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Literatura de cordel: folclore, coleção e patrimônio imaterial

Cordel literature: folklore, collection and intangible heritage

RESUMO

O Seminário “Acervos de cordel, bancos de dados e patrimônio em instituições públicas: desafios e perspectivas”, promovido pelo IEB/USP (2018), foi o mote para refletir sobre as singularidades do processo de patrimonialização da literatura de cordel e os usos da cultura popular no âmbito das políticas culturais. O texto analisa o Projeto Literatura de Cordel do Centro de Referência Cultural do Ceará - Ceres (1975-1990) e pontua os desafios e perspectivas das instituições de memória do cordel numa chave de leitura que evidencie a formação de coleção de folhetos por seus colecionadores.

PALAVRAS-CHAVE:
Cordel; coleção; folclore; cultura popular; patrimônio imaterial

ABSTRACT

The seminar “Acervos de cordel, bancos de dados e patrimônio em instituições públicas: desafios e perpectivas”, held by IEB/USP (2018), set the theme to reflect on the uniqueness of the patrimonialisation process of cordel literature and the uses of popular culture under the cultural policies. It analyzes the Projeto Literatura de Cordel of Centro de Referência Cultural do Ceará - Ceres (1975-1990) and points out the challenges and prospects of Cordel’s memory institutions in a key that highlights the creation of a collection of leaflets by its collectors.

KEYWORDS:
Cordel; collection; folklore; popular culture; intangible heritage

Tendo como mote o Seminário “Acervos de cordel, bancos de dados e patrimônio em instituições públicas: desafios e perspectivas”, promovido pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) em 2018, o objetivo do artigo é analisar as singularidades do processo de patrimonialização da literatura de cordel em sua historicidade. Para tanto, pontuamos a formação dos acervos de cordel com alguns marcos conceituais e institucionais que nos possibilitem perceber os deslocamentos de sentidos que a noção de cultura popular ganhou ao longo das trajetórias das políticas públicas de preservação, indo do folclore ao patrimônio imaterial.

No processo de configuração do campo do folclore em bases disciplinares situamos a coleta e a formação das primeiras coleções de cordel. Em estudo de caso sobre a experiência do Projeto Literatura de Cordel do Centro de Referência Cultural do Ceará - Ceres (1975-1990), no mapeamento e registro da memória da cultura popular tradicional do estado, discutimos a ressignificação da literatura de cordel em consonância com os novos usos e apropriações da cultura popular no âmbito das políticas culturais2 2 Pesquisa que venho desenvolvendo no Departamento de História da Universidade Federal do Ceará com apoio de bolsa Pibic-UFC. .

Na perspectiva de problematizar os desafios e perspectivas das instituições de memória do cordel - potencializados pelo pedido de seu registro como patrimônio imaterial do Brasil, requerido pela Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), por meio do Centro de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2010 -, propomos pensar a historicidade dos acervos de cordel numa chave de leitura que evidencie a formação de coleção de folhetos por seus colecionadores, ao mesmo tempo que acione a rede de atores envolvidos em seu processo produtivo.

A literatura de cordel entre coletas, formação de coleção e estudos do folclore

A Missão de Pesquisas Folclóricas, que em 2018 completou 80 anos, é a experiência mais bem-sucedida da trajetória de Mário de Andrade na configuração do campo do folclore e do patrimônio cultural no Brasil. Antes é preciso dizer que ela é fruto do modernismo etnográfico do pai de Macunaíma em desenvolver uma metodologia de conhecimento da cultura brasileira dotada de teor científico. Tal formulação é tributária do esforço individual de Mário de Andrade em fazer do popular o recurso identitário necessário à afirmação nacional.

Se as “viagens etnográficas” (1928-1929) foram emblemáticas na constituição de uma metodologia de registro do popular, foi à frente do Departamento de Cultura de São Paulo (1935-1938) que o Inventário dos sentidos de Mário de Andrade se materializou no projeto da Missão de Pesquisas Folclóricas (NOGUEIRA, 2005NOGUEIRA, Antonio Gilberto R. Por um inventário dos sentidos: Mário de Andrade e a concepção de patrimônio e inventário. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005 (Prêmio Silvio Romero).). Ele é resultado do encontro entre a etnografia e o folclore na ambiência do Curso de Etnografia, ministrado por Dina Lévi-Strauss, e também das atividades da Sociedade de Etnografia e Folclore (1936-1938).

Os pesquisadores da Missão (chefiados por Luís Saia) percorreram os estados do Nordeste e do Norte (Bahia, Pernambuco, Paraíba, Ceará, Maranhão e Pará) levando em suas bagagens um rico acervo das tradições populares composto de filmes, fotografias, gravações sonoras referentes às manifestações musicais, bailados populares, celebrações, mas também objetos das tradições religiosas indígenas, afro-brasileiras e populares, como ex-votos, santos, indumentárias, tambores, insígnias, folhetos de cordel etc.3 3 Em 2005 o Conselho Consultivo do Iphan reconhece o Acervo Histórico da Discoteca Oneyda Alvarenga, no qual está integrada a coleção da Missão, como patrimônio cultural brasileiro e, em 2009, a coleção teve sua candidatura aprovada como patrimônio documental pelo Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da Unesco. . Esses folhetos, juntamente com os que o poeta recolheu em suas viagens e outros que foram acumulados do acervo pessoal de Villa-Lobos, compõem hoje uma das principais coleções de cordel do arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).

