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Mulheres, arquivos e memórias

Women, files and memories

A mulher jamais escreve sobre a própria vida e raramente mantém um diário - existe apenas um punhado de suas cartas. Não deixou peças ou poemas pelos quais possamos julgá-la. O que se deseja, pensei [...], é uma massa de informações: com que idade ela se casava; quantos filhos, via de regra, tinha; como era sua casa; se ela dispunha de um quarto próprio; se preparava a comida; seria provável que tivesse uma criada? Todos esses fatos estão em algum lugar, presumivelmente nos registros e livros contábeis paroquiais; a vida da mulher média elisabetana deve estar espalhada em algum lugar, se apenas alguém se dispuser a recolhê-la e dela fazer um livro [...]. (WOOLF, 1985WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985., p. 59-60).

Em Um teto todo seu a escritora Virginia Woolf refere-se à dificuldade de encontrar obras literárias produzidas por mulheres nas prateleiras das bibliotecas universitárias inglesas. Contrastando com a vastidão de livros escritos por homens, muitos dos quais tinham as mulheres como temas ou objetos de suas linhas, a mulher autora parecia inexistir. Nessa obra - que resulta de duas conferências realizadas em Cambridge em 1929 - Woolf atenta para duas questões abordadas no presente dossiê, ambas interligadas: 1) a precariedade de fontes disponíveis para se reconstituir uma história das mulheres; 2) as complexas relações históricas e sociais que envolvem o reconhecimento da autoria feminina.

A invisibilidade feminina nos arquivos, especialmente naqueles de caráter público, foi um tema bem trabalhado pela historiadora Michele Perrot. Como ela assinala, essa ausência é resultado de uma perspectiva sobre a narrativa histórica dominante, que possui um crivo seletivo mediante o qual certas esferas da vida social são vistas como importantes, dentre elas a política, a religião, as guerras etc. (PERROT, 2005PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: Edusc, 2005.). Reis e príncipes; profetas, missionários, padres; guerreiros e colonizadores foram erguidos como protagonistas de narrativas monopolizadas por sujeitos masculinos. Cristaliza-se a crença de que “eles” ocuparam-se dos grandes feitos e das grandes obras, enquanto “elas” ficaram reduzidas à reprodução da ordem, ou seja, aos cuidados da casa e dos filhos, ou ainda da colheita e trabalho fabril, em todos os casos tarefas sumamente desvalorizadas socialmente.

Em sociedades hierarquizadas por meio de clivagens entre atividades masculinas e femininas, em que o grande “teatro da memória” torna-se um privilégio dos homens, as mulheres são relegadas ao papel de coadjuvantes, “leves sombras” (PERROT, 2005PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: Edusc, 2005.). Ausentes daquilo que certa tradição historiográfica considerava digno de ser percebido, e por conseguinte narrado, não se deve estranhar que as presenças femininas tenham sido pouco retidas no âmbito dos arquivos. Os (as) interessados (as) em conhecer ou problematizar a presença de mulheres na história se deparam com outra lacuna considerável, para além das narrativas, também a ausência de fontes sobre elas.

Diversos autores já discutiram o quanto os arquivos não são produtos passivos de uma somatória de documentos acumulados por grupos ou sociedades humanas de modo neutro, mas sim frutos de seleções, ordenamentos e inscrições institucionais que resultam de escolhas1 1 A esse respeito ler, entre outros: Cook, 2001; Foucault, 2008; Cifor, 2017. . Essas determinam o que pode ou não ser dito, o que merece ou não ser lembrado e quem tem direito ou não a ter sua memória preservada. Longe portanto de serem receptáculos apáticos, os arquivos são ao mesmo tempo produtos e produtores de hierarquizações sociais. Se por um lado materializam as escolhas sobre o que deve ser preservado e, portanto, celebrado, monumentalizado, por outro são também a encarnação de um longo processo de exclusões geralmente levado a cabo de maneira silenciosa, imperceptível, naturalizada. As pesquisas realizadas em torno dos arquivos geralmente partem daquilo que eles “possuem”, das fontes ali reunidas. Pouco se pergunta sobre suas ausências, ou seja, sobre os nomes que não foram retidos, sobre os grupos sociais não representados.

