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Maquinação do mundo: a potência da literatura

“Maquinação do mundo”: the power of literature

WISNIK, José Miguel. . Maquinação do mundo: Drummond e a mineração . São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Resumos

RESUMO • Este texto é uma resenha do livro Maquinação do mundo: Drummond e a mine ração (2019) de José Migue l Wisnik, focalizando questões relativas à hermenêutica nos estudos literários.

PALAVRAS-CHAVE
Resenha; Maquinação do mundo: Drummond e a mineração; José Miguel Wi snik; Carlos Drummond de Andrade


ABSTRACT • This is a review of the book “Maquinação do mundo: Drummond e a mineração” (2019) by José Miguel Wisnik, focusing on issues related to hermeneutics in literary studies.

KEYWORDS
Review; Maquinação do mundo: Drummond e a mineração; José Miguel Wisnik; Carlos Drummond de Andrade


“Temos que derreter Minas”, sentencia Monteiro Lobato em 1931 n’O Estado de S. Paulo, “é nas tremendas reservas de óxido férrico lá acumuladas que dorme o Brasil futuro - rico, sadio, poderoso” (LOBATO, 1972LOBATO, Monteiro. O escândalo do Petróleo [1936] e Ferro [1931]. Obras completas de Monteiro Lobato. 1ª série, literatura geral, v. 4. 12 ed.. São Paulo: Brasiliense, 1972., p. 132). O artigo, recolhido nesse mesmo ano no opúsculo Ferro, é uma das peças da cerrada argumentação do literato e homem de negócios paulista em favor do desenvolvimento econômico do país, a partir da intensiva exploração de jazidas nativas e da nacionalização de atividades da produção do ferro. Garante, enfaticamente: sendo o ferro a matéria-prima da máquina, só ele “cria a riqueza e o poder” (LOBATO, 1972LOBATO, Monteiro. O escândalo do Petróleo [1936] e Ferro [1931]. Obras completas de Monteiro Lobato. 1ª série, literatura geral, v. 4. 12 ed.. São Paulo: Brasiliense, 1972., p. 132), na segura premissa de que “civilização é maquinização” (LOBATO, 1972LOBATO, Monteiro. O escândalo do Petróleo [1936] e Ferro [1931]. Obras completas de Monteiro Lobato. 1ª série, literatura geral, v. 4. 12 ed.. São Paulo: Brasiliense, 1972., p. 131). Na mesma pauta jornalística, Lobato critica o governo federal por assinar contrato considerado desvantajoso com a Itabira Iron Ore Company, que autorizava a empresa estrangeira a exportar três milhões de toneladas de minério, rendendo ao Brasil apenas “o magro salário do trabalhador que as minera, mais um magro frete às estradas que as transportam” (LOBATO, 1972LOBATO, Monteiro. O escândalo do Petróleo [1936] e Ferro [1931]. Obras completas de Monteiro Lobato. 1ª série, literatura geral, v. 4. 12 ed.. São Paulo: Brasiliense, 1972., p. 152).

A postura pragmática de Monteiro Lobato mira exclusivamente o elemento econômico, visto como panaceia contra todos os problemas (políticos, raciais, climáticos) do país, em um “mundo que se vai ferrando até os dentes” (LOBATO, 1972LOBATO, Monteiro. O escândalo do Petróleo [1936] e Ferro [1931]. Obras completas de Monteiro Lobato. 1ª série, literatura geral, v. 4. 12 ed.. São Paulo: Brasiliense, 1972., p. 138). A selvagem ação mineradora, fomentada pela ambição capitalista, local ou estrangeira, por fim, foi deixando marcas profundas na paisagem das alterosas, e em muitos campos da experiência coletiva brasileira. A pintora Djanira, em 1976, registrou, em uma série de telas, com fôlego de denúncia, a destruição causada pelas “Minas de ferro” em Itabira. Enormes sulcos terrosos, como devastadores tentáculos, arrasam a natureza, sitiando a cidade. Fixou, em Mina de ferro, Itabira, CVRD, em viés abstracionista, a enormidade das barragens de rejeitos da extração mineral, em sua ocre aridez aniquiladora. O fenômeno da mineração no Brasil do século XX até o presente suscita reações e avaliações críticas de cientistas, políticos, intelectuais, escritores e artistas plásticos, abordando variadas faces do empreendimento.