Foi a partir desse quadro de consolidação das bases disciplinares do campo do folclore e da etnografia e dos interesses de Mário de Andrade em torno da formação de coleções e arquivos etnográficos e folclóricos, e também tendo em vista a preservação do patrimônio cultural - questões estabelecidas em virtude da experiência no Departamento de Cultura de São Paulo -, que, a pedido do ministro Gustavo Capanema, o poeta modernista elaborou, em 1936, o anteprojeto que criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), por meio do decreto-lei 25/37, hoje, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (NOGUEIRA, 2005NOGUEIRA, Antonio Gilberto R. Por um inventário dos sentidos: Mário de Andrade e a concepção de patrimônio e inventário. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005 (Prêmio Silvio Romero)., 2014; CHUVA, 2012_______; NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos (Org.). Patrimônio cultural: políticas e perspectivas de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X/Faperj, 2012.).

Sob o signo do folclore, os estudos da cultura popular viveram um período de grande vitalidade fazendo do “movimento folclórico” “projeto e missão” na construção de uma identidade nacional (VILHENA, 1997VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro 1947-1964. Rio de Janeiro: Funarte/FGV, 1997.). Na esteira do empreendimento de Mário de Andrade está a atuação de Renato Almeida - também modernista e correspondente do poeta - junto à criação da Comissão Nacional do Folclore (CNF), em 1947, no âmbito do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (Ibecc), organizada no Ministério das Relações Exteriores para ser representante brasileira na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) (VILHENA, 1997). Na perspectiva de institucionalização de um “movimento folclórico” (VILHENA, 1997) são criadas as comissões estaduais e, em 1958, a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB), que, somada a seminários, correspondências e publicações, amplia a rede de intelectuais no esforço de dotar a pesquisa folclórica de orientação científica. São elucidativos os cursos de formação promovidos pela CDFB e a publicação do Manual de coleta folclórica, escrito por Renato Almeida, em 1960, em cumprimento à deliberação do Conselho Técnico da entidade (ALMEIDA, 1965ALMEIDA, Renato. Manual de coleta folclórica. Rio de Janeiro: Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1965.).

A preocupação com as diferentes fases da pesquisa e com a postura do coletador era uma das constantes do Manual. Dentre as diferentes modalidades de folclore, encontra-se o capítulo dedicado à Literatura Oral assim dividido: I. Contos, II. Paremiologia, III. Poesia, IV. Romances, V. Desafios, VI. Cantigas infantis, VII. Mito e lenda, VIII. Réplicas, eufemismos, apodos e xingamentos, IX. Mímica e X. Teatro de fantoches. No item I, Contos, há uma referência à chamada “literatura de cordel”:

Não escapará à sua atenção a chamada “literatura de cordel”, que são folhetos vendidos em feira, em edições ilustradas e com tiragens espantosas, em que se relatam contos de todo o mundo e se faz a crônica dos acontecimentos. São escritos ou ditados por gente do povo, e a sua divulgação se faz tanto pela leitura, quanto por via oral, já que um lê para muitos ouvirem. Fatos políticos, crimes, estórias famosas, de gente e de bicho, desafios, décimas, assuntos históricos como a lenda de Carlos Magno, tudo isso será registrado nesses folhetos. Dizem que o suicídio e o testamento do Presidente Vargas ensejaram edições com uma tiragem superior a um milhão de exemplares. As capas são curiosos tipos de gravura popular muitas vezes feita em casca de vegetais. Procure obter o maior número de exemplares para juntar à sua coleta. (ALMEIDA, 1965ALMEIDA, Renato. Manual de coleta folclórica. Rio de Janeiro: Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1965., p. 157).

Esse esforço no sentido de definir as diferentes modalidades do folclore brasileiro - no qual a “literatura de cordel” corresponde ao substrato da literatura oral - e de padronizar as coletas e o registro acabou por influenciar as pesquisas e estudos do folclore nas décadas de 1960 e 1970. Os primeiros colecionadores e a constituição das primeiras coleções que formaram, por exemplo, o acervo de cordel da Casa de Rui Barbosa, por meio das doações de Orígenes Lessa e Sebastião Nunes, seguiram tais orientações. Em seu estudo sobre o referido acervo, Sylvia Nemer (2010NEMER, Sylvia. Memórias do cordel. In: ENCONTRO REGIONAL DA ANPUH RIO, 14., Rio de Janeiro: Unirio, 2010.) constata que as práticas de preservação da memória da literatura de cordel, bem como as publicações de estudos do tema, se constituíram operadas pelas noções de folclore e patrimônio vigentes no período. Dali sobressaem as primeiras publicações da série Literatura de Cordel em Versos, composta de catálogos, antologias e estudos sobre o tema. Ao mesmo tempo que se consagra o gênero antologia, autores como os dois acima citados - e outros como Manoel Cavalcanti Proença, Manuel Diegues Junior (membro da CDFB do Rio de Janeiro), Flora Süssekind, Rachel Valença, entre outros - vão se tornando referência na especialização do tema.