Analisando o caso do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas (FGV), Patrícia W. Martinho assinala que, dentre os 166 arquivos reunidos, apenas sete são femininos, e em ao menos três casos os nomes não possuem atividades associadas, ou seja, figuram ali na medida em que se trata de esposas ou filhas de grandes personalidades públicas, as quais são, é claro, masculinas. Tendo em vista que se trata de arquivos ligados geralmente à vida política do Brasil, da qual as mulheres só começaram a fazer parte tardiamente, na década de 1930, seja como eleitoras, seja, ainda mais difícil, como representantes eleitas, é compreensível que o arquivo espelhe essa baixa presença feminina (MARTINHO, 2016MARTINHO, Patricia Wu. Representações de gênero na descrição de fundos de arquivos pessoais. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDANTES DE ARQUIVOLOGIA - Enearq, 20., Rio de Janeiro, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2016. ).

No caso do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) a discrepância feminina é menor. Entre os 45 arquivos pessoais listados no Catálogo Eletrônico, temos 13 femininos: Alice Piffer Canabrava; Anita Malfatti; Aracy Amaral; Aracy Guimarães Rosa; Lupe Cotrim; Maria Abreu (ligada a Camargo Guarnieri); Marlyse Meyer; Marta Rossetti Batista; Odette de Barros Mott; Oneyda Alvarenga; Tarsila do Amaral; Veridiana Prado; Yolanda Mohalyi. Embora se esteja longe de uma equiparação total, em relação ao CPDOC, a presença feminina é maior. Para compreender isso, é importante atentar para o perfil dos acervos: enquanto no Rio de Janeiro a política é uma dimensão central, no IEB os arquivos geralmente se centram na contribuição de certos indivíduos para a cultura brasileira, especialmente a partir da realização de obras no campo intelectual (literatura, crítica literária, ciências sociais, economia, história, geografia etc.) ou no campo artístico (pintura, música erudita, gravura etc.). O que demonstra isso é que, nos espaços intelectuais e artísticos, a presença feminina no Brasil foi mais expressiva e reconhecida do que no campo político. A “generificação” dos arquivos é, pois, um índice dos diferentes modos como as mulheres participaram das diversas esferas da vida social de um país.

O acolhimento de acervos em universidades é uma questão de suma importância, visto que são lugares de pesquisa por excelência. No ambiente acadêmico diverso, as potencialidades desses fundos pessoais se intensificam e devem conter abordagens prismáticas no sentido interdisciplinar. Ainda exíguos, os arquivos de mulheres têm ganhado espaço nas pesquisas. Temos, por exemplo, no Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulalio” (Cedae), do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), apenas quatro fundos pessoais de mulheres2 2 São elas, as professoras Ada Natal Rodrigues e Aída Costa, a crítica Radha Abramo e Hilda Hilst. , com destaque para o da escritora Hilda Hilst, bastante extenso e variado. Outra universidade que guarda um fundo pessoal singular é a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com destaque para o fundo pessoal de Henriqueta Lisboa. Sua correspondência com Mário de Andrade, depositada no IEB, resultou em publicação unindo os dois arquivos (SOUZA, 2010SOUZA, Eneida Maria de(Org.). Correspondência - Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo: Edusp/Peirópolis/IEB, 2010.). Essa reconstituição de uma ação partilhada, como a da correspondência, repercute na necessidade de diálogo entre instituições detentoras de arquivos. Coleções de documentos que possuem correspondência são de grande valor, pois temos duas pontas do que poderíamos chamar de um mesmo documento, mas, se não conseguirmos juntar a correspondência ativa e a passiva, o entendimento ficará truncado.