O professor de literatura brasileira José Miguel Wisnik, em Maquinação do mundo: Drummond e a mineração, valendo-se de vigoroso instrumental analítico e interpretativo, focaliza a relação do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) com os diferentes momentos da intensiva exploração da hematita nos arredores de sua cidade natal, Itabira do Mato Dentro. Evidencia, em traços fortes, como o tema da mineração perpassa a extensa obra drummondiana, de forma ostensiva ou latente, a começar pela evocação lírica da chegada de especuladores estrangeiros à região, de olho no ubérrimo terreno montanhoso, desaguando nos embates jornalísticos do escritor com a empresa estatal exploradora das jazidas, a Companhia do Vale do Rio Doce, nos anos de 1980. Ilumina-se no estudo, em principal, o espectro da história complexamente entranhada na poesia e na prosa do autor, desde a “notação fina, a rememoração lírica, a resistência sintomática e a intervenção de protesto até o enigma, a alegoria e a cifra interrogante sobre o destino humano” (p. 77-78). Ou, ainda, o tensionamento entre a “mitologia pessoal mais íntima” do poeta e o “real da história econômica” (p. 18).

Enquanto “livro de crítica literária” (p. 77) que institui consistentes diálogos com a história econômica, a geografia, a antropologia, as artes visuais e outras áreas do conhecimento, o ensaio sobre a poesia de Drummond testemunha a fecunda inquietude de Wisnik. Em seu percurso intelectual, debruça-se sobre variadas manifestações humanas, palmilhando a seara da música popular e erudita, da crítica cultural (futebol, teatro, política, questões de gênero) e o da criação (o cancionista). O estudioso da literatura interpreta a poesia de Drummond, sublinhando as relações entre texto e contexto, nas trilhas do pensamento teórico de Antonio Candido. Sob essa perspectiva, apreende a “massa de acontecimentos [...] condensados” no poema (p. 92) ou, ainda, reconhece “uma história social [...] entranhada no núcleo de um complexo poético” (p. 72). Essa leitura crítica, longe de querer apenas flagrar nos versos o biográfico, o anedótico ou o circunstancial - “subterfúgios para fugir à literatura” (p. 74) -, mostra a engenhosa transfiguração da matéria referencial em poética, a formalização artística de um modo de ver singular e de um posicionamento autoral em face da realidade. Sem estridências teóricas, Wisnik penetra “surdamente” (a célula musical do ensaio) nos meandros de uma intrincada cosmovisão poética. O apurado filtro analítico que distingue a mineração como inescapável linha de força do lirismo drummondiano propicia uma releitura original de “Máquina do mundo”, de Claro enigma (1951), na medida em que, podendo ela ser entendida como a “aparição intempestiva do Absoluto”, percepção corrente na fortuna crítica do poema, expressa ainda a “indicação elíptica de um trauma histórico e a intuição totalizante dos dispositivos de dominação e de exploração que se abrem no mundo do pós-guerra” (p. 46). Em uma visada, “Máquina do mundo” será igualmente compreendida pelo crítico como “pedra totalizante no meio do percurso [criativo], o núcleo secreto dessa história, seu cerne simbólico” (p. 45).

O ensaísta entrevê na poesia de Carlos Drummond de Andrade, encharcada de negatividade, “o campo de uma implacável autoanálise”, paragem “reflexiva e conflituada” que ajudaria a convalidar a sua “potência” discursiva (p. 42). Se Maquinação do mundo, com seu notável fôlego hermenêutico, ilumina o modo como uma “intuição poética” pôde captar a história recente da mineração, não apenas como experiência subjetiva, mas ainda como espelho do problemático processo da modernização brasileira, o que avulta no horizonte (programático) do estudo literário de Wisnik é o debate sobre a “força da poesia” (p. 70). O crítico cumpre, portanto, simultaneamente, a práxis interpretativa de poemas do criador de A rosa do povo, segundo um ângulo temático de visão inédito, e uma densa reflexão sobre a natureza, as funções e a “razão de ser” da poesia na modernidade. Em Drummond e nos poetas de mesma grandeza, avalia-se que o artefato lírico se impõe como “instrumento de percepção alargada e de criação de mundos, de vislumbres antecipatórios que vão muito além da reportagem factual” (p. 20). Em face dos desconcertos do mundo, a poesia pode investir-se do alto “poder de questionamento”, em largo alcance, inquirindo inclusive sobre desarranjos sociais e políticos (p. 179).