A institucionalização desse campo se constitui numa quase ausência de diálogo com o campo do patrimônio cultural (CHUVA, 2015CHUVA, Márcia. Da referência cultural ao patrimônio imaterial: introdução à história das políticas de patrimônio imaterial no Brasil. In: REIS, Alcenir Soares dos; FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves (Org.). Patrimônio imaterial em perspectiva. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015., p. 29). Embora a análise de Luís Rodolfo Vilhena (1997VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro 1947-1964. Rio de Janeiro: Funarte/FGV, 1997., p. 42) reconheça o prestígio alcançado pelo folclore no espaço de uma “política cultural do país nas esferas federal, estadual e mesmo municipal”, tal reputação foi incapaz de impedir o lugar periférico atribuído ao folclore no interior das ciências sociais. Prevaleceu uma visão negativa de um campo de estudos “menor”, de recorte temático inadequado praticado por diletantes. Contribuiu para tal visão negativada do folclore o “nacional desenvolvimentismo” que nos anos de 1950 teve lugar no interior do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), apontado por Renato Ortiz (1992ORTIZ, Renato. Românticos e folcloristas: cultura popular. São Paulo: Olho d’Água, 1992.) como o responsável pela proposição de ruptura entre folclore e cultura popular. Na década de 1960, os Centros Populares de Cultura (CPCs) da União Nacional dos Estudantes (UNE) imprimem um caráter político e ideológico ao conceito de cultura popular, rompendo ainda mais a identidade com o folclore. No pensamento cepecista, manifestado por estudantes, artistas e intelectuais, cultura popular passou a significar consciência política do povo. Seu caráter classista buscava o “puro” e o “autêntico” das classes subalternas, evidenciando uma operação paradoxal em relação ao folclore (ROCHA, 2009ROCHA, Gilmar. Cultura popular: do folclore ao patrimônio. Mediações - Revista de Ciências Sociais, v. 14, n. 1, jan./jun. 2009.).

Centro de Referência Cultural do Ceará - Ceres: Projeto Literatura de Cordel e a preservação da memória da cultura popular tradicional

A partir das décadas de 1960 e 1970 se intensificaram as abordagens em torno da definição do ser da cultura brasileira. Diferentes usos e apropriações do popular condicionaram o domínio da cultura nas conjunturas que caracterizaram o regime autoritário e o processo de redemocratização. De um lado, a definição de cultura inscrita no Plano Nacional de Cultura (1975) passou a ser concebida e planejada em perspectiva com os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs) incidindo diretamente nos órgãos de preservação, quais sejam: o Iphan e a CDFB. De outro, a área da cultura é vista como estratégica pelos governos militares em seu projeto de garantir o ideal de unidade nacional, uma propaganda evidenciando um “sentimento” de nação coesa.

É nesse quadro de conjunturas que no ano de 1975 se insere a criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), pelo designer pernambucano Aloisio Magalhães. Nesse mesmo ano se encontra a criação da Fundação Nacional das Artes (Funarte), que incorporou as ações da CDFB por meio do Instituto Nacional do Folclore. A experiência do CNRC, ainda sem conexão estrutural com o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e com o Iphan, representou um marco significativo de ações voltadas para a identificação da diversidade e o registro do popular. A adoção do conceito de bem cultural e a reelaboração da noção de cultura popular objetivada na formulação do conceito de referência cultural pautaram a realização de vários inventários com o objetivo de catalisar a ideia de um “patrimônio não consagrado”. Todo esse conjunto de diretrizes e ações do CNRC foi levado por Aloisio Magalhães para o Iphan quando em 1979 assume a direção do órgão e cria a Fundação Nacional Pró-Memória.

É também no intercâmbio entre as esferas federal e estadual que os diferentes usos da cultura popular na constituição da identidade nacional e regional passaram a operar as diretrizes e ações que remontam à criação do Ceres. À semelhança do CNRC, o órgão cearense veio se configurar como um importante espaço de pesquisa, registro e preservação da memória das culturas populares do Ceará em estreita articulação com a Secretaria de Cultura, Desporto e Promoção Social.

No Projeto Artesanato se encontram as bases que deram origem ao Ceres. Em outubro de 1975, a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará deu início às atividades do “Projeto de cadastramento, pesquisa e registro audiovisual do artesanato” (Fundo Secult. Arquivo Intermediário do Estado do Ceará). Dentre as justificativas que perpassam o simbólico e a questão socioeconômica estão a percepções da situação de abandono dada ao artesanato no estado e do risco iminente de perda da manifestação e do saber-fazer. Sua missão inicial seria “pelo menos documentar o artesanato em sua forma tradicional, seus processos de elaboração, para que se preservasse a memória do que foi a cultura popular produzida aqui, até uma certa época” (CERES, 1979, p. 8).