Há também diversos acervos pessoais múltiplos, isto é, comprados ou doados por diferentes processos de aquisição, fracionados em instituições, como é o caso do arquivo da escritora Clarice Lispector: parte dele no Instituto Moreira Salles e parte na Casa de Rui Barbosa.

Em todos os casos acima mencionados, está-se falando de um tipo de arquivo: o arquivo pessoal. Nesse caso ocorre a aproximação do pesquisador com a criação em seu estado bruto - rascunhos, rasuras, marginálias, retalhos de notícias de jornal -, o que o leva simultaneamente a uma nova informação, a uma revelação já intuída e agora certificada e, ainda, ao momento em que a pessoa pesquisada estava em pleno fazer criativo, elaborando projetos, elegendo e articulando devires, ou mesmo realizando retrospectos. No desenvolvimento da pesquisa sobre memória e arquivos de mulheres, a ausência por vezes prepondera. Assim sendo, amplia-se a necessidade de estabelecer sentidos e liames não compreendidos à primeira vista, consubstanciam-se possibilidades de entendimentos e reorganização dos instrumentos de análise, devendo-se redobrar esforços para que o pesquisador supere as tantas lacunas constitutivas de acervos de sujeitos femininos relegados a um segundo plano da história.

Em contrapartida, hoje, as próprias famílias de mulheres que guardaram “miudezas de si” têm dado valor crescente a cartas, diários, fotos, objetos que, se antes se considerava que só faziam sentido pessoal, íntimo, agora ganham amplitude de significados, com perspectivas de, uma vez organizados em arquivos, iluminar nossas pesquisas.

Uma importante contribuição para a divulgação dos arquivos existentes começa a ser realizada em julho de 2017 com publicações sobre os 26 acervos de mulheres que integram os 305 conjuntos documentais privados, guardados desde o século XVI, no Arquivo Nacional (AN), sediado no Rio de Janeiro. Periodicamente a página virtual do Arquivo publica um texto sob o título “Mulheres na história” para nos dar a conhecer a história de um de seus fundos femininos, além de palestras sob o título de “Arquivo em prosa” abordando o acervo como um todo, com relevo ao desempenho historicamente constituído pelas lutas feministas (AN, 2017).

Destaca-se no referido arquivo a presença da documentação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, idealizado e presidido por Bertha Lutz. Tal acervo guarda documentos administrativos da Federação e pessoais da zoóloga e feminista que dedicou sua vida à ciência e lutou pelo direito ao voto. O Arquivo Nacional guarda outros fundos relacionados ao campo político e feminista, como os da intelectual negra Maria Beatriz do Nascimento e da ativista e socióloga Moema Toscano.

Percebe-se que a existência de tais fundos e coleções pessoais em arquivos institucionais passa pelo reconhecimento de que tais mulheres têm uma relevância histórica a ponto de suas ações, produções, objetos, memórias merecerem ser “guardadas”, organizadas e institucionalizadas. Apenas quando reconhecidas como sujeitos históricos, como autoras, é que podem ser também arquivadas.

O presente dossiê procura contribuir para esse campo fecundo de discussões sobre as políticas de preservação da memória, atentando especialmente para o modo como as mulheres estão representadas em arquivos nacionais e internacionais. Temos aqui um conjunto de nove artigos, muitos dos quais foram originalmente apresentados no I Seminário Internacional Arquivos, Mulheres e Memórias. Esse encontro foi promovido por uma parceria entre o IEB e o Centro de Pesquisa e Formação do Serviço Social do Comércio (CPF/Sesc), com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ocorrido em março de 2017, evento que constituiu um fórum fundamental de reflexão sobre essa temática que está muito longe de se esgotar3 3 Esse evento internacional foi coordenado pelos professores Flávia Camargo Toni, Ana Paula C. Simioni, Marcos Moraes e pelos pesquisadores Flavia Prando, Marina Mazze Cerchiaro, Roberta Valin (http://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/atividade/i-seminario-internacional-arquivos-mulheres-e-memorias). .