Partindo do mergulho no universo lírico de Drummond, cria-se, no ensaio, o paradigma da poesia enquanto “potência”. Sendo ela uma forma de conhecimento, em profundidade, do ser nas “maquinações do mundo”, irmana-se à filosofia. Em trecho de alta voltagem elucidativa das funções da poesia, mormente em tempos de obscurantismo, Wisnik compõe uma síntese memorável ao afirmar que ela nos convida “a aderir ao espanto da enormidade da vida e da morte (em vez de se agarrar a soluções generalizantes a serem atiradas contra quem se desvia), a encarar os múltiplos vieses dos desejos (em vez de escondê-los na perseguição aos outros), a vibrar o destino da coletividade (em vez de limitar-se à manutenção dos próprios privilégios e da própria cegueira obstinada)” (p. 22). A poesia (a literatura), em suma, refina o sentido de humanização.

O estudo literário de José Miguel Wisnik instaura um provocante curto-circuito no aparato crítico do livro ao observar o tensionamento entre poesia e experiência histórica, quando a primeira anseia modificar a segunda, percebida como precária ou injusta. A poesia, então, encara vicissitudes, vivencia seus limites. Sendo a poesia de Drummond um “rompante poderoso” (p. 179), discurso inquietante e corrosivo, emparelhado a outros de seus textos que aspiram a resistir ao vagalhão capitalista (figurado na mineração), esse artefazer lírico, entretanto, vai experimentar o sentimento “de uma derrota sem objeto e sem paralelo” (p. 142), de “batalhas inglórias” (p. 162), ou, ainda, de “fracasso na tentativa de deter a pulsão predadora e espoliadora” dos interesses mercantis (p. 169). Sob essa luz crua, o poema “luta” (p. 163), mas não faz frente ao rolo compressor do produtivismo universal. A despeito de tantos gestos engajados de Drummond, o Pico do Cauê transformou-se em volátil capital internacional, deixando em seu lugar ruínas e um rastro de miséria e sofrimento, vide a tragédia de Mariana e, agora, a de Brumadinho. Inútil a poesia?2 2 Gloso aqui o título da obra de Leyla Perrone-Moisés, Inútil poesia e outros ensaios breves (2000).

Com o artista plástico (e escritor) Nuno Ramos, José Miguel Wisnik levanta a incontornável questão de fundo: a que se deve “a pouca ressonância do objeto artístico no ambiente em que se insere”? Em face da percepção de que a “energia emitida” pela matéria estética estaria em “descompasso com o meio” que a engendrou, lamenta-se a falta de uma “audiência ativa capaz de rebater a potência das questões investidas” nas obras de imaginação (p. 237). A sombria constatação, antes de mais nada, aguilhoa a consciência, suscitando movimentos de reconfiguração do presente. A mil léguas de esboçar um réquiem para a poesia (e, para a literatura, a arte), Maquinação do mundo vem realçar o vigor reflexivo e crítico das artes, como forças de resistência a tantas adversidades e como centelha de utopias (empuxos de transformação da realidade degradada).

À crítica literária, o seu quinhão de compromisso em nosso “parque humano” (Sloterdijk, 2000SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.): ensinar a surpreender as mais fundas camadas de significados do texto, trazendo a lume o verdadeiro sentido da fruição da arte, a força do pensamento crítico, os processos de autoconhecimento, a plena vivência de alteridades, a percepção de transformações que favorecem a todos indistintamente. Se há sempre uma cota política no exercício da crítica literária, ela energiza-se ao valorizar o gosto do exercício escritural, como nos ensina, agora, José Miguel Wisnik, com esse saboroso ensaio magnetizado pelo senso estético. E como também nos ensinava Mário de Andrade, em 1939, ao assegurar no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, em seu primeiro texto na coluna Vida Literária: “a crítica é uma obra-de-arte, gente”! (ANDRADE, 1993ANDRADE, Mário de. Começo de crítica (5 mar. 1939). Vida literária. Pesquisa, estabelecimento de texto, introdução e notas de Sonia Sachs. São Paulo: Edusp/Hucitec, 1993., p. 11).

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    Gloso aqui o título da obra de Leyla Perrone-Moisés, Inútil poesia e outros ensaios breves (2000).

REFERÊNCIAS

  • ANDRADE, Mário de. Começo de crítica (5 mar. 1939). Vida literária Pesquisa, estabelecimento de texto, introdução e notas de Sonia Sachs. São Paulo: Edusp/Hucitec, 1993.
  • LOBATO, Monteiro. O escândalo do Petróleo [1936] e Ferro [1931]. Obras completas de Monteiro Lobato 1ª série, literatura geral, v. 4. 12 ed.. São Paulo: Brasiliense, 1972.
  • PERRONE-MOISÉS, Leyla. Inútil poesia e outros ensaios breves São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2019
  • Aceito
    29 Jul 2019
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