Propõe-se, então, um inventário do artesanato cearense, visando o conhecimento e a proteção da tradição dentro de suportes de registros caracterizados pelo seu caráter permanente. Seguindo essa orientação, os pesquisadores realizaram viagens por diversas regiões do estado, onde aplicaram questionários aos artesãos e produziram um rico acervo constituído de fotografias e diapositivos, filmes e gravações de depoimentos utilizados na produção de programas audiovisuais4 4 A proposta chama a atenção de jovens pesquisadores das mais diversas áreas, como ciências sociais, história, filosofia, música, teatro, fotografia e artes plásticas, por exemplo. Dentre os que aceitam aventurar-se pelos desafios que o Projeto Artesanato e posteriormente o Ceres apresentam, podemos destacar Roberto Aurélio Lustosa da Costa, Oswald Barroso, Maurício Albano, José Carlos Matos, Olga Paiva, Edvar Costa, Norma Colares, Rosemberg Cariry, Otávio Menezes, Sylvia Porto Alegre, Gilmar de Carvalho. (NOGUEIRA, 2010_____. O Centro de Referência Cultural - Ceres (1976-1990) e o registro audiovisual da memória popular do Ceará. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado; RAMOS, Francisco Régis Lopes (Org.). Futuro do pretérito: escrita da história e história do museu. Fortaleza: Instituto Frei Tito Alencar, 2010, p. 447-460.). Todo esse acervo produzido pelo Ceres foi incorporado ao Museu da Imagem e do Som (MIS) do Ceará em 1996.

Em julho de 1976 iniciou-se o Projeto Literatura de Cordel. Concebido inicialmente como “Diagnóstico da literatura de cordel”, trazia entre seus objetivos a documentação de todo o universo do cordel no estado por meio de entrevistas e registro audiovisual dos poetas e estudiosos da literatura popular, elaborar diagnóstico da situação de produção e comercialização do cordel, organizar uma biblioteca especializada e preparar uma antologia de textos em circulação no estado (CERES, 1975, 1976).

O inventário e mapeamento do cordel concentrou-se nas cidades de Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha vistas como o maior polo de produção e distribuição de folhetos do estado e um dos maiores do Brasil. Em Juazeiro do Norte estava a tipografia São Francisco, criada em 1939 (antiga Folheteria Silva), de propriedade de José Bernardo da Silva, responsável por grande parte dessa produção. Segundo a historiadora Rosilene Alves de Melo (2003), a tipografia São Francisco, hoje Lira Nordestina, com a compra dos direitos autorais de Leandro Gomes de Barros, consagrou Juazeiro do Norte como referência na história editorial de folhetos do Brasil, constituindo-se notoriamente em espaço de formação de geração de poetas e xilógrafos.

Os resultados parciais do mapeamento e diagnóstico foram significativos para a constituição do acervo e a formação da coleção de cordel do Ceres, reunindo inicialmente 700 folhetos. As fotografias e depoimentos com poetas, editores e vendedores foram levados a público no volume I da Antologia do cordel, da Coleção Povo e Cultura, publicado em 1978. Posteriormente ainda seriam publicados pela Coleção Povo e Cultura o volume II da Antologia da literatura de cordel (CEARÁ, 1980) e Literatura popular em questão (CEARÁ, 1982), além de mais três edições da revista Caderno de cultura publicadas nos anos de 1987, 1989 e 1990 (esta última ficou no projeto).

Contribuir para a preservação da memória do cordel e incentivar os futuros estudos sobre a cultura e a literatura popular nordestina eram os objetivos de tais publicações. A situação do cordel nordestino debatida no volume I da Antologia5 5 Fizeram parte da equipe de pesquisadores do volume I da Antologia da literatura de cordel os seguintes pesquisadores: Roberto Aurélio Lustosa da Costa, Carlos Alberto Costa Lázaro, José Carlos Bezerra de Matos, José Edvar Costa de Araújo, Maria Célia de Araújo Guabiraba e Raimundo Oswald Cavalcante Barroso. trazia em seu diagnóstico uma suposta ameaça de desaparecimento e a constatação de que se vivia um “novo surto” na produção dos folhetos naquela década de 1970. Para alguns, tal crise foi resultante da introdução dos meios de comunicação de massa, adensada pela cultura de quadrinhos, do turismo e dos problemas editorais; a mudança do público leitor formado por artistas, colecionadores, turistas, estudantes, educadores, políticos e comerciantes, ao mesmo tempo que renovava a produção do cordel na década, era percebida, por outros, como responsável por sua descaracterização, assim como ocorrera com o artesanato. Descaracterização essa atribuída à intervenção em seu processo criativo ditada pelo “gosto” dos novos consumidores dos folhetos.

O novo público emergente tem procurado o cordel, quase sempre, como elemento “folclórico”, no sentido vulgar de sua compreensão, isto é, de coisa arcaica, tradicional e exótica. Poucas vezes procura o cordel como elemento vivo de nossa cultura, que reflete um pensamento popular e atual sobre a realidade. (CEARÁ, 1978, p. 22).