Iniciamos com o artigo da socióloga francesa Séverine Sofio (CNRS, França), intitulado “Como ter sucesso nas artes sem ser um homem? Manual para artistas mulheres do século XIX”. Trata-se de um artigo irônico em que a autora constrói um guia de conselhos destinado a mulheres artistas do passado, a fim de se fazerem reconhecidas em vida e postumamente. A partir de uma sólida pesquisa empreendida em seu doutorado sobre a população de pintoras e escultoras atuantes na França no período da Revolução Francesa, Sofio (2016) deslinda uma série de constrições que pesaram sobre as artistas que, uma vez conscientes de sua existência, poderiam evitar. A estratégia de apresentação é incomum, original, incômoda. Um texto que suscita uma reflexão que com certeza não termina ao se findar a leitura.

O segundo artigo, de autoria da historiadora da arte Georgina G. Gluzman (Conicet; Universidade de San Martín, Argentina), também se detém no caso da participação de mulheres no campo artístico, mas agora atuantes na Argentina. Como mostra a autora, as pintoras e escultoras desse país tendem a ser pouco reconhecidas pela historiografia da arte, com a honrosa exceção de Raquel Forner. No entanto, o estudo de suas participações nos Salões Nacionais de Belas Artes demonstra uma presença constante e significativa. Em “Otras protagonistas del arte argentino: las mujeres artistas en los Salones Nacionales (1924-1939)” Gluzman analisa as participações femininas nas exposições, as obras com que se consagraram, o seu processo de musealização e o papel da crítica no que diz respeito ao seu reconhecimento póstumo.

A seguir apresentamos o artigo da professora Jaqueline Vassalo (Conicet; Universidade de Córdoba), também argentina. “Mujeres y patrimonio cultural: el desafio de preservar lo que se invisibiliza” trata do processo arquivístico do ponto de vista de gênero, constituindo-se em um mapeamento de amplo espectro, considerando espaços diversos nos quais se depositaram arquivos de ou sobre mulheres. Isso, por si só, configura-se em uma forte contribuição e, por conseguinte, em um panorama do ativismo feminista de salvaguarda, abordando também a questão da criação, organização e acesso aos arquivos públicos e privados e os interesses difusos em preservar os mesmos. Como exemplificação das práticas realizadas ao longo de décadas desse ativismo em defesa da memória, a autora nos expõe como se processou o ingresso e a atuação de mulheres na Universidade de Córdoba, Argentina, além de abordar as formas de conservação e preservação física da documentação em papel, especificando casos, como o de Malvina Rosa Quiroga, poeta graduada e professora dessa instituição, que nos dão clareza de institucionalização dos arquivos em questão.

Outro artigo de grande riqueza no tratamento exaustivo e minucioso da documentação é o da pesquisadora Michele Asmar Fanini, intitulado “Júlia Lopes de Almeida em cena: notas sobre seu arquivo pessoal e seu teatro inédito”. Em abordagem de relevância para os estudos literários, notadamente, traz à luz o teatro da escritora mais destacada da Primeira República brasileira, o que não garantiu, porém, à autora ter ingressado na Academia Brasileira de Letras em vida, instituição que foi longamente refratária às mulheres. Esse fato fez com que apenas recentemente seu arquivo pessoal fosse institucionalizado. O texto da pesquisadora amplia a perspectiva de compreensão da produção da autora de Correio da roça e, para além de temas candentes, notadamente relevantes para entendermos práticas naturalizadas de subjugo à mulher, há ainda importante contribuição à memória das artes dramáticas no Brasil, e, nesse sentido, nos possibilita refletir também sobre a ausência da criação literária para teatro realizada por mulheres. Fanini analisa o arquivo pessoal como um projeto autobiográfico e estético, um texto modelar sobre as complexas relações entre literatura, gênero e práticas sociais de produção da memória.

