, Murilo (Org.). Por que gritamos golpe?: para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 15-22., p. 20).

Agradecemos a Rodrigo Aparecido Vicente a contribuição na organização deste dossiê.

REFERÊNCIAS

  • ARANTES, Paulo Eduardo. Qual política?. In: ARANTES, P. E. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 285-292.
  • _____. Em cena. In: ARANTES, P. E. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 331-339.
  • _____. 1964, 2016. Primeiro como tragédia, depois como farsa?. In: JINKINGS, Ivana; DORIA, Kim; CLETO, Murilo (Org.). Por que gritamos golpe?: para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 7.
  • CHAUI, Marilena. A nova classe trabalhadora brasileira e a ascensão do conservadorismo. In: JINKINGS, Ivana; DORIA, Kim; CLETO, Murilo (Org.). Por que gritamos golpe?: para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 15-22.
  • KURT, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Trad. Karen Elsabe Barbosa. Prefácio de Roberto Schwarz. 5. ed., revista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
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    É sem nenhuma pretensão de reduzir as causas desse esfacelamento a uma só dimensão que atentamos para alguns dos impasses vividos na esfera econômica e na social. Levando em conta a crítica de Robert Kurz emO colapso da modernização (KURZ, 1999), podemos inferir que as manifestações de 2013 e os seus desdobramentos reacionários nos anos seguintes, a atuação conservadora e violenta da mídia hegemônica desde então, bem como os acontecimentos jurídicos e políticos a partir de 2014 são saltos que respondem a um processo em marcha desde a década de 1980 e que o aceleram. Ao longo desse processo, na crítica de Paulo Eduardo Arantes, para ganhar tempo multiplicaram-se “saídas de emergência”, e “a engenharia social chamada ‘lulismo’ foi uma delas” (ARANTES, 2016, p. 7): a administração da economia e da sociedade “como uma convergência virtuosa de interesses”, o que se traduziu na busca de equilíbrio entre “lucros extraordinários e cesta básica, rentismo e crédito consignado”, concessão de “poder soberano” às megacorporações (ARANTES, 2007, p. 291) e “gestão das populações vulneráveis” por meio do incentivo às práticas culturais (ARANTES, 2014, p. 337).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018
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