Interessante como o debate suscitado pelo diagnóstico do cordel vai repertoriando os deslocamentos conceituais do popular na própria ressignificação da literatura de cordel empreendida pela política cultural do Ceres. Uma certa visão folclorista parecia insistir em ver o cordel como o referente de uma dada tradição caracterizada pelo que há de “autêntico” e “exótico” apesar do esforço dos intelectuais e cordelistas envolvidos na atualização do debate sobre os novos sentidos do popular e suas potenciais apropriações.

Esse empreendimento em compreender o cordel como expressão de uma literatura popular viva e dinâmica foi matéria do jornal O Povo de 19 de março de 1980, escrita pelo jornalista e idealizador da Academia Brasileira de Cordel, Vidal Santos:

A literatura de cordel é a expressão mais viva da cultura popular por isso mesmo deve estar presente em tudo que emana do povo, não podendo, portanto, ficar distante do artesanato, forma de arte que também comporta e reafirma o domínio popular em tudo que é belo. (O POVO, 1980).

Também os debates entre a visão folclorizada da literatura de cordel e a defesa de uma arte marcada pelos processos de ressignificação da cultura popular estiveram no I Simpósio Cearense de Literatura Popular, realizado em 1980, na Universidade Estadual do Ceará, e no II Ciclo de Literatura de Cordel, realizado em 1981, na Universidade Federal do Ceará, ambos promovidos pelo Ceres, via Secretaria de Cultura do Estado em parceria com as universidades. Esse último contou com os professores Atila de Almeida, da Universidade da Universidade Federal da Paraíba, Sebastião Nunes Batista, da Fundação Casa de Rui Barbosa, Neuma Fechine Borges, da Universidade Federal da Paraíba, Luís Tavares Junior, da Universidade Federal do Ceará, Vidal Santos, da Academia Brasileira de Cordel, Diathay Bezerra de Menezes, da Universidade Federal do Ceará, José Carlos Matos, da Secretaria de Cultura do Estado, o poeta Siqueira Amorim e os pesquisadores Jeová Sobreira e Martine Kunz.

É preciso destacar o quanto o programa editorial do Ceres constitui-se, ele mesmo, num “lugar de memória” da literatura de cordel quando tomamos o conceito postulado por Pierre Nora (1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História - Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História: História & Cultura, São Paulo, PUC, v. 10, 1993.). Ao reunir os textos dos intelectuais que se referenciam em seus estudos sobre a natureza da literatura popular, seu processo criativo, circulação e consumo, uma história da memória do cordel vai se configurando em consonância com a consagração de autores e suas obras edificados pelo gênero antologia. A partir da seleção de autores renomados ou clássicos dessa literatura e de suas obras, como Leandro Gomes de Barros, Abraão Batista, Expedito Sebastião da Silva, José Bernardo da Silva, Zé Melancia ou Patativa do Assaré, só para ficar nestes exemplos, uma série de questões enfeixam o esforço de intelectuais, pesquisadores e colecionadores em definir a literatura de cordel a partir de aspectos formais da literatura, o problema da autoria, o oral e o escrito, a impressão e as capas, as classificações e a metodologia de registro. Essas questões figuram como indícios reveladores da centralidade que a literatura de cordel passou a ocupar no âmbito das políticas culturais e das universidades.

Toda essa experiência de registro da cultura popular do CNRC e do Ceres guardava relações bem próximas com as concepções de patrimônio cultural, memória e identidade que estavam sendo forjadas em sintonia com o ressurgimento dos movimentos sociais na década de 1980. A ressonância desses deslocamentos conceituais teve acolhida nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988, inaugurando um novo paradigma das práticas preservacionistas em escala nacional, regional e local.

No artigo 215, o tratamento aos direitos culturais reafirmava a necessidade de proteção às manifestações das culturas populares, indígenas e afrodescendentes. Já o artigo 216 trouxe a definição atual de patrimônio cultural: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (BRASIL, 1988).

Essa ampliação do texto constitucional, ao mesmo tempo que inovou ao legitimar juridicamente a salvaguarda dos bens culturais de natureza imaterial, incorporou a noção de referência cultural como base para o estabelecimento dos critérios de valoração patrimonial independentemente de sua dimensão material ou intangível. Destacou “a diversidade como princípio inerente à identificação dos sujeitos das ações patrimoniais, portanto, dos detentores dos direitos próprios a esse campo” (ARANTES, 2010ARANTES, Antonio Augusto. A salvaguarda do patrimônio imaterial no Brasil. In: BARRIO, Ángel Espina; MOTTA, Antonio; GOMES, Mário Hélio (Org.). Inovação cultural, patrimônio e educação. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Massangana, 2010., p. 54).

Em resposta às demandas colocadas pela emergência da salvaguarda do patrimônio imaterial encontra-se a Carta de Fortaleza (1997), fruto do seminário realizado nessa cidade, e nos resultados do Grupo de Trabalho do Patrimônio Imaterial e da Comissão de Assessoramento ao Grupo de Trabalho, ambos criados pelo Ministério da Cultura em 1988 (IPHAN, 2000). Os estudos e as discussões levaram à aprovação do decreto 3.551, de 2000, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem o patrimônio cultural brasileiro e criou o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (BRASIL, 2000). A noção de patrimônio imaterial, como foi definida pela Constituição de 1988, será tomada, no âmbito do Programa, como “um instrumento de construção e fortalecimento de cidadania, tendo o interesse público como princípio norteador de seu reconhecimento” (IPHAN, 2000, p. 35).