Após as artes plásticas e a literatura, o dossiê apresenta dois artigos sobre um campo muito instigante e ainda pouco trabalhado no Brasil: o da fotografia a partir do prisma das relações de gênero.

Em “Sistema de arte e relações de gênero: retratos de artistas por Hildegard Rosenthal e Alice Brill”, a professora Helouise Costa (MAC/USP) aborda a trajetória e produção dessas duas fotógrafas atuantes no Brasil em meados do século XX. Ambas compartilharam elementos comuns, como a profissão, a origem imigrante, a experiência judaica e evidentemente a condição de gênero. Após uma importante reflexão sobre os processos de produção e institucionalização de seus acervos, Helouise Costa debruça-se sobre o material expressivo, revelando o papel que a fotografia teve para conformar uma identidade feminina num circuito artístico em plena transformação.

A seguir, a antropóloga da arte mexicana Deborah Dorotinsky Alperstein (Instituto de Pesquisas Estéticas/UNAM) analisa o caso de María Santibáñez, cuja produção não mereceu reconhecimento a ponto de ser arquivada. Assim, após um trabalho de “garimpo” nas revistas ilustradas da época e em uma série de arquivos públicos, a pesquisadora reconstrói a trajetória dessa pouco estudada fotógrafa, assim como se detém em suas obras. Essas transcendem a concepção de que a cultura mexicana encontra-se reduzida a uma dicotomia entre tradição x modernidade. Como mostra Deborah, Santibáñez empregava uma estilística própria, eivada de temas greco-latinos, orientais, entre outros, compondo um conjunto de representações femininas que não se enquadram nos estereótipos dicotômicos “pelonas” x “mexicanas” (indígenas/mestiças). Esses estão profundamente arraigados na historiografia da arte e também configuram o imaginário que o público brasileiro possui sobre a arte moderna mexicana. O presente artigo certamente contribui para a desconstrução desses lugares-comuns.

Em relação à música compõem o dossiê dois artigos, o de Fernando Pereira Binder (Escola Municipal de Música de São Paulo) sobre a pianista Guiomar Novaes, e o de Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel (pesquisadora da Unicamp) sobre compositoras brasileiras nos séculos XX e XXI. Ambos derivados de extensas pesquisas acadêmicas desenvolvidas nos âmbitos de doutorado e pós-doutorado, respectivamente.

Sob o título “Uma artista completa, a imprensa e a reputação de Guiomar Novaes”, Binder aborda o universo artístico do início da carreira da pianista que ganharia fama internacional por sua excelência. Analisa a problemática que permeia as distinções entre intérprete e compositora, o cenário da crítica musical e as contendas entre os críticos sobre as qualidades musicais de Guiomar Novaes. Abordando os impasses da pesquisa relativos à dispersão dos arquivos, constituídos prioritariamente por admiradores de Guiomar, o pesquisador nos leva ao seguinte questionamento: como explicar a desmemória que envolve uma de nossas musicistas mais importantes? O artigo avança em reflexão acurada sobre os processos de construção da memória e seus agentes, considerando o culto à personalidade, articulando bibliografia e dados sobre a dinâmica de preservação de acervos no Brasil, e aponta como a consagração é socialmente construída, traçando um paralelo entre Guiomar Novaes e Heitor Villa-Lobos.

Já Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel, em “Pesquisando as compositoras brasileiras no século XXI”, elabora uma intrincada pesquisa sobre fontes de acesso a biografias de compositoras e intérpretes da música, da atualidade, rastreando, inicialmente, a parca bibliografia e as imensas dificuldades encontradas por pesquisadoras que a antecederam. Murgel, já em tempos de avanço tecnológico advindo da internet, faz ampla pesquisa em acervos digitais para compor fichas com dados básicos sobre seu objeto de estudo. Tal procedimento provocou uma infinidade de hipóteses, não só sobre os dados em si, mas sobre as próprias fontes compulsadas. Uma vez mais os silêncios apresentaram-se em grande espectro: apenas nomes, sem qualquer referência, nomes que podem ser associados ao gênero feminino ou masculino, como Nadir ou Alcione, pseudônimos, anônimos e suas composições, biografias absolutamente lacunares... O artigo não só aponta o ocultamento de parte constitutiva do cenário musical popular, da perspectiva de gênero, mas sugere possibilidades de recortes variados para o tratamento desses dados, como, por exemplo, classe e etnia, demonstrando que as interpretações desse arquivo composto de dados on-line abarcam infinitas abordagens.