As expressões “cultura popular” ou “culturas populares” e agora “patrimônio imaterial” têm sido indistintamente utilizadas como sinônimas em discursos e ações das políticas públicas contemporâneas com vistas a assegurar certa distância com qualquer possibilidade de identificação com o folclore (BEZERRA; BARBALHO, 2015BEZERRA, Jocastra; BARBALHO, Alexandre. As culturas populares nas políticas culturais: uma disputa de sentidos. PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura. Rio de Janeiro: UFF, out./2014-mar./2015, ano 5, n. 8. Disponível em: <http://periodicos.uff.br/pragmatizes/article/view/10402/7241> Acesso em: 12 jul. 2018.
http://periodicos.uff.br/pragmatizes/art...
, p. 72). Nesses deslocamentos conceituais, o próprio uso do termo “folclore” passou por uma renovação conceitual que garantisse uma proximidade com a cultura popular, tentando conciliar temáticas no mesmo campo de estudos (CHUVA, 2015CHUVA, Márcia. Da referência cultural ao patrimônio imaterial: introdução à história das políticas de patrimônio imaterial no Brasil. In: REIS, Alcenir Soares dos; FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves (Org.). Patrimônio imaterial em perspectiva. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015., p. 34). Tal movimento pode ser observado no documento final do VIII Congresso Brasileiro de Folclore, ocorrido na cidade de Salvador em 19956 6 A partir da releitura da Carta do Folclore, aprovada no I Congresso Brasileiro de Folclore, realizado em 1951, no Rio de Janeiro, o documento final do Congresso de Salvador formulou essa nova concepção de folclore. . Também a própria definição de patrimônio imaterial formulada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) na Convenção do Patrimônio Imaterial, em 2003, carrega na sua base o uso dos termos “folclore”, “cultura tradicional” e “cultura popular”, desdobramento da Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Popular e Tradicional, de 1989.

O registro da literatura de cordel: singularidades da patrimonialização e desafios

O pedido de registro da literatura de cordel como patrimônio imaterial do Brasil, requerido pela Academia Brasileira de Literatura Cordel (ABLC), por meio do Centro de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), ao Iphan, em 2010 traduz o alcance atual do processo de transformações das políticas públicas de preservação no qual a arte e a cultura popular tradicional ganharam centralidade desde a aprovação do referido decreto 3.551. Ele é fruto da longa trajetória de luta dos grupos de identidade ligados à literatura de cordel, compreendendo o repente, o folheto ou livreto e a xilogravura, historicamente inseparáveis (SANTA HELENA, 1982SANTA HELENA, Raimundo. Diário de Pernambuco. Recife, 29 nov. 1982, p. 1.). Expressa, igualmente, o longo caminho da patrimonialização do cordel até a aprovação de sua inscrição pelo Conselho Consultivo do Iphan no Livro das Formas de Expressão (manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas, lúdicas)7 7 Outros três livros são: Livro dos Saberes (conhecimento e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades), Livro dos Lugares (como feiras, mercados, santuários, praças e demais espaços onde se reproduzem práticas culturais coletivas), Livro das Celebrações (festas, rituais que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas cotidianas). (IPHAN, 2000).

Devido à abrangência da manifestação da literatura de cordel em praticamente todo o território nacional, o plano de trabalho que definiu a metodologia da pesquisa e as atividades a serem desenvolvidas não fez uso do Inventário Nacional de Referência Cultural (INRC)8 8 Instrumento de pesquisa frequentemente utilizado para subsidiar a elaboração de Dossiês de Registro de bens de natureza imaterial. Com respaldo no arcabouço teórico e metodológico da antropologia, uma experiência pioneira na aplicação do INRC foi desenvolvida pelo antropólogo Antonio Augusto Arantes, em parceria com o DID/Iphan, na esfera do Museu do Descobrimento, em Porto Seguro (BA), no ano de 1999. . Optou-se por realizar reuniões de caráter técnico constituídas por especialistas, cordelistas, repentistas e instituições ligadas ao tema. A partir de uma agenda propositiva resultante da primeira reunião técnica, realizada na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, em 2012, novos encontros foram definidos desde 2015, visando alcançar os sujeitos detentores dessa arte e de seu universo associado, com o objetivo de informá-los e envolvê-los no processo de registro em curso, buscando construir parcerias para a salvaguarda compartilhada desse patrimônio.

Além do Rio de Janeiro (RJ), Recife (PE), Campina Grande (PB), João Pessoa (PB), Fortaleza (CE), Aracaju (SE), Crato (CE), Brasília (DF), São Paulo (SP), Sousa (PB), Pombal (PB) sediaram esses encontros. Nessas reuniões técnicas e encontros regionais ampliados com cordelistas, xilogravadores, editores, folheteiros e pesquisadores, a literatura de cordel foi sendo definida na oralidade de seus praticantes. Nesse percurso o repente foi desmembrado por opção dos próprios repentistas, enquanto a xilogravura permaneceu. Dali, 111 entrevistas foram realizadas e transcritas, totalizando aproximadamente 200 horas de gravação, como também o registro fotográfico e a produção do audiovisual de caráter etnográfico, dirigido pelo cineasta cearense Rosenberg Cariri, conforme expôs a historiadora Rosilene de Melo, autora do Dossiê e membro da equipe técnica do Iphan, no Seminário “Acervos de cordel, bancos de dados e patrimônio em instituições públicas: desafios e perspectivas”, promovido pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo, em 25 de abril de 2018. Em parceria com o Iphan, o IEB/USP também promoveu o Encontro de Mobilização em torno do Registro da Literatura de Cordel e do Repente como Patrimônio Imaterial em 2016; realizou os colóquios Repensando o Nordeste, em 2016, e Repensando o Popular, em 2017, onde o cordel figurou no debate; também fez desse espaço de pesquisa acadêmica o encontro de cordelistas para a realização de oficinas e saraus.

Considerando a natureza dinâmica e processual da literatura de cordel, o folheto guarda em sua materialidade a expressão de uma tradição oral e escrita que se renova e se atualiza para além da própria poesia. Tal tradição “pressupõe o compartilhamento de saberes e experiências e o uso da cultura como instrumento de luta, de afirmação de identidades e de ocupação de espaços” (NEMER, 2010NEMER, Sylvia. Memórias do cordel. In: ENCONTRO REGIONAL DA ANPUH RIO, 14., Rio de Janeiro: Unirio, 2010., p. 8). Dessa intrínseca relação entre o oral e o escrito, o folheto representa o suporte da memória coletiva em sua relação dialógica entre o passado e o presente. Enquanto expressão da arte popular brasileira e símbolo de uma cultura do Nordeste, foi no contexto do processo migratório que o cordel revelou seu potencial de atualização, fazendo da peleja cotidiana a conquista do território nacional.

Mas se há o entendimento de que a literatura de cordel como patrimônio cultural imaterial se define pela sua forma de versificar, constituindo uma poesia rimada, metrificada, portanto não importando o suporte, na contemporaneidade, outros suportes e outras linguagens têm contribuído para a atualização e (re)encantamento do cordel, apesar de muitos crerem aí estar seu desvirtuamento. É só consultar os catálogos das editoras e encontrar livros ilustrados flertando com a linguagem dos quadrinhos. Nesse mesmo movimento, os suportes de natureza digital têm fomentado pelejas em redes sociais, como o e-mail, o Facebook, os blogs, o WhatsApp etc. (IUMATTI apud RONCOLATO et al., 2017RONCOLATO, Murilo et al. Os versos e traços da literatura de cordel. Nexo. São Paulo, 3 de maio de 2017. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/especial/2017/05/03/Os-versos-e-tra%C3%A7os-da-literatura-de-cordel> Acesso em: 9 jul. 2018.
https://www.nexojornal.com.br/especial/2...
). Repensar os formatos de memorização e os procedimentos de conservação/preservação é um dos desafios reservados à salvaguarda da memória da literatura de cordel após sua titulação como patrimônio cultural imaterial do Brasil.

Levando em conta que o instrumento do registro confere “a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira” (BRASIL, 2000), sujeito a revisão após dez anos, como pensar um plano de salvaguarda compartilhada que acione a rede de atores envolvidos em seu processo produtivo e as instituições tutoras de acervos de folhetos de cordel?

Historicamente essas instituições públicas tiveram e têm um papel importante na formação dos acervos de folhetos. Na condição de lugar de memória da literatura de cordel, têm o desafio de enfrentar questões consubstanciadas pelas ações de salvaguarda que vão além da prática em si como são as questões relativas à propriedade intelectual, direitos culturais, direitos difusos e direitos coletivos, dentre outros (CHUVA, 2015CHUVA, Márcia. Da referência cultural ao patrimônio imaterial: introdução à história das políticas de patrimônio imaterial no Brasil. In: REIS, Alcenir Soares dos; FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves (Org.). Patrimônio imaterial em perspectiva. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015., p. 39). A figura do autor, mas também dos proprietários das coleções, ganhou novas complexidades quando do processo de constituição de bancos de dados e acesso disponibilizados por essas instituições. Trazer a público a historicidade de tais acervos e colocar em perspectiva as coleções e seus colecionadores constitui uma chave importante para compreender os novos desafios das instituições parceiras na salvaguarda compartilhada da literatura de cordel.