Até aqui os artigos analisam, a partir de temas, linguagens, enfoques metodológicos distintos a presença ou ausência feminina em arquivos existentes. Mas os impactos das teorias feministas não se esgotam na (grande) contribuição de problematizar as práticas de construção, organização, seleção e institucionalização da memória, eles também podem ser fomentadores de novos arquivos. Este é justamente o caso do último artigo apresentado - “Acervo de pesquisa, memórias e mulheres: o Laboratório de Estudos de Gênero e as ditaduras do Cone Sul” -, de autoria das professoras Janine Gomes da Silva, Joana Maria Pedro e Cristina Scheibe Wolff (UFSC). Desde 2004 elas coordenam uma equipe de pesquisadores nacionais que vem tematizando o período das ditaduras civil-militares no Cone Sul a partir das questões de gênero. Para tanto, as pesquisadoras vêm coletando e congregando diversos documentos, relatos e resultados de investigações e reflexões que se baseiam nas memórias produzidas por mulheres e homens que vivenciaram tal período, em diversos países. Esse caso mostra o quanto a pesquisa acadêmica é também geradora de acervos, produtora de arquivos.

No Brasil a memória é, certamente, um ponto sensível. O processo de arquivamento implica escolhas, inclusões, exclusões, omissões, que são visíveis na baixa representatividade feminina nas instituições de guarda de destaque no país. Desejamos que os artigos aqui apresentados sirvam de estímulo para se pensar a importância dos processos de arquivamento de experiências e produções de sujeitos ou grupos sociais invisibilizados. À luz dos acontecimentos do ano de 2018, é preciso que reconheçamos que hoje precisamos lutar não apenas para que as produções femininas sejam percebidas e representadas, mas também por uma política geral de acervos no país que zele por sua manutenção e por sua extroversão para o grande público.

REFERÊNCIAS

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  • _____. Serviços ao cidadão. Arquivo em Prosa. Disponível em: <http://arquivonacional.gov.br/br/difusao/arquivo-em-prosa.html>. Acesso em: 20 out. 2018.
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  • CIFOR, Marika; WOOD, Stacy. Critical feminism in the archives. Journal of Critical Library and Information Studies, v. 1, n. 2, 2017. https://doi.org/10.24242/jclis.v1i2.27
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  • FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
  • MARTINHO, Patricia Wu. Representações de gênero na descrição de fundos de arquivos pessoais. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDANTES DE ARQUIVOLOGIA - Enearq, 20., Rio de Janeiro, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2016.
  • PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: Edusc, 2005.
  • SOFIO, Séverine. Artistes femmes: la parenthèse enchantée, XVIII-XIXè siècles. Paris: CNRS, 2016.
  • SOUZA, Eneida Maria de(Org.). Correspondência - Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo: Edusp/Peirópolis/IEB, 2010.
  • WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
  • 1
    A esse respeito ler, entre outros: Cook, 2001; Foucault, 2008; Cifor, 2017.
  • 2
    São elas, as professoras Ada Natal Rodrigues e Aída Costa, a crítica Radha Abramo e Hilda Hilst.
  • 3
    Esse evento internacional foi coordenado pelos professores Flávia Camargo Toni, Ana Paula C. Simioni, Marcos Moraes e pelos pesquisadores Flavia Prando, Marina Mazze Cerchiaro, Roberta Valin (http://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/atividade/i-seminario-internacional-arquivos-mulheres-e-memorias).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018
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