Só para finalizar com um exemplo, cito a Coleção de Cordel Gilmar de Carvalho do IEB. Em entrevista concedida a nós, Gilmar de Carvalho (2018) trouxe elementos importantes para pensar a história da memória do cordel do Nordeste e a formação de sua coleção, que teve início na primeira viagem que fez, em 1976, por meio do convite do xilógrafo Stenio Diniz, à cidade de Juazeiro do Norte, onde conheceu a Tipografia São Francisco (Lira Nordestina), na ocasião, dirigida por Maria de Jesus Diniz, mãe do xilógrafo. Desde então, a constituição do campo de estudos da cultura popular no estado do Ceará se confunde com a própria trajetória do pesquisador e intelectual que se dedicaria a esses estudos e formaria tantos outros pesquisadores como professor de comunicação da Universidade Federal do Ceará. Dessa coleção, saíram trabalhos seminais, como Publicidade em cordel (1994) e Madeira matriz (1999), nos quais o universo do cordelista e a sua poesia foram sendo revelados juntamente com a consagração de poetas e xilógrafos já citados.

Foi a partir dessa coleção, que chegou a somar 11 mil folhetos e foi vendida para a Universidade Estadual de Campina Grande (PB), que as duplicatas começaram a alimentar, em 1994, a Coleção de Cordel Gilmar de Carvalho do IEB, sendo atualizada até hoje. Ao tomar contato com o acervo de cordel Ruth Brito Lemos Terra para a sua pesquisa de doutorado em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ficou impressionado com o cuidado e a preservação dos folhetos, ao mesmo tempo que o incomodou a ideia de que o acervo havia parado no tempo. Movido pelo entendimento de que o “cordel é vivo, se atualiza e permanece”, daí a necessidade de atualização do acervo, e também por uma questão de cidadania que expressa o seu “bem-querer para o cordel”9 9 Gilmar de Carvalho em entrevista concedida ao autor em 4 de abril de 2018. , Gilmar de Carvalho passou então a reunir as duplicatas de sua coleção para destiná-las ao Arquivo do IEB, totalizando hoje 1.028 documentos.

Se o registro e os planos de salvaguarda constituem-se em dispositivos das políticas públicas que possibilitam aos grupos detentores do bem se colocarem na condição de sujeitos ativos na construção de sentidos do patrimônio cultural imaterial, ao pensar a preservação da memória das tradições populares, devem-se levar em consideração as relações sociais que as inscrevem e as produzem, no caso, a memória dos sujeitos produtores: os cordelistas. Isso é algo que pouco aparece nos acervos de cordel das instituições públicas, da mesma forma que a micro-história da coleção por seu colecionador ensaiada somente foi acessada por meio da entrevista com o professor Gilmar de Carvalho.

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  • 2
    Pesquisa que venho desenvolvendo no Departamento de História da Universidade Federal do Ceará com apoio de bolsa Pibic-UFC.
  • 3
    Em 2005 o Conselho Consultivo do Iphan reconhece o Acervo Histórico da Discoteca Oneyda Alvarenga, no qual está integrada a coleção da Missão, como patrimônio cultural brasileiro e, em 2009, a coleção teve sua candidatura aprovada como patrimônio documental pelo Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo da Unesco.
  • 4
    A proposta chama a atenção de jovens pesquisadores das mais diversas áreas, como ciências sociais, história, filosofia, música, teatro, fotografia e artes plásticas, por exemplo. Dentre os que aceitam aventurar-se pelos desafios que o Projeto Artesanato e posteriormente o Ceres apresentam, podemos destacar Roberto Aurélio Lustosa da Costa, Oswald Barroso, Maurício Albano, José Carlos Matos, Olga Paiva, Edvar Costa, Norma Colares, Rosemberg Cariry, Otávio Menezes, Sylvia Porto Alegre, Gilmar de Carvalho.
  • 5
    Fizeram parte da equipe de pesquisadores do volume I da Antologia da literatura de cordel os seguintes pesquisadores: Roberto Aurélio Lustosa da Costa, Carlos Alberto Costa Lázaro, José Carlos Bezerra de Matos, José Edvar Costa de Araújo, Maria Célia de Araújo Guabiraba e Raimundo Oswald Cavalcante Barroso.
  • 6
    A partir da releitura da Carta do Folclore, aprovada no I Congresso Brasileiro de Folclore, realizado em 1951, no Rio de Janeiro, o documento final do Congresso de Salvador formulou essa nova concepção de folclore.
  • 7
    Outros três livros são: Livro dos Saberes (conhecimento e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades), Livro dos Lugares (como feiras, mercados, santuários, praças e demais espaços onde se reproduzem práticas culturais coletivas), Livro das Celebrações (festas, rituais que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas cotidianas).
  • 8
    Instrumento de pesquisa frequentemente utilizado para subsidiar a elaboração de Dossiês de Registro de bens de natureza imaterial. Com respaldo no arcabouço teórico e metodológico da antropologia, uma experiência pioneira na aplicação do INRC foi desenvolvida pelo antropólogo Antonio Augusto Arantes, em parceria com o DID/Iphan, na esfera do Museu do Descobrimento, em Porto Seguro (BA), no ano de 1999.
  • 9
    Gilmar de Carvalho em entrevista concedida ao autor em 4 de abril de 2018.
  • Este texto foi apresentado no Seminário “Acervos de cordel, bancos de dados e patrimônio em instituições públicas: desafios e perspectivas”, promovido pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), em 25 de abril de 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2018
  • Aceito
    25 Fev 2019
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